Fanny: estudo - 6
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tudo, cartas infinitas, e trocavamos flôres.
Fanny esmerava-se em attenções, para compensar-me do mal que me fazia.
Liberalisava-me aquelles delicados disvellos que as mulheres aguardam
dos homens, e dos quaes disvellos são tão economicas, quando se dignam
conceder-lh'os. Beijava-me a mão, chamava-me seu querido filho,
mostrava-se submissa, e esmerava-se por que não houvesse coisa que
turvasse a serenidade da minha vida. Nunca, porém, tratando-me como
dominador, se rebaixava. Ajoelhada deante de mim, tinha a inteira
dignidade d'uma rainha.
Ás vezes, quando as bellas noites do outono eram mais balsamicas e
suaves que as do estio, fugiamos da cidade, como aves cansadas do calôr
do dia. Hombro com hombro, recostados ao respaldo d'uma carruagem
fechada, com as mãos inlaçadas silenciosos, iamos ao bosque buscar um
pouco de ar, de silencio, e de solidão. Rentes comnosco passavam fogosas
parelhas tirando por grandes calexes descobertos, cheios de mulheres
risonhas cujos véos fluctuavam ao vento. Ouviamos o fremito das rodas na
areia, o resfolgar dos cavallos, e o estalido dos chicotes. Viamos
agitarem-se entre as arvores as luzes das lanternas, e mirarem-se na
agua morta dos lagos as sombras espessas dos bosquesinhos de pinheiros.
A lua, ás vezes tão melancolicamente ingastada no céo como nodoa de
prata, alumiava grandes moutas de espinheiros, donde subiam, razando as
hervas, nuvens alvas de vapor. Ebrios do aroma das carvalheiras, e da
mollidão dos nevoeiros luminosos, apeavamos no angulo d'algum caminho
estreito, e nos intranhavamos por debaixo da arcaria de immoveis
arvores, passeando vagarosamente, mais perdidos em nosso scismar do que
o estava a verde folhagem á sombra da noite linda. Era delicioso aquelle
momento em que Fanny, infadada, se me pendia do braço, e justapunha a
sua espadua á minha! Não fallavamos, sentia-se ali o viver, ouviamos as
nossas respirações; e, assim unidos, achavamos doçura estranha n'aquelle
nosso silencio e na incerteza de nossos passos.
Algumas vezes, com tudo, suscitavam-se ligeiras discussões,
remeniscencias attenuadas de antigas discordias. Fanny, porém,
tomando-me, a rir, pelo que eu era, uma creança, ou fazia que me não
intendia, ou, sacudindo-me o braço em ar de gracejo, dizia:
--Ora vamos, não se falla aqui do que já lá vae.
Todos os lados accessiveis da minha vida ia-os ella penetrando cada vez
mais. Como queria tudo saber, imperiosamente se senhoreava de tudo,
passado, presente, e dispunha de tudo, a bel-prazer do futuro. Eu
pensava em tudo como ella. Se me dava conselhos eu seguia-os como
ordens. Em minha casa era ella que dirigia tudo. Os moveis como que se
moviam espontaneamente para se collocarem nos logares designados por
ella; os quadros entravam n'outras molduras; os espelhos inclinavam-se á
vontade d'ella para lhe espelharem por toda a parte a imagem. Era-me
prazer grande o vêl-a assim dispôr do que era meu. A minha casa, tornada
sua, parecia afeminada. Já lá se não viam por sobre as mezas esporas,
chicotes, caixas de charutos; nem junto das paredes tropheus de armas
quarteadas; mas, em logar d'isto, estavam bocetas de flôres, alvissimas
caças rojando sobre os tapetes, mobilia colorida a lacca e incrustações
de Boule, e caixas de perfumarias. Levantavam-se do tapete agulhas e
fios de seda e lã: no rebordo da chaminé brilhavam o dedal e as
thesouras.
Foram, no drama da nossa vida, esses seis mezes uma especie de
entre-acto. Nada nos faltava para a felicidade, excepto a confiança.
Fanny estava sempre sobre-rolda receando ataque improviso, e eu
conservava no coração um certo azedume. Não havia consolar-me de não ter
podido vencer os escrupulos da mulher que eu tanto amava.
Cheguei á fraqueza piegas de pedir-lhe conselhos para a direcção dos
meus bens. Fanny não entendia nada de negocios, mas dava aproveitaveis
pareceres, porque eram sempre dictados por um espirito de desconfiança
feminil. Pois não a consultava eu até em compras de cavallos? No tocante
ao vestir era ella quem decidia soberanamente dos feitios e das côres.
Arranjava a minha roupa branca, a rir, erguida em pontas dos pés para
chegar aos lotes dos armarios, e intromettia-lhe bolsinhas odoriferas
que trazia comsigo, e nunca pude encontrar n'outra parte. Todos os
instantes dos meus dias estavam, em fim, contados. Não dava um passo sem
sua approvação; não comprava luvas ou gravatas que ella não elegesse. O
numero dos meus amigos fixou-o ella. Desprezei tres, porque tinham nomes
que não agradavam a Fanny. Tudo isto me parecia delicioso. Viver sem
ella é que eu não podia por mais que fizesse. Estava enfeitiçado.
LX
Mas o meu ciume, esse não estava morto, nem se quer entorpecido: apenas
tinha variado um pouco de objecto. Desde que o marido estava auzente, já
não podia soffrer por causa de uma partilha que não existia; mas os
menores sentimentos que Fanny me deixava adivinhar, inquietavam-me.
Afóra os filhos, e a mãe que ella via ás escondidas, eu não lhe
consentia amar ninguem. Fanny sorria, encolhendo os hombros. D'este modo
nos tyrannisavamos mutuamente.
Um dia, quando eu lhe tirava o «corpete», uma carta grande e
quadrada--lhe fôra entregue quando saía de sua casa--escorregou-lhe do
peito e caiu aos meus pés. Levantei-a. Tinha o sêllo de Londres. Encarei
Fanny, que, pallida, estendia a mão tremula a tomal-a.
«Teu marido escreve-te?» disse-lhe eu, entregando-lh'a.
--Que pergunta!--disse ella.
--Escreve-te regularmente?--ajuntei eu, depois d'um momento de silencio,
durante o qual eu sentia as garras do meu antigo furor atassalhar-me o
espirito.
--Pois então!... disse ella--todas as semanas.
«Porque te escreve elle?... Separados por tão violenta discussão,
parecia que os corações deviam separar-se para sempre.
Fanny olhou-me com espanto e ficou pensativa. Mas, como eu esperasse
resposta, replicou:
--Espantam-te sempre as mais singelas coisas. Não é natural que meu
marido me diga dos seus negocios, e me falle dos seus filhos?
«É justo... Eu não tinha pensado n'isso--murmurei.
Fallou-se de muitas coisas; mas, a sós commigo, reflexionei immenso.
«Respondes ás cartas de teu marido?
Fanny fez-se livida, hesitou, e deu signaes de impaciencia. Depois
simulou um ar de indifferença, respondendo:
--Escrevo-lhe raras vezes;
--Sim? e, diz-me cá, que lhe escreves?
--Não sei. Escrevo-lhe friamente. Falla-se de negocios. Isto não te
interessa nada.
Fiquei um tanto inleado; mas não pude reprimir-me.
--Como é que nunca tiveste a idéa de mostrar-me as cartas de teu marido?
Roger! Roger!--exclamou sorrindo contrafeita--eu creio que estás louco!
Uma mulher póde por ventura confiar a alguem, principalmente áquelle que
ama, o segredo dos negocios de seu marido?
--Tambem é verdade--murmurei eu.
Fanny quiz logo aproveitar a vantagem que obtivera.
