Fanny: estudo - 4

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d'um mar sempre sereno e sobre tapetes de musgo sempre em flôr, ahi, nos
saboreamos por nós mesmos, como se a nossa dupla existencia mais não
fosse que uma palpavel recordação. Que desgraça poderia ferir-nos ahi?
que inquietações assaltear-nos? que suspeita incutir-se-nos? que ciume
contristar-nos na felicidade de dias sempre eguaes? se tu quizesses...
Seria pouco para mim amimar-te sempre como a uma creancinha melindrada?
procurar incessantemente debaixo de tuas palpebras o olhar meigo de teus
olhos azues? escutar-te muito tempo o halito a brincar-te por entre os
labios? dormir com a boca presa á tua espadua, a mão inlaçada na tua
mão? vêr-te todos os dias, andar, ir, voltar, mais bella, mais
tranquilla, mais graça que o sonho das virgens? Ouve mais: não seria
nada para ti o teres-me sacrificado todos os prejuizos que formam o
coração das mulheres? teres-me tirado do abysmo de tristeza, no fundo do
qual me estorço ha tanto tempo? teres-me dado tu só mais felicidade do
que homem na terra póde cobiçar? Oh Fanny! Nunca mais, a chorar, eu te
diria: «amo-te!... se tu quizesses!...»
Estava suspensa dos meus labios Fanny. Bebia-me as palavras, ebria de
prazer. Inclinada para o hombro a cabeça, cahidos os braços, as
palpebras descidas, ouvia-me como ao longe a musica, de que não queremos
perder nada, arrobada n'um extasis que reunia todas as sensações e
quebrantos. Arfavam-lhe as rozadas azas do nariz; suaves respostas
inintellegiveis lhe ciciavam os labios; convulções electricas lhe
crispavam a cutis; tremiam-lhe as mãos em vibrações dulcissimas. Já não
poderá conter-se. Correu-me ao seio, e debulhou-se em lagrimas no meu
pescoço que ella cingia soffrega. Oh! que delicioso apertar aquelle!
«Não se falle mais n'isso--disse ella, com expressão de angustia,
recuando a face, e apertando-me a fronte com a mão--Isso faz-me um
grande mal. Querido Roger, o sacrificio, que queres fazer, é egual ao
que me pedes. A felicidade debuxada por tua boca persuasiva é o mais
bello sonho dos meus encantos; mas, ai! não passa d'um sonho! Meu Roger,
amemo-nos, adoremo-n'os; mas, por piedade de mim, não falles assim mais!

XXXV
Não me dei por vencido d'aquelle grito de desesperação que me revelava,
ao mesmo tempo, aspirações ardentes, e dôres mysteriosas. Nenhum de nós
nesta affectuosa discussão, havia empregado os verdadeiros argumentos.
Um tanto satisfeito por expôr a suprema questão da minha vida áquella
que devia resolvêl-a, deliberei deixal-a reflectir, para pouco e pouco a
ir affazendo. Esperava azo propicio para reluctar e vencer a minha
adorada inimiga.
Depressa veio o ensejo. Terrivel e imprevisto era elle: havia ahi uma só
alternativa: vencer os extremos escrupulos de Fanny, ou perdêl-a para
sempre.

