Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 05

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anteverá de golpe--um modo d'existir n'essas eras remotas alheio
inteiramente das formas da sociedade presente.
* * * * *
I--«Se algum bispo ou pessoa d'ordens sacras tiver o vicio da
embriaguez, ou se emende ou seja deposto.»
«Se um sacerdote ou qualquer clerigo se embriagar, que faça penitencia
por 20 dias. Se vomitar com a embriaguez, faça penitencia por 40 dias.
Se for com a Eucharistia, faça penitencia por 60 dias.
Quem vomita a hostia, e esta é comida por algum cão,
faça penitencia um anno.[64]
* * * * *
II--Achando-se a rainha D. Urraca (1127) em Compostella, o povo
opprimido pelo bispo Gelmirez revolta-se e accommette a sé e o palacio
episcopal. Eis como a _Historia Compostellana_ pinta uma commoção
popular do seculo XII.[65]
«......é accommettida a egreja do apostolo com repetidos assaltos: as
pedras, as settas, os dardos, voam por cima do altar...... Estes homens
perdidissimos deitam fogo á egreja de Santiago, e incendeam-na toda,
porque uma grande parte d'ella era coberta de ramos de tamargueira e de
taboas.................»
«Depois que o bispo e a rainha vêem a egreja incendiada....fogem para a
torre dos sinos.... Os compostellanos....accommettem a torre, e despedem
pedras e settas contra o bispo e a rainha. Mas os que estavam com elles
defendem-se bem.... Finalmente os compostellanos....valem-se do fogo e,
unindo os escudos por cima das cabeças, deitam-no dentro por uma fresta
aberta na parte inferior da torre. O fogo atéa-se e trepa contra os que
estavam n'ella.»
«...... Clamavam de fóra: «a rainha se quizer que saia: a ella só
concedemos permissão de sair e de ficar viva: os outros hão de morrer a
ferro e fogo». Ouvido o que, e crescendo o incendio, a rainha
constrangida pelo bispo, e recebendo d'elles palavra de seguro, saiu da
torre. As turbas, tanto que a vêem sair, accommettem-na, agarram-na e
levam-na a rastos para um lodaçal; arrebatam-na como lobos, e rasgam-lhe
os vestidos: fica nua dos peitos para baixo, e assim jaz por muito tempo
descomposta diante de todos. Muitos quizeram apedreja-la, e até uma
velha lhe deu com uma pedra na cara.»
Qual foi o resultado d'estas gentilezas de canibaes? A rainha, escapando
da cidade como pôde, d'ahi a pouco:
«.......consentiu em fazer um pacto de reconciliação com os
compostellanos.»[66]
Fazendo queixas de seu marido, o rei d'Aragão, a mesma D. Urraca dizia
diante dos fidalgos da Galliza:
«.....não sómente me deshonrou com palavras affrontosas, mas tambem é de
sentir para toda a nobreza que me enxovalhasse as faces com as suas mãos
immundas, e me désse pontapés.»[67]
É preciso confessar que havia alguma differença da côrte de Affonso o
_Batalhador_ á de D. João V.
* * * * *
III--«....... O clero bracharense, carecendo de quem o guiasse, desejava
fosse como fosse obter um pastor; mas não podera achar em todo o bispado
pessoa digna d'aquella cadeira.
«Quando (S. Giraldo) entrou na cidade de Braga, e viu o estado bravio
d'aquelle logar despovoado e sepultado em ruinas, ficou attonito.»[68]
Louvando o procedimento exemplar e excepcional de S. Giraldo, diz o seu
discipulo e biographo:
«Nunca tractou de falcões, nem de caça com cães, ou de jogos d'azar.»
Eis um caso que elle refere, e que representa bem um aspecto dos
costumes do seculo XII.
O arcebispo havia excommungado por incestuoso certo cavalleiro:
«Aconteceu, porém, n'aquelle tempo, que por mandado do conde Henrique,
que então dominava na terra portugallense, todos os próceres
portuguezes, e com elles o excommungado por incestuoso, se ajunctassem
em Guimarães. Ao qual conventiculo, por assim ser necessario, veio
tambem o varão de veneravel vida. Celebrando, pois, missa o homem de
Deus na egreja vimaranense, e estando ahi presentes o conde Henrique e a
formosa rainha Theresa, com grande numero de próceres, viu que
sobredicto excommungado estava na egreja com os mais. Immediatamente,
suspendendo o officio divino, perante todos proclamou incestuoso aquelle
homem.... Este, inspirado pelo espirito diabolico,....recusou sair da
egreja. Saiu finalmente por ordem do conde, e aos empuxões dos outros.»
