Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 10

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subditos, pelo curiaes e provados de côrte, e pelos servos fiscaes que
faziam produzir as herdades e contribuiam com as rendas d'ellas e com os
proprios haveres a satisfazer os encargos publicos. Os capitães e
senhores godos fizeram repartimentos analogos pelos seus clientes e
buccellarios, tanto para tirar proveito dos seus latifundios, como para
manter a propria jerarchia com servidores e defensores numerosos.
Os godos nobres foram proprietarios allodiaes e liberrimos possuidores
das terras conquistadas; mas, postoque, adquirindo-as, não contrahissem
com o estado ou com o rei nenhuma nova obrigação por lei ou por pacto,
as que já tinham para com os chefes, debaixo de cujas bandeiras haviam
militado voluntariamente, deviam effectivamente ser mais efficazes,
assim por interesse de «conservar as vantagens obtidas, como porque,
tendo residencia fixa e propriedade de raiz, era mais facil de exigir o
cumprimento d'ellas.
As terras adquiridas d'este modo foram origem de um sem numero de novas
relações individuaes, elementos necessarios d'aquella organisação
social. É sabido que nos povos de raças ou costumes germanicos existia o
patronato, em virtude do qual cada chefe ou homem poderoso tinha á sua
devoção uma clientela numerosa, que o servia na paz e na guerra e á qual
dispensava favores e dadivas. Até a conquista, costumavam estas
consistir em armas e manjares; mas quando os godos se viram donos de
vastas herdades, a cuja cultura não podiam prover por si mesmos,
repartiram muitas d'ellas pelos seus clientes ou buccellarios com
condições expressas e como paga dos seus serviços. Novidade tão
importante teve notaveis consequencias no que tocava ás relações
sociaes, porque com ella o vinculo do patronato tornou-se mais apertado
e duradouro. Familias numerosas, que d'antes vagueavam à mercê dos
accidentes da guerra ou conforme o capricho dos seus senhores, fizeram
assento em sitios certos, defendendo-se com as armas, povoando-os com os
filhos, e fecundando-os com o trabalho. Patronos e clientes ficaram
assim identificados por um interesse commum mais efficaz do que o que
poderia haver quando apenas se enlaçavam por presentes e banquetes. E
não pode duvidar-se de que, estabelecidos os godos em Hespanha, se
serviram dos seus herdamentos para constituir e estender os patronatos,
visto que uma lei do _Forum Judicum_, estatuia que o patrono que tomava
para si um cliente alheio lhe concedesse _terra_, para que elle largasse
a terra e o mais que tivesse do anterior patrono.»
O auctor declara _exorbitantes_ os direitos do patrono sobre o cliente
entre os wisigodos: 1.^o--a perpetuidade do patronato e clientela de
paes a filhos: 2.^o--a tutela das filhas do cliente passando por morte
d'este ao patrono, e perdendo ellas os bens herdados havidos do patrono
por seu pae, se casavam com individuo de condição inferior:
3.^o--pertencer ao patrono o que o cliente adquiria com seu saião ou
agente judicial: 4.^o--perder o cliente que trahia o patrono quanto
d'elle houvera, e metade do que afóra disso adquirira: 5.^o--ter o
patrono o direito de julgar, castigar e açoutar o cliente. O unico
direito do cliente era o de deixar o patrono quando queria, e de possuir
o que d'elle houvera em quanto o não deixava ou não lhe era infiel. O
sr. Cárdenas vê n'estas relações do patrono e do cliente a _verdadeira
origem_ das que se deram posteriormente entre senhores e vassallos nos
feudos propriamente dictos, e nos senhorios similhantes a elles. Depois
continua:
«Muitas das terras adjudicadas á corôa foram repartidas pelos _curiaes_
e _privados de côrte_, e pela igreja. Parece que se chamavam curiaes e
privados aquelles que, em razão das propriedades que disfructavam,
contribuiam para o erario com certos censos e prestações de fructos e
cavallos. _Eram fidalgos_, postoque possuidores de terras tributarias.
