Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 01

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*OPUSCULOS*
POR
A. HERCULANO
SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO
DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE
TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
*TOMO V*
CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS
TOMO II

LISBOA
VIUVA BERTRAND & C.^a SUCCESSORES CARVALHO & C.^a
73, Chiado, 75
M DCCC LXXX VI


COIMBRA--IMPRENSA DA UNIVERSIDADE


AO
ILL-^{MO} E EX.^{MO} SENHOR CONSELHEIRO
ANTONIO DE SERPA PIMENTEL
DEDICAM
OS EDITORES


Compõe-se este volume de tres escriptos já impressos em outras épochas,
mas provavemente desconhecidos da maior parte dos leitores actuaes, e
bem assim de um notavel estudo inedito ácerca do Feudalismo, que o
auctor não chegou a concluir, e em que trabalhava quando a morte o
surprehendeu.
Pouco diremos a respeito d'aquellas primeiras composições.
As noticias da vida e obras de alguns historiadores portuguezes são
extrahidas do _Panorama_. Destinadas, apenas, a satisfazer a curiosidade
dos leitores habituaes d'este genero de publicações, nas quaes a
variedade e a concisão são requisitos essenciaes, essas noticias não
teem todo o desenvolvimento que o auctor hoje lhes daria, se houvesse de
aproveital-as para algum d'estes volumes; mas, apezar d'isso, cremos que
o leitor folgará de as encontrar aqui reunidas, não só pelo seu
indisputavel merecimento, mas tambem por serem invocadas em todos os
artigos do _Diccionario bibliographico_, onde coube ao laborioso
Innocencio da Silva tractar dos escriptores a que ellas dizem respeito.
As _Cartas sobre a historia de Portugal_ sairam á luz nos tomos 1.^o e
2.^o da _Revista universal lisbonense_, precedidas das seguintes
palavras do illustre redactor d'este semanario: «Temos em nosso poder a
preciosa serie de cartas, cuja primeira publicamos hoje. N'ellas
descobre o nosso infatigavel e eloquentissimo antiquario, o sr.
Alexandre Herculano, um grande numero de importantes verdades ácerca dos
principios de Portugal--da constituição, natureza e relações mutuas das
classes, n'esses tempos tão obscuros e tão pouco averiguados. N'estes
escriptos, que não são mais do que o preludio de uma obra, que sem falta
sairá cabal, sobre a materia, faz o sr. Herculano á sua pátria, e
geralmente á sciencia, um presente de altissima valia, de que a _Revista
universal_ devidamente aprecia a honra de ser mensageira.» Com effeito,
estas cartas, publicadas em dezeseis numeros d'este semanario, desde 7
de abril de 1842 até 3 de novembro do mesmo anno, foram então
interrompidas, porque o auctor, conscio já das proprias forças, dedicou
d'ahi em deante todos os cuidados ao immenso valor da obra monumental,
que lhe havia de conquistar o primeiro logar entre os historiadores do
seu paiz.
O terceiro dos opusculos agora reunidos, isto é, a carta em defeza de
algumas asserções do primeiro volume da _Historia de Portugal_,
appareceu, tambem, na _Revista universal_. O auctor mantem e defende as
suas idéas, combatendo um artigo de critica publicado em 2 de abril de
1846, e firmado com as iniciaes D. S. M. de Vilhena Saldanha, que
suppômos serem a assignatura do respeitavel ancião D. Sancho Manuel,
fallecido em 30 de maio de 1880. Como esta carta não trazia titulo, e
nós tinhamos de lhe dar algum, pareceu-nos conveniente alludir á pessoa
que escreveu o artigo a que ella responde: tanto mais que a cortezia de
ambas as composições tornava desnecessario qualquer resguardo.
Até aqui falámos de trabalhos que já tinham visto a luz publica, e a
respeito dos quaes é sufficiente o que fica dicto. Agora, porém,
chegados á parte inedita e mais valiosa do presente volume, procuraremos
satisfazer a justa curiosidade do leitor, descrevendo minuciosamente o
manuscripto, e declarando o systema que seguimos ao dal-o à estampa.
O luminoso estudo ácerca da existencia ou não existencia do feudalismo
em Portugal compõe-se (no estado em que chegou ás nossas mãos) de oito
capitulos completos e um apenas começado, além de algumas folhas
avulsas, de que adeante nos occuparemos.