Para se ver qual era o estado de segurança individual, e do que dependia
a honra e fazenda das pessoas no seculo XII, extrahirei outro fragmento
do mesmo livro.
«Havia n'aquella região certa matrona chamada Toda, que, sendo
d'illustre sangue, era abastada por grande cópia de herdades e
muitissimo dinheiro[69], de cuja opulencia invejosos alguns magnates de
Portugal trabalhavam por perde-la e deshonra-la, para de algum modo lhe
havarem ás mãos as riquezas. Assim, deram traça a um villico[70] do
egregio conde Henrique, chamado Ordonho, homem de raça servil, como a
raptasse e casasse com ella, de modo que manchada por tal casamento
perdesse a dignidade da honra[71]. Seguindo a traça dos fidalgos, o
víllico arrebatou a matrona, deu um grande banquete, arranjou o thálamo,
e dispoz-se para commetter a maldade.»
Perto da noite, D. Toda, mandando deitar uma serva no leito nupcial,
fugiu com os trajos d'esta, e escondeu-se nos bosques. Quando o víllico
deu no engano:
«Grandemente irado, lançou muitos vigías com _mastins_ pelas saídas dos
caminhos, pelos desvios dos montes, e pelas brenhas selvaticas em busca
da nobre mulher.»
Da sequencia da historia se vê que o honrado víllico ficou impune d'esta
e de mais atrocidades, que depois commetteu, até que outros,
provavelmente tão bons como elle, o assassinaram no castello de Lanhoso.
* * * * *
IV--Invadindo o imperador Affonso VII a terra de Portugal, saiu-lhe ao
encontro Affonso I em Valdevez. Devia ser esta uma batalha decisiva para
a independencia de Portugal. D. Affonso Henriques tinha assentado as
tendas na estrada por onde marchava seu primo Affonso Raimundo dez. O
imperador chegou:
«Logo que vinha alguem da banda do imperador para uma especie de jôgo ou
torneio, a que os populares chamam bufúrdio, immediatamente lhes saíam
ao encontro alguns da parte do rei de Portugal, a torneiar com os
adversarios, e assim aprisionaram Fernando Furtado, irmão do
imperador,....e muitos outros.... Vendo o imperador que tudo saía
prosperamente ao rei de Portugal....mandou chamar o arcebispo de Braga e
outros homens bons, e pediu-lhes que viessem ter com o rei de Portugal,
para que firmassem boa paz com as condições que a tornam perpetua. Assim
se fez, porque o rei e o imperador se ajuntaram em uma tenda,
beijaram-se, comeram e beberam juntos, e fallaram a sós, voltando cada
qual em paz para a sua terra[72].»
* * * * *
V--«Memoria das malfeitorias que el-rei D. Sancho I fez a D. Lourenço
Fernandes, e das que lhe mandou fazer, e executou Vasco Mendes.
Primeiramente tirou-lhe setenta moios em pão e vinho, e vinte e cinco
entre arcas e cubas, e quarenta escudos, e dois colxões e dois
travesseiros, e entre bancos e leitos onze, e caldeiras e mezas, e
escudellas e muitos vasos, e chapéos de ferro, e dez porcos, ovelhas e
cabras, e quinze maravedis, que levaram dos seus homens, aos quaes
fizeram uma espera, e muitas outras armas. Além d'isto ermaram-lhe
setenta casaes, perdendo-se por isso a colheita d'este anno que ahi
tinha, e a do anno que vem, e cem homens de maladia[73], que assim
perderam. Depois lançaram-na de modo que nada ficou. E derribaram da
torre o que poderam, e ao que não poderam deitaram fogo, o qual deu cabo
d'ella, de modo que não póde ser concertada, e para a fazer de novo nem
com mil e quinhentos maravedis. E quantos casaes tinha tantos lhe
queimaram, e de mais levaram-lhe um moiro alentado.»