XXXVI
Fanny pareceu-me preoccupada um dia. Fallava precipitadamente em muitas
bagatellas, como se quizesse abafar alguma coiza gravissima. Abstive-me
de interrogal-a, e fiz que não dava fé da sua turvacão. Acariciou-me
vivamente, e eu a ella, mas nossos espiritos e vontades pareciam alheios
aos affagos. Houve um instante em que um e outro esgotamos as palavras
ociosas. Tinha Fanny a cabeça inclinada sobre o meu braço, e eu, todo
attento no rosto d'ella, em muda anciedade a estava contemplando.
Subiu-lhe aos labios em suspiros do intimo a respiração suffocada; aos
meus olhares interrogadores respondia o descahir das palpebras, e o
voltar os olhos, córando.
Tomei-lhe a mão sem dizer palavra. Apertou-m'a com força febril.
«Falla em nome do céo!» disse-lhe eu empallidecendo. Abraçou-me
convulsamente, aconchegando-me o peito da face d'ella.
Fugiu-lhe dos labios a narrativa cruel, cortada por mil reticencias
confusas. Mas, desde a primeira palavra que proferiu, comprehendi tudo.
N'essa manhã mesma, o marido lhe dissera em carta muito expansiva, que
seria provavelmente obrigado a estabelecer-se em Inglaterra, por espaço
de alguns annos. Em tal caso--accrescentava elle--deveria Fanny metter
no collegio os filhos mais velhos, e ir ter com elle, levando o filho
mais novo. Fiquei aterrado. Irritou-me a coragem que ella tivera para em
fim proferir as abominaveis palavras de separação. Dessimulei, porém, as
angustias que me alanceavam o peito, e deixei só transparecer no
semblante os traços de dôr profunda. Abracei-a, comprehendi, e exclamei:
«Não será assim, Fanny!--juro que não, por que é arrancarem-me o coração
o separarem-me de ti.
--Que hei-de eu fazer, meu Deus?--disse ella retorcendo as mãos.
«Amarmo-nos--respondi exaltado, com quanta força temos, e tirar um
recurso da horrivel necessidade.
--Recurso!...--e eu interrompi-a logo: «Fanny! este momento é solemne;
não ha que vêr com subtis considerações do mundo e dos ciumes, do
passado: trata-se de viver ou morrer. Deante de Deus, te dou em penhor a
minha vida. Queres dar-me a tua? Atirou-se aos meu braços, repetindo:
--Que hei de eu fazer?
«Fugirmos para tão longe que ninguem nos veja mais.

