Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 02

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tem com o carrego que lhe demos de escrepver e assentar os feitos
famosos _asy nossos_ como de nossos regnos que _em nossos dias são
passados_, e ao diante se fizerem[3].» Em outra provisão lhe concede
tambem seis mil réis de mantimento.
Depois d'esta epocha ainda Ruy de Pina serviu em outra embaixada a
Castella e andou envolvido nos difficeis negocios publicos d'aquelle
tempo, até que, succedendo na corôa D. Manuel, não só lhe confirmou as
mercês do seu antecessor, mas fez-lhe outras novas, dando-lhe finalmente
o cargo de chronista-mór, e guarda-mór da Torre do Tombo e da livraria
real.
Em 1504 tinha Ruy de Pina concluido os seus trabalhos historicos, porque
n'esse anno recebeu de D. Manuel uma nova tença de trinta mil réis pelas
chronicas de D. Affonso V e de D. João II, accrescentando a esta somma
cinco moios de trigo em Ceuta e um cazal d'el-rei no termo da Guarda.
«Cheio de honras e de recompensas, diz o abbade Corrêa, que para aquelle
tempo eram grandes, viveu Ruy de Pina todo o reinado de el-rei D.
Manuel, alcançando ainda alguns annos do d'el-rei D. João III, que lhe
encommendou a chronica de seu pae, que deixou adiantada até a tomada de
Azamor, e de que Damião de Goes confessa ter-se servido para a
composição da sua.»
É Ruy de Pina de todos os nossos antigos chronistas o de que nos restam
maior numero de chronicas. Escreveu elle a de D. Sancho I, D. Affonso
II, D. Sancho II, D. Affonso III, D. Diniz, D. Affonso IV, D. Duarte, D.
Affonso V e D. João II. As duas ultimas são sem duvida escriptas
originalmente por elle. Na de D. Duarte, segundo parece a Damião de
Goes, o substancial da historia é de Fernão Lopes; o que é relativo á
expedição de Tangere, de Gomes Eannes de Azurara; e de Ruy de Pina
apenas a coordenação d'esses diversos trabalhos. Quanto ás da primeira
dynastia, quer o mesmo Goes (e esta opinião prevalece hoje) que não
sejam mais que uma recopilação ou resumo do primeiro volume das
chronicas de Fernão Lopes, que existia em poder de um tal Fernão de
Novaes, e que D. João II mandou fosse entregue a Ruy de Pina. Impossivel
parece hoje averiguar até a certeza esta opinião; porque esse volume de
Lopes ou se perdeu, ou foi aniquilado por Pina, que, ambicioso de pouco
suada gloria, quiz, pobre corvo de D. João II, adornar-se com as
brilhantes pennas de pavão do Homero de D. João I.
Segundo o testemunho de João de Barros, Ruy de Pina foi uma potencia
litteraria no seu tempo. O historiador da India refere que o grande
Affonso de Albuquerque tivera a fraqueza de enviar joias a Ruy de Pina,
para que se não esquecesse d'elle na sua historia. Aquella cujo nome
devia encher o mundo não teve a consciencia de que era o maior capitão
do seculo, é creu que a sua immortalidade dependia de um chronista
obscuro! Triste documento de que os genios mais portentosos estão como
os homens ordinarios sujeitos às mais ridiculas fraquezas.
O abbade Corrêa da Serra põe Ruy de Pina acima dos chronistas que o
precederam. É talvez o juizo litterario mais injusto que se tem
pronunciado na republica das letras. Que elle exceda Azurara não o
contestaremos nós; mas que seja anteposto a Fernão Lopes é no que não
podemos consentir: as narrações de Ruy de Pina, postoque superiores ás
de Gomes Eannes, estão mui longe da vida e _côr local_ que se encontra
nos escriptos do patriarcha dos chronistas portuguezes.
Parece que os fados de Ruy de Pina eram ganhar nome e celebridade á
custa do trabalho alheio: ajudou elle o seu destino em quanto vivo;
ajudaram-lh'o outros depois de morto. Em 1608 publicou-se em Lisboa um
volume em 8.^o com o titulo de _Compendio das grandezas e cousas
notaveis d'entre Douro e Minho_, obra que no frontispicio é attribuida a
Ruy de Pina. Este livro, porém, nada mais é do que o que compoz mestre
Antonio, _fisiquo e solorgiam_, natural de Guimarães, e que em antigos
codices anda juncto ás chronicas de Ruy de Pina, bastando ler uma pagina
d'elle para nos convencermos de que é escripto em um periodo da lingua
anterior á epocha d'este chronista, e que elle talvez não fez mais que
copial-o, com intento de lhe chamar seu, podendo-se-lhe applicar aquelle
distico francez:
Pour tout esprit que le bon homme avait, Il compilait, compilait,
compilait.