--Feliz seria eu, disse ella, podendo mostrar-te essas cartas que te dão
tanto que pensar. Provar-te-iam que é uma sem-razão recear alguma coisa.
Sabe, pois, espirito desconfiado, que não se póde viver em menos união
do que eu vivo com meu marido.
--De certo!
--Como podes suspeitar o contrario depois que te confiei as minhas
amarguras?
--D'antes, tambem me confiavas o segredo dos negocios domesticos: não
esqueças isto, Fanny.
--Oh! hoje é muito differente.
--Porque?
--Porque... cá me entendo.
Isto fez-me reflectir novamente. Fanny levou as mãos ao céo com piedosa
expressão; eu estava como involto nas sombras da morte. E assim nos
contemplavamos. Era-me impossivel a quietação. Agitava-me d'um para
outro lado.
--Se dizes a verdade, Fanny, por que me não mostras as cartas que lhe
mandas?
--Não é possivel. Quem lêsse uma, comprehenderia as outras.
--Não obstante, eu bem quizera conhecer o tom das tuas cartas. Porque
lhe não escreves agora, mesmo aqui? Falla-lhe de tudo menos do que não
quizeres que eu comprehenda. Eu mesmo levo a carta ao correio.
Supplico-te, Fanny... Se nada temes de ti, dá-me esta prova de
confiança, para me tranquillisar que eu soffro muito.
--Não é possivel--redarguiu ella, com signaes de offendida.
A raiva que me devorava o coração estalou desassombrada:
--Que lhe escreves tu que não queres que eu saiba? Juraste matar-me?
Falla, se tens na alma sombra de piedade! Torturas-me barbaramente como
um algoz!
Fanny ergueu-se, pegou-me da mão e disse brandamente:
--Roger, eu não queria magoar-te.
--Pois que! que mais querias tu fazer-me? Vae! Tu és mulher de duas
caras; eu nunca fui amado por ti!
A esta phrase injusta, lançou-se-me ao pescoço, abafando-me com beijos
as palavras. Eu continuei:
«Como podiam magoar-me as tuas cartas, se, depois d'essa horrivel
contestação, ficaste despeitada com teu marido?
--Sê rasoavel: uma mulher póde ficar despeitada com seu marido?
«Pois que?--exclamei furtando-me aos braços d'ella--tu perdoaste-lhe?
--Rigorosamente não--disse ella, sentando-se quebrantada--mas foi-me
preciso acceitar as suas desculpas. D'esta vez, ainda assim, está tu
certo que não esquecerei mais os ultrages passados.
«Perdoaste-lhe! perdoaste-lhe, Fanny!--Bradei, de pé em frente della,
que olhava para mim assombrada--Não tens, pois, dignidade alguma? Não te
sentes das injurias? És assim vil? Amal-o? Mentiste-me, pois, a mim? Ah!
isto é que eu não acreditaria nunca!
Fanny continuava a ouvir-me silenciosa.
«Diz-me cá: por que me occultaste tanto tempo que elle te insultava?
--Não queria deshonral-o. Se tivesses mais alguma experiencia, não te
espantarias do que succede. Em summa, eu não quero fallar mais n'isto.
Seja-te bastante saber que se me elle restringe a liberdade, ou diz
arrebatado coisas indignas, tem pesar do que faz e diz, passada a
colera. Affirmo-te que o julgas mal. É possivel que eu exaggerasse os
factos no primeiro momento da indignação.. mas.
«Calla-te!--bradei eu--se tens pudôr, calla-te! Ha uma coisa que parece
passar-te desapercebida, e é que, á proporção que vaes fallando, não sei
que idéa peçonhenta lucta, em mim, com o meu amor. Não accrescentes uma
só palavra. Acceito ainda isso, por que sou vil, por que sou um fraco,
por que te amo muito, por que não posso dissuadir-me de te amar; mas
sabe tu que maior mal não m'o podias fazer. Supplico-t'o--não digas mais
nada.
E lançando-me a seus pés, exclamei:
«O despresares-te a ti propria, seria, sobre tudo, cruelissimo!
LXI
Sempre que tivessemos algumas dessas deploraveis luctas o apartamento
era frio, e eu ficava dias inteiros a reluctar com a memoria d'ella.
Mentalmente eu reproduzia os ataques e os argumentos, e inutilmente
sondava a causa misteriosa do seu proceder. Eu era muito moço e
inexperiente: avaliava-a mal. Aquella natureza complexa, que resumia no
seu caracter muitos caractéres diversos, queria eu que visse as coisas
absolutamente como eu as via. Eu, o que então sabia, era que as
palavras: sentimento, amor, delicadeza, ciume, e outras assim,
representavam para Fanny umas idéas, e para mim outras. Ignorava que o
custoso para mim não o era para ella, e que lhe bastava sempre a boa
intenção para indulgencial-a d'um facto, qualquer que fosse. Em mim, não
descontava nada á sua fraqueza. Depois é que apprendi a conhecêl-a.
Quantos maiores esforços eu fazia para desligar Fanny de seu marido,
mais eu estreitava os vinculos relaxados por quinze annos de existencia
commum. Fanny lastimava-me interiormente, mas eu devia ser-lhe pesado.
Bem sentia eu que a importunava, mas não estava em mim deixar de a
repellir de cada trincheira em que ella esperava o combate. Não me
passava pela mente que o unico recurso para conseguir o meu fim, era
mudar de tactica. Ninguem me havia dito que eu devia esconder o meu
ciume, como principal causa da nossa separação. Que candura! Eu via nas
manifestações do meu ciume provas de um amor que devia abalal-a. E, com
tudo, tão facil me seria serenar-lhe a vida a ponto de a forçar a
comparações, com vantagens minhas, entre os dois homens de quem ella
dependia. Mas mais simples que tudo seria não amal-a!...
Ama ella o marido? Não acredito, nunca o acreditei. Um sentimento banal,
resultante do costume e agradavel ás almas pacificas, porque
naturalmente continúa as coisas, e não cansa o espirito em mudanças,
esse devia tel-o. E o vêr o despota humanisado diante d'ella,
commovia-a; e o receber caricias da mesma mão que a castigava rudemente,
dava-lhe uma especie de satisfação. Não era isto fraqueza nem ingenita
baixeza de animo; era uma certa indifferença de genio, explicavel na
idade d'ella Fanny, em fim, certo, não tinha uma alma varonil, nem mesmo
uma alma muito nobre, por que antes queria astuciar que combater, e
antepunha o aviltar-se, repartindo-se, que transtornar o seu viver; era,
porém dotada de alma recta. Cuidava, certamente, que se resgatava, em
sua consciencia, da perfidia conjugal com uma submissão completa. Até
certo ponto, era indemnisar o marido, o tolerar-lhe os caprichos do
genio. Em que restingas, em que abysmos, em que cahos de coisas sem
nome, a probidade, esta rara perola, se esconde?
LXII
Era urgente que eu accedesse á nova concessão do aproximarem-se os
esposos. Mas de concessão em concessão lá se ia, desfeita em lagrimas, a
minha estima. Eu humilhava-me como o escravo que não póde resistir, com
gritos de raiva surda, e desejos immensos de vingança. Ah! se Fanny
soubesse que ella devia accusar-se só a si da minha abominavel vingança!
LXIII
Inraivecido por não poder vencer a pertinacia do caracter de Fanny,
trahi-a. Amor e ciume, quiz tentar matal-os na devassidão.
Conspurquei-me voluntariamente, e acintamente, ao contacto de labios
impuros da luxuria estupida. Cada noite, de proposito, como ladrão que
se embusca no angulo d'uma rua, entrava rindo sarcasticamente de mim
mesmo, no infame prostibulo onde eu contava apagar a sêde de vingança.