XXXVII
Dito isto, cahimos em profundo silencio, Fanny retirou-se lentamente de
meus braços, poz-me ambas as suas mãos nos hombros, e fixou-me.
Baixei os olhos, receando-lhe a ira. Mas que mal a conhecia eu! O que
ella me revelou foi piedade sómente. Repartida entre o seu amor, e o
dever que lhe apontava o logar digno ao pé do chefe de familia, a luctar
sósinho no exilio para defender seus bens, Fanny deu-me testemunho d'uma
agonia que não cabe n'alma sem rasga-la. Bem sabia ella que eu devia
horrivelmente soffrer, pensando no proximo fim de união tão cara; mas
tambem comprehendia que lhe não era possivel desobedecer á voz que a
chamava. E isto flagelava-a com uma dôr sem nome. Perder-me e ser ella,
uma vez ainda, a causa unica de meus infortunios.
--Meus filhos!--exclamou ella em fim, impallidecendo, com uma
despedaçadora angustia. E pendurava-se-me do pescoço, fitando-me os
olhos penetrantemente--Meus pobres filhos, tão creanças! Pensas tu
n'isto? Tu que és bom, e me amas, podes-me exigir que os deixe?
Immediatamente comprehendi pela commoção que me estorcia o animo, que
quanto d'ahi em diante tentasse seria baldado. A pesar da resistencia,
senti um surdo protesto subir-me das entranhas em gritos de indignação.
Eu mesmo, no secreto de minha alma, não queria esse monstruoso abandono
de mãe, nem mesmo o covarde desamparo d'um marido por sua mulher que
adorava.
Mas, confessal-o-hei?--não me instigava tanto á lucta o desejo de passar
a minha vida com aquella mulher, como a idea de fazer cessar a partilha
execravel. Absolva-me dos males que causei um momento de franqueza! Eu
senti, abraçando de novo Fanny, que soffria menos com a certeza de a
perder que com a idéa de que ella ia unir-se ao marido. E, horrorisado
de mim, dôr nova para ajuntar a tantas, disse comigo mesmo:
«Aqui ha mais ciume que amor.» Entretanto, mais tranquilla, mas sempre
affavel, Fanny encostara-se ao cotovello e, voltada para mim, discutia
sósinha. Escutei-a.
«Se eu ousasse... se eu não temesse mortificar-te...
--Falla, que estou de animo assente para ouvir tudo. Já agora, não ha
nada ahi que possa fazer-me mais desgraçado.
Acariciou-me febrilmente, e disse, quasi desfallecida:
«Pois bem! eu não tenho coragem de arruinal-o. Hoje, o unico recurso
d'elle está no meu dote.
--É isso só? deixa-lhe tudo o que tens. Não sou eu bastante rico para
nós ambos?
«Não é isso! não é isso!--disse ella, meneando a cabeça.
Encarei-a. Estava enleada e escolhi vagas palavras com que disfarçar a
idéa. Continuou, a meia voz, como reprehendendo-se do que ia dizer:
«Como condemnal-o á solidão n'este supremo momento em que elle lucta
tanto por mim como por elle! Nunca voluntariamente me desgostou. Ama em
mim a companhia de quinze annos da sua vida, a mãe de seus tres
filhos...
--Por que o enganaste?--atirei-lhe eu em rosto, no impeto doloroso da
minha colera; mas, com uma só phrase me esmagou ella:
«Por que te amava!» e com expressão de orgulho que a engrandecia a cima
de si mesma, accrescentou:--Mas a perfidia não competia a ti
reprovar-m'a, Roger!
D'esta arte, quantos golpes eu lhe apontava, eram logo rigosamente
rebatidos; mas, nem assim, eu desistia do ataque. E se nos descobrissem!
repliquei eu, na certeza de que este golpe era difficil de aparar,
fitou-me fixamente como receando que a eu denunciasse para a possuir,
talvez, por esse infame meio.
Depois de olhar-me longo tempo, disse:
«Que desgraçado elle seria!...
Voltei-lhe o rosto, e Fanny concluiu:
«Elle diria com horror de mim: Nem por amor d'estas creancinhas...
Puz-lhe a mão nos labios, e, convulsivo, olhei para ella. Estava coberta
de lagrimas. Posto que perturbado, não pude deixar de admirar-lhe a
franqueza nobre que nem, neste lance, me poupava. Estava toda embevecida
na victima!
«Que faria elle?» murmurei. Fanny, levou as mãos á face, e respondeu com
voz abafada:
--Talvez me perdoasse...--
E, passados os soluços que lhe embargavam a voz, disse:
--Estamos demasiadamente castigados! Se obedeço ao dever,
abandonando-te; se não lhe obedeço, deshonro-me. De ambos os lados só
vejo a desgraça, e faço desgraçados. Infeliz por ti, por elle, por meus
filhos, por mim propria, nem me resta o recurso da morte para restituir
a paz a todos! Deus meu, que me has dado o coração, que me não serve
para consolar os entes que amo, e nem as suas dôres posso incerrar
n'elle, como thesouros caros!
E, a luz crepuscular na alcôva, sobre as rendas dos flacidos
travesseiros, enlaçados os braços e unidas as faces assim choravamos...
Quem acreditaria que, desde muitos dias, se passavam assim todas as
nossas entrevistas!