«Saibam todos os que virem esta escriptura que eu Lourenço Fernandes não
fiz nem disse coisa, por onde houvesse de padecer tal destruição e
malfeitoria.»[74]
* * * * *
VI--«Estas são as dividas que tem de pagar Pedro Martins d'appellido
Pimentel... Aos filhos de Durazia de Pardelhas tres libras de uma vaca
que lhe tomei. Além disso mando cinco maravedis velhos pela rapina que
fiz aos homens do castello de Vermuim,... Mando tambem oito libras ao
senhor arcebispo de Braga pela rapina que fiz na terra de Panoias; e aos
homens de Barró cinco libras, se acharem seus donos, senão deem-nas
pelas almas d'elles. Mais: em Morangáus cinco libras que roubei....
Mando além d'isso que, se apparecer alguem a quem eu deva ou tenha
roubado alguma coisa, se lhe faça e justiça e restituição.»[75]
* * * * *
VII--«Os servos, homicidas, ou adulteros, que vierem morar na vossa
villa, sejam livres e ingénuos.»
«O morador da vossa villa, que matar homem estranho a ella, não pague
coisa alguma: e se o de fóra matar o da vossa villa, pague tresentos
soldos.»[76]
* * * * *
VIII--No cêrco de Silves por D. Sancho I os sitiadores tinham aberto e
abandonado a mina:
«Aprouve ao rei continuar a mina; e com os seus....proseguiu outra vez
no trabalho com animo constante.»[77]
* * * * *
IX--«Coutamos as casas em esta maneira, quer sejam d'homens nobres, quer
d'outros: convém a saber, que nenhum não seja ousado de matar, nem de
talhar membro, nem em nenhuma guisa de malfazer a seu inimigo em sua
casa. E outrosim não seja ousado de lh'a romper em nenhuma guisa.
Outrosim mandamos que nenhum do nosso reino não seja ousado que pelos
homizios sobredictos matem homens de seus inimigos, nem lhes cortem
membros, nem lhes façam mal em nenhuma guisa, senão áquelles que com
seus senhores ou por si lhe fazem mal ou deshonra.»[78]
* * * * *
Estes extractos são os primeiros que me occorrem. Podia accrescentar
milhares d'outros similhantes. O que nos revelam elles, bem que
imperfeitissimamente? Que a sociedade dos seculos remotos era uma coisa
absolutamente diversa da actual. O que significam esses bispos e
presbyteros que se embriagam, que por embriaguez são sacrilegos, e cujo
castigos consiste em penitencias de dias ou de mezes; esse povo
selvagem, que combate dentro de templo, incendeia-o, e arrasta uma fraca
mulher pelas ruas espancando-a e rasgando-lhe as vestiduras, quando esta
mulher se chama a rainha de toda a Hespanha; esse rei cavalleiro que
commette contra sua espôsa brutaes violencias que hoje envergonhariam
qualquer homem honrado; esse clero que não acha entre si um individuo
digno de receber a dignidade episcopal, n'uma cidade romana convertida
em ruina, e que vai buscar um estrangeiro, no qual se tem por especial
virtude o não ser caçador ou jogador; esses cavalleiros e prelados, que
se affrontam mutuamente perante o supremo senhor do paiz, dentro da
egreja; esses villicos ou auctoridades administrativas, de origem
servil, que podem violentar damas nobres e ricas impunemente; esses
exercitos, que resolvem as questões politicas mais graves em recontros
singulares; esses capitães, que fazem pazes como a plébe termina as suas
brigas, comendo e bebendo junctos no campo de batalha; esses reis, que
se vingam por suas mãos, talando, roubando e queimando as propriedades
do seu inimigo pessoal, ou que trabalham no fundo das minas como simples
gastadores; esses salteadores, que morrem tranquillamente no seu leito
declarando-se ladrões cadimos; esses fóros, que convertem as povoações
em covís de homicidas e adulteros, dando aos seus moradores
gratuitamente o direito de assassinos, ao mesmo tempo que para os outros
põe uma taxa de sangue; essas leis emfim, que sanctificam o homicidio e
a mutilação, limitando-os a casos e individuos determinados? Qual é o
resumo d'estes poucos factos avulsos, colhidos ao acaso entre infindos
outros egualmente alheios ás idéas modernas de vida civil? É a
condemnação dos nossos livros de historia. Em nenhum d'elles se percebe,
ao menos de leve, por entre as averiguações de datas, por entre as
descripções de batalhas ou de triumphos, de noivados ou de saímentos de
grandes e senhores, que ao lado disso, e dando individualmente gesto e
côr a esses mesmos factos pessoaes, passaram gerações com costumes,
crenças e instituições diversas, ou antes oppostas em grande parte ás
nossas; que d'essa sociedade, d'esses homens, na successão da eras e da
natureza, veio a sociedade moderna, veio a geração actual; que para
existir a espantosa differença d'aspecto, que ha entre o presente e os
tempos primitivos, foram necessarias grandes revoluções na indole social
da nação. Todavia o grave e severo objecto da historia devera ter sido
principalmente este, se o estudo do passado não é uma vaidade inutil, um
commentario sem sabôr do livro das linhagens, que, de caminho seja
dicto, é muito mais historico que boa meia duzia d'escriptos dos nossos
historiadores[79].
