Fanny: estudo - 1

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OBRAS
DE
CAMILLO CASTELLO BRANCO
EDIÇÃO PARA BIBLIOPHILOS
XVI
FANNY

VOLUMES PUBLICADOS
I--Coisas espantosas.
II--As tres irmans.
III--A engeitada.
IV--Doze casamentos felizes.
V--O esqueleto.
VI--O bem e o mal.
VII--O senhor do Paço de Ninães.
VIII--Anathema.
IX--A mulher fatal.
X--Cavar em ruinas.
XI, XII--Correspondencia epistolar.
XIII--Divindade de Jesus.
XIV--A doida do Candal.
XV--Duas horas de leitura.
XVI--Fanny.


FANNY
ESTUDO
POR
ERNESTO FEYDEAU
ROMANCE
TRASLADADO PARA PORTUGUEZ, DA DECIMA OITAVA EDIÇÃO
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO

Aquelle, que cavar um fosso, cahirá n'elle;
aquelle, que derruir uma muralha,
será assalteado por uma serpente.
ECCLESIASTES.

_TERCEIRA EDIÇÃO_

LISBOA
PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA EDITORA
_Rua Augusta, 50, 52 e 54_
1903


Officinas typographica e de encadernação, movidas a vapor
Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º
LISBOA


I
A caza está situada de esguêlha, sobre um comoro de areia, á orla da
praia, olhando de soslaio o oceano, como desconfiada d'elle. É uma casa
baixa, de pavimento plano, com um recinto ao rez do chão, um portal,
seis janellas, e uma chaminé de gêsso, meio esburacada, no cume do
telhado.
Á primeira vez que de longe a vi, caminhando eu atravez de desertos
cabedellos, tinha ella um tão triste aspecto, que eu senti serrar-se-me
o coração. Estava inscripto o desamparo nas largas fendas que
desconjunctavam as paredes, e nas rachas profundas das telhas
desmantelladas. Gemia a porta a cada bulcão do vento que a embatia
contra o gonzo unico. Das montanhas aquosas do oceano erguia-se, como um
sudario, a nebrina que a envolvia.
Fazia frio. Uma briza cortante sacudia, silvando o dorso das vagas,
marulhando-as, revolvendo-as, e espedaçando-as. Rolos de areia, de
mistura com entulho, limos e cardos, refluiam até á testada da porta. Do
outro lado, á maneira d'uma nodoa verde-escura, crescia a herva, que
invadia o antigo jardim.
Uma pobre arvore, vergada sobre a parede, do lado de terra, escassamente
sustentava a ramagem que a ventania furiosa atormentava. Junto á raiz,
conservava apenas alguns restos de folhas dessecadas. Com lamentavel
aspecto, se erguia ella, dentre os sacões do vento, mas a goteira de
chumbo, pendida da cornija, e açoitada pelas refegas oppostas,
rossando-lhe nas grimpas, desfazia-lh'as a pedaços.
Eu, ao querer desterrar-me da sociedade, lembrei-me d'esta abegoaria,
que meu pae me herdára, e era o restante d'um casal, já desbaratado. Vim
alli procurar o silencio e a solidão. Mas não reparei o solar da porta,
nem fiz cultivar o jardim. Deixei as fendas do tecto, pelas quaes se
coava a chuva; deixei as fendas nas paredes, por onde irrompia o
asperrimo furacão das noites do outono. Não chumbei o gonzo do portal.
Não levantei a goteira de chumbo. Não me amiserei da velha arvore que se
estorcia como um crucificado contra o muro, por que a sorte não se
amiserára de mim.
Installei-me na salla unica sem alterar nada da sordida mobilia. Um
banco de pau foi a minha cadeira; um monte de cisco, revessado pelo mar,
foi o meu leito. Nunca na chaminé se accendeu lume. Nutri-me do pão
negro e duro dos marujos. Bebi agua empoçada que me dava a cisterna.
E desde o dia que entrei ahi até ao dia em que isto escrevo, nunca mais
sahi da casa triste. Prostrado sobre a folhagem dura, sentado no banco
estreito, com os joelhos justa-postos, os braços pendidos, as mãos
inclavinhadas, a face descaida, deixei correr os dias indifferentemente.
Como os bois corpulentos, que eu via, na minha infancia, ajoelhados
entre as hervagens dezertas, eu ruminava o pasto amargoso das minhas
remeniscencias.
Com tudo, algumas vezes, com o passo vacillante dos ébrios, transpunha
eu o limiar da porta, e errava lentamente, e cambaleando, em roda da
minha habitação maldita. Á luz gélida e palida das estrellas de
novembro, contemplava-a eu, comparando-a a tumulo abandonado, que
apodrece debaixo das hervas, e espantava-me sempre de a vêr em pé,
gemebunda, sob os açoites do vento que a verberavam.
Nunca, porém, me alonguei d'ella. Fóra d'ahi quem poderia attrahir-me? O
oceano, d'um lado, desdobrava suas ondas enfurecidas com clamor monotono
e afflictivo; do outro, o areal, mosqueado de manchas verdes,
alongava-se a perder de vista; por cima, rolavam as nuvens pesadas e
silenciosas. A minha casa era a unica, que recortava o horisonte
carrancudo com seu triste perfil; e o promontorio de rochas pardacentas,
ante mim, alongava sempre no flanco do mar o seu grande braço
minacissimo.