XXXVIII
Desde este dia funesto entendi que não devia esperar mais nada d'este
amor, e vivemos na penosa espectativa da decisão de um outro. Mas, como
se o destino houvesse resolvido não dos poupar em dôr alguma, a solução
todos os dias esperada, não chegava nunca.
Já as cartas não eram sómente assustadoras para Fanny. Era eu que as
desejava, e inquiria o contheudo dellas, e fazia ferventes votos pelo
bom exito d'aquelle que, máo grado meu, não luctava energicamente. Com
tudo por dar alguma coragem á desgraçada mulher, exaggerava a minha
confiança, e encomiava a esperteza conhecida, a firmeza de caracter e a
força de vontade de seu marido. Affirmava-lhe que elle ressarciria os
seus haveres, obteria justiça, e recobraria o tão merecido socego.
N'elle se estribavam todas as minha esperanças: pensava n'elle só, e
tomava apaixonadamente a peito a sua pendencia. A menos esperada ventura
que eu entrevia em meus vagos sonhos e almejava com o ardor da
desesperação, era a volta do meu rival, em cujos braços devia cahir a
mulher que eu adorava!
Se eu podesse coadjuval-o!... dizia eu commigo; mas de que sirvo eu? E
agora me pezava o inepto pudor que me não deixava entrar n'aquella
caza--Se eu tivesse menos orgulho, se eu não tivesse querido exaltar-me,
singularisando-me por uma delicadeza affectada, que, dos meus proprios
olhos, me não lava da minha acção; se, como fazem tantos nas minhas
circumstancias, eu me fizesse amigo do homem, cuja mulher roubava,
resgatando hoje a pequena parte remissivel de meus actos, poderia achar
algum lenitivo para esta afflicção. Mas eu tivera sempre mais orgulho
que bom senso. Pungia-me, então, a idéa de que, por falta minha,
n'aquelle desastre em que cada qual heroicamente desempenhava o seu
dever, estava eu sendo um ente inutil. Contrapondo á minha consciencia
taes subtilezas, tão futeis ellas eram, que não me illudiam. Mas, á
maneira do naufrago que se agarra aos limos fluctuantes, sem esperar
salvar-se, eu me escorava á minha propria dôr, accuzando-me de faltas
não commettidas, falsificando meu proceder e sentimentos n'isso mesmo
que elles tinham de honra, por que eu não sabia que fazer para
readquirir uns longes de esperança.

XXXIX
Fanny visitava-me como visitamos um doente incuravel, e retiramos sempre
admirados de encontral-o vivo. Palavras de alento não as tinha para m'as
dizer, que não carecia menos ella de ser consolada. Se eram boas as
noticias, suspirava; se eram más, chorava. Como ella, um dia
desenvolvesse em toda a sua horrivel extensão, a pesada cadeia das mais
secretas miserias que entrevia--atterrada por se não sentir com forças
para arrastal-a--eu rompi o silencio subitamente, e, com simplicidade,
lhe offereci todos os meus teres para desempenhar a honra de seu marido,
que, por derradeiro ludibrio, fôra entregue aos azares do jogo.
Mas, a pesar mesmo deste novo desastre sobreposto ao antigo, e tão
afflictivo que já fazia esquecer o outro, Fanny foi o que devia ser:
«É desgraçada a nossa situação--me disse ella com severidade
extraordinaria--Roger! amo-te agora mais do que nunca; mas não sou
livre; por isso mesmo que te adoro, é que tu és o unico homem de quem
não posso acceitar nada.

XL
A adversidade cansou. As cartas vinham cada vez mais animadoras, e já
não havia questões de honra, nem de miseria, nem se quer da separação
que tanto temeramos. Quando muito era só a perda de ametade dos bens que
podia preoccupar Fanny. Vieram o socego e os risos para ella; mas eu,
como um miseravel que tem duas chagas a pençar, senti immediatamente
despertar o ciume, mais ardente que nunca. O marido estava a chegar, e
esta vinda, d'antes tão desejada, incutia-me agora invencivel horror.
Dezejei-lhe a morte. Tornei-me sombrio, desconfiado, interrogador.
Recomeçaram as nossas luctas.

XLI
Nunca me viera a idea de romper com Fanny; mas travados outra vez em
guerra, de repente me appareceu, fulgurante como um relampago. E eu
senti entrar com ella em meu coração a suave caricia da esperança. Mas
esta esperança, ai! não durou mais que um segundo. Máo grado meu,
tremulo de horror, dei-me pressa em repulsar a idea do meu resgate.