Sorria amargamente ainda, como traidor que pensa na confiança dos
ludibriados, eu arrastava commigo, aos braços da mulher querida, a torpe
recordação das creaturas degradadas, cujas caricias não tinha podido
sevar-me o rancor; e deste modo eu achava um meio de identificar Fanny
commigo, sem o ella saber, e ingolphal-a commigo nas mesmas execraveis
immundices.
Mas era-me maior a vergonha na sahida que a cegueira do furor na
entrada. Estorcia-me os pulsos na rua, e arrancava os cabellos
desesperado. Mais ciumento, mais aferrado, mal vingado, castigado por
minhas proprias mãos, martyrisava-me com o profundo pensamento da
inutilidade dos meus esforços. Não sei que desgosto corporal me subia
aos labios. Era um horror de mim mesmo. Vagava, de ventura, toda a
noite, como miseravel sem abrigo, esperando vencer com a fadiga do corpo
os tormentos do cerebro. Debruçado sobre o parapeito das pontes via
redemoinhar a onda negra do Sena, menos sombria e mais lodacenta que os
pensamentos, irriquietos do meu espirito attribulado. Eu chafurdava nos
lamaçaes, como para destruir sobre immundices impalpaveis, a impalpavel,
mas real immundice que imporcalhava o meu amor. E sempre diante de mim,
perpassando como phantasma nas sombras que se tiravam ao longo das ruas,
via a imagem de Fanny, com o seu ar tranquillo, fronte serena, olhar
sombrio, como que a visitar-me, mas forçando-me a pensar n'ella quando
eu ia cuidando em matar-me para esquecêl-a. Oh! que terrivel estado
aquelle, sem repouso nem treguas ás minhas angustias! que me exacerbava
e prostrava! que incharcando no nôjo a minha desesperação, infamava o
meu ciume sem applacal-o!
LXIV
Sustentava-me, comtudo ainda, um resto de coragem, essencial na minha
indole. Estas pelejas intimas davam-me alento. Resolvera buscar o
remedio até encontral-o, e, não o tendo, emprehender algum arrojo de
desesperado, para arrebatar Fanny, a pezar d'ella. Ninguem sabe os
estragos que uma idéa fixa póde fazer d'uma alma. Incrivelmente vos vos
roja até vêr o bem nas coisas repugnantes ás menos temerosas
consciencias.
Após maduro reflectir, decidi-me ao penoso sacrificio da ultima
concessão. Estava eu como um doente, que desenganado da cura, pactua com
o mal, e dispõe-se de modo que seja menos o soffrimento no restante de
seus dias.
«Tudo te perdôo!--disse eu a Fanny.»--nunca mais te fallarei dos nossos
eternos motivos de discordia. Não examinarei o teu proceder; não te
sondarei os sentimentos; tudo te concêdo, tudo acceito, excepto a
abominavel partilha que tanto me fez soffrer, e tão demorada tem sido.
Não posso mais... antes quero vêr-te desgraçada; antes morta; quero
morrer eu. Sê-me leal, supplico-t'o--accrescentei com tristeza--porque
me faz um mal horrivel duvidar de ti.
--Pois bem, não haverá mais partilha--respondeu Fanny, com um aperto de
mão--não te inquietes, não soffras mais. Quando meu marido voltar,
approveito-me do pretexto dos ultimos insultos para impor-lhe condições.
Viverei completamente separada d'elle em sua caza. E isto, por toda a
vida Roger, socega, sê emfim feliz. Não dependia de mim o seres feliz ha
mais tempo.
«Restitues-me a vida!--exclamei, lançando-me aos pés d'ella, e
abraçando-os.
--Querido filho!
--Liguemo-nos por um juramento.
A isto sorriu-se ella, mas jurou solemnemente, dadas as mãos, e fixados
mutuamente os olhos.
«E agora--disse eu--se por qualquer motivo, uma vez só, resolveres
faltar á palavra, juras que me avisarás, para que não haja entre nós
traição.
--Por que queres tu que eu jure.
«Pela minha vida.
Fanny sorriu outra vez, mas jurou solemnemente.
Depois d'isto fiquei totalmente tranquillo. Picou-me n'alma o ciume como
a recordação de um sonho que de tempo a tempo, nos sobresalta.
Reapreceu-me a vida bella e ampla. Confiava.
LXV
E por isso a chegada do marido apenas me incommodou pela impossibilidade
de me avistar tantas vezes com Fanny. Chegara o estio. Fanny habitava
outra vez a sua casa campestre, e eu ia vêl-a algumas vezes, por noite,
no caramanchão da tapada, e mais vezes vinha ella a Pariz, quando
engenhava pretexto para passar fóra um dia. Mostrava-se mais livre que
d'antes, pelo menos as visitas eram mais delongadas; mas, mais que
d'antes, me pareceu pensativa e preoccupada. Attribui este enleio aos
infadamentos procedidos da palavra que me dera. Entendo que novos
debates, novos tormentos a faziam desgraçada; e, lastimando-a de todo o
meu coração, animei-a á resistencia, e consolei-a quanto em mim cabia.
Fanny, porém, denotava constrangimento, suspirava, e acolhia os meus
beijos á flôr dos labios, como se tivesse esfriado em seu amor.
Estava escripto que tudo, na nossa historia, fosse extraordinario, e que
eu não intendesse nunca o procedimento d'esta mulher. Logo que me eu
persuadia de ter-lhe penetrado a nova tristeza--imputando-a a discordia
que o respeito do seu juramento devia acarear--soube um facto que me
atirou, mais que nunca, a um mar de incertezas.
Recobrando o repouso do animo, dei-me a um viver menos solitario. Meus
amigos procuravam-me, por que os eu procurara. Interessou-me, de novo, a
sociedade. Um dia, com grande espanto, soube que, a respeito do marido
de Fanny, vogavam boatos escandalosos. Dizia-se que, durante a sua
ultima viagem a Inglaterra, se tinha elle namorado de uma irlandeza que
se estreara no theatro da Rainha; que a tirara da scena; que a chamara
para França, havia um mez. Diziam-se maravilhas da magnificencia em que
elle a tinha. Era lindissima, alta e esbelta como Fanny, mas morena como
as filhas do Norte, com bellas côres rosadas, e finos cabellos sedados
que se desenrolavam languidamente em longos anneis até ao peito.
Jubiloso de nova tal, fiz tenção de lhanamente contal-a a Fanny, a fim
de fortalecêl-a na resistencia, e ministrar-lhe um terrivel argumento
contra o nosso inimigo, se elle se obstinasse em tormental-a. Nova
surpreza me esperava, que devia sobrelevar todas as mais a prodigiosa
altura.
Fanny, como tantas outras mulheres, atraiçoando seu marido, não queria
que elle a atraiçoasse. Irritada pelo meu ar de triumpho, nem deu
credito á realidade da historia, nem á sinceridade da justificação.
--Ou mangaram comsigo, ou o snr. forjou uma historia desinfadadamente,
para me atormentar. O que me diz aborrece-me. A grosseria desses
sentimentos enoja-me tanto que não posso perdoar-lhe, faça o que fizer.
Saiba que meu marido ama-me sempre. A tristeza que soffre, de mais o
demonstra. O juramento que o snr. me arrancou, lealmente o tenho
sustentado. Incumbe-lhe respeitar a minha sensibilidade, cessando de
calumniar um homem que, por causa do snr., é desgraçado.
Foi tamanha a minha estupefacção, que nem me occorreu a idéa de censurar
aquellas estranhas palavras. Fanny mortificava-me cruelmente fallando-me
da «sua susceptibilidade, do seu juramento arrancado, da minha supposta
calumnia» a proposito da infidelidade exactissima, do homem que eu
detestava. Cuidava eu que Fanny se daria por feliz sabendo que, emfim,
espontaneamente, o marido se afastava d'ella, como ella, desde muito, se
afastara d'elle. Esperava eu acções da graça, e sahiu-me cólera, orgulho
offendido, retaliações, que, a meu vêr, tinham as apparencias todas do
ciume. Isto era para indoudecer!
