Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 03

Total number of words is 4442
Total number of unique words is 1430
35.4 of words are in the 2000 most common words
50.7 of words are in the 5000 most common words
57.5 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
XI; e bem que nos estados christãos as houvesse tambem entre os tres
filhos de Fernando Magno, estas tinham passado rapidamente, e Affonso
VI, vencidos seus irmãos, reinava por fim tranquillo nas Asturias,
Galliza, Leão e Castella, e rei de uma nação energica e unida
conquistava, ou fazia tributarias da sua corôa, as principaes cidades e
provincias dos sarracenos da Peninsula.
Para as suas guerras brilhantes muitos nobres cavalleiros francezes
atravessaram os Pyreneus. Foi entre estes que Henrique de Borgonha veio
á Hespanha, para ser o fundador da independencia dos portuguezes.


*CARTA III*

A origem da independencia de Portugal, e a sua separação do reino
leonez, tem sido uniformente attribuida pelos nossos historiadores ao
casamento do principe borgonhez Henrique com D. Thereza, filha de
Affonso VI. É cousa assentada que o rei leonez, casando sua filha, lhe
dera _em dote_ a terra de Portugal, que, tendo estado já separada da
Galliza, então o foi de novo ficando-lhe servindo de limite o Minho.
Esta opinião que até hoje tem passado inconcussa, sendo ainda recebida
por um sabio dos nossos dias, respeitavel por todos os titulos,
parece-me todavia involver difficuldades insuperaveis.
Até á invação dos arabes, os godos conservaram nas Hespanhas tenazmente
as instituições germanicas ácerca dos dotes. Pelas suas leis, contrarias
ao que estatuiam as leis romanas, era noivo quem dotava a mulher.
Similhante costume dos barbaros, porventura mais nobre que o romano, foi
regulado por uma lei de Chindaswintho, inserida no _Codigo
wisigothico_[11]. Esta lei, assim como as mais disposições d'aquelle
codigo, atravessando o dominio dos arabes, que deixaram aos vencidos o
governarem-se civilmente pela sua legislação e pelos seus magistrados,
continuou a vigorar, não só até o tempo de Affonso VI, mas porventura
até a publicação da lei das Partidas[12]. Não havia pois na legislação
d'Hespanha, nem nos usos nacionaes, n'esta parte perfeitamente accordes
com ella, causa alguma para o rei de Leão se lembrar de pôr em pratica,
no casamento de sua filha, um costume romano, provavelmente até ignorado
por elle.
Seria este acto insolito uma imitação de costumes francezes? Fica dicto
foi no reinado de Affonso VI, principalmente, que as idéas e
instituições francezas se introduziram na Peninsula. Nas suas vastas
empresas contra os arabes, este rei ajudou-se grandemente de cavalleiros
francezes, a quem enriquecia e honrava, ao mesmo passo que enchia as
cadeiras episcopaes de bispos d'aquella nação.
A predilecção que elle sempre mostrou pelas cousas de França, e que
tanto contribuiu para alterar os costumes wisigodos, podiam tê-lo movido
a seguir, casando suas filhas com os principes borgonhezes Raimundo e
Henrique, e outra com o conde de Tolosa, os costumes d'aquelle paiz, se
elles n'esta parte fossem contrarios aos das Hespanhas.
Mas não acontecia assim. Ainda n'aquelle seculo era commum por toda a
Europa a instituição germanica ácerca dos dotes. Em Ducange, á palavra
_Dos_, se acham colligidas as disposições dos diversos codigos europeus
a este respeito, bem como documentos de que os factos não eram
contrarios á legislação: o que sempre é necessario examinar na historia
da idade media, na qual a confusão social, e a ignorancia em que jaziam
todas as nações, faziam que a pratica das relações civis contrastasse ás
vezes com os preceitos legaes.
A difficuldade de acceitar a tradição de um facto incomprehensivel para
os individuos por quem se diz praticado seria bastante para o tornar
mais que suspeito. Mas ainda occorrem contra elle outras considerações.