Subsequentemente veremos quaes são as verdadeiras épochas da historia
portugueza, considerada a similhante luz, que é a unica importante, a
unica verdadeiramente historica.


*CARTA V*

Na carta antecedente fiz, segundo creio, sentir quão mesquinho e
incompleto era o systema seguido, quasi sem excepção, nos nossos
escriptos historicos. Mostrei como esses escriptos dão aso a
transfigurarmos o aspecto do passado, e como apenas servem para nos
transmittirem o conhecimento de uma das faces da historia, e ainda esse
muitas vezes errado ou incompleto. Do novo systema, que deve substituir
aquelle, fallarei depois, avaliando em abstracto um e outro. Para
seguir, porém, a ordem do que alli disse, restringir-me-hei agora a
algumas considerações geraes sobre as grandes epochas da nossa historia.
O caracter individual de cada uma d'ellas, e as differenças successivas
que de uma para outra vão apparecendo aos olhos de quem as estuda, só se
podem julgar e distinguir ao tracta-las especialmente. É o resultado
geral d'esse estudo; é a synthese dos muitos seculos, que para clareza
deve preceder a analyse de cada um d'elles.
Tenho fé que similhante analyse nos virá confirmar as considerações que
vou fazer, e que são, se não me engano, o resumo da philosophia da
historia nacional.
Que ponto na ordem dos tempos será aquelle em que devamos buscar os dias
de infancia d'este individuo moral, chamado nação portugueza, ou, por
outros termos, que rigorosamente significam o mesmo, onde é que
principia a historia de Portugal?
A resposta a esta pergunta, a ser verdadeira e exacta, involve em si a
rejeição de metade do que se tem escripto sob o titulo de historia
portugueza, e que o é tanto como os Annaes da China, ou o Cosmogonia de
Sanchoniaton. A nossa historia começa unicamente na primeira decada do
seculo XII; não porque os tempos historicos não remontem a uma epocha
muitissimo mais remota; mas porque antes d'essa data não existia a
sociedade portugueza, e as biographias dos individuos collectivos, bem
como as dos singulares, não podem começar além do seu berço.
No seculo XVI o renascimento invadiu a historia, como invadia tudo. As
sociedades modernas faziam visagens e momos de um ridiculo sublime, para
se mascararem á romana. Assim como os legistas substituiam as
instituições do imperio ás instituições da edade média; assim os
eruditos ajustavam as letras e as sciencias pelo typo classico de gregos
e romanos. Pensava-se pela cabeça d'Aristoteles, fallava-se pela lingua
de Varrão, historiava-se pela nórma de Tito Livio, e a picareta
vitruviana roçava os lavores poeticos dos templos e palacios da
architectura normando-arabe. Se Jupiter não expulsou Jesu-Christo dos
altares, milagre foi da Providencia: todavia que sabio do tempo de D.
Manuel ou de D. João III ousaria jurar á fé de Christão?
_Mehercule_!--diria elle, e dicto isto, teria mui eruditamente jurado.