LXVI
Incutiram-se-me suspeitas novas, e estas, mais crueis mil vezes que
quantas me haviam suppliciado. Desta vez, porém, o acceital-as
docilmente, não me foi facil. Intranhara-se-me a desconfiança como
vibora no coração, e o germen da peçonha, que ella ahi revessara,
circulava-me nas veias.
O ciume resurgiu mais abrasado. A só escusa, que podia mitigal-o, era
imposssivel. Não era já da partilha que eu accusava Fanny; mas sim da
mais rasteira traição. Resolvi esclarecer a incerteza, por todo o preço.
Nada disse a Fanny, fingi-me longe de suspeitas. Menti no rosto como nas
palavras. Affectei consummado comico, a maior liberdade de espirito,
quando me estava a morte no coração.
Pela primeira vez na minha vida, fui homem. Por mim, e só commigo, fiz
quanto cumpria para descobrir a verdade. Comprei, com um pseudonimo, a
casa contigua á de Fanny. Instalei-me secretamente lá. Todo o dia,
cosido com as portadas das janellas, escutava os menores rumores da casa
visinha, e via tudo que lá entrava, como se estivesse á espera de vêr
algum estranho entrar ahi a roubar-me a mulher que me era a vida. De
noite, escoava-me através da sebe de arbustos que separavam os nossos
quintaes, e andava debaixo das janellas de Fanny, como ladrão que estuda
o edificio que quer assaltar. Assim apprendi os costumes da familia que
eu espionava. O erguer, o comer, o deitar, sabia tudo. Via de manhã os
creados abrirem portas e janellas, e ouvia o roedôr dos moveis,
deslocados na limpeza dos quartos e da sala. Ás oito horas, o dono da
casa descia ao jardim, onde encontrava os filhos. Ás nove apparecia
Fanny em desalinho campestre. Dava com elle alguns passeios. Ás onze
horas chamava a campainha ao almoço. Ao meio dia, esperava o _coupé_ á
porta. O marido sahia, e só voltava ás sete horas para jantar. Muitas
vezes, depois do meio dia, vi Fanny assentada na raiz d'uma arvore
enorme, que assombrava largo ambito, conversar com os filhos, lêr, ou
occupada em algum trabalho de agulha. As visitas eram numerosas. Das
tres ás seis horas, quando estava bonito o tempo, circuitava o grande
taboleiro de relva, longa fileira de trens, cujos cavallos escarvavam na
areia, á sombra das arvores, sacudindo os freios, a tempo que os bandos
de senhoras e cavalheiros, assentados em cadeiras de bambu, riam, e
bebiam gelados. Ao intardecer sahiam todos, e os homens faziam caracolar
os cavallos á portinhola das carruagens, ou reunidos atraz dos trens,
caminhavam lentamente fumando os seus charutos. Fanny recebia-as com uma
graça incantadora: variava muito de vestidos, e da minha janella via eu
que as mulheres examinavam detidamente os seus deliciosos enfeites, ao
passo que ella, parecia descuriosa de si, como se sempre estivesse
adornada, sem o saber. Raro sahia de noite, se o calôr não era ardente.
O marido passeava então com ella; mas ordinariamente tornava para Pariz
ás oito horas, e quando tornava, era por alta noite.
Nos dias em que nos uniamos em Pariz, Fanny entrava no _coupé_ com o
marido.--Qual de nós é o enganado?--dizia eu commigo. Eu montava, e por
travessas, e a galope, chegava a minha casa primeiro, e ahi era tão
pouco preguntador quanto ella era meditativa. Era-o em toda a parte, em
sua casa como na minha. Ao mesmo tempo, os passos do marido, mandava-os
eu espiar. Nunca ia senão ao club, e a casa da amante. Aqui pernoitava
algumas vezes. Fallava n'isso francamente aos seus amigos, e continuava
a mostrar-se prodigo com ella em demasia. Era um homem prefeitamente
feliz. Não o attribulavam suspeitas nem inquietações: rico, pae de
galantes filhos, uma mulher adoravel. Que lhe faltava? Eu invejava-o.
Mas não me bastava assistir á vida exterior da familia, cujos segredos
eu queria conhecer. Ao cabo de quinze dias, vendo esteril a minha
espionagem, cancei-me da futilidade d'ella. Obtivera apenas o direito de
suppor que Fanny cumpria a palavra, por que o marido, passeando com
ella, parecia exclusivamente entretido com os filhos. Além disso, a
frequencia das visitas que ella recebia, estorvava-me de vêl-a
concentrada em si, tanto quanto eu queria. Resolvi introduzir-me em sua
casa, sem o ella saber. A frieza, com que me estava tractando, era
assustadora. Distrahida sempre. Muitas vezes, com terrivel commoção, de
longe a via, quando se julgava sósinha, cahir sobre um banco, e esconder
n'um lenço, o rosto lavado de lagrimas. Em oito dias, centuplicaram as
minhas suspeitas.
LXVII
Por uma bella noite de agosto é que eu executei o horrivel designio,
cujo exito devia decidir do meu destino. Não sei que hora era; mas,
havia muito que as estrellas radiavam na face do céo a sua suave
claridade. Abri a ultima janella do primeiro andar da minha casa
contigua á de Fanny, fixei a persiana contra a parede, e resvallei pela
rampa; pendurei-me do varão sutoposto á baranda da casa visinha; fixei
um pé na goteira da sacada, depois o outro pé, e saltei. Estava em casa
d'elles.
Fiquei immovel a escutar o silencio, interrompido apenas pelas
precipitadas pulsações do coração. Perto de mim, uma janella alumiada
como um grande quadrado de luz, branqueava de clarão baço, a parede
innegrecida da casa. Baixando-me sobre os joelhos, enxerguei que esta
janella não estava de toda fechada. As beiras das portadas tocavam-se,
mas deixavam coar uma resteasinha de luz. Duas cortinas de cassa branca,
pendentes diante das vidraças, deixavam-me vêr todo o quarto através
d'um alvadio de leite que esfumava um pouco os objectos.
Lembra-me tudo isto. No fundo do quarto havia um grande leito, e sobre
este, uma corôa de ebano lavrado donde pendiam cortinas de estofo escuro
que contrastavam com a brancura dos lençoes. Á esquerda da cama, um
tapete estreito, á direita, uma commoda; ao pé da chaminé uma poltrona
de espaldar muito alto. Que sei eu? Creio que outros moveis estavam lá,
mas eu não reparei. Ao principio, não vi ninguem no quarto, alumiado
desigualmente, por um grande candieiro de cobre, coberto de quebra-luz,
que dardejava sobre o pavimento os raios, deixando o tecto escuro. O
leito ficava assim cortado longitudinalmente pela zona luminosa. Como
quer que eu me chegasse á vidraça para examinar se elle estava occupado,
uma sombra passou lenta entre o candieiro e a janella, desenhando-se nas
cortinas brancas. Pulsou-me o coração mais rijo. Agachei-me rente com a
sala, recuando um pouco.
Reconhecio-o. Era elle. Ainda o vejo. A viração tepida da noite de
agosto, suspirava á volta de mim na folhagem; cantava um passaro entre
os arbustos; a terra vaporava odores balsamicos; mas eu não via, não
sentia, não investigava senão elle. Alongando o pescoço para ajustar os
olhos á entre-aberta da janella, vi-o, com espasmo mudo, como se fosse
para mim coisa extraordinaria vêl-o de pé n'um quarto de sua casa. Tinha
os pés nus em amplas moiras de marroquim amarello; afivellava nos
Fanny esmerava-se em attenções, para compensar-me do mal que me fazia.