XLII
Depois de uma discussão em que, mais uma vez, eu expozera aos olhos
d'ella as minhas angustias, Fanny veio de moto proprio a devassar d'um
pensamento que eu não ousara nunca deixar-lhe vêr.
--Não fui esperta--disse ella. Eu devia fingir-te a minha vida. Por
muito improvavel que fosse o que eu te contasse, tu acreditarias tudo,
por que iria no acredital-o o teu interesse. Não fui esperta, mas é que
eu nunca soube mentir.
Esta confissão foi para mim uma subita revelação, suppuz logo que ella á
semelhança d'outras mulheres, orgulhosa de ser feliz, escondia
vaidosamente a um tempo, vicios e dôres, e, desgraçada, queria que a
suppozessem feliz. Esta suspeita inquietou-me oito dias; mas a esperança
que me ella gerava no coração não podia durar. Instei Fanny,
facilitando-lhe recursos para desmentir-se e patentear-me tudo de sua
vida. Admirando-se de eu duvidar d'ella, Fanny confirmou glacialmente o
que me havia dito e tornou-me á desesperação.

XLIII
Approximava-se, n'esta conjunctura, o praso que o marido designara para
voltar. Parecia-me que devia ser esse o dia da nossa separação, e da
morte para mim. A idea da partilha enojava-me. Resolvi cem vezes
explicar-me com Fanny á cerca d'este assumpto horrivel, mas não me
attrevia. Havia n'ella uma especie de renascimento: nunca a vira tão
terna e submissa. Ao mesmo tempo deu em ser muito expansiva. Nos ultimos
tempos, coisas insignificantes tocantes á sua vida intima, andavam
sempre em nossas praticas; d'ahi vinha o continuar ella agora a
fallar-me dos minimos incidentes da sua vida. É o que devia, mais tarde
collocar-nos face a face, na attitude ameaçadora de dois inimigos.
Não sei como se deu, nem qual de nós foi causa da scena atroz que
sobreveio; lembra-me só que Fanny estava já para sair, e ambos nós em
pé. Acabava ella de apertar as fitas do chapéo, deante do espelho do
fogão, ao qual eu me encostava; já tinha o chale nos hombros, e buscando
com os olhos o lenço, que pozera sobre uma meza, acabava de abotoar as
luvas. Assim, continuavamos em termos meio affectuosos e familiares uma
contenda que intendia com ella e com o marido. Estavamos ambos serenos
quando lhe aconteceu proferir uma palavra que me gelou o sangue nas
veias:
--Eu mentiria, se dissesse que não tinha affeição a meu marido.
Logo que reflectiu na crueza d'essas palavras, tão imprudentes como
inuteis, arrependeu-se de as ter dito. Sem accrescental-as, nem
desmentil-as, acercou-se de mim, affastou o chale para me cingir o
pescoço com o braço, amimou-me o rosto com a mão livre, e alteou-se nas
pontas dos pés para abraçar-me.
Era carinhoso o olhar, que exorava perdão á crueldade da bôca. Forcei-a
lentamente a desprender-se-me do peito, e disse-lhe severamente:
«Vós outras, as mulheres, não tendes delicadeza alguma no coração.»
«Córou, fez-se mais meiga, mais insinuante, e quiz outra vez abraçar-me.
Puz-lhe a mão no hombro e affastei-a: dizendo-lhe, tremulo de furor:
--Ha dias que me falla em seu marido, incarecendo-o muito. Esquece-se de
que não é elle agora o mais digno de lastima?
Apertou-me inergicamente a mão, em quanto com os labios cerrados, á
mingua de palavras, me fitava com ternura supplicante.
Mas a colera recrudescia a proporção que Fanny denunciava
arrependimento. Continuei:
«É justo que o ame, por isso mesmo que a sua estima se lhe deve com
preferencia a tudo.
Conheceu Fanny que não poderia apaziguar-me. Não sabendo que mais fazer,
deixou passar aquella phraze de interpretação doble, desdeu os laços das
fitas do chapeo, pousou o chapéo e o chale sobre a cama, e assentou-se
n'uma poltrona defronte de mim. Com o cotovelo esquerdo apoiado no braço
da cadeira, a face na palma da mão, os olhares ondulantes, assim ficou
na sua habitual posição. Mais que nunca linda, com aquelles braços
maravilhosos, cuja alvura assombrada de pennugem destacava da seda negra
do vestido; com as grandes luvas de pelle da Suecia que lhe cobriam os
pulsos; com o collo flexivel e inclinado; e côr pallida; e os cabellos
louros voluptuosamente annelados sobre a fronte pura: era a semelhança
de algum bello retrato de Rubens. Por de sob a fimbria do vestido,
sahiam os pequenos pés reunidos e assentes no chão. Nas escuras dobras
da seda envolvia-se o braço direito, cuja mão, meio fechada, permanecia
immovel como se fôra de marmore.