É incontestavel que Raimundo, o marido de D. Urraca, senhoreou a Galliza
e Portugal, antes de Henrique; e que a porção do territorio hespanhol
dado a este para governar como conde, ou consul, foi desmembrada do
territorio governado pelo conde Raimundo antes do fallecimento d'este.
Se Portugal foi dado em dote a D. Theresa com direito hereditario,
segundo affirma a chronica latina do imperador Affonso Raimundez,
provindo d'essa circumstancia o governo de Henrique, como se ha-de
suppor que D. Urraca, filha mais velha e incontestavelmente legitima,
não recebesse em dote tambem, _jure haereditario_, as terras que seu
marido governou? E se assim foi, como e porque se destruiu em parte este
direito, dando em dote de outra filha uma porção do que já era dote de
D. Urraca, e isto sem que Raimundo se queixasse, antes fazendo pactos de
concordia e mútua alliança, como o que fez com o conde Henrique?
Além d'isso, D. Elvira, irmã de D. Theresa e casada com o conde de
Tolosa, não recebeu em dote terras algumas: diz-se que fôra a causa
d'isto o possuir Raimundo de S. Gil estados em França. Mas que lei ou
costume d'Hespanha obstava a que elle possuisse um condado em outro
paiz, conjunctamente com os estados que tivesse em Leão? E se não havia
legislação ou uso em contrario, porque consentiu este principe, mais
poderoso que os outros dois, que fossem para elles estas liberalidades,
ao passo que ficava sem quinhão na monarchia hespanhola, que assim se
faz retalhar loucamente pelo habil Affonso VI?[13].
Mas admittindo que isto acontecesse, ainda resta difficuldade maior.
Além de Urraca, Theresa e Elvira, Affonso VI teve uma filha chamada
Sancha e outra Elvira[14], nascidas da rainha Isabel, a primeira das
quaes casou com o conde Rodrigo Gonçalves e a segunda com Rogerio, duque
de Sicilia. Quanto a este, nada accrescentarei ao que já disse ácerca do
conde de Tolosa, Raimundo de S. Gil. Mas no conde Rodrigo Gonçalves não
se dava por certo a circumstancia de ser principe estrangeiro, com
estados fóra d'Hespanha, e todavia não consta que el-rei dotasse a
infanta D. Sancha com terras ou provincias que elle devesse possuir
_hereditariamente_, antes pelo contrario, possuindo o conde Rodrigo as
honras de Asturias de Santillana, lhe foram estas tiradas por suas
turbulencias, e reconciliado depois com Affonso VI lhe deu el-rei o
governo de Segovia, e a alcaidaria de Toledo, que tornou a tirar-lhe
passados tempos, ao que parece, por seu genio inquieto[15]. Porque seria
excluido, porém, o conde Rodrigo, nobre, natural, e poderoso, do
beneficio que recebera um estrangeiro pobre, embora illustre e valente?
É na verdade inexplicavel similhante contradicção.
A estes raciocinios, fundados em factos incontroversos, nenhum
argumento, nenhuma auctoridade se póde oppor senão uma phrase do
chronista anonymo de Affonso Raimundez, que, fallando de D. Theresa, não
directamente mas por occasião da guerra de Affonso VII com seu primo
Affonso Henriques, diz--que Affonso VI a casara com o conde Henrique, e
a dotara magnficamente, dando-lhe a terra portugalense com _dominio
hereditario_. Este testemunho singular, porque todas as outras memorias
coevas guardam silencio a similhante respeito, será porém de tal peso
que nos faça acreditar um facto contrario á legislação e aos costumes da
epocha, e laborando nas difficuldades que apontei? Não o creio. A
chronica latina é proxima, porém não contemporanea do reinado de Affonso
VII, segundo o diz seu auctor, _que ouviu contar os successos d'aquelle
reinado aos que os tinham presenciado_[16], o que por certo não poderia
dizer do reinado de Affonso VI, começado, pela segunda vez, 54 annos
antes do de seu neto. E sendo d'aquelle reinado o casamento de D.