Liberalisava-me aquelles delicados disvellos que as mulheres aguardam
dos homens, e dos quaes disvellos são tão economicas, quando se dignam
conceder-lh'os. Beijava-me a mão, chamava-me seu querido filho,
mostrava-se submissa, e esmerava-se por que não houvesse coisa que
turvasse a serenidade da minha vida. Nunca, porém, tratando-me como
dominador, se rebaixava. Ajoelhada deante de mim, tinha a inteira
dignidade d'uma rainha.
Ás vezes, quando as bellas noites do outono eram mais balsamicas e
suaves que as do estio, fugiamos da cidade, como aves cansadas do calôr
do dia. Hombro com hombro, recostados ao respaldo d'uma carruagem
fechada, com as mãos inlaçadas silenciosos, iamos ao bosque buscar um
pouco de ar, de silencio, e de solidão. Rentes comnosco passavam fogosas
parelhas tirando por grandes calexes descobertos, cheios de mulheres
risonhas cujos véos fluctuavam ao vento. Ouviamos o fremito das rodas na
areia, o resfolgar dos cavallos, e o estalido dos chicotes. Viamos
agitarem-se entre as arvores as luzes das lanternas, e mirarem-se na
agua morta dos lagos as sombras espessas dos bosquesinhos de pinheiros.
A lua, ás vezes tão melancolicamente ingastada no céo como nodoa de
prata, alumiava grandes moutas de espinheiros, donde subiam, razando as
hervas, nuvens alvas de vapor. Ebrios do aroma das carvalheiras, e da
mollidão dos nevoeiros luminosos, apeavamos no angulo d'algum caminho
estreito, e nos intranhavamos por debaixo da arcaria de immoveis
arvores, passeando vagarosamente, mais perdidos em nosso scismar do que
o estava a verde folhagem á sombra da noite linda. Era delicioso aquelle
momento em que Fanny, infadada, se me pendia do braço, e justapunha a
sua espadua á minha! Não fallavamos, sentia-se ali o viver, ouviamos as
nossas respirações; e, assim unidos, achavamos doçura estranha n'aquelle
nosso silencio e na incerteza de nossos passos.
Algumas vezes, com tudo, suscitavam-se ligeiras discussões,
remeniscencias attenuadas de antigas discordias. Fanny, porém,
tomando-me, a rir, pelo que eu era, uma creança, ou fazia que me não
intendia, ou, sacudindo-me o braço em ar de gracejo, dizia:
--Ora vamos, não se falla aqui do que já lá vae.
Todos os lados accessiveis da minha vida ia-os ella penetrando cada vez
mais. Como queria tudo saber, imperiosamente se senhoreava de tudo,
passado, presente, e dispunha de tudo, a bel-prazer do futuro. Eu
pensava em tudo como ella. Se me dava conselhos eu seguia-os como
ordens. Em minha casa era ella que dirigia tudo. Os moveis como que se
moviam espontaneamente para se collocarem nos logares designados por
ella; os quadros entravam n'outras molduras; os espelhos inclinavam-se á
vontade d'ella para lhe espelharem por toda a parte a imagem. Era-me
prazer grande o vêl-a assim dispôr do que era meu. A minha casa, tornada
sua, parecia afeminada. Já lá se não viam por sobre as mezas esporas,
chicotes, caixas de charutos; nem junto das paredes tropheus de armas
quarteadas; mas, em logar d'isto, estavam bocetas de flôres, alvissimas
caças rojando sobre os tapetes, mobilia colorida a lacca e incrustações
de Boule, e caixas de perfumarias. Levantavam-se do tapete agulhas e
fios de seda e lã: no rebordo da chaminé brilhavam o dedal e as
thesouras.
Foram, no drama da nossa vida, esses seis mezes uma especie de
entre-acto. Nada nos faltava para a felicidade, excepto a confiança.
Fanny estava sempre sobre-rolda receando ataque improviso, e eu
conservava no coração um certo azedume. Não havia consolar-me de não ter
podido vencer os escrupulos da mulher que eu tanto amava.
Cheguei á fraqueza piegas de pedir-lhe conselhos para a direcção dos
meus bens. Fanny não entendia nada de negocios, mas dava aproveitaveis
pareceres, porque eram sempre dictados por um espirito de desconfiança
feminil. Pois não a consultava eu até em compras de cavallos? No tocante
ao vestir era ella quem decidia soberanamente dos feitios e das côres.
Arranjava a minha roupa branca, a rir, erguida em pontas dos pés para
chegar aos lotes dos armarios, e intromettia-lhe bolsinhas odoriferas
que trazia comsigo, e nunca pude encontrar n'outra parte. Todos os
instantes dos meus dias estavam, em fim, contados. Não dava um passo sem
sua approvação; não comprava luvas ou gravatas que ella não elegesse. O
numero dos meus amigos fixou-o ella. Desprezei tres, porque tinham nomes
que não agradavam a Fanny. Tudo isto me parecia delicioso. Viver sem
ella é que eu não podia por mais que fizesse. Estava enfeitiçado.
LX
Mas o meu ciume, esse não estava morto, nem se quer entorpecido: apenas
tinha variado um pouco de objecto. Desde que o marido estava auzente, já
não podia soffrer por causa de uma partilha que não existia; mas os
menores sentimentos que Fanny me deixava adivinhar, inquietavam-me.
Afóra os filhos, e a mãe que ella via ás escondidas, eu não lhe
consentia amar ninguem. Fanny sorria, encolhendo os hombros. D'este modo
nos tyrannisavamos mutuamente.
Um dia, quando eu lhe tirava o «corpete», uma carta grande e
quadrada--lhe fôra entregue quando saía de sua casa--escorregou-lhe do
peito e caiu aos meus pés. Levantei-a. Tinha o sêllo de Londres. Encarei
Fanny, que, pallida, estendia a mão tremula a tomal-a.
«Teu marido escreve-te?» disse-lhe eu, entregando-lh'a.
--Que pergunta!--disse ella.
--Escreve-te regularmente?--ajuntei eu, depois d'um momento de silencio,
durante o qual eu sentia as garras do meu antigo furor atassalhar-me o
espirito.
--Pois então!... disse ella--todas as semanas.
«Porque te escreve elle?... Separados por tão violenta discussão,
parecia que os corações deviam separar-se para sempre.
Fanny olhou-me com espanto e ficou pensativa. Mas, como eu esperasse
resposta, replicou:
--Espantam-te sempre as mais singelas coisas. Não é natural que meu
marido me diga dos seus negocios, e me falle dos seus filhos?
«É justo... Eu não tinha pensado n'isso--murmurei.
Fallou-se de muitas coisas; mas, a sós commigo, reflexionei immenso.
«Respondes ás cartas de teu marido?
Fanny fez-se livida, hesitou, e deu signaes de impaciencia. Depois
simulou um ar de indifferença, respondendo:
--Escrevo-lhe raras vezes;
--Sim? e, diz-me cá, que lhe escreves?
--Não sei. Escrevo-lhe friamente. Falla-se de negocios. Isto não te
interessa nada.
Fiquei um tanto inleado; mas não pude reprimir-me.
--Como é que nunca tiveste a idéa de mostrar-me as cartas de teu marido?
Roger! Roger!--exclamou sorrindo contrafeita--eu creio que estás louco!
Uma mulher póde por ventura confiar a alguem, principalmente áquelle que
ama, o segredo dos negocios de seu marido?
--Tambem é verdade--murmurei eu.
Fanny quiz logo aproveitar a vantagem que obtivera.
--Feliz seria eu, disse ella, podendo mostrar-te essas cartas que te dão
tanto que pensar. Provar-te-iam que é uma sem-razão recear alguma coisa.