IV
*Garcia de Rezende*

Com os começos do reinado de D. Manuel os horizontes da nossa
litteratura estenderam-se consideravelmente. Era a epocha do esplendor
nacional e, ao passo que as nossas conquistas e poderio se dilatavam,
dilatavam-se tambem os progressos litterarios dos portuguezes. A
imprensa tinha produzido o magnifico livro da _Vita-Christi_, e com isso
dava mostra de que Portugal possuia, esse motor maravilhoso que devia
conduzir a Europa com passos agigantados pela estrada da civilisação e
do progresso. N'este reinado de gloria e de predominio--mas de uma
gloria differente da antiga e de um predominio que assentava sobre base
tão incerta como eram os milhões de ondas do oceano em que elle se
estribava--proseguiu em maior escala o triste systema de D. João II de
substituir a agricultura pelo commercio, como fonte principal da riqueza
publica. Era então que a monarchia, aniquilando os derradeiros restos da
sociedade feudal nas Ordenações Manuelinas, e assentando-se na larga e
firme base do direito romano, realisava e completava, por um lado o
pensamento politico, por outro o pensamento economico do manhoso filho
do nosso ultimo rei cavalleiro. As palavras _e da conquista, navegação e
commercio da Ethiopia_, etc., que D. Manuel accrescentava ao dictado de
_senhor de Guiné_, que D. João para si tomara, eram a expressão mais
simples e mais exacta da idêa commercial e monarchica, isto é, de que o
commercio obtido por meio das conquistas e navegações pertencia ao
_senhorio real_, e a historia dos ciumes de D. João II e do seu
successor sobre os novos descobrimentos confirma a nossa opinião. Assim
o estado se confundia ou, antes, se incorporava na corôa, e se
constituiam essas formas politicas dos reinados seguintes que resumbram
em toda a legislação posterior, e a que, talvez, possamos chamar meio
termo entre o absolutismo e o despotismo, como a organisação social
portugueza antes das côrtes de 1481 se póde também considerar como um
meio termo entre o absolutismo e a monarchia representativa.
Substituida, portanto, a agricultura, que era do povo, pelo commercio
exclusivo, que era da corôa, e extinctas as tradições feudaes na nova
compilação Manuelina, a idade media morrera, com o seu systema de luctas
e resistencias, e começara esse seculo XVI, cujo caracter essencial em
politica foi a unidade monarchica. Este phenomeno explica o novo aspecto
que tomou a historia e o apparecimento de uma litteratura cortezan e
paceira, que visivelmente se distingue nos poetas mais modernos do
cancioneiro, nas obras latinas que por esse tempo appareceram,
principalmente nas de Cataldo Siculo, e nos autos do Aristophanes
portuguez Gil-Vicente, compostos para alegrar as horas de tedio nos
paços de D. Manuel. A chronica tomou logo o sabor do elogio historico, e
Garcia de Rezende, velho cortezão, escreveu a vida de D. João II debaixo
dos tectos dos sumptuosos paços da Ribeira. A este pobre homem não cabe,
todavia, a gloria da invenção d'aquelle genero historico: Ruy de Pina
foi o seu inventor. A Chronica de D. João II escripta por este foi o
modelo ou, antes, o original da de Garcia de Rezende, que apenas lhe
accrescentou alguns dictos e feitos do seu heroe, algumas anecdotas
desenxabidas e triviaes de antecamara, em que não esqueceram as
acontecidas com o proprio auctor. Garcia de Rezende não fez senão
aperfeiçoar a chronica individual e tornal-a, ainda mais que Ruy de
Pina, uma biographia real. E que outra fórma podia ter a historia n'uma
epocha em que a organisação social tinha sumido o povo, a nobreza, e
ainda o clero, debaixo do throno do monarcha?