Os primeiros seis, que neste livros abrangem as paginas 193 a 242, foram
escriptos em 1875, isto é, dois annos depois da publicação do _Ensaio
sobre la historia de la propriedad territorial en España_, como o auctor
declara, e chegaram a estar no escriptorio da _Revista occidental_, onde
todavia não poderam sair impressos, por ter acabado esta _Revista_ em
julho do mesmo anno. Acham-se lançados em meias folhas de papel almaço,
escriptas de um só lado, e promptos para a imprensa, não offerecendo,
por isso, difficuldade alguma de leitura. O grande escriptor calculava
n'esse tempo ser esta a terça parte do que lhe seria necessario dizer em
relação a tão interessante e debatido ponto historico.
Ou por essa occasião ou pouco tempo depois, accrescentou os capitulos
VII e VIII, não já em meias folhas, mas em oitavos do mesmo papel,
formato que lhe permittia, não só intercalar quaesquer novas provas ou
argumentos, que lhe fossem occorrendo, mas ainda dar diversa collocação
aos paragraphos, se de futuro a deducção das idéas e a harmonia da
composição o exigissem.
Incommodos de saude mais ou menos graves, trabalhos litterarios de outra
indole, e varios negocios domesticos, impediram então o auctor de
proseguir n'este importante assumpto, e foram causa de não possuirmos
hoje completo mais um livro serio, coisa de extrema raridade nos tempos
que vão correndo.
Quando, d'ahi a muitos mezes, recuperada a saude e dispondo do tempo
necessario, pôde dedicar-se de novo ao exame da obra do sr. Cárdenas,
tudo nos persuade de que trazia profundamente alterado o plano primitivo
do seu trabalho. Achou-se, sem duvida, apertado e tolhido nos estreitos
limites em que a principio o circumscrevera, e resolveu abrir mais largo
campo, onde podesse desenvolver a grande copia de noticias que
enthezourara, e que directa ou indirectamente se prendian com o assumpto
em discussão.
Foi este, a nosso, ver, o motivo por que, voltando atraz, tomou nota de
numerosas proposições do _Ensayo_, transcrevendo as passsagens
respectivas em meias folhas de papel de pequeno formato, e pondo no alto
da primeira a cota: «_IV_ (_Continuação_)». O leitor encontrará este
additamento desde paginas 242 até o fim do capitulo.
Resolvido, pois, a dar maior amplidão ao seu trabalho, tractou o auctor
de reconstruir os capitulos VII e VIII, que hoje apresentam em mais de
um logar graves difficuldades de leitura, por causa das transposições,
emendas, entrelinhas e accrescentamentos, de que estão cheios os
respectivos borrões.
Apezar d'isso, o capitulo VII--o magistral estudo do _Codigo
wisigothico_--póde considerar-se completamente organisado, tanto na
doutrina como na forma, embora deixe vêr, aqui ou alli, «as arestas
vivas do cunho», porque o auctor não chegou a pôr-lhe a ultima lima.
Não acontece, porém, outro tanto com o VIII, destinado ao estudo do
_Direito consuetudinario_. Este capitulo compõe-se de 32 oitavos de
papel, que a principio tinham tido outra ordem, e cuja disposição
definitiva não ficou claramente marcada senão até o 17, isto é, até
paginas 283 d'este livro. D'ahi em deante os embaraços crescem, porque
alguns d'esses oitavos não teem numeração antiga nem moderna, e,
formando sentido completo, sem dependencia de outros anteriores ou
posteriores, tornam sobremodo difficil acertar com o seu verdadeiro
logar: quer-nos parecer, porém, que não contrariámos demasiado a
intenção do auctor, dando-lhes a ordem em que vão impressos.
Além dos já referidos, encontrámos uma serie de oitavos numerados de 1
até 10, mas sem designação do capitulo a que eram destinados. O ultimo
d'elles está acabar, o que indica que foi ahi que se interrompeu o
trabalho do insigne escriptor. Por esta circumstancia, e tambem por ser
a materia de que ia tractar (a divisão da propriedade territorial) a que
justamente se devia esperar, na ordem dos apontamentos que tomara do
livro do sr. Cárdenas, não tivemos duvida em os considerar como
principio do capitulo IX, marcando, comtudo, entre paretheses este
numero de ordem.