II
Se voluntariamente me exilei n'esta horrida solidão, é por que, por
desgraça minha, amei, e amo ainda. Não cuideis, porém, que algum
terrivel successo me distanciou, a meu pezar, da mulher que amo.
Prouvera a Deus!... Poderia ainda abençoal-a!
Desde muito que eu a amava sem ousar dizer-lh'o. Separavam-nos tantos
estorvos, que o combatel-os me atemorisava. Tinha eu então vinte e
quatro annos, de mais a mais! Eu corava quando nossos olhos se
encontravam. Diante d'ella, tremia, commovido pelo extasis. Comprehendeu
por fim que eu a amava, e serenamente, como quem se arremeça a transpôr
uma barreira, ella mesma, com sua mão gentil, removeu todos os
obstaculos.
Oh! era por isso mesmo, sobre tudo, que a eu adorava. E, depois, tão
meiga e linda! Aos trinta e cinco annos, conservava toda a frescura e
jovialidade da meninice, e a estes encantos alliava um não sei que de
serêno que as mulheres adquirem na experiencia e costumes da
sociabilidade.
Era alta, elegante, e de leve delgada nas espaduas, breve a cintura, os
encontros modestos; e o pizar mesurado denotava na sua firmeza uma alma
activa em agil corpo. Por costume, deixava cair os braços de rainha, e
nus os ajuntava cruzando as mãos, quando estava em pé: então, as grandes
dobras do seu vestido de veludo-granada, caíam-lhe verticaes sobre os
pés arqueados, e a cauda firmava-se no chão; e, quando caminhava a
passos solemnes, erguia um pouco a formosa cabeça, radiosa sobre colo de
cysne, suavemente inclinado.
Sentada, gostava de encostar a face á mão direita, repousando o braço
esquerdo sobre o setim brilhante da cadeira que seus dedos afilados como
franjas de marfim, rossavam de leve. Tinha cabellos loiros e lustrosos,
que desciam em espiraes ao longo das fontes, das faces pallidas, e em
redor do colo. Fronte pequena, nariz d'uma exquisita e suave belleza, a
barba liza, tudo em harmonia com as sobrancelhas arqueadas, e os labios
finos e justa-postos. Os olhos azues, em fim, d'um azul sombrio e meigo,
e amplas pupilas negras, languidamente envoltas em palpebras salientes
franzidas de cilios espessos, tinham uma expressão de ternura, de
candidez, de spasmo, de pureza que me irritava e endoudecia!
Amei-a perdidamente, e assim a amo ainda. E ella... amava-me como sabia
amar, com interior reserva, calculadamente. A naturalidade do seu ar
acanhava-me. Ainda quando me apertava em seus braços com transporte,
parece que me distanciava de si. As rainhas e imperatrizes devem amar
assim os seus amantes. Foi por isso que eu, desde o principio, soffri, e
vim até este extremo em que me vêdes.
Como eu quizera passar com ella os instantes todos da minha vida,
procurava todas as occasiões de encontral-a. Não podia contentar-me com
as duas horas que ella me dava de cada semana. Eram tantos os seus
encargos domesticos! E eu imprudentemente a perseguia por toda a parte,
ficando muitas vezes horas inteiras, com o rosto ao vento e os pés no
gêlo, só para vêl-a, passar, graciosamente encapuzada no capuz de sêda
côr de rosa, atravez do vidro de sua rapida carruagem. Todas as noites,
com o coração angustiado, errava eu, por entre os nevoeiros, debaixo de
suas janellas luminosas, ou, rebuçado e confundido com a gentalha, lhe
expiava a saida do peristylo do theatro dos italianos; ou, encostado á
couceira de uma porta, a esperava longo tempo para vêl-a entrar no
baile, com os cabellos enlaçados de flôres, as espadoas nuas até aos
seios, e então observa se o «corpinho» de setim branco tremia sobre a
pressão anceiada de seu peito, quando me via. Custava-me a não me
ajoelhar aos pés d'ella, quando a cortejava respeitosamente.
Ahi, no baile, n'esse ambiente pesado e saturado de acres perfumes, sob
os raios deslumbrantes que irradiavam como flechas do coração dos
lustres, eu a contemplava movendo-se graciosamente. Seguia-a com os
olhos, encostada ao braço d'um ancião cravejado de medalhas, que a
denominava affectuosamente pelo seu pronome. Distinguia-se entre todas,
quando, de fronte soberana, e pisar magestoso, circulava por entre os
grupos. Contemplava-a ainda, quando meio recostada ao espaldar d'uma
cadeira ampla, cortez sem frieza, acolhia os preitos dos mancebos
graves; ao passo que, unida ao hombro d'um walsador infatigavel, immovel
a cabeça e o tronco, redemoinhava em ondas de gaze e rendas, aos
accordes melodiosos das flautas e violinos. Coruscavam-lhe então os
olhos como estrellas, sob as flôres que se desinastravam das espiraes
dos cabellos. Desjunctavam-se os labios para se verem as perolas dos
dentes. Purpureavam-se-lhe, como ao contacto dos meus labios, as faces
pallidas, e as alvas espadoas.
E a cada rodopio, a ponta do pequenissimo pé, mostrava-se á orla do
vestido que a rapidez do movimento fazia recuar. Mas nem as seducções
das homenagens, nem as excitações da walsa, nem a minha mesma presença,
conseguiram excital-a! Com semblante alegre tudo acolhia com
tranquilidade egual de aspecto. Isto, mais que as sollicitações do
olhar, turvava e empallidecia aquelles, cujos olhos encontravam os
d'ella. Com tudo, nunca lhe surprehendi essas maneiras meio-zombeteiras
e seductoras que são a falsa linguagem da lucta de um coração abalado
com um espirito indeciso; maneiras que desfarçam e colorem as
concessões, e irritam a esperança sem desanimal-a.
Mas como é que a presença do seu amante a não perturbava nunca? Bem
podia eu fital-a até cegar na fixidez do olhar, que ella parecia não me
vêr nunca.
Era mulher até ás pontas dos cabellos!