Seria uma das comparações mais curiosas a do caracter historico da
Chronica de D. João I por Fernão Lopes com o da Chronica de D. João II
por Garcia de Rezende, se ao mesmo tempo se comparasse o estado da
sociedade portugueza no meado do seculo XV com o em que se achava no
principio do XVI. Esta comparação nos parece serviria para explicar as
formulas historicas pelas politicas, e vice-versa estas por aquellas.
Que distancia espantosa não ha, com effeito, entre o grande poema de
Lopes e a mesquinha collecção de historietas de Garcia de Rezende, onde
apenas avultam algumas paginas com o supplicio de um nobre, o assassinio
de outro, e o mysterio de um rei que morre, ao que parece; envenenado?
Que distancia espantosa de um cadafalso, de um punhal, e de uma taça de
veneno, ao cerco de Lisboa, à batalha d'Aljubarrota, ao baquear de
Ceuta? No livro de Garcia de Rezende vê-se o aspecto triste, e a vida de
agonia, e o sorrir forçado de um rei sem familia, rodeado de cortezãos,
cujos nomes pela maior parte se resolvem em fumo com o morrer de seu
senhor, a quem seguem os ginetes de Fernão Martins, os bésteiros e
espingardeiros da guarda, não para pelejarem com estranhos, mas para o
defenderem contra os odios de seus naturaes. Ahi o vulto real abrange
quasi os horizontes do quadro, e só lá no fundo, mal desenhadas e
indistinctas, se enxergam as personagens historicas d'aquella epocha, e
as multidões agitadas ou tranquillas a um volver d'olhos do monarcha,
mas nullas tanto em um como em outro caso. Na chronica de Fernão Lopes
ha, pelo contrario, a historia de uma geração: é um quadro immenso de
muitas figuras no primeiro plano. Nos degráus do throno de D. João I
estão assentados guerreiros e _sabedores_, e monges e clerigos, e povo
que tumultua e brada com vóz de gigante--_patria_! Ao pé da imagem
homerica de Nunalvrez vê-se a fronte serena e sancta do arcebispo de
Braga, e a face meditabunda e enrugada de João das Regras, e os vultos
terriveis do Ajax portuguez Mem Rodrigues, e do esforçadissimo Martim
Vasques, e de tantos outros cavalleiros a quem difficilmente sobrepuja o
rei popular, o Mestre de Aviz. O chronista faz-vos acompanhar as
multidões quando rugem amotinadas pelas ruas e praças; guia-vos aos
campos de batalha onde se dão e recebem golpes temerosos; abre-vos as
portas dos paços ao celebrar das côrtes, ao discutir dos conselhos;
arrasta-vos aos templos onde trôa a voz do monge eloquente; lança-vos,
emfim, no existir dos tempos antigos, e embriagando-vos com o perfume da
idade media, e deslumbrando-vos com o brilho da epocha mais gloriosa da
historia d'esta nossa boa terra portugueza, evoca inteiro o passado, e
rasgando-lhe o sudario em que jaz, com o sopro do genio dá alma, e vida,
e linguagem ao que era pó, e morte, e silencio.
Em Ruy de Pina raro se encontra a historia da nação: em Garcia de
Rezende talvez nunca. Fernão Lopes e Azarara tinham escripto no tempo de
Affonso V: estes escreviam no de D. Manuel. D'ahi provém a differença.
Em poucas palavras o pouco que se sabe da biographia de Rezende.
Ignora-se a epocha do seu nascimento; mas sabe-se que era natural de
Evora é irmão do celebre André de Rezende, o traductor de Cícero. Foi
pagem da escrevaninha de D. João II e seu predilecto. Grato por isto,
lhe escreveu a vida, a qual se imprimiu Evora em 1554.[4] Compoz tambem
uma relação da ida infanta D. Beatriz para Saboia, e outra da viagem
d'el-rei D. Manuel a Castella, e finalmente umas trovas satyricas que
intitulou _Miscellanea_. Colligiu em um volume as poesias avulsas que no
seu tempo tinham mais celebridade, tanto dos poetas d'quella epocha,
como de outros mais antigos. Este volume, que foi dado á luz por elle em
Lisboa em 1516 com o titulo de _Cancioneiro Geral_, é hoje um dos mais
raros monumentos da nossa litteratura, e o verdadeiro titulo de gloria
de Garcia de Rezende.