Restavam ainda duas folhas da primeira composição, que não tinham sido
aproveitadas, nem podiamos introduzir no texto, embora se conheça que
deviam fazer do capitulo que ficou por acabar. São, porém, tão
importantes, e formam por si sós um corpo de doutrina tão perfeito, que
julgamos prestar um serviço, formando com ellas o Esclarecemento A, no
fim do volume.
No mesmo caso está uma nota relativa á intelligencia que se deve dar á
palavra _Feudo_, nas raras vezes que apparece nos documentos d'aquella
edade. Esta nota estava lançada tambem em folhas inteiras, e tanto pode
servir de elucidação ao que se diz na Carta 3.^a sobre a Historia de
Portugal (pag. 79), como de prova da affirmativa do auctor a pag. 199,
onde fizemos a competente chamada. Constitue o Esclarecimento B.
Resumindo: os primeiros seis capitulos estavam promptos para serem
impressos, segundo o plano primitivo; a continuação do VI, o VII e o
VIII, conservavam-se no primeiro borrão, e portanto dependentes de
ulteriores modificações, tanto na sua disposição geral, como no estylo,
que não tinha recebido ainda as ultimas correcções; o que reputamos IX
ficou apenas principiado; e as folhas avulsas, que aproveitámos para
Esclarecimento, esperavam o seu futuro destino.
Se attendermos, agora, ás doutrinas contidas nos extractos do livro do
sr. Cárdenas, com que o auctor ampliou o capitulo VI do seu trabalho,
reconheceremos que elle se propunha estudar detidamente a divisão da
propriedade territorial, as relações das diversas classes entre si, o
serviço militar, a administração da justiça, o poder central e seus
representantes locaes; a organisação social, em summa, do nosso paíz
n'aquellas épochas remotas. Já não era, pois, um simples opusculo que
tinhamos a esperar da sua penna auctorisada: era um livro precioso, que
viria supprir, em grande parte, o V volume da _Historia de Portugal_, se
não no desenvolvimento e discussão erudita de todos os pontos
controvertidos ou ignorados, com certeza nos resultados finaes a que
chegara o seu longo estudo e admiravel lucidez de espirito.
Entre Fernão Lopes e fr. Antonio Brandão mediaram dois seculos. Entre o
douto cisterciense e o auctor d'este livro outros dois, e bem medidos.
Oxalá que, d'esta vez, seja mais curto o prazo, em que tenha de
apparecer o continuador idoneo dos trabalhos, que Alexandre Herculano
deixou interrompidos.
(1881).
_Os editores_.


HISTORIADORES PORTUGUEZES
1839--1840


I
*Fernão Lopes*

Tão raros ou tão pouco lido andam os antigos escriptores portuguezes,
que muitas pessoas ha, não de todo hospedes nas letras, que apenas de
nome os conhecem, e frequentes vezes nem de nome. Grave mal, por certo,
e mui de lamentar é tal e tão ingrato desamor áquelles que assim lidaram
em suas doutas vigilias ou para nos transmittirem as heroicas façanhas
de nossos antepassados, ou para nos doutrinarem com virtuosos conselhos,
ou para nos consolarem com um brado de poesia de mais singelas eras, ou,
finalmente, para nos herdarem sua sciencia; que muita e boa a tiveram.
Assustam os livros pesados e volumosos do tempo passado as almas debeis
da geração presente: a aspereza e severidade do estylo e linguagem de
nossos velhos escriptores offende o paladar mimoso dos affeitos ao
polido e suave dos livros francezes. Sabemos assim quaes são os
documentos em que estribam glorias alheias: ignoramos quaes sejam os da
propria, ou, se os conhecemos, é porque estranhos nol-os apontam,
viciando-os quasi sempre. Symptoma terrivel da decadencia de uma nação é
este; porque o é da decadencia da nacionalidade, a peior de todas;
porque tal symptoma só apparece no corpo social quando este está a ponto
de dissolver-se, ou quando um despotismo ferrenho poz os homens ao livel
dos brutos. Desenterra a Allemanha do pó dos cartorios e bibliothecas
seus velhos chronicons, seus poemas dos Nibelungos e Minnesingers; os
escriptores encarnam na poesia, no drama e na novella actual as
tradições populares, as antigas glorias germanicas, e os costumes e
opiniões que foram: o mesmo fazem a Inglaterra de hoje á velha
Inglaterra, e a França de hoje á velha França: os povos do Norte saúdam
o Edda e os Sagas da Irlanda, e interrogam com religioso respeito as
pedras runicas, cobertas de musgos e sumidas no amago das selvas: todas
as nações, emfim, querem alimentar-se e viver da propria substancia. E
nós? Reimprimimos os nossos chronistas? Publicamos os nossos numerosos
ineditos? Revolvemos os archivos? Estudamos os monumentos, as leis, os
usos, as crenças, os livros, herdados de avoengos?