III
Chegava emfim o dia suspirado! Erguia-me de madrugada, e todo me dava ao
infantil prazer de arrumar eu mesmo o meu quarto. Decorava-o de novas
flôres; baixava os transparentes de brocatol côr de rosa, enramalhados
de flôres, a fim de quebrar com suavidade o brilho da luz, que os
coloria magicamente. Refegava artisticamente os cortinados de cassa e
alizava com as mãos o tapete de cadarço do meu leito. Regulava o
relogio, cujo pendulo tão moroso então me parecia. Sobre um bofete de
páo das ilhas, dispunha em bandeijas chinezas, dôce de fructa,
pastelaria, e em roda calices de Bohemia, e alguns frascos empoeirados
de Marsalla. Mandava o creado passear até á noite, e ficava eu senhor
absoluto do meu elegante recinto. Ahi todo me agitava livre como a ave
entre ramagem dos bosques desertos, arredondando e brunindo com o peito
inquieto o dôce ninho dos seus amores.
Que cuidados me não dava o prevenir os menores desejos da mulher que eu
estremecia! com minhas mãos pregava os alfinetes no pregador de veludo.
Tirava do estojo de marroquim escarlate o pente de dentes escamosos que
ella usava para alisar os cabellos descompostos pela pressão de meus
dedos tremulos. Atiçava o dôce fogo que se avermelhava entre as cinzas.
Aproximava do fogão a cadeira d'ella; trazia do divan a almofada em que
ella punha os pés, e eu os joelhos, na attitude dos devotos contemplando
seu idolo. E quando estava assim disposto tudo, quando o ponteiro
d'ouro, avisinhando-se do numero escolhido, parecia dizer-me: «Vais
ouvir soar a hora de teu prazer,» mais inquieto e agitado que nunca, ia
eu pé ante pé, da porta á janella, como vae e vem o cão fiel,
atormentado pela impaciencia, adivinhando o andar de seu dono.
E eu dizia comigo: «A esta hora, tambem ella lança a furto os olhos ao
seu relogio. Sabe que a espero. Agora, deante do espelho, aperta na
barba o broche da capa de veludo. Incaracola os cabellos rebeldes sobre
a fronte pura. Involve as espadoas no chalé escuro, e aperta-o sobre o
peito com o alfinete de camapheu. Veste as luvas, e irrita-se. Sobre os
olhos negros accumula as dobras do véo tambem negro. Atravessa as salas
desertas. Passa. Roda a chave. Sae. Desce. Corre cozida com as casas.
Vou vêl-a!
E depois, mais nada... Oh! que longo é o tempo quando se espera e
desespera! Se algum estorvo sobreviesse! uma visita, o capricho d'um
filho! Que desgraçado sou! não virá ella? Já se demora!
E, com tudo, era-me tão dôce recebel-a aqui, uma vez mais, neste quarto
tão bem disposto para ella! Tão dôce o recebel-a nos braços, no limiar
da porta, e arrebatal-a para escondel-a como um thesouro! Tão bom
tocar-lhe as mãos, os cabellos, e vêl-a emfim fitar-me com seus olhos
lindos, e ouvil-a dizer: «tu» com aquella voz muzical!