Theresa, deve-se confessar que para o A. da chronica eram as
circumstancias d'elle tradições um pouco remotas.
Ajunte-se a isso que d'esta historia apenas restavam copias incorrectas
e incompletas quando, depois de Berganza, a publicou Flores, e que ella
passou pelas mãos do celebre falsario, consocio de Fr. Bernardo de
Brito, o padre Higuera[17]. Será portanto bastante por si só para
dissolver as dúvidas apontadas? Aconselha-lo-ha a boa critica? Parece-me
que não.
Mas suppondo a chronica d'Affonso VII esteja correcta e sem
interpollação, e que a sua auctoridade se deva acceitar como a de um
testemunho contemporaneo, ainda assim ella provaria quando muito que D.
Affonso VI dera a seu genro, em attenção a D. Theresa, o governo de
Portugal para si e seus filhos perpetuamente, visto que o hereditario se
ía introduzindo nos cargos administrativos como na corôa. Tal seria pois
n'esse caso a significação da palavra _dote_, que então era mui diversa
da que hoje lhe damos, e correspondia a _donatio_, como se vê claramente
dos diplomas que vão indicados em nota[18].
Mas o conde Henrique governou Portugal em quanto viveu. D. Theresa o
governou igualmente depois da morte d'elle, em 1112[19], até seu filho a
desapossar da suprema auctoridade em 1128. Este, finalmente, tomando o
titulo de rei, firmou para sempre a separação e independencia de
Portugal dos reinos de Leão e Castella. Como se consummou similhante
facto? Qual foi a historia d'este successo, verdadeira ou pelo menos
provavel?[20]
Como seu primo Raimundo conde de Borgonha; como os demais cavalheiros
francezes que n'aquella epocha vinham exercitar nas Hespanhas a maxima
virtude do seculo--o guerrear o Islamismo, Henrique IV, filho de outro
Henrique senhor de Borgonha ducado, serviu ao que parece por muito tempo
nos exercitos de Affonso VI. As conquistas de Fernando Magno tinham
alargado os ambitos do imperio leonez. Affonso VI seguiu a carreira
gloriosa de seu pae, e Toledo, a antiga capital dos godos, caiu em suas
mãos. Pelo lado de Portugal os dominios de Fernando Magno tinham-se
estendido até Coimbra. Seu filho continuou a guerra por esta parte, e
chegou a apossar-se temporariamente de Santarem, Lisboa e Cintra, mas
empregou principalmente as forças para o lado de Toledo. O conde
Raimundo de Borgonha, marido de sua filha D. Urraca, foi por elle
encarregado do governo da Galliza, incluindo n'esse territorio tudo o
que corre desde o Minho até o Mondego, e depois até o Téjo: o que n'esse
tempo ora se considerava como parte da Galliza, ora como um ou mais
condados distinctos d'ella[21], constituindo no todo, talvez, a mais
vasta provincia do reino de Leão e Castella.
Mas esta mesma grandeza tornava necessaria a divisão do territorio;
porque, estabelecida a auctoridade militar, civil, e politica no centro
da actual Galliza, não era facil nem admnistrar bem os logares mais
remotos para o sul, nem preseguir com energia e actividade a guerra na
frontaria dos mouros. Este pensamento deu provavelmente origem á escolha
de Henrique para governar as terras que se estendiam desde o Minho até
as raias da provincia conhecida entre os arabes pelo nome generico
d'_Algarb_;[22] e por ventura a derrota que padece o conde Raimundo
n'uma entrada que fizera até Lisboa[23] pelos annos de 1094 serviu para
apressar a realisação d'este pensamento. Ou Henrique fôsse já conde e
genro d'el-rei, ou n'esta occasião casasse, e recebesse esse titulo[24]
pelo governo que se lhe encarregava, o que é certo é que no principio de
1095 elle governava Coimbra, em 1096 o territorio de Braga,
incontestavelmente desde o Minho até o Téjo em 1097.[25] Se ao principio
esteve subordinado a Raimundo na administração parcial de Coimbra e de
Braga; se logo governou independente d'elle toda a parte de Portugal
moderno, conquistada já então aos mouros, é cousa que me parece não se
poder affirmar nem negar, e que talvez algum dia se haja de resolver,
quando venha a ser conhecido maior numero de documentos d'aquella
epocha.