Não.--Vamos todos os dias ás lojas dos livreiros saber se chegou alguma
nova semsaboria de Paul de Kock; alguma exaggeração novelleira do
pseudonymo Michel Massan; algum libello antisocial de Lamennais. Depois,
corremos a derrubar monumentos, a converter em latrinas[1] ou tabernas
os logares consagrados pela historia ou pela religião...
E, depois, se vos perguntarem: de que nação sois? respondereis:
Portuguezes!
Callae-vos; que mentis desfaçadamente.
Mas nós faremos lembrada, ao menos aqui, a nossa gloria litteraria.
Como o pae da historia nacional, como o velho Fernão Lopes, começámos a
escrever as memorias que d'elle restam moralisando primeiro, do mesmo
modo que elle moralisava antes de entrar na materia. Não se nos leve a
mal um defeito, se o é, em que já caiu o nosso principal chronista,
quando é d'elle que devemos fallar.
Escassas são as noticias que chegaram até nós ácerca de Fernão Lopes. A
epocha do seu nascimento ignora-se; mas parece que devia ser na da
gloriosa revolução de 1380, ou alguns annos antes. O abbade Barbosa e
outros dizem que fôra secretario d'el-rei D. Duarte, quando infante, e
de seu irmão D. Fernando, e cavalleiro da casa do infante D. Henrique.
Em 1418 foi encarregado por D. João I da guarda do real archivo, cargo
que até então andava unido a um emprego da fazenda publica.
Por trinta e seis annos serviu Fernão Lopes de guarda dos archivos, e de
todo este tempo existem varias certidões, passadas por elle, _das
escripturas da torre do castello da cidade de Lisboa_. Depois de tão
largo periodo foi substituido por Gomes Eannes de Azurara, que D.
Affonso V nomeou em logar de Fernão Lopes, _por este ser já tam velho e
flaco, que per sy non podia bem servir o dicto officio_, dando-o a
outrem _por seu prazimento e por fazer a elle mercê, como é rezom de se
dar aos boõs servidores_, segundo diz a carta de nomeação de Azurara. A
epocha da morte do chronista ignora-se absolutamente; mas sabe-se que
ainda vivia em 1459, cinco annos depois de ter sido exonerado do cargo
de guarda do archivo.
Quando D. Duarte subiu ao throno (1434) deu _carrego a Fernão Lopes, seu
escripvam, de poer em caronyca as estorias dos Reys, que antygamente em
Portugal forom; e esso mesmo os grandes feytos e altos do muy vertuoso e
de grandes vertudes El-Rey seu senhor e padre_ (D. João I), dando-lhe
por isto quatorze mil libras cada anno, mercê que foi confirmada em nome
do moço principe, por influencia do infante D. Pedro, tão sabio quanto
infeliz, pae e protector das letras.
Foi, com effeito, Fernão Lopes o primeiro que poz em _caronyca_, isto é,
em ordem, as _estorias_ da primeira dynastia dos reis portuguezes, e fez
a bella Chronica de D. João I. Até ahi havia apenas algumas memorias
espalhadas, alguns breves compendios dos successos publicos. N'este
numero deve entrar um manuscripto que existia em Sancta Cruz de Coimbra,
feito, segundo parece, nos fins do seculo XIV, em que mui de leve se
mencionam os acontecimentos mais notaveis dos tres primeiros reinados, e
d'elle talvez se houvessem de contar as antigas chronicas, que Duarte
Nunes reformou, ou estragou, e que muito desconfiamos sejam as mesmas
que _colligiu_ Acenheiro no principio do seculo XVI, e que serviram de
fundamento a Ruy de Pina e Galvão: sobre tudo o que pesam ainda muitas
sombras, ao menos para nós, parecendo-nos, todavia, indubitavel que
alguma cousa havia escripta antes de Fernão Lopes; porque a alguma cousa
eram essas _estorias_ dos antigos reis, mencionadas na carta de nomeação
de Fernão Lopes, e que n'esse documento se distinguem claramente dos
_feitos_ de D. João I.