Dava além d'isso o rei as terras da corôa aos seus _fieis_, isto é, aos
que estavam ás suas ordens, que lhe faziam serviço e que guardavam a sua
pessoa.» Estes não deviam ser privados da propria dignidade nem dos bens
havidos do rei, que poderiam legar, salvo no caso de traição. «Por
ventura--continúa o auctor--não eram na essencia diversos dos que,
depois, Chindaswintho chamava _curiaes_ e _privados de côrte_, com a
differença de que uns podiam dispor dos seus bens e outros não. Davam-se
outras terras da corôa a _servos fieis_ para que as cultivassem e
contribuissem para o erario com parte dos fructos d'ellas. Era a
condição d'estes servos mui superior á dos outros.» O auctor enumera
depois em que consistiam estas differenças de que terei ainda occasião
de falar.
Omitto n'estes extractos o que é relativo á propriedade ecclesiastica.
Sejam quaes forem as reflexões que a similhante respeito o trabalho do
sr. Cárdenas possa suscitar, pouco serviriam taes reflexões para
investigar os elementos de feudalismo que elle crê encontrar na
contextura da sociedade wisigothica. Por egual razão deixarei de parte o
que pondera ácerca das manumissões e dos libertos, dos colonos, e dos
cultivadores por titulo precario. A transformação da servidão em
colonato, em adhesão á gleba, e o gradual desapparecimento do homem
livre de condição humilde, do trabalhor rural, e até do pequeno
proprietario, na grande massa dos adscriptos foi um phenomeno social,
que nem acompanhou de modo synchronico a transformação do systema
beneficiario em feudalismo, nem derivou d'este, nem finalmente
contribuiu para a sua existencia. Só mencionarei a singular
interpretação que o sr. Cárdenas dá a uma das leis do Código wisigothico
mais importantes para illustrar a obscura historia das instituições
sociaes d'essa épocha, d'aquillo a que chamamos hoje relações de direito
publico. É a que se refere á transmissão de terras pelos proprietarios a
cultivadores. «Uma lei wisigothica--diz elle--alludindo aos colonos que
os proprietarios costumavam pôr nas suas terras, suppõe ser inherente
nos mesmos colonos a obrigação de pagar ao dono certas prestações ou
censos. Dá-se a entender n'essa lei, apesar da sua obscuridade no
original latino, que se o colono (_accola_) posto pelo dono na herdade
transmittia a outro o terço d'ella (_tertiam_), isto é, a porção de
terra deixada aos romanos, o cessionario devia pagar por ella ao
senhorio do mesmo modo que o fazia o cedente. D'esta lei deduzem-se dous
factos importantes: 1.^o que os patronos davam terras de colonia aos
seus clientes: 2.^o que o terço das deixadas aos indigenas costumava ser
possuido por esses como colonos e debaixo do patronato do dono dos
outros dous terços.»
O sr. Cárdenas suppõe que desde a entrada dos godos os hispano-romanos
ficaram como estes obrigados ao serviço militar; mas reconhece que tal
obrigação não se ligava com a posse da propriedade territorial. «Os
godos de raça..... julgavam-se obrigados... a defender, ajudar e servir
o monarcha... Os hispano-romano... estavam á mercê dos seus dominadores,
tanto para os encargos da paz como para as lidas da guerra. Uns e outros
haviam de cumprir fielmente aquella obrigação nos tempos immediatos á
conquista.» E depois de lembrar as leis que coagiam ao serviço de
guerra, e sobretudo as severas providencias de Wamba, prosegue: «Bem que
todas estas apertadas disposições não se note relação alguma entre o
goso da propriedade e as obrigações militares, uma lei posterior de
Egica offerece alguns indicios d'essa relação, postoque vagos. Os servos
ficaes, que, como já disse, costumavam possuir terras da corôa, com
condições similhantes ás dos vassallos feudaes da edade media, tinham
sem duvida recebido, no acto de serem emancipados, elles ou seus
ascendentes, alguma porção d'aquellas terras, ou outra doação do seu
real patrono... Estes libertos não deviam a principio ter entre as
demais obrigações suas a de vestirem as armas, porque indubitavelmente
nos primeiros tempos era isso privilegio dos godos originariamente
livres.» Confessa o auctor, depois, que as leis de Wamba abrangiam
tambem os libertos fiscaes. Entretanto vê na lei de Egica a prova da
insufficiente efficacia d'aquelloutras leis em relação a esta classe de
libertos, ou qualquer conveniencia de uma lei especial a respeito
d'elles, e accrescenta: «Não se deve presumir que o fundamento d'esta
obrigação (a imposta especificadamente por Egica) foi a concessão de
terras que a corôa costumava fazer aos seus servos no acto de lhes dar
alforria?