Em 1514 foi a Roma como secretario de embaixador Tristão da Cunha,
mandado ao papa por el-rei D. Manuel. Voltando á patria morreu em Evora,
não sabemos em que anno, e jaz no convento do Espinheiro.


CARTAS SOBRE A HISTORIA DE PORTUGAL
1842


*CARTA I*
1 d'abril de 1842.

Srs. Redactores da _Revista universal lisbonense_.--A reforma ha pouco
feita no seu estimado jornal; o agasalhado que n'elle se concede a tudo
quanto se chama fructo de sciencia humana; a maior extensão de
escriptura que nas suas paginas se póde hoje encerrar; e sobretudo a
ambição, que desperta nos entendimentos ainda humildes, de se acharem á
meza da sciencia em tão honrada companhia litteraria como a dos
collaboradores da _Revista_; tudo isso me excitou a dirigir-lhes esta
carta, que folgarei mereça a honra da publicação, e que se o merecer
será seguida por outras sobre o mesmo objecto, porque traçando e
alevantando a _Revista_ um formoso edificio de civilisação n'esta pobre
terra de Portugal, posto que eu saiba serem as pedras que posso cortar e
carrear para o monumento toscas e mal desbastadas, sei tambem que até
estas teem sua cabida e serventia, quando para mais não sejam ao menos
para sumir lá nos alicerces e na grossura dos muros, em quanto os
artifices de primor vão aperfeiçoando as portadas, columnas, cimalhas,
remates, e mais exterioridades de desenho, em que os architectos da obra
põem as suas complacencias d'artistas.
Entendi eu, que o entreter alguns momentos os leitores da _Revista_ com
diversos estudos sobre a nossa antiga antiga historia, não seria
fazer-lhes mau serviço. Ha n'este fallar das recordações de avós o que
quer que é saudoso e sancto, porque a historia patria é como uma d'estas
conversações d'ao pé do lar em que a familia, quando se acha só, recorda
as memorias do pae e mãe que já não são, de antepassados e parentes que
mal conheceu. Mais saboroso pasto d'espirito que esse não ha talvez,
porque em taes lembranças alarga-se o ambito dos nossos affectos: com
ellas povoamos a casa de mais entes para amarmos; explicamos pelos
caracteres e inclinações dos mortos os caracteres e inclinações dos que
vivem; os habitos actuaes pelos habitos e costumes dos nossos velhos.
Se, abastados e engrandecidos, viemos de humildes e pobres, pretendemos
muitas vezes fazer esquecer ao mundo o nosso berço; mas no abrigo
familiar, deixada tão viciosa vergonha, abrimos o larario domestico e
tiramos d'elle os deuses da meninice, grosseiros simulacros da imagens
paternas, e folgamos de os contemplar, e de recontar ou de ouvir a sua
historia, que temos recontado e ouvido mil vezes, que todos os da casa
bem sabem, mas que sempre narramos ou escutamos com attenção e deleite,
e talvez com enthusiasmo. As recordações da terra da patria não são,
porém, mais que as memorias de uma numerosa familia.
Ha muito que para ellas voltei as minhas predilecções. E não sei, até,
quem possa deixar de o fazer em tempos como os que ora correm. Se o rico
e poderoso que nasceu dos minguados e chãos vai pedir ao passado frescor
e regalo para o espirito, como deixará o que se vê abatido e em
amarguras de lembrar-se de opulentos e nobres avós? Qual será a nação
que amarrada ao poste do padecer, ludibriada e appupada por tudo,
despida, cuberta de lodo, cheia de pisaduras e de feridas, se não volte
para os tempos que passaram quando esses tempos foram feracissimos de
muitos generos de grandezas e de glorias, e como o Salvador no Calvario
lhes não diga: _Tenho sêde_? Quem, vendo diante de si desfolharem-se-lhe
uma a uma todas as esperanças, se não retrahe do presente, e não vai
pelo campo sancto dos seculos buscar e colher saudades de consolação?