IV
Chegava ella emfim! Encostado ao alizar da porta entre-aberta, escutava
eu o fremito do seu vestido, e o ranger das botinas sobre o tapete da
escada. Entrava ella, roixa de frio, offegante, com as pestanas
lagrimosas, e, sem erguer o véo, sem dizer palavra, atirava-se-me toda
ao peito, cingia-me o pescoço, e, timorata e assustada como um
passarinho, applicando o ouvido, escutava, convulsiva, o menor rumor que
se fazia na casa ou na rua.
E, quando emfim os mêdos se aquietavam, e que ella se decidia a transpor
o limiar, era uma como visão deslumbrante que alagava em ondas de luz a
camara fechada. Os menores objectos, com a presença d'ella, eram-me
thesouros inestimaveis. Tudo parecia animar-se então, como, nos
primeiros dias da primavera, despertam as florestas que dormiam sombrias
e taciturnas.
Algumas vezes, comtudo, festivos raios do sol, coando-se pelas juntas
dos cortinados, atravessavam o espaço, e quebravam-se ao fundo da
alcova, sobre a superficie polida d'um espelho. As flôres das jarras,
postas deante das janellas, desfolhavam uma a uma, juncando o tapete das
suas frescas petalas. Segredando, de mãos dadas, palavras incoherentes,
contemplava-m'o-nos como arrobados, absorvidos n'uma commoção deliciosa
e entranhada que nos adestringia docemente o coração, e nos marejava de
lagrimas os olhos. Como nosso amor, como nossa alegria, eram infinitas
estas expansões; nossos pensamentos, porém, não ultrapassavam as paredes
discretas do quarto silencioso. Para nós o mundo todo estava alli.
E como era aquelle devorar-m'o-nos de caricias! Que suave energia a dos
braços! que avidez nos beijos! que febril tremor nos gestos em quanto eu
lhe disputava em silencio os vestidos descompostos que ella retinha ás
mãos ambas, pallida d'um vago susto! Frenetico, de joelhos, cingia-a
pela cintura quebradiça, e ella, oscillante entre os meus braços
compressores, tomava-me a face entre as suas mãos, affastava-a com
meiguice, encarava-me, e voltava o rosto como se meus olhos a
aterrassem.
E eu, como esquecido de minha dignidade, arrastava-me aos pés d'ella,
beijando-lh'os nus. Oh! se eu morrêra alli, collados os labios áquelles
pés infantinos, brancos e rosados, que ella poisava n'um tapete de
plumas de cysne, a tiritar entre seus véos como o anjo da inquietação
meio involto na plumagem de suas azas!

