Fanny: estudo - 8

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de mais, e coragem de menos.
Dest'arte, julgava eu, de longe, aquella mulher que eu, por ultimo
conhecera, á custa da minha ventura. Não posso dizer que a lastimava.
Com quanto me sentisse prostrado de fadiga, a irritação surda, contra
ella, era immensa. Como se annos e annos medeassem entre nós as suas
barreiras, eu me sentia separado d'ella, mas ainda a sentia viver em
mim. Era-me a memoria d'ella, como o ferrete aberto com ferro em braza.
O estygma intalhado a fogo no coração, não podia eu, forçado do amor
desvanecêl-o.

LXXIII
Se, porém, julgando-a, me não compadecia d'ella, era-me impossivel
pensar em mim, sem padecer em todas as fibras do meu ser. Quanto amor eu
tinha, quanta affeição filial, ternura piedosa, e veneração, exhalava-se
de mim como vapores, e dissolvia-se em lagrimas amargas, que eu tragava,
sobre a cruz onde a sorte immisericordiosa me cravára. Estorturava-se,
este amor, como joven robusto que saboreou a vida e não quer morrer. A
affeição de filho, que eu naturalmente lhe dera, por causa da differença
de nossas idades; a piedosa ternura que ella me inspirava, como um bem
suavissimo; a veneração, em summa, que lhe era a ella um incenso grato,
isso tudo, o melhor de minha existencia, desfazia-se em meu coração, e
evaporava-se lentamente em caricias de effluvios e perfumes. Qual
viajor, surprehendido, ao despertar, nas steppes infinitas da Asia, por
um turbilhão fluctuando raso com o chão, tal eu me sentia perplexo nas
minhas revoluções, prudencia, e coragem. Em redor de mim tudo se movia
vagarosamente, derramando-se em fórmas confusas: fugia tudo; memorias
queridas, votos superfluos, ternos desejos, pezares, aspirações, tudo se
esvahia nas distancias do meu sonhar, e me deixava, sósinho, n'um grande
espaço. E desse turbilhão nevoento de sensações, vontades, e habitos;
densas oscillações impalpapeis de penas, prazeres, e esperanças,
prolongadas até ao extremo limite que meus olhos viam, surdia emfim um
phantasma enorme que subia, subia até ao céo, tristemente involvido em
pallida mortalha. Este phantasma reconheci-o na amargura que tinha
impresso na face assombrada, no atrophiamento da sua attitude, na sua
mudez, no rir amargo que lhe circuitava os labios descorados. Ah! uma
vez o tinha eu já visto crescer para mim, e me sentira estalejar com
elle nas dobras de seu sudario. Vinte annos tinha eu. Foi quando perdi
minha mãe, e da sepultura d'ella, revolvida de fresco, sahia e me
aferrara nos braços a glacial SOLIDÃO.
Eu chorava. Tudo estava em redor de mim fallando-me d'ella. Todo o mal
que me fizera, esqueci-o. Mil vestigios deixára Fanny n'aquelle quarto
que eu preparava amorosamente para recebel-a. N'aquelle tecto que lhe
cobrira a cabeça, nos tapetes pisados por ella, nos moveis que tocaram
suas roupas, em tudo me apparecia serena e consoladora. Aqui me abria os
braços de veludo, a poltrona onde ella se assentava tantas vezes; ali a
molle pegada do seu sapato, no coxim em que ella descançava os pés;
acolá, resequidas, nos vazos chinezes, desfolhando-se tristemente, as
flôres que ella amava; além, as cortinas que ella tantas vezes levantava
com sua mão timida; ali, se move ainda o pendulo do relogio, para o qual
ella estava olhando sempre; aqui, o véo d'ella, aqui as cartas, seus
dôces reflexos; além, o pente embalsamado com o perfume dos seus
cabellos; e acolá, finalmente, frio e cerrado como um tumulo, o leito
onde tantas vezes chorávamos.
Agora, me assoberbava a memoria, tudo o que dissemos, pensamos, e
esperamos. Como longinqua musica, trazida na viração do mar, soava-me
nos ouvidos o cantar de suas palavras; como emanação de flôres que se
evapora com o orvalhar das noites, deliciava-me o olfacto, o perfume de
sua cutis olorosa; como bafejo de primavera, perpassavam-me nos labios
os effluvios de seus beijos. Ardia-me a mão que ella tocara; ardia-me a
fronte que ella afagara em seu seio; ardiam-me os olhos que ella
adorara, a boca em que a sua apremara nas vertigens da paixão, o peito
que ella duplicara com o seu peito. Oh! que prazer me era sorrir-lhe ao
retrato, e remecher nas cartas d'ella! Affigurava-se-me ouvil-a ainda;
esperal-a ainda, como nos dias passados; vêl-a chegar assustada, como a
cerva dos bosques, a esconder-se em meus braços. Mas, ao mesmo tempo,
não sei que vaga essencia se desprendia de mim em soluços e gemidos.
Quebrantava-me uma tristeza profunda; uma lethargia sem nome paralisava
todas as minhas idéas. Meditativo, como póde sêl-o o homem no leito da
morte, eu dizia commigo:--Acabou tudo! não nos tornaremos a vêr, nós,
que tanto nos amamos!...

LXXIV
Era tamanha a minha tribulação, que eu receei succumbir á paixão. A
imagem d'ella, entrava em todas as minhas meditações. Como não podia
arrancal-a da memoria, fugi com ella, precipitadamente, sem voltar o
rosto, como o incendiado que não quer ouvir os gritos de maldição
sahidos d'entre as chammas accendidas por sua mão cruel. Parti, sem
dizer onde ia, para partir, para me afastar. A minha mesma coragem me
apavorava. Mas a memoria ia commigo, chorava commigo. Cançado um dia, da
vista dos homens, deixei os caminhos trilhados, e intranhei-me, ao
norte, nas areias que bordam a foz do Loire. Caminhei trinta horas sem
parar. Ao anoitecer, apeei n'um deserto, e resolvi acabar ahi...
Não queria porém, eu, que ahi dissessem que irreflectidamente me
suicidara como um louco, ou como creança infraquecido na lucta.
Apozentei-me, pois, aqui, para luctar contra mim mesmo, e vêr se a cura
me póde ser ministrada por um hospede menos frivolo que a morte.
Impuz-me o prazo d'um anno, para viver uma vida differente, só,
meditativa, austera. Estou resolvido a esperar até final. Algumas vezes,
detesto-me, e todavia espero. Fio-me não sei de que. Amo, como nunca
amei, a mulher que me reduzio a isto. Não a desprezo já. Absolvo-a. Eu
teria feito o mesmo, se fosse ella, e affirmo que valem menos que ella,
as que de outro modo se comportassem. Mas ha momentos em que a detesto,
e me arrependo de a não ter esmagado. Assim, e incessantemente, vou d'um
extremo de amor e piedade, ao outro extremo de furor e odio. Oh! amar!
que supplicio!
As forças da minha alma estão extinctas. Já me não pulsa o coração. Hoje
principalmente, que dou fim aos traços do drama da minha vida, sinto a
tentação terrivel de completal-o com um sanguinario epilogo.
Mas, porque ha-de ser aqui, e não ha-de ser além ao pé d'ella? É porque
me resta ainda o pudôr d'um ciume feroz, que não quer ser carpido. Qual
besta-féra, que, ferida de morte, procura uma caverna onde morrer em
paz, e esconder seus ossos; assim eu, se devo morrer, quero que seja
n'um deserto, longe d'aquella que eu amei de mais.

FIM
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