De quanto Fernão Lopes escreveu, o que hoje existe conhecido e impresso
é a Chronica de D. Pedro I, a de D. Fernando e a D. João I. Comtudo, por
averiguado se tem que elle escrevera as dos outros reis anteriores, e
até Damião de Goes lhe attribue uma de D. Duarte. Seja o que for, é
certo que para a gloria de Fernão Lopes são monumentos sobejos as tres
chronicas que d'elle existem.
O nosso celebre critico Francisco Dias, o homem, talvez, de mais apurado
engenho que Portugal tem tido para avaliar os meritos de escriptores,
diz que Fernão Lopes fôra o primeiro, na moderna Europa, que dignamente
escrevera a historia: com razão o diz, e poderia accrescentar que poucos
homens teem _nascido_ historiadores como Fernão Lopes. Se em tempos mais
modernos e mais civilisados houvera vivido e escripto, não teriamos por
certo que invejar ás outras nações nenhum dos seus historiadores. Além
do primor com que trabalhou sempre por apurar os successos politicos,
Lopes adivinhou os principios da moderna historia: a _vida_ dos tempos
de que escreveu transmittiu-a á posteridade, e não, como outros fizeram,
sómente um esqueleto de successos politicos e de nomes celebres. Nas
chronicas de Fernão Lopes não ha só historia: ha poesia e drama: ha a
edade media com sua fé, seu enthusiasmo, seu amor de gloria. N'isto se
parece com o quasi contemporaneo chronista francez Froissart; mas em
todos esses dotes lhe leva conhecida vantagem. Com isto, e com chamar a
Fernão Lopes o Homero da grande epopea das glorias portuguezas, teremos
feito a tão illustre varão o mais cabal elogio.


II
*Gomes Eannes de Azurara*

A Fernão Lopes succedeu no cargo de guarda dos archivos Gomes Eannes de
Azurara, como dissemos no primeiro artigo, com o consentimento d'elle,
que por velho e doente de boa vontade resignou o emprego, que tão
dignamente servira. Foi Gomes Eannes filho de João Eannes de Zurara ou
de Azurara, conego de Evora e de Coimbra. Entrou, sendo mancebo, na
ordem de cavalleria de Christo, onde chegou a ter o grau de commendador
de Alcains, a qual commenda possuia em 1454, e que depois trocou pelas
do Pinheiro-grande e da Granja de Ulmeiro, que achamos serem suas pelos
annos de 1459.
Parece que durante a sua mocidade Gomes Eannes, segundo o costume dos
cavalheiros d'aquelles tempos, se occupou inteiramente no exercicio das
armas, sem curar de instruir-se nas boas letras. Verdade é que o abbade
Barbosa o faz erudito na historia desde mancebo; mas o mestre Matheus de
Pisano, seu contemporaneo, preceptor de D. Affonso V e auctor de uma
chronica da conquista de Ceuta, escripta em latim, diz que, sendo já de
idade madura, se applicàra ao estudo, mas que até então fôra
inteiramente hospede em litteratura.
Foi depois d'esta epocha que Gomes Eannes entrou no serviço d'el-rei D.
Affonso V, como guarda da Torre do Tombo, segundo se colhe da carta de
sua nomeação, passada a 6 de Junho de 1454; como bibliothecario da
livraria real fundada por aquelle monarcha, do que nos informa mestre
Matheus na obra citada; e como encarregado de escrever varias chronicas
das cousas portuguezas, conforme o diz o proprio Azurara no capitulo II
da Chronica do conde D. Pedro de Menezes.
Documentos d'aquelle tempo provam D. Affonso V fizera grande estimação
de Gomes Eannes. Morava este em umas casas d'el-rei á porta do paço de
Lisboa; tinha uma tença de doze mil reaes brancos; e fez-se-lhe mercê,
em 1467, de uma capella que vagara para a corôa, graça esta que, como
observa o abbade Corrêa da Serra, era n'aquelles tempos assaz
extraordinaria. Doou-lhe, tambem, el-rei umas casas em Lisboa, do que se
acha memoria no livro 3.^o dos Misticos. Antes d'isto, porém, Gomes
Eannes era homem abastado, segundo se colhe de outros documentos coevos.