Tambem existem indicios da mesma obrigação na que tinham os curiaes e os
clientes para com os respectivos patronos, derivada das suas relações
especiaes, e das liberalidades que estes faziam áquelles. Conforme uma
lei já citada, os _curiaes e privados de côrte_ deviam dar cavallos ao
rei (_caballos ponere_) o que na linguagem d'aquelle tempo significava
servir o principe com cavalleiros armados. Tendo os curiaes os seus bens
gravados com este encargo, é claro que a posse d'elles envolvia em si o
dever do serviço militar. Outras leis do mesmo codigo mostram que os
patronos davam aos seus clientes armas ou outras cousas que estes
perdiam quando deixavam o serviço d'elles; donde deve inferir-se que os
buccellarios contrahiam a obrigação de servir com ellas aos seus
senhores, do mesmo modo que os clientes aos patronos germanicos, e os
vassallos aos senhores feudaes.
A jurisdicção e o poder publico egualmente se não consideravam ainda
como derivando do dominio privado da terra... Porém, se não era esta a
origem immediata da jurisdicção, já começava de certo modo a fundal-a
creando relações sociaes que a produziam, embora limitada. Exercia-se a
jurisdicção em geral por delegados regios, chamados duques, condes,
vigarios, _assertores pacis_, tiuphados, millenarios, centenarios,
decanos e defensores, ou pelo rei pessoalmente, e ás vezes pelos bispos.
Mas, afóra isso, existia outra especie de jurisdicção privada, a dos
senhores sobre seus escravos, e a dos patronos sobre os seus clientes. A
primeira procedia do dominio senhorial, e postoque inicialmente não
tivesse nenhuma relação com a propriedade territorial, chegou de certo
modo a depender d'ella quando os servos ficaram perpetuamente adscriptos
á gleba e se lhe reconheceu por costume o direito de não serem separados
dos predios onde trabalhavam. Transmittida tal jurisdicção com esses
predios, claro está que o adquirente obtinha, em virtude da acquisição,
a auctoridade correlativa sobre aquelles que ahi habitavam e os
grangeavam. Quando estes servos eram manumittidos com a condição de
ficarem adscriptos ao solo, sem duvida melhoravam de situação; mas não
saíam de todo do poder dos seus senhores, os quaes continuavam a ter
sobre elles a mesma jurisdicção que tinham anteriormente.
As leis wisigothicas.... ordenavam que os servos, réos de homicidio ou
d'outro crime capital, fossem sujeitos ao julgamento publico e não
julgados pelos senhores... A jurisdicção dominical estendia-se a todos
os delictos não capitaes, e ainda aos capitaes consentindo-o os juizes.
Tambem as leis wisigothicas presuppõem nos patronos a faculdade de
castigar com açoutes os que estavam postos debaixo do seu patrocinio,
que eram os libertos e os clientes ou buccellarios. Não especificam
essas leis os limites d'este poder nem a fórma de o exercer; mas
reconhecem-no positivamente, declarando irresponsavel aquelle que, no
acto de castigar o seu pupillo, patrocinado, ou servo, lhe causava
involuntariamente a morte.»
* * * * *
É do complexo das precedentes disposições legaes, e dos factos que
d'ellas crê resultarem, que o sr. Cárdenas deduz, como já vimos, que,
embora a propriedade entre os wisigodos não tivesse _todos_ os signaes
caracteristicos do feudalismo, encerrava como em incubação _todos_ os
germens d'elle.

VII

É, pois, quasi exclusivamente nas leis do Codigo wisigothico que o sr.
Cárdenas vai encontrar os elementos feudaes que, na sua opinião, se
desenvolveram e completaram nas monarchias neogothicas. Para apreciar o
valor d'este celebre monumento cumpre dizer algumas palavras sobre a sua
origem e sobre a sua historia.