O novo conde deu provavelmente então toda a actividade á guerra com os
sarracenos; ainda que as noticias dos primeiros annos do seu governo
sejam bastante escassas. A viagem, porém, que emprehendeu á Terra-Santa
nos primeiros annos do XII seculo retardou por certo as suas conquistas.
Esta viagem, intentada depois de 1100, estava indubitavelmente concluida
em 1106, em que Henrique apparece fazendo uma doação a dous presbyteros
de uma herdade em Céa.[26] Desde então até à sua morte, em 1112[27],
elle proseguiu na administração do territorio que lhe fora confiado por
Affonso VI, e foi no periodo que decorre de 1109, epocha da morte do rei
de Leão, que elle se prepararou para tornar estado independente o
condado que lhe fora dado para reger como simples consul ou governador.
É a este tempo que me parece pertencer o pacto successorio entre
Henrique e Raimundo, isto é, aos fins de 1106 ou principios de 1107,
anno do fallecimento de Raimundo[28]. Henrique foi mais feliz
sobrevivendo ao sogro, e recusando depois da morte d'este reconhecer a
supremacia de D. Urraca, que succedera a seu pae por falta d'herdeiro
varão, tendo morrido na batalha d'Uclés o infante D. Sancho, para quem,
parece, elle procurava a eleição dos hespanhoes, por seu fallecimento.
Affonso VI foi incontestavelmente um habil e valoroso rei: a morte porém
de Sancho destruiu todos os seus intentos, e abreviou-lhe por ventura a
vida. Proximo a morrer, viu que a Hespanha leoneza se dividiria em
facções, e a experiencia do passado lhe ensinava que isto seria a causa
da sua ruina. Assim, tendo já dado dous annos antes a investidura da
Galliza a seu neto Affonso Raimundez[29], cuja mãe e sua filha mais
velha, a viuva D. Urraca, ficava, na falta de filho varão, successora do
reino, ordenou a esta casasse com Affonso o _Batalhador_, rei d'Aragão,
rude e grosseiro soldado, mas por isso mesmo capaz de conservar a
integridade do estado do leonez[30]. Por morte de D. Urraca a corôa
devia passar para Affonso Raimundez, que entretanto possuiria a Galliza.
Estas disposições de Affonso VI cumpriram-se; mas não produziram todo o
effeito salutar, que elle d'ahi esperava, pelo caracter das personagens
a quem respeitavam, ou que deviam contribuir para o seu cumprimento.
A dissolução dos costumes n'aquelles seculos era geral, e D. Urraca não
escapou a ella. Naturalmente d'ahi nasceram as suas dissensões com o rei
aragonez, que com a brutalidade propria dos tempos chegou a
espanca-la[31]. A separação dos dous conjuges deu aso á guerra civil, e
ás suas terríveis consequencias n'uma epocha em que o vicio, a
perversidade, e a cubiça se apresentavam em todo o seu vigor barbaro, e
sem o veu hypocrita com que n'estes tempos mais politicos se costumam
esconder. Os nobres e cavalleiros, a titulo de pertencerem a este ou
àquelle bando, apossavam dos castellos de que eram alcaides, ou
construiam-nos de novo, e d'alli faziam guerra por sua conta, ou os
convertiam em covis de salteadores, d'onde sahiam a roubar ou matar os
viandantes e mercadores. Tal é pelo menos o quadro que do estado da
Galliza faz a _Historia Compostellana_, e que era provavelmente
similhante no resto do imperio leonez. Tal pelo menos no-lo devem fazer
suppôr as palavras de Pelaio de Oviedo, quando assevera que por morte
d'Affonso VI o lucto e as tribulações cobriram o solo da Peninsula.