No meio d'essa furia latinisante e grecisante como passaria Portugal,
este filho legitimo da edade média, baptizado em sangue d'infieis n'um
campo de batalha, sem o sancto chrisma da religião latina? Portugal era
uma palavra inharmonica, monstruosa, incrivel. Qual academia, qual
universidade quereria acceita-la no seu gremio? Nonio Marcello, se
vivesse, rejeita-la-hia com horror. Como dar uma desinencia latina pura
e suave ao nome brutal e feroz dos portuguezes? Os _portugallenses_ dos
velhos pergaminhos transudavam por todos os poros a barbaridade. Cicero,
se tal nome escutasse no senado, ficaria mudo e estupefacto no meio da
sua mais eloquente verrina. Tudo isto pezaram os sabios d'aquella
épocha, e depois de longo scismar acertaram com um alvitre maravilhoso
para se esquivarem á dura alternativa, em que se viam, de renegarem da
patria ou de offenderem os manes de Varrão e de Nonio. A erudição
salvou-os com o leve sacríficio da verdade e do senso commum.
Houve antigamente na Peninsula iberica uma tribu selvagem, conhecida
entre os romanos pelo nome de _Lusitani_, e o tracto da terra em que
vagueavam pelo de _Lusitania_. Este territorio abrangia parte do moderno
Portugal: nada mais foi preciso para nos rebaptizarmos na fonte
inexgotavel das euphonias do Lacio. No seculo XVI os eruditos teceram á
gente portugueza a sua arvore de geração. Quando a aristocracia
estrebuxava moribunda aos pés do throno dos reis, foi que a nação, por
beneficio dos sabedores, achou a sua origem nobilitada nos seculos pela
escura historia de um ou dois milheiros de celtas selvagens, que
estancearam outr'ora na Extremadura, na Beira, e pelo sertão da moderna
Hespanha ainda até além de Mérida[80].
D'aqui; do exaggerado amor da antiguidade, e da fatua pretensão que as
nações, bem como as familias, teem a uma larga serie de avós, nasceu, a
meu ver, a necessidade de ir começar a nossa historia nos mais remotos
limites dos tempos historicos; de ir destroncar das escassas memorias de
Carthago, dos annaes romanos, das chronicas dos barbaros do norte,
invasores das Hespanhas, fragmentos incompletos e inintelligiveis da
historia d'esses povos que passaram na Peninsula, e que no meio das suas
luctas d'exterminio, ou se aniquilaram uns aos outros, ou se confundiram
em uma raça mixta, que passados seculos de novo se transformou, no
cadinho eterno das revoluções humanas, em sociedades differentes, com as
quaes os habitantes modernos das Hespanhas teem apenas uma relação
imperfeita--a identidade de territorio. Foi por essa mania que nós,
habitantes de um canto da vasta provincia da Europa chamada Peninsula
hispanica, buscámios para avoengos uma das mil tribus barbaras, que a
habitaram nos tempos ante historicos, e que, confundidas todas por
invasões repetidas, aniquiladas em parte por guerras atrozes,
incorporadas na massa muito mais avultada de successivos conquistadores,
deixaram de existir completamente alguns seculos antes de Portugal
nascer. Mas que é essa imaginaria ascendencia senão um alentado
desproposito, que parece impossivel tenha sido acceito sem reflexão
ainda até os nossos dias?
De feito, não será necessario, para existir a unidade social de duas
raças remotissimas entre si, que alguns laços as unam, que algum titulo
de parentesco se dê entre ellas? Não será preciso que, no meio das
revoluções pelas quaes qualquer povo commummente passa no correr dos
tempos, fiquem sempre de uma geração para outra largos vestigios do seu
caracter primitivo, da sua lingua, dos seus costumes; que ao menos
subsista a identidade do territorio em que os dois povos habitaram? E
quando nada d'isto resta, com que fundamentos se dirá de um povo que
elle procede d'outro, do qual apenas achamos o obscuro nome sumido nas
largas e gloriosas paginas dos annaes das nações conquistadoras?