Na exposição e interpretação das leis d'esse codigo, em que o auctor do
_Ensayo_ pensa estribar a propria doutrina, ha, a meu ver, um defeito
grave. É a confusão das épochas, o que não raro o illude sobre o valor e
significação dos textos. No estado em que chegou até nós, essa
compilação legal é um complexo, uma collecção de leis quasi
exclusivamente civis, criminaes, e relativas à ordem do processo,
estatuidas em diversos tempos atravez de dous seculos: é o resultado de
successivas reformas de um codigo primitivo; e representa modificações
graduaes realisadas, ou pelo menos tentadas, nas relações civis e na
administração da justiça. Para a historia da propriedade, como para a de
outra qualquer condição da existencia social, é indispensavel que não
apreciemos aquelles monumentos legislativos como juxta-postos n'um plano
uniforme, mas que os observemos na sua concatenação chronologica.
O Codigo wisigothico ou _Livro dos Juizes_, dividido por materias, ao
menos intencionalmente, e em livros e titulos, deve, como fonte
historica, dividir-se de diverso modo. Posta de parte a intenção
scientifica da sua distribuição, as leis n'elle contidas constituem tres
grupos distinctos:--o das que na respectiva rubrica são designadas pela
palavra _antiqua_;--o d'aquellas que na rubrica se attribuem
expressamente a tal ou tal rei;--finalmente, o das leis em cuja rubrica
nem se exprime o nome do auctor, nem apparece a designação de _antiqua_.
Infelizmente as numerosas copias que serviram para a edição d'este
importante monumento, feita pela Academia de Madrid nos começos do
seculo actual, são comparativamente modernas, e em todas ellas as
rubricas foram transcriptas com maior ou menor negligencia, de modo que,
faltando a qualificação de _antiqua_ e não sendo o auctor de qualquer
lei uniformemente designado em todos os codices ou mencionado no proprio
texto da lei, só por conjecturas chegaremos a approximar-nos da certeza
sobre o reinado em que foi promulgada ou se pertence á collecção antiga.
Se existissem exemplares dos traslados authenticos que se mencionam no
proprio codigo[112], seria possivel determinar as differenças entre as
varias redacções d'elle, e assignar a épocha de cada uma das leis
avulsas ahi inseridas successivamente, para o que as rubricas seriam
guia segura; mas nenhum de taes exemplares é conhecido nem provavelmente
existe. Não devendo a ultima redacção ser posterior aos fins do VII
seculo, e não remontando cópia alguma das existentes além do IX[113], á
falta de qualquer outro indicio, não haverá razão para crer que o
copista d'esta épocha fosse menos negligente do que os do X ou XI, ou
que não a estes mas áquelle tivesse servido ou deixado de servir de
texto um antigo exemplar authentico.
Abstraindo, porém, dos erros e omissões em que n'este ponto possam ter
caido os copistas dos varios codices que restam do _Liber Judicum_, a
proproção entre os tres grupos, na ordem em que ficam mencionados, é
proximamente e em numeros redondos 220, 240, 110. D'estas ultimas cumpre
diminuir as 15 que constituem o livro I e que não são actos
legislativos, mas sim considerações de ordem moral ácerca dos deveres do
legislador e dos caracteres da lei. As restantes são na maxima parte
qualificadas de _antiquae_ n'um dos manuscriptos mais auctorisados, o do
cabido de S. Izidro de Leão, manuscripto que parece ter sido considerado
no tempo de S. Fernando, elle ou outro texto identico, como texto
official para se fazerem as versões vulgares[114].
A Academia de Madrid omittiu a qualificação de _antiqua_ quando faltava
na maioria dos codices, embora se encontrasse em algum e nas rubricas
dos outros não se attribuisse a lei a nenhum rei determinadamente. Mas
parecendo razoavel acceitar em geral o texto legionense como mais digno
de fé, ainda suppondo que nas indicações d'elle haja um ou outro
equivoco, pode dizer-se que as leis denominadas vagamente _antiquae_
excedem em numero as que na rubrica individuam o nome do respectivo
legislador. D'aqui resulta evidentemente que na conjunctura da invasão
sarracena havia na legislação gothica duas partes distinctas: uma que se
considerava como principal fonte do direito escripto; como corpo de
doutrina, digamos assim, impessoal, representando a tradição juridica da
antiga sociedade gothica: outra que continha as reformas e as novas
codificações de Chindaswintho e de seu filho Receswintho, de Ervigio e
de Egica, em que se incluiam algumas constituições avulsas de outros
reis godos adoptadas pelos mais recentes reformadores. Na minha opinião,
as _antiquae_ correspondem á épocha decorrida de Eurico a Leovigildo; e
as novas á que se estende do reinado de Reccaredo até o reinado de
Egica. No pequeno numero d'aquellas em cuja rubrica se lêem as palavras
_antiqua noviter emendata_ é que não é possivel distinguir o que
pertence a cada uma das duas épochas.