Foi no meio d'estas perturbações que o conde Henrique pôde assegurar,
senão de direito ao menos de facto, a independencia das terras que
governava. Ora mostrando-se favoravel ao moço Affonso Raimundez contra a
mãe e padrasto, que se tinham temporariamente congraçado, e incitando
Pedro Froylaz, conde de Trava, aio do infante, a sustentar animosamente
a causa do seu pupillo, quando o veio[32] sobre isso consultar; ora
colligando-se com o rei d'Aragão contra D. Urraca, divorciada de novo do
marido no anno seguinte de 1111[33]. Henrique evidentemente procurava
aproveitar nas dissensões civis a occasião de constituir independente o
seu condado, e, com effeito, procrastinadas as perturbações da Hespanha
quasi até 1126, elle falleceu em 1112[34], deixando o governo a sua
mulher D. Theresa, sem nunca submetter o collo ao jugo de D. Urraca.
É resumidamente nisto que me parece encerrar-se a historia da separação
de Portugal da monarchia leoneza. Sobre a origem d'este facto tem-se
discursado muito, porque com a legitimidade d'elle quizeram legitimar a
nossa independencia os escriptores portuguezes, e com a sua
illegitimidade impugna-la os escriptores castelhanos. Ha um ou dois
seculos tal materia poderia ainda parecer grave á luz politica; hoje,
porém, não sei eu se tocaria, a similhante luz, as raias de ridicula.
Qual é a nação que não vae achar no seu berço uma violencia ou uma
illegalidade? E que tem com isso o presente? _Somos independentes porque
o queremos ser_: eis a razão absoluta, cabal, inconstrastavel, da nossa
individualidade nacional. E se essa não bastasse, ahi estão escriptos
com sangue, desde Valdevez até Montes-Claros, por toda esta nobre e
livre terra de Portugal, os títulos da nossa alforria. Com subtilisar ou
torcer a historia não é que se defende a patria: a sua defensão está em
saberem seus filhos pelejar por ella, quando o soldado estrangeiro ousar
accommetter a terra que nos herdaram nossos paes, e onde elles morreram
livres, como nós havemos de morrer.
O eruditissimo auctor das _Memorias_ sobre as origens de Portugal e
sobre o conde Henrique segue algumas opiniões acerca d'estes primeiros
tempos da monarchia differentes das minhas. O peso, que o respeitavel
nome d'aquelle sabio dá a todos os seus escriptos, obriga-me a
accrescentar varias considerações em abono da opinião, que o estudo
d'essa epocha e dos seus monumentos me constrange a seguir.
Destruida, como me parece ficou, a tradição de haver sido dado _em dote_
a D. Theresa _o dominio_ de Portugal, resta averiguar se não se fundaria
em outros motivos legaes o procedimento do conde Henrique,
alevantando-se com o condado de Portugal, e convertendo-o em estado
independente.
Digo _alevantando-se_, e digo-o muito de proposito, porque esta
expressão é a que designa exactamente o facto que resulta dos documentos
d'aquella epocha. A somma dos diplomas que colligiu J. P. Ribeiro[35],
relativos ao governo em Portugal do conde Henrique, levam á evidencia
que, emquanto viveu Affonso VI, seu genro se considerou sempre como um
consul ou governador de provincia dependente do rei, segundo o systema
politico e administrativo da Hespanha, e que por morte d'aquelle
principe é que este reconhecimento de dependencia desapparece dos
documentos. Não constando, porém, de acto ou diploma algum publico a
separação legal do condado d'Henrique, antes pelo contrario, não se
fazendo menção d'ella ajunctamento que antes de morrer, para deixar a
Galliza a seu neto, e fazer acceitar D. Urraca por successora da
monarchia, póde concluir-se que a independencia do conde foi apenas uma
revolta, que as circumstancias das divisões intestinas coroaram de bom
successo.