V
Passado o primeiro momento da vertigem, parecia-lhe a ella coisa natural
o estar alli, ao tempo que eu a comprimia com ardor feroz. E então, no
explendor de sua desordem, desatadas as tranças, nuas as espaduas, nus
os braços, frios e viscosos os labios, mais muda, mais seria, mais
enleada que eu mesmo, estava tão senhora sua como se estivesse recostada
na cadeira de veludo ao pé do fogão de sua casa. Eu não sei o que ella
não fizesse com as mais naturaes e dignas maneiras! Nada a surprehendia
nem a molestava.

VI
De cada vez, tinhamos sempre que trocar um mundo de pensamentos novos.
Recontava-m'o-nos fadigas da espera, tristezas da auzencia, aspirações
da esperança, e o quanto era consolativo para amantes separados, o
pensar incessante um no outro. Fanny sobre tudo se deixava levar desta
união espiritual com toda a expansão d'uma alma juvenil. Recebia as
confidencias da minha ternura, como efluvios de incenso, que a immergiam
n'uma especie de torpor dulcissimo. Com mudos raptos de gratidão,
rosadas as faces, palpitantes as azas nazaes, sorrindo no olhar
embaciado, maravilhava-se ella da abundancia de minhas palavras, como
imagens graciosas que volitassem dos meus labios. Não a fatigava o
ouvir-me.--Mais, mais, ó meu Roger!--dizia ella. E, encostando o
cotovelo á almofada, inclinada a fronte na mão, requebrado o corpo, os
pés a resvalarem, anediando-me a testa e os cabellos, olhava-me com
tanta fixidez, como se quizesse esmirilhar os mais subtis lineamentos da
minha alma. Entretanto, eu, de joelhos, com as mãos juntas, sorria de
prazer como creança amimada, e cuidava que assim era o identificarem-se
nossas almas n'um apertar vago e dôce, com estremecimentos voluptuosos.

VII
No instante em que ella ia sahir, era então o irromper minha alma em
explosões de amor e angustia. E ella, pensativa, fitava nos meus, com
ternura, seus olhos azues e lympidos. Tomava-me affectuosamente as mãos,
que eu lhe disputava, voltando-me arrufado. Fazia-me graciosamente
sermões maternaes. Acariciava-me com bondade, abraçava-me, ia e vinha
para abraçar-me ainda.--Tornarei a vêr-te?--exclamava eu com
tristeza.--«Cala-te, Roger,»--respondia-me, abafando a voz n'um beijo.
Por fim, comprimia-a longo tempo ao coração; e, quantas vezes, ao
apartar-m'o-nos assim, sentiamos calidas lagrimas a cahirem nos labios
de ambos!

VIII
A minha vida ia com ella. Melancolicamente encostado ao peitoril de
minha janella, via-a por entre as fisgas das persianas, passar na rua.
Lá ia vagarosa, simples, tranquilla, bella. As duas fimbrias de seu véo
fluctuavam-lhe docemente sobre os hombros, acarinhando-lhe de cada lado
a face.
A barra do vestido, relevada de folhos de seda, sussurrava com o
movimento. Com ambas as mãos ajustadas sobre a cintura, comprimia as
dobras da cachemira que a involvia desde a nuca até ao artelho. Nunca se
voltava. Encostava-se ao longo das paredes para evitar o embate dos
caminheiros. Emfim, chegando ao angulo da rua, desapparecia; e eu
atirava-me sobre o leito, escondia nas mãos o rosto, avocando,
hallucinado, todas as minhas remeniscencias esparsas para ainda assim me
illudir com possuil-a.

IX
A primeira vez que ella ahi veio, não se espantou, mas examinava tudo o
que a rodeava, e em tudo bulia, com certo acanhamento. Havia lá espadas
de combate dispostas em tropheu. Lembra-me que ella reparou n'isso.
Tambem se deteve diante de um retrato de minha mãe, que tinha sido
formosissima, e deante da minha escrivaninha, coberta de livros e de
cartas. Mas, com discrição cheia de graça, passou, sorrindo, sem tocar
nas cartas.