* * * * *
Entre nós subsistem ainda grandes vestigios da dominação romana;
subsistem na lingua, subsistem até nos costumes populares: mais
evidentes são ainda os das raças germanicas; temo-los nas instituições,
nas leis, nas crenças moraes: o mesmo e mais podemos dizer dos arabes;
destes nos ficaram em boa parte os habitos e a linguagem domestica, o
systema d'agricultura, e emfim até as similhanças do gesto, e a
violencia das paixões e affectos. Mas que nos resta dos lusitanos? Do
pouco que ácerca d'elles sabemos pelos escriptores gregos e romanos, que
particularidade do seu character, da sua lingua, dos seus costumes, os
liga comnosco? Porque titulo são elles nossos avós?
Se o terem habitado em uma parte do nosso solo pode identifica-los
comnosco, e obrigar-nos a urdir a téa da nossa historia desde tão
apartados tempos, essa tèa tem de ser ainda mais vasta: cabe-nos tambem
historiar as escassas recordações das tribus barbaras que demoravam
pelas outras provincias da Hespanha--a Tarraconense e a Bética. Strabão
diz que antigamente a Lusitania começava, do poente, nas margens do
Tejo: fallae-nos, pois, das tribus da Bética, porque o Alemtejo e o
Algarve foram habitados por ellas. Ainda depois da divisão feita por
Augusto a parte da Gallecia antiga, que hoje fórma as provincias de
Tras-os-Montes e Minho, pertenceram á Trarraconense: escrevei por tanto
a sua historia. Escrevei a historia da Hespanha inteira, se quereis que
a identidade de territorio constitua unidade nacional entre duas raças
diversas.
Custa-nos assim maguar os curiosos de genealogias populares, os crentes
dos _autem genuit_ historicos; mas por obrigação temos fallar verdade. A
familia portugueza conta apenas seis seculos d'existencia: é plebea
entre as mais plebeas nações. Não receemos, porém, que o seu nome se
apague na memoria dos homens, se algum dia ella deixar d'existir: este
nome peão está escripto com a espada na face das cinco partes do mundo.
É como _Portuguezes_, não como lusitanos, que nós seremos para sempre
lembrados.
O que fica ponderado ácerca d'esta tribu primitiva é quasi inteiramente
applicavel ás differentes nações conquistadoras da Peninsula ibérica.
Carthaginezes, romanos, germanos, arabes, todos passaram na Hespanha;
todos n'ella deixaram ruinas de diversas sociedades, fragmentos de
diversas civilisações. D'essas ruinas e d'esses fragmentos se formou o
reino de Oviedo, Leão e Castella: d'este veio por linha transversal
(permitta-se-nos a expressão) a monarchia portugueza, e por linha recta
a monarchia hespanhola ou antes castelhana; porque hespanhoes tambem nós
somos. A Castella, como mais velha, como morgada, e como
incomparavelmente mais poderosa, pertencem esses tempos remotos. Sejam
seus: não lh'os invejamos. N'outro genero de gloria somos maiores do que
ella--na gloria de lhe havermos resistido sempre, pequenos e pobres; de
lhe havermos ensinado, a ella e ás outras grandes nações, o caminho das
conquistas e do poderio; na gloria finalmente de termos dado ao mundo os
mais subidos exemplos de quanto é forte uma nação pouquissimo numerosa,
quando crê na propria virtude e confia na protecção de Deus.
Ainda mal que memorias, e só memorias, são tudo o que d'essa gloria nos
resta!
É pois na separação de Portugal do reino leonez que a nossa historia
começa: tudo o que fica além d'esta data pertence, não a nós, mas á
Hespanha em geral: é essa a primeira balisa para a divisão das nossas
épochas.
* * * * *
Em dois grandes cyclos me parece dividir-se naturalmente a historia
portugueza, cada um dos quaes abrange umas poucas de phases sociaes, ou
épochas: o primeiro é aquelle em que a nação se constitue; o segundo o
da sua rapida decadencia: o primeiro é o da edade média; o segundo o do
renascimento.
Limitar-me-hei n'estas cartas a fallar do primeiro cyclo, porque o julgo
o mais importante, ou antes o unico importante, se considerarmos a
historia como sciencia de applicação. Antes de dividir e characterisar
os seus differentes periodos, seja-me licito fazer algumas reflexões
geraes sobre ambos os cyclos. N'ellas estão os fundamentos da
importancia exclusiva que attribuo ao primeiro.
Habituados pela educação, e até por um estudo superficial e
irreflectido, a considerar o seculo decimo sexto como a verdadeira era
da grandeza nacional, parece-nos que o mais rico thesouro das nossas
recordações historicas está na pintura dos reinados brilhantes de D.