XLIV
Quando o publico soube o desastre do marido de Fanny, soubera eu que em
Pariz circulavam boatos deshonrosos para elle. De ser rico e altivo
grangeou muitos inimigos. Deviam de ser calumniosos os ditos que sahiam
de bôcas invejosas. Não os desmenti por prudencia, mas fiz nota d'elles.
Bem sabia eu que um dia me serviria d'elles para vingar-me.
Esperava eu, exasperado pelo furor, que uma palavra, provocando-me de
novo, me desculpasse a crueldade. Ella, porém, de astucia não fallava,
adivinhando que eu interpretaria á feição de minha raiva tudo que me
dissesse. Assim ficamos ambos immoveis, callados, ella, esperando o
golpe final, eu reunindo as minhas forças todas para descarregal-o.
Decidi-me em fim: e, com uma só phraze cortante como gume de espada,
attacando o mais sagrado da honra do meu rival, repeti as infamias em
que eu não cria.
A resposta foi prompta e terrivel. Isso é indigno!--exclamou ella
erguendo-se hallucinada, escarlate, com uma expressão de colera e
indignação que me assombrou.
Não quero que se rosse na honra do chefe de familia! Não quero que se
deshonre aquelle cujo nome eu trago! Por isso que o trahi; por isso que
conspurquei a parte de sua honra que elle me confia, é que eu prohibo
que se ultraje a outra... e principalmente ao snr!... Envergonhe-se!...
Se acreditou essas calumnias, competia-lhe defendel-as commigo, pois foi
commigo que...
Interrompeu-se. Eu immudeci, e ella proseguiu: Fallou-me ahi na
indelicadeza de coração das mulheres; e eu fallarei do orgulho dos
homens. Não é só do amor das mulheres que carecem para estrado... Querem
tudo o que ellas prezam, tudo o que respeitam: estima do mundo, familia,
filhos, repouso, e até a honra de seus maridos. Tudo lhes é mister para
desvirtuar e rediculisar essa honra. Estou de mais castigada por ter
crido que podia impunemente amal-o! Fui prudente; e por isso não é meu
marido ultrajado que castiga a minha culpa; mas--castigo mil vezes mais
cruel--é o meu amor. Mereço esta pena... e é o snr. que me pune!
Continuei callado: e ella, com a boca a trasbordar sarcasmos, proseguiu:
É como todos! O que ahi ha é orgulho. Não sabe amar!
Desta vez, respondi turvado:
«Não sou desculpavel por aggredil-o?
--Aggrida-o como homem. Não tem tantas causas para o fazer?
«Por Deus que o farei!
Furioso, com os olhos injectados de sangue, os dentes cerrados, avancei
para Fanny, mas ella suspendeu-me a tres passos com um olhar glacial que
eu nunca lhe vira. Depois vagarosamente embrulhando-se no chale, da
cabeça aos pés, como a sacerdotiza antiga, sombria, feroz, desesperada,
deixou cair sobre mim outro relancear de olhos despresador, e sahiu.