Sabe, pois, espirito desconfiado, que não se póde viver em menos união
do que eu vivo com meu marido.
--De certo!
--Como podes suspeitar o contrario depois que te confiei as minhas
amarguras?
--D'antes, tambem me confiavas o segredo dos negocios domesticos: não
esqueças isto, Fanny.
--Oh! hoje é muito differente.
--Porque?
--Porque... cá me entendo.
Isto fez-me reflectir novamente. Fanny levou as mãos ao céo com piedosa
expressão; eu estava como involto nas sombras da morte. E assim nos
contemplavamos. Era-me impossivel a quietação. Agitava-me d'um para
outro lado.
--Se dizes a verdade, Fanny, por que me não mostras as cartas que lhe
mandas?
--Não é possivel. Quem lêsse uma, comprehenderia as outras.
--Não obstante, eu bem quizera conhecer o tom das tuas cartas. Porque
lhe não escreves agora, mesmo aqui? Falla-lhe de tudo menos do que não
quizeres que eu comprehenda. Eu mesmo levo a carta ao correio.
Supplico-te, Fanny... Se nada temes de ti, dá-me esta prova de
confiança, para me tranquillisar que eu soffro muito.
--Não é possivel--redarguiu ella, com signaes de offendida.
A raiva que me devorava o coração estalou desassombrada:
--Que lhe escreves tu que não queres que eu saiba? Juraste matar-me?
Falla, se tens na alma sombra de piedade! Torturas-me barbaramente como
um algoz!
Fanny ergueu-se, pegou-me da mão e disse brandamente:
--Roger, eu não queria magoar-te.
--Pois que! que mais querias tu fazer-me? Vae! Tu és mulher de duas
caras; eu nunca fui amado por ti!
A esta phrase injusta, lançou-se-me ao pescoço, abafando-me com beijos
as palavras. Eu continuei:
«Como podiam magoar-me as tuas cartas, se, depois d'essa horrivel
contestação, ficaste despeitada com teu marido?
--Sê rasoavel: uma mulher póde ficar despeitada com seu marido?
«Pois que?--exclamei furtando-me aos braços d'ella--tu perdoaste-lhe?
--Rigorosamente não--disse ella, sentando-se quebrantada--mas foi-me
preciso acceitar as suas desculpas. D'esta vez, ainda assim, está tu
certo que não esquecerei mais os ultrages passados.
«Perdoaste-lhe! perdoaste-lhe, Fanny!--Bradei, de pé em frente della,
que olhava para mim assombrada--Não tens, pois, dignidade alguma? Não te
sentes das injurias? És assim vil? Amal-o? Mentiste-me, pois, a mim? Ah!
isto é que eu não acreditaria nunca!
Fanny continuava a ouvir-me silenciosa.
«Diz-me cá: por que me occultaste tanto tempo que elle te insultava?
--Não queria deshonral-o. Se tivesses mais alguma experiencia, não te
espantarias do que succede. Em summa, eu não quero fallar mais n'isto.
Seja-te bastante saber que se me elle restringe a liberdade, ou diz
arrebatado coisas indignas, tem pesar do que faz e diz, passada a
colera. Affirmo-te que o julgas mal. É possivel que eu exaggerasse os
factos no primeiro momento da indignação.. mas.
«Calla-te!--bradei eu--se tens pudôr, calla-te! Ha uma coisa que parece
passar-te desapercebida, e é que, á proporção que vaes fallando, não sei
que idéa peçonhenta lucta, em mim, com o meu amor. Não accrescentes uma
só palavra. Acceito ainda isso, por que sou vil, por que sou um fraco,
por que te amo muito, por que não posso dissuadir-me de te amar; mas
sabe tu que maior mal não m'o podias fazer. Supplico-t'o--não digas mais
nada.
E lançando-me a seus pés, exclamei:
«O despresares-te a ti propria, seria, sobre tudo, cruelissimo!
LXI
Sempre que tivessemos algumas dessas deploraveis luctas o apartamento
era frio, e eu ficava dias inteiros a reluctar com a memoria d'ella.
Mentalmente eu reproduzia os ataques e os argumentos, e inutilmente
sondava a causa misteriosa do seu proceder. Eu era muito moço e
inexperiente: avaliava-a mal. Aquella natureza complexa, que resumia no
seu caracter muitos caractéres diversos, queria eu que visse as coisas
absolutamente como eu as via. Eu, o que então sabia, era que as
palavras: sentimento, amor, delicadeza, ciume, e outras assim,
representavam para Fanny umas idéas, e para mim outras. Ignorava que o
custoso para mim não o era para ella, e que lhe bastava sempre a boa
intenção para indulgencial-a d'um facto, qualquer que fosse. Em mim, não
descontava nada á sua fraqueza. Depois é que apprendi a conhecêl-a.
Quantos maiores esforços eu fazia para desligar Fanny de seu marido,
mais eu estreitava os vinculos relaxados por quinze annos de existencia
commum. Fanny lastimava-me interiormente, mas eu devia ser-lhe pesado.
Bem sentia eu que a importunava, mas não estava em mim deixar de a
repellir de cada trincheira em que ella esperava o combate. Não me
passava pela mente que o unico recurso para conseguir o meu fim, era
mudar de tactica. Ninguem me havia dito que eu devia esconder o meu
ciume, como principal causa da nossa separação. Que candura! Eu via nas
manifestações do meu ciume provas de um amor que devia abalal-a. E, com
tudo, tão facil me seria serenar-lhe a vida a ponto de a forçar a
comparações, com vantagens minhas, entre os dois homens de quem ella
dependia. Mas mais simples que tudo seria não amal-a!...
Ama ella o marido? Não acredito, nunca o acreditei. Um sentimento banal,
resultante do costume e agradavel ás almas pacificas, porque
naturalmente continúa as coisas, e não cansa o espirito em mudanças,
esse devia tel-o. E o vêr o despota humanisado diante d'ella,
commovia-a; e o receber caricias da mesma mão que a castigava rudemente,
dava-lhe uma especie de satisfação. Não era isto fraqueza nem ingenita
baixeza de animo; era uma certa indifferença de genio, explicavel na
idade d'ella Fanny, em fim, certo, não tinha uma alma varonil, nem mesmo
uma alma muito nobre, por que antes queria astuciar que combater, e
antepunha o aviltar-se, repartindo-se, que transtornar o seu viver; era,
porém dotada de alma recta. Cuidava, certamente, que se resgatava, em
sua consciencia, da perfidia conjugal com uma submissão completa. Até
certo ponto, era indemnisar o marido, o tolerar-lhe os caprichos do
genio. Em que restingas, em que abysmos, em que cahos de coisas sem
nome, a probidade, esta rara perola, se esconde?
LXII
Era urgente que eu accedesse á nova concessão do aproximarem-se os
esposos. Mas de concessão em concessão lá se ia, desfeita em lagrimas, a
minha estima. Eu humilhava-me como o escravo que não póde resistir, com
gritos de raiva surda, e desejos immensos de vingança. Ah! se Fanny
soubesse que ella devia accusar-se só a si da minha abominavel vingança!
LXIII
Inraivecido por não poder vencer a pertinacia do caracter de Fanny,
trahi-a. Amor e ciume, quiz tentar matal-os na devassidão.
Conspurquei-me voluntariamente, e acintamente, ao contacto de labios
impuros da luxuria estupida. Cada noite, de proposito, como ladrão que
se embusca no angulo d'uma rua, entrava rindo sarcasticamente de mim
mesmo, no infame prostibulo onde eu contava apagar a sêde de vingança.