Manuel e D. João III, na maravilhosa narração das façanhas dos grandes
capitães d'aquelle tempo, e no espectaculo dos nossos descobrimentos e
conquistas do Oriente e da America, do engrandecimento do nosso
commercio, e do respeito e temor, que por isso nos catava o resto do
mundo--a nós, nação composta de um punhado de homens, mas homens como
nunca a terra vira; homens cujo braço era de ferro, cujo coração era de
fogo, que achavam seu remanso nos braços das procellas, seu folgar nas
batalhas de um contra cem, e que, na morte, buscavam para sudario em que
se involvessem ou as enxarcias e velas das náus voadas e mettidas a
pique, ou os pannos rotos de muros de castellos e fortalezas derrocadas;
homens que sogigaram os mares e fizeram emmudecer a terra; homens,
emfim, que saldaram completamente com o islamismo e com a Asia a
avultadissima divida de desar e affronta, que a Cruz e a Europa lhes
deviam desde os tempos em que as desventuras e revezes das Cruzadas se
completaram pela perda fatal de Constantinopola.
Mas, se a historia não é um passatempo vão; se, como toda a sciencia
humana, deve ter uma causa final objectiva, ao contrario da arte que por
si mesma é causa, meio, e fim da sua existencia; se no estudo da
historia patria cada povo vai buscar a razão dos seus costumes, a
sanctidade das suas instituições, os titulos dos seus direitos; se lá
vai buscar o conhecimento dos progressos da civilisação nacional, as
experiencias lentas e custosas, que seus avós fizeram, e com as quaes a
sociedade se educou para chegar de fragil infancia a virilidade robusta;
se d'essas experiencias, e dos exemplos domesticos, desejamos tirar
ensino e sabedoria para o presente e futuro; se na indole da sociedade
antiga queremos ir vigorar o sentimento da nacionalidade, que, por culpa
não sei se nossa se alheia, está esmorecido e quasi apagado entre nós;
não é por certo n'aquella brilhante épocha que havemos d'encontrar esses
importantes resultados do estudo da historia; porque a virilidade moral
da nação portugueza completou-se nos fins do seculo XV, e a sua velhice,
a sua decadencia como corpo social, devia começar immediatamente.
Arriscadas parecerão talvez estas opiniões; mas, se não me engano, o
exame dos factos nos ha-de conduzir á demonstração d'ellas.
As nações são em muitas coisas similhantes aos individuos: facil fôra
instituir, não poeticamente, mas como todo o rigor philosophico, muitas
analogias entre a sociedade e o homem physico. No individuo, cuja
organisação é viciosa ou incompleta, a edade viril passa rapida, e quasi
sem intermissão se decae da mocidade para o pender da velhice: é esta
uma verdade physiologica. Dae a qualquer sociedade uma organisação
incompleta, errada, ou sequer extemporanea; torcei-lhe as tendencias do
seu modo de existir primitivo; vergae os elementos sociaes, concordes
com esse modo de existir, a uma formula politica em parte diversa; e
ficae certos de que esse vicio de constituição não tardará em produzir
seu fructo de morte. A razão, bem como a experiencia dos seculos, dá
pleno testimunho d'esta verdade. Resta saber se ella é applicavel ao
nosso objecto.
Nós veremos, para deante, como atravez da meia edade, principalmente no
seculo XV, o elemento monarchico foi gradualmente annullando os
elementos aristocratico e democratico, ou, para fallar com mais
propriedade, os elementos feudal e municipal, annullando-os não como
existencias sociaes, mas como forças politicas. Veremos este pensamento,
ou antes instincto da monarchia, revelado em um grande numero de factos,
mas resumidos em quatro que me parecem capitaes--o estabelecimento dos
juizes letrados--as contribuições geraes substituidas ás contribuições
de foral como systema de fazenda publica--a promulgação da lei mental--e
as resoluções das côrtes de 1482, principalmente as relativas a
jurisdicções. É depois d'estas côrtes que o principio monarchico se
torna unica força politica, que a unidade absoluta se characterisa
rigorosamente e, sem aniquilar as classes sociaes, as dobra, subjuga e
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