O respeitavel auctor das _Memorias do conde D. Henrique_ diz que «a
practica d'aquella edade parece _em certo modo_ favoravel ás pretenções,
que os leonezes e castelhanos tiveram a este respeito. Os muitos e
grandes senhores, que então havia em Leão, Castella e Galliza, e
governavam algum grande territorio com o titulo de condes, eram sujeitos
_como feudatarios_ aos reis...» Seja-me permittido dizer que n'estas
palavras ha talvez uma notavel confusão d'idéas. Eram as _instituições_,
não a _practica_, que, não _em certo modo_, mas _postivamente_, eram
favoraveis a essas pretenções. Os grandes senhores que governavam
condados eram sujeitos á corôa, não _como feudatarios_, mas como
exercendo uma _delegação do soberano_. As instituições feudaes
essencialmente diversas das da Hespanha christã, central e occidental.
Um conde, um senhor (_princeps terrae_), um alcaide de castello
(_municeps_) eram n'este paiz existencias e castelleiros (_castellani_)
dos paizes feudaes. A influencia franceza introduziu na Hespanha muitas
fórmulas da organisação aristocratica chamada feudalismo, mas na
essencia a indole wisigothica da sociedade hespanhola subsistiu sempre
atravez d'essa influencia. É isto o que nos dizem claramente as leis e
os factos, os documentos, os monumentos e a historia.
No seculo XI o systema feudal chegou ao seu desenvolvimento completo. Os
feudos, amoviveis a principio, tinham-se tornado hereditarios, e a
feudalidade tinha-se estendido não só á terra, mas aos cargos, ao
serviço publico, a tudo. A perpetuidade foi o seu primeiro caracter: a
soberania do feudatario em seu feudo, o segundo. Satifeitas as
obrigações dos serviços do senhor territorial para com o suzerano, elle
exercitava livremente em suas terras todos os actos, que n'um governo
absoluto dos tempos modernos póde exercitar o rei. O terceiro caracter
do feudalismo, que consistia nas relações mutuas entre os nobres e entre
estes e o monarcha ou suzerano supremo, era todo, por assim dizer,
exterior á organização interna do dominio feudal. Estes tres caracteres
são os que distinguem essencialmente aquelle systema politico. Tudo o
mais é variavel, accessorio, incerto[36]. Dão-se porém esses caracteres
no que se chama feudalidade hespanhola? Não; porque as instituições do
paiz lhes eram contrarias. O feudalismo invadindo a Peninsula aninhou-se
geralmente nas fórmulas, mas nunca pôde penetrar no amago da organização
social.
Eu já lembrei o absurdo que resulta de suppôr que ao _dote_ de D. Urraca
se tirou uma porção para dar tambem _em dote_ a D. Theresa. O mesmo
absurdo resultaria de suppôr que ao feudo do conde Raimundo se tinha
tirado um fragmento para infeudar a Henrique. Mas já na instituição
d'aquelle feudo da Galliza occorre outra difficuldade: ou os condes e
senhores, que vemos governarem differentes districtos de Galliza e
Portugal antes de Raimundo, tinham todos morrido e _sem filhos_, quando
este foi posto no governo do territorio gallego e portuguez, ou d'este
successo resulta igual absurdo. Associar com taes factos a idéa de
feudalismo é em meu intender gerar uma monstruosidade; é pretender
destruir incompatibilidades indestructiveis; é tirar ao feudalismo o seu
primeiro caracter.
A célebre carta de Affonso VI ao conde Henrique, ácerca da demanda que
corria entre o bispo de Coimbra e um tal D. Cibrão sobre a aldêa de
Golpelhares, em que diz que não a concederá (_outorgabo_) ao D. Cibrão
se pertencer ao mosteiro de Vacariça[37], seria um attentado flagrante
contra o direito feudal, como elle se achava já constituido n'aquella
epocha; seria offender a soberania do feudatario dentro dos seus
territorios, se Portugal fosse possuido pelo conde segundo os principios
da jurisprudencia feudal.