Ácerca d'este chronista se conserva ainda uma lembrança curiosa no
Archivo da Torre do Tombo. Em 1461 uma pelliteira viuva e rica, chamada
Joanna Eannes, o adoptou por filho, constituindo-o seu herdeiro. O já
citado abbade Corrêa nota, com razão, que tal adopção de um homem
nobilitado por seus cargos e pela qualidade de cavalleiro, feita por uma
plebea, era inteiramente opposta ás idêas do seculo XV, devendo-se por
isso suspeitar que Azurara foi d'aquellas pessoas, para quem o respeito
ao dinheiro é o principal de todos os respeitos.
São incertissimas todas as datas relativas á vida de Gomes Eannes:
apenas se póde dizer que vivera pelo meado do seculo XV. A maior parte
das memorias que d'elle fallam não mencionam nem a epocha do seu
nascimento, nem a da sua morte. Algumas ha que dizem fôra nomeado
chronista em 1459: ignoramos se existe ainda a carta de tal nomeação;
mas d'isso duvidamos. O que se póde affirmar é que Azurara acabou uma
das suas chronicas (a do conde D. Pedro) em 1463, porque elle proprio o
diz. Antes d'esta compozera a da tomada de Ceuta, que serve de terceira
parte á de D. João I escripta pelo immortal Fernão Lopes; e depois
d'ella a de D. Duarte de Menezes. Estas são as tres obras, que com
certeza se podem attribuir a Azurara. Quer, todavia, Damião de Goes que
na Chronica d'el-rei D. Duarte, attribuida vulgarmente a Ruy de Pina, e
cuja melhor parte elle julga de Fernão Lopes, houvesse tambem alguma
cousa de Gomes Eannes.
Apesar da estimação e respeito que merecera Fernão Lopes aos seus
contemporaneos, parece que o seu immediato successor lhe levou n'isso
conhecida vantagem, posto que muito inferior lhe fosse em merito.
Azurara, tendo de escrever sobre cousas de Africa, passou áquellas
partes, e lá fez larga demora para conhecer miudamente os logares e
circumstancias das façanhas que tinha de narrar. Estando alli, recebeu a
celebre carta de D. Affonso V, que anda impressa no principio da
Chronica de D. Duarte de Menezes. Este documento prova quão bella era a
alma d'aquelle monarcha, a quem podemos sem receio chamar o ultimo rei
cavalheiro, e cuja honrada memoria teem pretendido escurecer aquelles
que só em seu filho encontram um grande homem. Vê-se nesta carta que D.
Affonso entendia que uma penna vale bem um sceptro, e o engenho um
throno. De irmão para irmão não houvera mais affavel e affectuosa
linguagem, e mais generosas animações e mercês. Bem nos pêsa que não
seja possivel, pela extensão d'esse documento, o lançal-o n'este logar;
não para exemplo de reis, mas de quem mais do que elles carece de tão
formosa lição, neste seculo que se diz allumiado, e em que ha homens que
em nome da patria votam miseria e fome para àquelles que mais bem
merécem.
Do merecimento litterario de Gomes Eannes de Azurara diremos em breves
palavras o que entendemos. Pode-se de algum modo comparar ao italiano
Alfieri, posto que pareça pouco exacta qualquer comparação entre um
auctor de chronicas e um poeta dramatico. E todavia muito ha em um que
do outro se possa dizer: ambos chegaram á idade viril sem possuirem os
rudimentos sequer das boas letras: nos escriptos de ambos apparece o
resultado d'esta falta de educação litteraria: ha em um e outro certa
inflexibilidade feroz e ausencia inteira d'aquellas graças de estylo que
nascem do coração amaciado desde a infancia pela cultivação do espirito:
as concepções nascem-lhes do entendimento, como Minerva da cabeça de
Jupiter, cubertas, por assim dizer, de um arnez de ferro. Louva-se em
Azurara, e de louvar talvez é, a sinceridade bravia, com que lança em
rosto aos heroes, cujas façanhas escreve, os defeitos que tiveram, os
erros e culpas em que cairam: n'isto se parece tambem, de certo modo,
com Alfieri. Mas nós preferimos o systema de Froissant e Fernão Lopes:
para cada um dos seus heroes havia n'estas almas generosas um typo ideal
a que procuravam assemelhal-os, engrandecendo-os: e por ventura que mais
proficua é assim a historia ao genero humano. Para acabarmos um
parallelo, que poderiamos levar mais longe, notaremos a tendencia dos
dois escriptores, que collocámos em frente um do outro, para
_philosophar trivialidades_, e ostentar elegancias rhetoricas e
erudições suadas para elles, impertinentes para os leitores. Move a riso
ver o pobre Azurara a lidar em pôr claro como a luz do dia, com a
auctoridade de S. Jeronymo, Sallustio, Fulgencio, e _casy todolos outros
auctores_, que são temiveis as más linguas, como causa somno o observar
os tractos que o illustre dramaturgo italiano dá ao juizo para nos fazer
odiar a tyrannia, ácerca da qual escreveu um volume, cousa muito
escusada na moderna litteratura. Todavia, em ambos elles a sinceridade
das intenções suppre de algum modo a aridez e o vazio da obra.