Sorria amargamente ainda, como traidor que pensa na confiança dos
ludibriados, eu arrastava commigo, aos braços da mulher querida, a torpe
recordação das creaturas degradadas, cujas caricias não tinha podido
sevar-me o rancor; e deste modo eu achava um meio de identificar Fanny
commigo, sem o ella saber, e ingolphal-a commigo nas mesmas execraveis
immundices.
Mas era-me maior a vergonha na sahida que a cegueira do furor na
entrada. Estorcia-me os pulsos na rua, e arrancava os cabellos
desesperado. Mais ciumento, mais aferrado, mal vingado, castigado por
minhas proprias mãos, martyrisava-me com o profundo pensamento da
inutilidade dos meus esforços. Não sei que desgosto corporal me subia
aos labios. Era um horror de mim mesmo. Vagava, de ventura, toda a
noite, como miseravel sem abrigo, esperando vencer com a fadiga do corpo
os tormentos do cerebro. Debruçado sobre o parapeito das pontes via
redemoinhar a onda negra do Sena, menos sombria e mais lodacenta que os
pensamentos, irriquietos do meu espirito attribulado. Eu chafurdava nos
lamaçaes, como para destruir sobre immundices impalpaveis, a impalpavel,
mas real immundice que imporcalhava o meu amor. E sempre diante de mim,
perpassando como phantasma nas sombras que se tiravam ao longo das ruas,
via a imagem de Fanny, com o seu ar tranquillo, fronte serena, olhar
sombrio, como que a visitar-me, mas forçando-me a pensar n'ella quando
eu ia cuidando em matar-me para esquecêl-a. Oh! que terrivel estado
aquelle, sem repouso nem treguas ás minhas angustias! que me exacerbava
e prostrava! que incharcando no nôjo a minha desesperação, infamava o
meu ciume sem applacal-o!
LXIV
Sustentava-me, comtudo ainda, um resto de coragem, essencial na minha
indole. Estas pelejas intimas davam-me alento. Resolvera buscar o
remedio até encontral-o, e, não o tendo, emprehender algum arrojo de
desesperado, para arrebatar Fanny, a pezar d'ella. Ninguem sabe os
estragos que uma idéa fixa póde fazer d'uma alma. Incrivelmente vos vos
roja até vêr o bem nas coisas repugnantes ás menos temerosas
consciencias.
Após maduro reflectir, decidi-me ao penoso sacrificio da ultima
concessão. Estava eu como um doente, que desenganado da cura, pactua com
o mal, e dispõe-se de modo que seja menos o soffrimento no restante de
seus dias.
«Tudo te perdôo!--disse eu a Fanny.»--nunca mais te fallarei dos nossos
eternos motivos de discordia. Não examinarei o teu proceder; não te
sondarei os sentimentos; tudo te concêdo, tudo acceito, excepto a
abominavel partilha que tanto me fez soffrer, e tão demorada tem sido.
Não posso mais... antes quero vêr-te desgraçada; antes morta; quero
morrer eu. Sê-me leal, supplico-t'o--accrescentei com tristeza--porque
me faz um mal horrivel duvidar de ti.
--Pois bem, não haverá mais partilha--respondeu Fanny, com um aperto de
mão--não te inquietes, não soffras mais. Quando meu marido voltar,
approveito-me do pretexto dos ultimos insultos para impor-lhe condições.
Viverei completamente separada d'elle em sua caza. E isto, por toda a
vida Roger, socega, sê emfim feliz. Não dependia de mim o seres feliz ha
mais tempo.
«Restitues-me a vida!--exclamei, lançando-me aos pés d'ella, e
abraçando-os.
--Querido filho!
--Liguemo-nos por um juramento.
A isto sorriu-se ella, mas jurou solemnemente, dadas as mãos, e fixados
mutuamente os olhos.
«E agora--disse eu--se por qualquer motivo, uma vez só, resolveres
faltar á palavra, juras que me avisarás, para que não haja entre nós
traição.
--Por que queres tu que eu jure.
«Pela minha vida.
Fanny sorriu outra vez, mas jurou solemnemente.
Depois d'isto fiquei totalmente tranquillo. Picou-me n'alma o ciume como
a recordação de um sonho que de tempo a tempo, nos sobresalta.
Reapreceu-me a vida bella e ampla. Confiava.
LXV
E por isso a chegada do marido apenas me incommodou pela impossibilidade
de me avistar tantas vezes com Fanny. Chegara o estio. Fanny habitava
outra vez a sua casa campestre, e eu ia vêl-a algumas vezes, por noite,
no caramanchão da tapada, e mais vezes vinha ella a Pariz, quando
engenhava pretexto para passar fóra um dia. Mostrava-se mais livre que
d'antes, pelo menos as visitas eram mais delongadas; mas, mais que
d'antes, me pareceu pensativa e preoccupada. Attribui este enleio aos
infadamentos procedidos da palavra que me dera. Entendo que novos
debates, novos tormentos a faziam desgraçada; e, lastimando-a de todo o
meu coração, animei-a á resistencia, e consolei-a quanto em mim cabia.
Fanny, porém, denotava constrangimento, suspirava, e acolhia os meus
beijos á flôr dos labios, como se tivesse esfriado em seu amor.
Estava escripto que tudo, na nossa historia, fosse extraordinario, e que
eu não intendesse nunca o procedimento d'esta mulher. Logo que me eu
persuadia de ter-lhe penetrado a nova tristeza--imputando-a a discordia
que o respeito do seu juramento devia acarear--soube um facto que me
atirou, mais que nunca, a um mar de incertezas.
Recobrando o repouso do animo, dei-me a um viver menos solitario. Meus
amigos procuravam-me, por que os eu procurara. Interessou-me, de novo, a
sociedade. Um dia, com grande espanto, soube que, a respeito do marido
de Fanny, vogavam boatos escandalosos. Dizia-se que, durante a sua
ultima viagem a Inglaterra, se tinha elle namorado de uma irlandeza que
se estreara no theatro da Rainha; que a tirara da scena; que a chamara
para França, havia um mez. Diziam-se maravilhas da magnificencia em que
elle a tinha. Era lindissima, alta e esbelta como Fanny, mas morena como
as filhas do Norte, com bellas côres rosadas, e finos cabellos sedados
que se desenrolavam languidamente em longos anneis até ao peito.
Jubiloso de nova tal, fiz tenção de lhanamente contal-a a Fanny, a fim
de fortalecêl-a na resistencia, e ministrar-lhe um terrivel argumento
contra o nosso inimigo, se elle se obstinasse em tormental-a. Nova
surpreza me esperava, que devia sobrelevar todas as mais a prodigiosa
altura.
Fanny, como tantas outras mulheres, atraiçoando seu marido, não queria
que elle a atraiçoasse. Irritada pelo meu ar de triumpho, nem deu
credito á realidade da historia, nem á sinceridade da justificação.
--Ou mangaram comsigo, ou o snr. forjou uma historia desinfadadamente,
para me atormentar. O que me diz aborrece-me. A grosseria desses
sentimentos enoja-me tanto que não posso perdoar-lhe, faça o que fizer.
Saiba que meu marido ama-me sempre. A tristeza que soffre, de mais o
demonstra. O juramento que o snr. me arrancou, lealmente o tenho
sustentado. Incumbe-lhe respeitar a minha sensibilidade, cessando de
calumniar um homem que, por causa do snr., é desgraçado.
Foi tamanha a minha estupefacção, que nem me occorreu a idéa de censurar
aquellas estranhas palavras. Fanny mortificava-me cruelmente fallando-me
da «sua susceptibilidade, do seu juramento arrancado, da minha supposta
calumnia» a proposito da infidelidade exactissima, do homem que eu
detestava. Cuidava eu que Fanny se daria por feliz sabendo que, emfim,
espontaneamente, o marido se afastava d'ella, como ella, desde muito, se
afastara d'elle. Esperava eu acções da graça, e sahiu-me cólera, orgulho
offendido, retaliações, que, a meu vêr, tinham as apparencias todas do
ciume. Isto era para indoudecer!