XLV
Que farei para apasigual-a?--Tal foi a ignobil pergunta que eu me fiz,
ao amanhecer do dia seguinte.
Escrevi-lhe uma longa carta tão submissa que não pude revêl-a sem pejo.
Rasguei esta carta, comecei outra, mas tão acerba de estylo que devia
exasperar quem eu queria commover. Não a conclui, e andei uma hora a
passear phreneticamente em todas as direcções no meu quarto. Primeiro
tive ideias de rompimento immediato; depois desvaneceram-se. Rebentou em
chamas o furor e o ciume; depois apagaram-se. Por fim, comprehendi que o
procedimento a que eu quizera impellir Fanny, era um crime, o qual,
consumando irremediavelmente a desgraça d'uma familia inteira, devia
tornar-nos desgraçados para sempre. Era-me pavoroso pensar que, a ter-me
ella attendido, durante a nossa existencia toda, viriam interpor-se
entre ella e mim as imagens de seus filhos abandonados.
Mas ao mesmo tempo escasseava-me força para o resgate. Affizera-me ás
minhas dôres, e não ousava trocal-as por dôres desconhecidas. É preciso
ter sido, como eu fui, o tudo nas ternuras e affeições d'uma mulher, o
coração que incessantemente regia os movimentos d'outro coração, para
poder comprehender os horrores da solidão que segue um rompimento. Eu
delirava de raiva e dôr. Por fim, commovi-me, erguendo os olhos para o
retrato de Fanny.
--Que mal me fez ella?--dizia eu. Chorei; e, indeciso, vesti-me, e sahi.

XLVI
Seriam oito horas. O calor dos ultimos dias d'agosto purpureava o céo
carregado. As trevas, semelhantes a mortalhas espargidas, desciam com a
nevoa opaca atravez das arvores da grande avenida dos campos-Elyseos. Os
passageiros davam-se pressa para fugir á tempestade que trovejava
surdamente ao longe. As estrellas brilhantes das lanternas, aqui e além,
corriam, cruzavam-se e desappareciam. Nuvens de pó sacudido pelo vento
subiam diante de mim e toldavam o espaço. A meio-caminho, quasi entre
_Rond-Point_ e o «Arco do triumpho» parei.
Era alli. Encostei-me a um tronco de arvore, levantei o rosto, e olhei.
A meus pés era a passagem das carruagens que vão do portal á avenida.
Sobre a porta estavam abertas as quatro janellas da sala. Uma só
lampada, por certo, illuminava o recinto, por que a claridade que
translusia dos vidros escassamente brilhava como um clarão duvidoso.
Nenhuma sombra passava entre a lampada e os vidros. A casa está
vasia--pensei eu--e todavia Fanny não está em _Chaville_ por que a sala
tem luzes.
Estalou, neste momento, mais forte a trovoada.
Relampaguearam os coriscos. Um bulcão rugiu na ramagem dos alamos da
avenida, remoinhando turbilhões de folhas e terra. Então vi uma sombra
de homem chegar á ultima janella, e fechal-a. As outras tres fecharam-as
mais tarde. Depois, a froixa claridade que alumiava a sala bateu nas
vidraças mais tensa e viva: havia-se accendido uma segunda lampada.
E depois, mais nada. A avenida deserta, a tempestade no céo de todo
negro, eu em pé debaixo da minha arvore, e a sala vasia com as quatro
janellas lusentes. Soaram onze horas no relogio d'uma egreja visinha.
De repente, o estrepito de rodas acceleradas, mordendo a areia, passou
ao pé de mim. Eu dera, sem saber porque, alguns passos authomaticos.
--Arreda! Arreda! gritou uma voz irritada. Saltei para a margem da
estrada. Um _coupé_ vasio passou bamboando sobre o eixo, effeito dos
sacões; depois uma grande carroça de viagem tirada por quatro cavallos,
voltou de repente sobre si mesmo, ao tempo que se abriam os dois
batentes da porta-cocheira. Remirei a carroça com assombro. Ao fundo
estava um homem, que eu bem conheci--era elle. Ao seu lado uma mulher
que lhe fallava: era Fanny. Entre elles, sobre os joelhos, e nos braços,
tres meninos de cabellos louros. Foi uma visão rapida. Não sei se me
viram. A carroça desappareceu por debaixo do arco do portal, e logo os
dois pezados batentes rodaram nos gonzos, e bateram entre si com
estrondo lugubre e cavernoso.
Acabava eu pois de me arredar para dar passagem ao meu rival que entrava
como senhor em sua casa.