A publicação de um fragmento do primitivo codigo dos wisigodos
conservado n'um palimpsesto do mosteiro de Corbie, fragmento descuberto
pelos maurienses, transcripto modernamente por Knust, e dado á luz por
Bluhme em 1847[115], lançou luz inesperada sobre as origens da
legislação dos godos. Seguindo as indicações de Lucas de Tuy, Bluhme viu
neste fragmento uma parte do resumo do codigo gothico que o auctor do
_Chronicon Mundi_ attribue ao filho do Leovigildo. O professor Gaupp
combateu com razões vehementes os fundamentos da opinião de Bluhme,
attribuindo muito maior antiguidade ao fragmento, e estribando-se n'uma
auctoridade mais solida do que a de Lucas de Tuy, a de S. Isidoro, para
lhe dar por auctor Eurico. Merkel, o erudito editor da _Lex Alemanorum_
na grande Collecção de Pertz, tomou vigorosamente a defeza da opinião de
Bluhme, mostrando a impossibilidade de se attribuirem a Eurico as leis
do _Liber Judicum_ denominadas _antiquae_, que são evidentemente a
reproducção mais ou menos alterada do codigo de que fazia parte o
fragmento do palimpsesto. Pétigny, n'um trabalho que se distingue pela
penetração e lucidez, assenta que esse antigo codigo, cuja existencia é
indisputavel á vista do manucripto de Corbie, teve por auctor o mesmo
Alarrico II que promulgou o _Breviarium_ como lei pessoal dos seus
subditos gallo-romanos e hispano-romanos. É a hypothese que me parece
mais plausivel[116].
A lei 277 do fragmento obriga forçosamente a escolher entre a opinião de
Bluhme e a de Pétigny. Resulta d'essa lei que o auctor d'aquelle codigo
era filho e successor de um rei legislador. Ora pelo testemunho de S.
Isidoro sabemos que antes de Eurico, pae e antecessor de Alarico II, os
wisigodos não tinham leis escriptas, regendo-se por costumes
tradicionaes, e depois d'isso o unico rei o que celebre bispo de Sevilha
menciona como reformador do código gothico é Leovigildo, pae de
Reccaredo I. Depois de Reccaredo só consta da existencia da compilação
de Chindaswintho e Receswintho, que representa uma tentativa de
conversão do direito pessoal em real ou territorial, e que com as
successivas modificações de Ervigio e algumas leis de Egica constitue o
que hoje chamamos Codigo wisigothico.
Na opinião de Lardizabal (em cujo tempo era desconhecido o texto do
palimpsesto de Corbie), opinião adoptada por Gaupp e por Haenel, as
_leges antiquae_ representam o codigo gothico primitivo, e pertencem á
compilação legislativa que S. Isidoro parece attribuir a Eurico. Assim o
fragmento de Bluhme, cuja similhança com as _leges antiquae_
correlativas é evidente, constituiria uma parte desse codigo primordial
de Eurico. Mas uma simples observação de Bluhme destroe a opinião
adoptada por Gaupp e Haenel. É que o capitulo 285 do texto palimpsesto é
a reproducção da _interpretatio_ do _Breviarium_ ao liv. II, tit. 33, l.
2, do Codigo theodosiano. Sendo, porém, o _Breviarium_ compilado por
ordem de Alarico II, e promulgado nos primeiros annos do seculo VI, não
podia o seu antecessor ter ido nos meados do V seculo buscar lá o texto
de uma lei. Independente d'isso, e conforme já se advertiu, o fragmento
do palimpsesto, ou por outra o codigo a que pertenceram inicialmente as
_antiquae_, não póde attribuir-se a um principe, cujo pae não fosse
legislador, como se deduz do proprio fragmento, e supposto o facto
attestado por S. Isidoro de que anteriormente a Eurico os godos se
regiam por costumes tradicionaes, e não tinham leis escriptas. É por
isso que, excluido Reccaredo, a nenhum outro rei anterior a Leovigildo
se póde attribuir o codigo a que pertencia o fragmento de Corbie senão a
Alarico.