Lemos na _Historia Compostellana_[38] que, tendo o conde Raimundo feito
uma lei para obviar a certas vexações que padeciam os burguezes de
Compostella, na qual impunha aos transgressores penas pecuniarias, vindo
depois Affonso VI fazer as suas devoções a Sanctiago, os cidadãos e o
proprio consul Raimundo lhe pediram a confirmação d'ella para que fosse
valedoura no futuro. Ou Raimundo, tendo vindo do paiz do feudalismo,
ignorava completamente os principios essenciaes do direito feudal, ou
não se considerava de modo algum como senhor feudatario da Galliza,
aliás regeitaria similhante confirmação.
Poderia citar centenares de factos análogos, que estão demonstrando que
taes feudatarios não existiam na Hespanha. Mas a demonstração capital
d'esta verdade resulta da impossibilidade em que estava o paiz de
admittir esses extensos feudos.
As situações hierarchicas dos senhores de terras nos paizes feudaes eram
n'aquelle tempo diversas. Os _vavassores majores_, ou _barões_, eram os
feudatarios da corôa; abaixo d'estes ficavam os simples _vavassores_ e
_castellani_, subfeudatarios dos primeiros[39]. Esta graduação era
possivel em França, por exemplo, porque no tempo das conquistas dos
francos nas Gallias, os capitães das hostes (_herzoge, koninge_),
tomando para si vastas extensões de territorio, as tinham repartido pelo
seus guerreiros. Passando da vida errante á existencia fixa, os barbaros
sentiram logo a necessidade do principio hereditario applicado á
propriedade territorial. D'aqui os feudos e subfeudos, e as obrigações
diversas inherentes aos possuidores d'elles. Mas as hierarchias não se
alteravam á mercê suzerano supremo; o filho do barão era barão como seu
pae, o filho do vavassor, vavassor como este. Os factos que se possam
apresentar de algum modo em contrario, ou foram practicados em terras
que fossem primitivamente _allodios reaes_ (correspondentes aos nossos
_reguengos_), que o rei podia infeudar a um vavassor para o elevar á
hierarchia de _Baro_, ou custaram muitas guerras, incendios, e mortes;
isto é, nasceram da violencia e da extra-legalidade, e não das
instituições feudaes, a que seriam perfeitamente contrarios.
Na Hespanha, porém, a elevação de Raimundo e de Henrique não foi
resultado de uma conquista. Os territõrios da Galliza dados áquelle, e
os de Portugal dados a este, para governarem como condes, estavam
libertados do jugo árabe, na sua maxima parte, e regidos por condes,
senhores, maiorinos, alcaides, etc., que, admittindo ser então a
organisação politica da sociedade Hespanhola feudal, eram (pelo menos os
condes) _barões_, isto é, feudatarios immediatos do rei. E como
consentiriam estes _vavassores majores_ em passar para a classe de
simples _vavassores_, o que de necessidade aconteceria se na realidade
se tivessem creado então estes dous grandes feudos? Como não apparece o
menor vestigio de resistencia a essa violação do direito politico do
paiz?
Sei que os que imaginam existirem na Hespanha instituições feudaes
poderão talvez soccorrer-se ás clausulas, que no pacto successorio entre
Raimundo e Henrique assentam nos principios de direito feudal[40].
D'estas passagens muitas outras se poderiam colligir dos diplomas e
memorias d'esse tempo; mas n'este documento, que era um tractado
secreto, não admira que os dous principes, sendo ambos francezes,
contractassem debaixo dos principios da jurisprudencia patria, ou que,
bem como acontece nos outros diplomas, em que se acham passagens
analogas, houvesse n'elle um abuso de terminologia feudal accommodada ás
instituições hispanicas, vindo assim a significarem as palavras _ut sis
inde meus homo, et de me eam habeas domino_, que o conde Henrique
ficaria com o governo de Toledo, como conde delegado n'aquella
provincia, reconhecendo a supremacia real de Raimundo n'esse districto,
emquanto Portugal ficava sendo estado separado e independente.