XLVII
Por que me não esmagou elle com as suas rodas?--exclamei, com a morte na
alma, retirando-me, e caminhando ao acaso como um ebrio.
Passava uma sege de praça; entrei--onde quer ir?--diz o boleeiro,
embrulhando-se no seu capote--onde quizeres, ao Bosque, onde quizeres. E
senti-me arrebatado d'aquelle sitio funesto.
A chuva escorria sobre as vidraças corridas. Encolhido n'um angulo da
sege, com os braços cruzados, e a face encostada á almofada, vi de lado,
ao clarão dos relampagos, estorcerem-se as arvores atormentadas pelos
furacões. A intervallos, resalteavam no ar as astilhas dos coriscos. E
eu dizia: Esta tormenta não os aterrará? Não sei que tempo passei
blasphemando, rasgando o peito com as unhas, chorando, dentro dessa sege
que corria atravez das arvores do bosque, ao clarão avermelhado dos
relampagos. Sentia-me abafar. Desci os vidros e a chuva batia-me na cara
e nas mãos. Encostei-me ao rebordo da portinhola, com a face deitada nos
braços. Tomou-me uma sensação horrivel de frio. Tinha febre. «Quer que
recolhamos?» dizia de espaço a espaço o boleeiro cançado.
--Quero--disse eu, fatigado já tambem.

XLVIII
Nascia a aurora lagrimosa no mal enchoto céo, quando, erguendo a face,
reconheci uma casa á margem da estrada. Era a della. Todas as portadas
da janella estavam fechadas, e as luzes extinctas. Apenas um clarão
avermelhado excessivamente mortiço, semelhante ao que sahe d'uma
lamparina, brilhava como um ponto entre duas taboinhas de persiana, na
ultima janella da direita, em uma alcova lateral ao salão. Debrucei-me
longo tempo sobre o apoio da portinhola para enxergar o ponto vermelho e
expirante. Mas não chorava já. Ia tranquillo, de gelo, prostrado de
fadiga.--Dormirá ella agora?--me dizia eu.

XLIX
Os primeiros dias, que seguiram esta noite horrivel, passei-os n'um
estado de stupor de que não havia arrancar-me. Esperava não sei que, que
devia terminar-me a vida e os males.--Isto não póde acabar assim!--dizia
eu. Vinte vezes ao dia, pedia a minha correspondencia mas nem se quer
abria as cartas que o meu creado me trazia. Bastava-me vêr a lettra dos
sobre-escriptos. De Fanny não vinha alguma. Affigurava-se-me que ella
tinha morrido. Isto amedrontava-me. Cheguei a duvidar da minha rasão.
Ao oitavo dia, depois da nossa ultima entrevista, tive um presentimento
de que ia vêl-a. Preparei tudo o que queria dizer-lhe. Senti-me vencido.
Queria pedir-lhe perdão; declarar-lhe que estava prompto a submetter-me;
queria supplicar-lhe alguma piedade para os meus padecimentos. Esperei-a
em vão até noite fechada, contando as horas nas pulsações alternadamente
precipitadas e desfallecidas do meu pulso. Não veio. Não escreveu.
Ninguem me deu um instante de esperança fazendo vibrar a campainha da
minha porta.
Ao anoitecer, sahi na direcção da casa d'ella. Chegando á alameda fiquei
surprehendido, vendo tudo fechado. A ideia de Fanny ter ido para longe,
tão longe que eu não podesse vêl-a mais, atravessou-me o cerebro como um
dardo. Com horrivel angustia, mas affoitamente, como um covarde, a cuja
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