Tudo, pois, conspira em levar a um alto gráu de probabilidade a opinião
de Pétigny, cujos fundamentos se podem ver no seu excellente trabalho,
regeitada não só a hypothese de Bluhme, mas tambem a de Lardizabal e de
Gaupp, embora esta pareça fundar-se na grande auctoridade de S. Isidoro.
Digo _pareça_, porque a interpretação que se tem dado a duas passagens
da _Historia Gothorum_ não a creio indisputavel[117]. Na primeira diz S.
Isidoro que os godos _principiaram_ (_coeperunt_) no reinado de Eurico a
ter disposições legislativas por escripto; porque antes d'isso regiam-se
_tão somente_ (_tantum_) por usos e costumes. A inferencia rigorosa
d'estas palavras não se me afigura ser de que Eurico incorporou n'um
codigo escripto os usos e costumes dos godos; mas sim que promulgou por
escripto as proprias leis, as quaes vigoraram a par do direito
tradicional. A passagem relativa a Leovigildo deve, a meu ver,
significar que, no corpo ou collecção das leis (_in legibus_), este
principe corrigiu ou aclarou as disposições legislativas de Eurico que
pareciam confusas, suscitando além d'isso algumas leis omittidas, e
supprimindo muitas inuteis. N'esta referencia á refórma de Leovigildo
vejo a existencia de um codigo, ou de uma collecção, na qual se contém
certo numero, maior ou menor, de leis confusas de Eurico que Leovigildo
corrige, e onde ao mesmo tempo introduz certas leis, necessarias ou
uteis, bem que postas de parte, e supprime muitas caidas em desuso e por
tanto inuteis. Não alcanço bem como se emendariam as obscuridades, as
confusões dos actos legislativos de Eurico, pondo e tirando leis na
collecção. São evidentemente dous factos distinctos. _In legibus, ea
quae ab Eurico inconditè constituta_, etc. é forçosamente diverso de
_Leges ab Eurico inconditè conflatas_, como diria S. Isidoro, se
existisse um corpo de leis ou codigo de Eurico, e as correcções feitas
por Leovigildo a esse codigo tivessem consistido em restituir leis
omittidas por elle, o que supporia a existencia de um codigo mais
antigo, e em supprimir as inutilmente conservadas.
Admittido, porém, o que seria por si só assás provavel, isto é, que
Alarico, ao passo que fazia redigir o _Breviarium_ para uso dos subditos
gallo-romanos e hispano-romanos, coordenava para os homens da sua raça
um codigo contendo as leis de Eurico, as modificações que aos antigos
usos e costumes germanicos traziam forçosamente as novas condições
sociaes dos godos, e bem assim as disposições de direito romano
convenientes ou necessarias á sociedade barbara como se achava agora
constituida, o palimpsesto de Corbie e a passagem de S. Isidoro
esclarecem-se mutuamente. Na épocha de Leovigildo tinha passado quasi um
seculo desde que Eurico dilatara os estreitos limites de Westgothia e
constituira um estado assas vasto no sul das Gallias e na Hespanha. As
leis que esse engrandecimento tinha obrigado o conquistador a promulgar,
e que do palimpsesto vemos terem sido incluidas ou mandadas guardar no
codigo gothico de Alarico, agora que os godos se tinham achado por tanto
tempo em intimo com a civilisação romana, deviam carecer de
modificações, e não só ellas, mas tambem outras leis do codigo em que
estavam contidas. Das reformas politicas feitas por Leovigildo
restam-nos vestigios, embora obscuros e fugitivos[118]. A revisão das
leis civis e criminaes era um conectario natural d'essas reformas,
factos ambos tornados indubitaveis pela affirmativa de uma testemunha
tal como o celebre bispo de Sevilha.
Escriptor contemporaneo, e um dos homens mais instruidos se não o mais
instruido do seu tempo, S. Isidoro, irmão de S. Leandro e seu successor
no episcopado, fôra testemunha e naturalmente actor no drama politico da
substituição do catholicismo ao arianismo como religião do estado. S.