LXVI
Incutiram-se-me suspeitas novas, e estas, mais crueis mil vezes que
quantas me haviam suppliciado. Desta vez, porém, o acceital-as
docilmente, não me foi facil. Intranhara-se-me a desconfiança como
vibora no coração, e o germen da peçonha, que ella ahi revessara,
circulava-me nas veias.
O ciume resurgiu mais abrasado. A só escusa, que podia mitigal-o, era
imposssivel. Não era já da partilha que eu accusava Fanny; mas sim da
mais rasteira traição. Resolvi esclarecer a incerteza, por todo o preço.
Nada disse a Fanny, fingi-me longe de suspeitas. Menti no rosto como nas
palavras. Affectei consummado comico, a maior liberdade de espirito,
quando me estava a morte no coração.
Pela primeira vez na minha vida, fui homem. Por mim, e só commigo, fiz
quanto cumpria para descobrir a verdade. Comprei, com um pseudonimo, a
casa contigua á de Fanny. Instalei-me secretamente lá. Todo o dia,
cosido com as portadas das janellas, escutava os menores rumores da casa
visinha, e via tudo que lá entrava, como se estivesse á espera de vêr
algum estranho entrar ahi a roubar-me a mulher que me era a vida. De
noite, escoava-me através da sebe de arbustos que separavam os nossos
quintaes, e andava debaixo das janellas de Fanny, como ladrão que estuda
o edificio que quer assaltar. Assim apprendi os costumes da familia que
eu espionava. O erguer, o comer, o deitar, sabia tudo. Via de manhã os
creados abrirem portas e janellas, e ouvia o roedôr dos moveis,
deslocados na limpeza dos quartos e da sala. Ás oito horas, o dono da
casa descia ao jardim, onde encontrava os filhos. Ás nove apparecia
Fanny em desalinho campestre. Dava com elle alguns passeios. Ás onze
horas chamava a campainha ao almoço. Ao meio dia, esperava o _coupé_ á
porta. O marido sahia, e só voltava ás sete horas para jantar. Muitas
vezes, depois do meio dia, vi Fanny assentada na raiz d'uma arvore
enorme, que assombrava largo ambito, conversar com os filhos, lêr, ou
occupada em algum trabalho de agulha. As visitas eram numerosas. Das
tres ás seis horas, quando estava bonito o tempo, circuitava o grande
taboleiro de relva, longa fileira de trens, cujos cavallos escarvavam na
areia, á sombra das arvores, sacudindo os freios, a tempo que os bandos
de senhoras e cavalheiros, assentados em cadeiras de bambu, riam, e
bebiam gelados. Ao intardecer sahiam todos, e os homens faziam caracolar
os cavallos á portinhola das carruagens, ou reunidos atraz dos trens,
caminhavam lentamente fumando os seus charutos. Fanny recebia-as com uma
graça incantadora: variava muito de vestidos, e da minha janella via eu
que as mulheres examinavam detidamente os seus deliciosos enfeites, ao
passo que ella, parecia descuriosa de si, como se sempre estivesse
adornada, sem o saber. Raro sahia de noite, se o calôr não era ardente.
O marido passeava então com ella; mas ordinariamente tornava para Pariz
ás oito horas, e quando tornava, era por alta noite.
Nos dias em que nos uniamos em Pariz, Fanny entrava no _coupé_ com o
marido.--Qual de nós é o enganado?--dizia eu commigo. Eu montava, e por
travessas, e a galope, chegava a minha casa primeiro, e ahi era tão
pouco preguntador quanto ella era meditativa. Era-o em toda a parte, em
sua casa como na minha. Ao mesmo tempo, os passos do marido, mandava-os
eu espiar. Nunca ia senão ao club, e a casa da amante. Aqui pernoitava
algumas vezes. Fallava n'isso francamente aos seus amigos, e continuava
a mostrar-se prodigo com ella em demasia. Era um homem prefeitamente
feliz. Não o attribulavam suspeitas nem inquietações: rico, pae de
galantes filhos, uma mulher adoravel. Que lhe faltava? Eu invejava-o.
Mas não me bastava assistir á vida exterior da familia, cujos segredos
eu queria conhecer. Ao cabo de quinze dias, vendo esteril a minha
espionagem, cancei-me da futilidade d'ella. Obtivera apenas o direito de
suppor que Fanny cumpria a palavra, por que o marido, passeando com
ella, parecia exclusivamente entretido com os filhos. Além disso, a
frequencia das visitas que ella recebia, estorvava-me de vêl-a
concentrada em si, tanto quanto eu queria. Resolvi introduzir-me em sua
casa, sem o ella saber. A frieza, com que me estava tractando, era
assustadora. Distrahida sempre. Muitas vezes, com terrivel commoção, de
longe a via, quando se julgava sósinha, cahir sobre um banco, e esconder
n'um lenço, o rosto lavado de lagrimas. Em oito dias, centuplicaram as
minhas suspeitas.
LXVII
Por uma bella noite de agosto é que eu executei o horrivel designio,
cujo exito devia decidir do meu destino. Não sei que hora era; mas,
havia muito que as estrellas radiavam na face do céo a sua suave
claridade. Abri a ultima janella do primeiro andar da minha casa
contigua á de Fanny, fixei a persiana contra a parede, e resvallei pela
rampa; pendurei-me do varão sutoposto á baranda da casa visinha; fixei
um pé na goteira da sacada, depois o outro pé, e saltei. Estava em casa
d'elles.
Fiquei immovel a escutar o silencio, interrompido apenas pelas
precipitadas pulsações do coração. Perto de mim, uma janella alumiada
como um grande quadrado de luz, branqueava de clarão baço, a parede
innegrecida da casa. Baixando-me sobre os joelhos, enxerguei que esta
janella não estava de toda fechada. As beiras das portadas tocavam-se,
mas deixavam coar uma resteasinha de luz. Duas cortinas de cassa branca,
pendentes diante das vidraças, deixavam-me vêr todo o quarto através
d'um alvadio de leite que esfumava um pouco os objectos.
Lembra-me tudo isto. No fundo do quarto havia um grande leito, e sobre
este, uma corôa de ebano lavrado donde pendiam cortinas de estofo escuro
que contrastavam com a brancura dos lençoes. Á esquerda da cama, um
tapete estreito, á direita, uma commoda; ao pé da chaminé uma poltrona
de espaldar muito alto. Que sei eu? Creio que outros moveis estavam lá,
mas eu não reparei. Ao principio, não vi ninguem no quarto, alumiado
desigualmente, por um grande candieiro de cobre, coberto de quebra-luz,
que dardejava sobre o pavimento os raios, deixando o tecto escuro. O
leito ficava assim cortado longitudinalmente pela zona luminosa. Como
quer que eu me chegasse á vidraça para examinar se elle estava occupado,
uma sombra passou lenta entre o candieiro e a janella, desenhando-se nas
cortinas brancas. Pulsou-me o coração mais rijo. Agachei-me rente com a
sala, recuando um pouco.
Reconhecio-o. Era elle. Ainda o vejo. A viração tepida da noite de
agosto, suspirava á volta de mim na folhagem; cantava um passaro entre
os arbustos; a terra vaporava odores balsamicos; mas eu não via, não
sentia, não investigava senão elle. Alongando o pescoço para ajustar os
olhos á entre-aberta da janella, vi-o, com espasmo mudo, como se fosse
para mim coisa extraordinaria vêl-o de pé n'um quarto de sua casa. Tinha
os pés nus em amplas moiras de marroquim amarello; afivellava nos
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