X
Eu era feliz! Desprezava quantos não eram eu, porque ella os não amava!
De longe e de cima olhava o mundo. De tudo segregado, tudo via d'alto,
mas com indifferença, tumido de orgulho. Parecia-me que sobre mim
convergiam os perfumes todos da terra e sorrisos do céo. Nos olhares que
se encontravam com os meus, chammejavam os fulgores da inveja; e o
murmurar confuso das turbas agitadas, rumorejava aos meus ouvidos como
acclamações longinquas.
A imagem de Fanny absorvia-me a memoria, e desprendia-se de meus
pensamentos todos. Era, a um tempo, mais irritante que um sonho, e mais
consoladora que a esperança. Nunca eu antevera seduções tamanhas em
humana creatura, tantas delicadezas n'um coração, tanta graça na
reserva, tanto pudôr na renuncia de si!
Mescla de enthusiasmo e arrobamento, de illusões e desalentos, de
melancolia e criancice, fôra o bastante a conquistar-lhe o amor.
Parecia-me, todavia, pouco esmerada em attenções e cuidados. Tão amada,
por certo, tinha sido ella! Bella ainda, mais bella do que talvez se
cria, augmentava cada uma das suas graças com o esforço timido que punha
em evitar a apathia, que presentia de longe, com a vinda dos novos
annos.
Dias tinha ella em que era possivel traduzil-a nos olhos, quando cerrava
os labios n'uma expressão de meditar mais affectuoso, quando seus
cabellos, fluctuando-lhe sobre as fontes emaciadas, em flacidas spiras,
as envolviam com uma especie de suave piedade. Contemplava-lhe eu então
as mãos candidissimas, e figuravam-se-me duplicadas, para que suas
ultimas caricias fossem mais copiosas e maternas. Escutava ancioso os
suspiros que lhe sahiam do peito opprimido: tinha-os como protesto surdo
do coração que reagia ainda á indifferença, desejando-a acaso como
repouso, e expedia a sua mais bella flamma, antes de retrahir-se em si
para morrer.

XI
Eu era feliz! Mas a desgraça já vinha perto. Até então com a delicadeza
mais de incarecer, Fanny poupara-se sempre a fazer, diante de mim, a
menor allusão a seu marido. Com uma pouca de bemquerença, conseguira eu
phantasial-a livre e minha, sem partilha. Tão pudicamente se me déra
ella! Foi como rainha, sem nada mercanciar do que não podia ser vendido.
Um dia, porém--como isto foi, não sei!--ressoou suavemente nos labios
d'ella o nome de um filho seu, e, em seguida, não pôde deixar de
fallar-me d'elles.
Adorava-os com tão furioso amor, que me abandonaria se me eu não
comprazesse em ouvil-a repetir-me mil cousas pueris, tocantes a seus
filhos. Por mim fingia-me vivamente interessado n'esses contos, que ella
contava como abundancia extraordinaria de coração; eu, porém,
escutava-lhe mais a musica das palavras que as idéas. Eu adorava-lhe a
voz magica e melodiosa. E, de mais, eu era um tanto cioso de tudo que
ella amava.
Fallava-me, pois, de seus filhos. O mais novo soffrêra d'uma epidemia
passageira, e eu quasi que odiei essas criancinhas pelo unico delicto de
se aconchegarem comigo no ninho de amor do mesmo coração. O que ella
então fez forçou-me a reflectir mui amargamente sobre a affeição que uma
mãe póde dar a um homem. Esteve sem me vêr seis semanas. Não desamparou
esse berço sobre o qual se estorcia o dôce thesouro vivo, formado do
proprio sangue do seu coração. Escreveu-me quatro linhas apenas,
admoestando-me a soffrer com ella. Homem orgulhoso que pertendes
dominar, unico, sobre o coração d'uma mulher! aos menores vagidos de uma
creança, vê que lição te dá a natureza!
Á força de pensar n'esta creança, entrei a pensar no marido de Fanny; e,
a meu pesar, d'ahi a pouco, já não pensava senão n'elle. Nunca o tinha
visto. A mim que se me dava, n'outro tempo, de vêr o homem que lhe dava
o braço, para entrar no baile, e discretamente se sumia na multidão logo
que um circulo de admiradores a compelliam a isolar-se d'elle?
A ella amava, a ella sómente eu via, por ella vivia... que me importava
o marido d'ella?
Restabelecido o menino, Fanny, mais affectuosa e linda, ao primeiro dia
que me vio não percebeu que em mim havia um novo homem; adivinhou,
porém, que uma preoccupação secreta me alvoroçava, emquanto eu,
silencioso, lhe corria a mão sobre o braço nu. De repente, varada por
cruelissima suspeita, repulsa-me, ergue-se, e, voz em grita, jura que eu
a atraiçoara.
Sorri com doçura a esta louca arguição; e, tomaado-lhe a mão como
convite a sentar-se, simplesmente lhe disse que hesitava em pedir-lhe
novo favor, com receio de ser indiscreto.
--Que é?--disse ella, affastada ainda, e cravando-me um olhar de
surpreza.
Respondi que as seis semanas de solidão me haviam feito reflectir
tristemente sobre a nossa imprevidencia; que sem suspeitarmos que
incidente algum podésse apartar-nos, nunca nos cohibiramos de nos
aproximarmos. Finalmente, com um embaraço que eu não podia dominar,
balbuciei:
--Por que não sou eu admittido em tua casa? Bem sabia ella que eu
dissimulava a minha idéa, fallando assim: por que, de subito,
resplandeceu de sorrisos, e lançando-me ao pescoço ambos os braços com
vehemencia, confessou, córando, que, desde o primeiro dia, anciára
sempre o vêr-me em sua casa.
--Por que m'o não dizias? repliquei eu, acariciando-a. Respondeu-me,
fazendo gesto pueril de amuada, expediente malicioso das pessoas que
querem ser adivinhadas. E eu, doido com os projectos da convivencia,
communicava-lh'os aos labios por entre beijos... Vêr... amar os filhos
d'ella...
Já Fanny redobrava de elegancia o salão mais intimo em que seus amigos
eram unicamente recebidos. Que ventura poder, quasi todos os dias,
reunir em volta de si, os objectos todos de sua mais viva affeição!
D'ora em diante não seria obrigada a tirar o pensamento de seus filhos,
para ir em busca da minha imagem atravez do espaço, trazel-a para o meio
d'elles, e fazel-a docemente resplandecer n'esse recinto delicioso,
decorado por ella só, a seu bel-prazer. Eu de mim terei d'ora avante um
maior logar--não em seu coração que não é possivel--mas em sua vida, e
tomarei quinhão immediato em todos os seus jubilos, como em todas as
suas maguas. Era um bonito sonho!