Separado, e não de poucos dias, d'esse tumulto e ruido da sociedade
actual, que Deus louvado não entendo nem desejo entender, e em cujas
opiniões e idéas, ou por demasiado grandiosas ou por vergonhosamente
pequeninas, não acho medida pela qual afira e concerte as minhas, que
não passam de triviaes e means; ajuramentado com a propria consciencia
para deixarmos seguir o mundo seu caminho, bom ou mau, com tanto que não
nos embargue o nosso, tenho procurando estudar algumas epochas da tão
poetica e formosa historia da gente portugueza. É para varios d'esses
estudos imperfeitissimos que eu peço algumas columnas da _Revista
universal_, não porque elles preencham completamente os fins da
instituição d'este Jornal--a instrucção; mas porque poderão mover os que
valem e sabem muito a que, pretendendo corrigir erros sobejos, em que
por certo cairei; instruam verdadeiramente o commum dos leitores da
_Revista_, e os chamem a contemplar o espectaculo da nossa sociedade
antiga.
Estes estudos, feitos por um systema d'historia como me pareceu que
elles deviam ser feitos, apparecerão na _Revista_ soltos, em quanto de
mais perfeito modo os não posso trazer á luz da imprensa. Fragmentos são
os que unicamente se hão-de e devem lançar nas columnas de uma folha
volante, entre cujos meritos a variedade é talvez o que mais se busca.
Trabalhos completos são para livros, e livros d'historia estou eu (sem
humildade hypocrita o digo) bem longe ainda de os poder fazer. Todavia
darei a estas Cartas, quanto em mim couber, um certo nexo, que a
natureza da materia requer. Um dos principaes defeitos dos trabalhos
historicos do nosso paiz parece-me ser a _insulação_ de cada um dos
aspectos sociaes de qualquer epocha, que nunca se conhecerá, nem
entenderá, em quantop a sociedade se não estudar em todas as suas formas
d'existir, em quanto se não contemplar em todos os seus caracteres.
Estas Cartas, se merecerem a approvação de vv. ss., poderão algum dia
servir, no que tiverem bom, se tiverem, de esclarecimento e notas a uma
parte da Historia Portugueza, como eu concebo que ella se deveria
escrever: historia não tanto dos individuos como da Nação; historia que
não ponha á luz do presente o que se deve ver á luz do passado;
historia, emfim, que ligue os elementos diversos que constituem a
existencia de um povo em qualquer epocha, em vez de ligar um ou dois
d'esses elementos, não com os outros que com elle coexistem, mas com os
seus affins na successão dos tempos, grudados pelos tôpos
chronicologicos com massa de papel feita das folhas _Arte de verificar
as datas_.


*CARTA II*

Quando, volvendo os olhos para os tempos remotos, indagamos a historia
de nossos antepassados e da terra em que nascemos, a primeira pergunta
que nos occorre para fazermos ás tradições e monumentos é naturalmente a
seguinte: onde, quando, e como nasceu este individuo moral chamado a
Nação? O berço da sociedade de ser, com effeito, a primeira pagina da
sua historia.
Quem, examinando uma carta topographica da Peninsula espanhola, vê esta
faixa de terra chamada Portugal, estreitada entre o oceano e o vulto
enorme da Hespanha, sem divisões nascidas da natureza do solo e fundadas
na geographia physica, que a separem naturalmente della, e quando depois
disto sabe que por sete seculos, com a curta interrupção de sessenta
annos, os habitadores deste cantinho do mundo conservaram intacta a sua
independencia e individualidade nacional, prevê desde logo nesses
homens, que assim souberam conservar-se livres d'estranho jugo, grandes
virtudes e generoso esforço, e na organisação social do paiz uma
extraordinaria robustez e uma harmonia notavel com as suas necessidades
e indole; porque as instituições e costumes de qualquer povo são a sua
physiologia, pela qual se lhe explica principalmente o curto ou o
dilatado da vida. A curiosidade então volta-se para a primeira infancia
desse povo, para a epocha em que disse a si mesmo: _Eu existo_. Na
disposição daquelles tenros annos devem-se-lhe achar já os annuncios do
vigor da juventude e da idade viril.