Leandro fizera n'essa mudança o principal papel, e de certo a nenhum dos
dous irmãos era cara a memoria de Leovigildo, grande principe, mas
ferrenho ariano. Escrevendo resumidamente a historia dos godos, S.
Isidoro não podia deixar de mencionar um dos factos mais importantes do
reinado de Leovigildo--a reforma do codigo. Por maioria de razão, se
algum dos principes catholicos, desde o converso Reccaredo até Suintila,
em cujo reinado termina a sua _Historia Gothorum_, houvesse emprehendido
e levado a cabo uma nova revisão do codigo, elle não esqueceria esse
notavel facto, elle que tanto os exalta sem exceptuar o proprio
Suintila, cuja deposição depois ajudou a sanccionar no IV concilio de
Toledo. O silencio de S. Isidoro é eloquente.
Mas ha uma circumstancia que me parece decisiva no assumpto. As leis
contidas no fragmento de Corbie correspondem geralmente a outras tantas
leis do _Liber Judicum_ designadas como _antiquae_. Raras correspondem
ás _antiquae noviter emendatae_, e apenas quatro, de que só restam
poucas palavras soltas, podem suspeitar-se analogas a quatro leis da
compilação moderna, que n'uns codices teem a qualificação _antiqua_,
n'outros são attribuidas a Chindaswintho. Entre as que estão completas
ou quasi completas e as _antiquae_ correspondentes ha numerosas mudanças
de phrase, que ás vezes modificam a substancia da lei. Sendo, porém, o
inedito publicado por Bluhme um fragmento do primitivo codigo, é forçoso
que as _antiquae_ pertençam á reforma de Leovigildo, visto não constar
da existencia de outra revisão anterior á de Chindaswintho e
Receswintho.
Confirma isto mesmo a especificação dos principes que promulgaram as
outras leis successivamente addicionadas ao codigo, especificação que
não remonta em nenhum manuscripto além de Reccaredo. É preciso não
esquecer que a revolução religiosa sanccionada pelo habil filho de
Leovigildo alterou profundamente as condições politicas da sociedade. O
elemento hispano-romano, pela influencia que os concilios desde o III de
Toledo começaram a exercer nas cousas temporaes, punha-se politicamente
a par do elemento germanico. Abstrahindo dos oito nomes gothicos dos
bispos que abjuraram o arianismo, os nomes greco-latinos da quasi
totalidade dos prelados que intervieram n'aquella assemblea são
sobejamente significativos. A preponderancia do clero catholico ou
hispano-romano trouxe, como não podia deixar de trazer, importantes
modificações no estado social. Na legislação, como em muitas outras
cousas, a figurada conversão dos godos divide a historia do dominio
d'estes na Peninsula em duas épochas: a _antiga_ do codigo alariciano
reformado por Leovigildo; a _moderna_ das leis avulsas que o modificaram
ou augmentaram, e que com elle foram systematisadas primeiramente nos
reinados de Chindaswintho e Receswintho, depois nos de Ervigio e de
Egica.
Disse que esta épocha moderna corre desde o reinado de Reccaredo I até o
de Egica. Tem-se duvidado se existem actos legislativos de
Reccaredo[119]. De uma lei de Sisebutho consta, porém, com certeza que
elle promulgara uma constituição ácerca dos escravos dos judeus[120].
Effectivamente no III concilio de Toledo, em que se começaram a tractar
assumptos de ordem civil, embora por indicação do rei e com assenso dos
officiaes palatinos, estatuiu-se no canon 14 que os judeus não podessem
ter mulher, creada, ou escrava christan, e que os filhos havidos d'estas
fossem baptizados. As leis hostis aos judeus romantam, pois, áquelle
reinado, e a referencia de Sisebutho a uma constituição de Reccaredo,
d'onde se vê que se estendeu a disposição do concilio aos escravos do
sexo masculino, prova que, ao menos em relação a este assumpto, é
Reccaredo que deve contar-se como o primeiro legislador da épocha
moderna; nem é impossivel que varias leis do codigo que em mais de um
dos textos manuscriptos se lhe attribuem sejam realmente d'elle. Deve
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