Posto, porém, que Azurara esteja em grau inferior a Fernão Lopes, não
deixou de fazer com seus escriptos bom serviço à litteratura patria.
João de Barros o tinha em subida conta, e até no estylo d'elle se
comprazia. Não assim Damião de Goes, que foi o primeiro em notar-lhe as
affectações rhetoricas. Infelizmente para Azurara, Goes era melhor juiz;
e a posteridade, confirmando a sentença do perspicaz chronista de D.
Manuel, rejeitou o parecer do historiador da India.


III
*Vasco Fernandes de Lucena--Ruy de Pina*

O nome de Lucena parece vir pouco a ponto em uma noticia dos
historiadores portuguezes, porque d'elle não resta uma só pagina
_original_ sobre historia; mas julgamos dever fazer menção de Vasco
Fernandes, não só por ter sido um dos homens mais celebres do seu tempo,
como tambem, e principalmente, por ser d'entre elles o primeiro que,
depois de Azurara, teve o cargo de chronista-mór. Encarregado de varias
missões politicas nos reinados de D. Duarte, D. Affonso V e D. João II,
e vivendo, por tal motivo, a maior parte da vida em paizes extranhos,
occupado, além d'isso, quando residíu no reino, em grandes negocios
d'estado, não pôde provavelmente occupar-se dos estudos historicos
necessarios para poder desempenhar as obrigações do seu cargo, do qual
fez desistencia em Ruy de Pina no anno de 1497.
Escreveu, todavia, Vasco de Lucena varias obras que, ou se perderam, ou
jazem manuscriptas em parte que se não sabe. Da _Instrucção para
Principes_, de Paulo Vergerio, traduzida por elle de ordem do infante D.
Pedro e que Barbosa diz existir na bibliotheca real, não achámos o menor
vestigio, apesar de consultarmos um catalogo anterior, segundo nos
parece, a 1807. Das outras obras suas, de que faz menção Barbosa, tambem
nenhum rasto encontramos, ao passo que existe uma, que não duvidamos de
lhe attribuir, e que o nosso illustre bibliographo não conheceu. É esta
uma traducção franceza de Quinto Curcio, feita no anno de 1468, a qual
pertenceu a Philippe de Cluys, commendador da ordem de S. João de
Jerusalem, e que actualmente se guarda entre os manuscriptos do Museu
britannico.[2]
* * * * *
Ruy de Pina succedeu, como dissemos, a Vasco Fernandes, em 1497, no
cargo de chronista-mór, postoque muito antes exercitasse o officio de
historiador. Dos primeiros annos de Ruy de Pina apenas se sabe que foi
natural da Guarda, mas ignora-se o anno do seu nascimento, ainda que
haja algumas suspeitas de fosse pelos annos de 1440. Em 1482 diz elle
que fôra por secretario da embaixada mandada por D. João II a Castella,
e o mesmo cargo serviu d'ahi a dous annos na embaixada de Roma. Parece
que, voltando de desempenhar esta commissão, o encarregou el-rei de
escrever as chronicas do reino, apesar de então ser chronista-mór
Lucena, o que se deprehende de uma provisão de D. João II, em que lhe
manda dar uma tença de nove mil e seiscentos réis «esguardando ao
trabalho e á occupação grande que Ruy de Pina escripvão da nossa camara
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