Tanto que o imperio wisigodo desabou em ruinas ao embate violento do
enthusiasmo e pericia militar dos arabes, e a policia e civilisação
destes substituiu nas Hespanhas a muito mais viciosa e incompleta
civilisação dos godos, a reacção christã e europea contra a violencia
mahometana e asiatico-africana começou immediatamente. Desde a batalha
do Chryssus ou Guadalete, em que expirou o imperio fundado por
Theodorico e estabelecido em toda a Peninsula por Leovigildo, até o
encontro de Canicas ou Cangas, em que pôde dizer nasceu o reino de
Asturias, bem curto espaço mediou. Restituido pela desgraça a esse
punhado de godos o antigo valôr e energia, em quanto os arabes perdiam o
primeiro nos ocios do triumpho, nos deleites de uma civilisação immensa,
e malbaratavam a segunda nas luctas intestinas, os territorios e o
poderio christão cresceram e prosperaram até o tempo d'Affonso III rei
d'Oviedo, ao passo que o imperio arabe se achava já decadente no rei
reinado de Abdallah, antecessor e avô do celebre Abderranhhman III
(Annassir). Mas Abderrahhman, o maior dos Ommaijadas, restabelecendo a
unidade do governo na Hespanha arabe, regendo os povos com justiça e
sabedoria, resistindo aos valentes reis de Leão e Asturias, Ordonho II e
Ramiro II, e aproveitando habilmente, depois da morte destes, as
dissenções dos christãos para exercitar sobre elles uma especie de
patronato, segurou para largos annos na Peninsula o dominio do Islam.
Seguiram-se as variadas e terriveis guerras de mais de dous seculos
entre as duas raças inimigas que disputavam o dominio das Hespanhas, e a
representação dos dramas ensanguentados que mancham torpemente tanto as
paginas dos annaes christãos como as dos musulmanos. Ora os arabes levam
de vencida os netos dos godos, ora estes os arabes; de dia para dia as
fronteiras indecisas das duas nações inimigas circumscrevem-se ou
alargam-se prodigiosamente: as divisões intestinas de um dos campos são
por via de regra o signal de victoria para o campo contrario; grandes
capitães sobem aos thronos, e d'ahi a pouco os thronos se derrocam
debaixo dos pés de reis inhabeis, viciosos, ou crueis.
Durante mais de cinco seculos a Peninsula foi um cahos, e a sua historia
é um mixto confuso e monstruoso de todas as virtudes e de todas as
atrocidades. Entre os arabes, apezar da cultura intellectual,
predominava a barbaria moral: as letras e as sciencias, levadas a um
alto gráu d'esplendor, não suavisaram jámais os costumes ferozes dos
mahometanos, porque a civilisação moral nunca existiu na terra senão por
beneficio do christianismo. Nos estados christãos, pelo contrario, era a
rudeza intellectual que destruia as influencias moraes do evangelho. As
paixões desenfreadas no meio do estrondo de uma lucta de morte entre
homens diversos por origem, lingua, instituições e religião, corriam
despeadas, e os fratricidios, os homicidios, os roubos, as violações, os
incendios, os sacrilegios multiplicavam-se por toda a parte. As leis
calavam-se, a espada imperava, e a bruteza do povo era tal, que o
proprio clero, classe distincta no tempo dos wisigodos por sua cultura,
tinha caído na extrema barbaridade. Ainda nos fins do seculo XI os
conegos de Compostella eram comparados por um escriptor, que vivia entre
elles, a animaes brutos e indomados[5], comparação que justificam
milhares de successos conservados nos documentos e memorias desses
tempos.
Da somma, porém, dos acontecimentos daquella epocha vêem-se resultar
dous factos geraes--a decadencia da sociedade arabe, e os progressos de
organisação na sociedade christã. Tendia a dissolver a primeira a grande
variedade de tribus e nações africanas, asiaticas e europeas, que
estanceavam pelas diversas provincias da Hespanha, umas vezes sujeitas
ao khalifado de Cordova, outras rebelladas contra elle[6]. Estas tribus
e nações, unidas unicamente pela crença commum, guerreavam-se atrozmente
a todos os instantes, e para maior desordem por entre ellas vivia a raça
gothica-romana, conhecida pelo nome pouco proprio de mosarabes[7] que,
sujeitando-se aos arabes na occasião da conquista, forçosamente devia
desejar o triumpho e predominio dos seus correligionarios. Por outro
lado a civilisação dos arabes, assentando sobre a falsa base do
Islamismo, brevemente envelheceu e tornou-se em corrupção de costumes,
enfraquecendo e envilecendo os animos. O quadro da decadencia moral da
Hespanha mahometana no meado do Seculo XII, que no livro intitulado
_Regimento de principes e capitães_ faz Ben Abdelvahed, é espantoso, e
quanto ao estado politico a situação dos arabes não era melhor. Não
havia paz nem segurança em parte alguma, e o imperio caía em pedaços no
meio das dissenções civis[8]. Accrescentavam o mal as estreitas relações
e unidade politica do imperio de Cordova com as provincias da
Mauritania, cujas revoluções estendiam os seus effeitos até a Peninsula;
e as repetidas mudanças de predominio das tribus e dynastias, por via de
regra, procediam das alterações e guerras que se alevantavam na Africa.