XII
Concordamos em acceitar eu o convite de uma amiga d'ella, que, todas as
semanas convidava a jantar.
--Ahi nunca vae muita gente--disse ella--poderás facilmente ligar-te
comnosco.
_Comnosco_!... Era a primeira vez, que, n'uma só palavra, ella associava
comsigo innocentemente o marido, sem dar fé da angustia que esta
alliança me causava. Querida Fanny! eu sentia-me empallidecer sob uma
oppressão indefinivel, e ella purpureava-se de contentamento. Depois
d'aquella palavra, terrivel para mim, e sem valor para ella, ergueu-se.
Tinham decorrido as duas horas. Separamo-nos. Com ella foi a confiança;
comigo ficou a esperança horrivel.

XIII
Sim, esperança horrivel! porque eu não sei exprimir o que reluctava em
mim de duvida, anceio, e azedume meditando que ia vêl-a emfim sob os
olhos de quem lhe governava a vida.
Tudo isto se misturava em meu coração como venenos e contra-venenos, e
d'esta abominavel mistura, fumavam vapores d'um travor tal, que eu me
sentia na cabeça latejar o cerebro, e os joelhos vergavam sob mim.
Isto nada era, comparado ao que eu devia experimentar n'essa
estreitissima meza, onde á claridade dos globos, nenhum conviva poderia
esconder os pensamentos que lhe franzissem a fronte. Ao principio, nada
vi, e respondi ao acaso ás perguntas que me fizeram. Comia
machinalmente. Esforçava-me por ser attencioso e polido; mas denotava
mais inquietação que o assassino que se vê em risco de ser descoberto.
Atordoado pelo tinido dos copos, pelo estrepito da baixella, pelo atrito
das porcelanas, pelo reverbero das luzes nas tampas brunidas das
terrinas, pelo vai-vem dos creados pressurosos que serviam, sem dizer
palavra, e se moviam sem rumor d'um passo, como sombras negras de luva
branca; e suffocado pela athmosphera calida da sala impregnada de
evaporações penetrantes, misturadas com o odor do vinho e o das flôres,
eu não olhava Fanny, nem mesmo a escutava. Tornou-se-me insopportavel a
par de mim a presença d'ella: era como um peso que me abafava.
E tambem o não encarava a elle, elle, que eu viera procurar, de tão
longe, com o desejo e terror de conhecel-o. Inceguecido por visões
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