Que se fazia este abuso de termos da Peninsula é incontestavel. O
_Feudum reddibile_ não existia ainda n'aquella epocha, porque só
appareceu quando, degeneradas as instituições feudaes, a palavra
_feudum_ começou a servir para indicar todo o genero de transmissão
incompleta de propriedade[41]. Não podia, portanto, ser conhecido na
Hespanha no principío do seculo XII um genero de falso feudo, que se
oppunha á mesma essencia da propriedade feudal--o hereditario e a
perpetuidade. Todavia a _Historia Compostellana_ assevera que o
arcebispo de Santiago dera ao de Braga certas propriedades _ad tempus
pro feudo_, e este declara que as recebera _in praestimonium sive
feudum_, d'onde claramente se vê que então se tomava _feudo_ por
synonymo de _prestano_, sendo aliás coisas diversissimas[42]. A rainha
D. Urraca, tendo comprado ao mesmo arcebispo de Santiago o castello de
Cira, pediu-lh'o depois _in pheodum_, diz o historiador compostellano, e
elle lh'o concedeu com a condição de que logo que lhe fosse pedido o
entregasse[43]. Se entendessemos, porém, a palavra _pheodum_ na sua
verdadeira accepção, não houvera sido impossivel similhante contracto?
Vemos, pois, que a idéa de ter sido dado Portugal em feudo ao conde
Henrique é tão repugnante e inadmissível como a de lhe ter vindo em dote
de sua mulher. Resta só um meio para deixar de attribuir pura e
simplesmente á revolta do conde a sua independencia politica.
Este meio consiste em suppôr que, morrendo Affonso VI sem filhos varões,
o conde julgasse que o reino se devia dividir entre suas filhas; que a
sua mulher tocava, pelo menos, a provincia que elle governava; e que
finalmente se estribasse n'este fundamento para não se reconhecer
subdito de D. Urraca. Similhante idéa parece ter occorrido ao
respeitavel auctor das _Memorias do conde D. Henrique_, quando por
occasião do célebre pacto successorio, diz que «_os dois condes_, vendo
que a _herança_ de tão vastos e ricos estados, a que por suas mulheres
_tinham direito_, lhes escapava das mãos..... isto devia.....
inspirar-lhes o pensamento de se prevenirem, etc.»
Tal reflexão, creio eu, não fizeram os dois condes pela mui simples
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 04
  • Parts
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 01
    Total number of words is 4527
    Total number of unique words is 1609
    37.2 of words are in the 2000 most common words
    53.9 of words are in the 5000 most common words
    61.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 02
    Total number of words is 4650
    Total number of unique words is 1729
    34.3 of words are in the 2000 most common words
    50.5 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 03
    Total number of words is 4442
    Total number of unique words is 1430
    35.4 of words are in the 2000 most common words
    50.7 of words are in the 5000 most common words
    57.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 04
    Total number of words is 4448
    Total number of unique words is 1573
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    49.0 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 05
    Total number of words is 4413
    Total number of unique words is 1732
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    48.5 of words are in the 5000 most common words
    56.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 06
    Total number of words is 4450
    Total number of unique words is 1624
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    57.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 07
    Total number of words is 4656
    Total number of unique words is 1609
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    50.3 of words are in the 5000 most common words
    57.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 08
    Total number of words is 4449
    Total number of unique words is 1492
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    47.7 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 09
    Total number of words is 4324
    Total number of unique words is 1523
    29.5 of words are in the 2000 most common words
    43.3 of words are in the 5000 most common words
    50.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 10
    Total number of words is 4433
    Total number of unique words is 1478
    30.1 of words are in the 2000 most common words
    45.2 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 11
    Total number of words is 4373
    Total number of unique words is 1569
    28.9 of words are in the 2000 most common words
    42.0 of words are in the 5000 most common words
    50.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 12
    Total number of words is 2216
    Total number of unique words is 970
    32.1 of words are in the 2000 most common words
    44.8 of words are in the 5000 most common words
    50.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.