Pelo contrario os reinos christãos da Hespanha eram mais homogeneos:
havia ahi muitas dissidencias de ambição; porém as incompatibilidades de
raça quasi que não existiam, porque só no reinado de Affonso VI os
francezes vieram influir na Peninsula, mas como individuos e não como
nação, e esta influencia foi ainda ecclesiastica do que politica. Não
houve uma colonisação franceza nos dominios de Affonso VI: houve sim a
collocação de bispos daquelle paiz em muitas dioceses, o chamamento de
muitos principes e cavalleiros da França aos cargos politicos e
militares. Estes estrangeiros traziam as idéas e as instituições da sua
terra natal, traziam ás vezes a oppressão, mas incorporavam-se na raça
goda. Se impunham habitos e costumes estranhos, acceitavam tambem muitos
usos e idéas da nova patria, os seus filhos eram inteiramente
hespanhoes, e este elemento adventicío de povoação, em vez de contribuir
para o enfraquecimento da força social, servia realmente para a
fortalecer.
Os resultados das invasões e conquistas, que de continuo arabes e
christãos faziam mutuamente nos territorios dos seus a adversarios, eram
tambem diversos. Ainda rebaixando no que dizem os escriptores arabes
sobre a excessiva povoação das Hespanhas, é indubitavel que nas
provincias dominadas pelos serracenos ella foi muito mais numerosa do
que hoje é. Esta povoação, porém, era em grande parte romano-gothica ou
mosarabe, e, como já disse, para ella as invasões feitas pelos homens da
mesma crença não podiam ser consideradas como destinadas a subjuga-la
mas a quebrar-lhe o jugo dos infieis. Esta circumstancia tornava-se
tanto mais importante, quanto é certo que os wisigodos que acceitaram o
dominio arabe, ficaram na mesma situação civil[9] em que se achavam no
momento da conquista, e por consequencia possuidores de riquezas,
senhores de servos, superiores por isso forçosamente a uma parte da
população arabe, e iguaes da mais abastada. Assim não só eram um
poderoso auxilio para os christãos no meio dos inimigos, mas por muitas
vezes bastaram por si sós para expulsar d'algumas povoações os
conquistadores sarracenos[10].
Desde os meados do undecimo seculo apparece na Hespanha um systema
regular d'organisação. O concilio, ou côrtes, de Leão convocado em 1020
por Affonso V constitue uma data importante na historia social da
Peninsula. N'este concilio, ou côrtes, se estabeleceram leis politicas e
civis geraes para todas as provincias do reino leonez, que eram Leão,
Galliza, Asturias e Castella. Fernando I celebrou igualmente côrtes em
1046, 1050, e 1058.
O caracter principal das resoluções d'estes parlamentos (á excepção do
ultimo que elle convocou para dar validade á divisão do reino entre seus
tres filhos) é o de regular e fixar o direito de propriedade. A par
d'estas leis geraes, os _fueros_ propriamente dictos (foraes) tendiam a
augmentar a povoação, estabelecendo as communas e ligando-as por muitos
modos ao corpo politico. Alguns d'estes foraes conhecidos remontam ao
tempo de Affonso V, mas multiplicam-se cada vez mais com o correr dos
tempos. Isto é, o pensamento de organisação vigora e cresce cada vez
mais. A sociedade christã da Hespanha revela no seculo XI um progresso
constante de vida, de ordem, e de energia.
E a sociedade arabe?--A queda do imperio dos Ommaijadas (1037), o qual
durara perto de tres seculos, foi o resultado das dissenções civis.
Tirado este centro d'unidade, que nos seus ultimos tempos era apenas um
nome, os diversos bandos travaram luctas duradouras e sanguinolentas. A
Hespanha arabe retalhou-se em tantos principados, quantos eram os
cabeças de partido. A guerra civil prolongou-se por quasi todo o seculo
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