Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 - 04

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razão de que não a podiam fazer; tal motivo não tiveram porque não o
podiam ter. A razão do pacto, a meu ver, não foi mais que um calculo de
forças: os dois condes unidos assim eram naturalmente mais fortes que
qualquer outro competidor ao throno que por morte de Affonso VI se
alevantasse. O conde Raimundo entendeu, e entendeu bem, que valia a pena
de sacrificar uma parte de territorio á ambição de Henrique, com a
condição de cingir a corôa d'Hespanha. Do theor o pacto successorio se
vê que este negocio começou a ser tecido em Cluni; porque este celebre
mosteiro era então o foco de todos os grandes enredos politicos, e
exercia uma influencia immensa na curia romana, sempre prompta para
proteger novidades uma vez que estas lhe produzissem as celebres
_benedictiones_[44], de que tantas vezes falla á _Historia
Compostellana_. E com effeito o negocio tinha assim todas as
probabilidades de bom resultado, se a morte, como costuma, não viesse
baralhar as combinações humanas.
Disse que Raimundo e Henrique não podiam ter tido por motivo do pacto a
consciência de um direito commum a ambos; porque tal direito seria
sonhado. Que!? A coròa do reino leonez-castelhano era alguma herdade,
aldêa, mosteiro, _testamento_[45] emfim, que se repartisse entre
herdeiros, ficando a este o quarto, a outro o sexto, a aquell'outro o
resto? Se o fosse, que deveriamos nós chamar a Raimundo, o qual se
contentava com tomar para seu quinhão _hanc totam terram Regis
Aldephonsi_, ou ao conde Henrique, que promettia ajuda-lo em tão sancta
e louvavel empreza? Porque haviam assim de ser espoliadas as outras
filhas de Affonso VI, entre as quaes se contam algumas com mais
segurança legitimas que a mulher de Henrique?[46] Raimundo poderia
talvez julgar-se com justiça na successão, por ser sua mulher a filha
mais velha de Affonso VI: o hereditario da corôa começara de havia muito
a fixar-se por direito consuetudinario opposto ao direito politico
escripto, e Urraca devia succeder a seu pae por este _costume_, que
apenas deixava a sentença do codigo wisigothico a tal respeito, como
simples e mera formalidade: Henrique, porém, nada tinha que vêr em
similhante negocio, e só legalmente lhe cumpria obedecer ao novo
monarcha, como obedecia a Affonso VI.
Mas, dir-se-ha, Raimundo podia d'antemão ceder uma parte da monarchia,
que lhe havia de pertencer, a Henrique, seu cunhado, primo e companheiro
d'armas, a fim de que este o ajudasse com a força a tornar effectivo o
seu direito de successão, se este direito existia[47]. Não! A indole das
instituições hespanholas oppunha-se formalmente a similhante cessão.
É preciso em todas estas averiguações não esquecer nunca um grande facto
social d'aquella epocha, facto que o historiador-philosopho Martinez
Marina provou irrecusavelmente, e que derruba pelos fundamentos essas
explicações violentas de um acontecimento mui simples--a revolta do
conde Henrique. Este acontecimento não deshonra o conde, porque elle não
podia ter as idéas de estreita legalidade, que nós hoje exigimos e
devemos exigir dos homens politicos. No seu tempo a força corria
trivialmente parelhas com o direito: era esta uma das infinitas e
pessimas consequencias moraes da barbaria e rudeza dos tempos. Do mesmo
modo nenhuma nódoa póde pôr nos fastos gloriosos da nação essa origem
menos ajustada pelas regras da jurisprudencia politica d'aquellas eras.
Toda a nação independente legitimamente o é, seja qual for a historia do
apparecimento da sua individualidade ou da sua organisação. Nem a França
recusa a usurpação de Pepino, ou de Hugo, nem a Inglaterra a conquista
de Guilherme o _Normando_: essas nações possuem sobeja luz de gloria
para desvanecer taes sombras. Será o velho Portugal mais pobre e obscuro
do que ellas?
O facto, digo, de que nunca nos devemos esquecer é, que a monarchia
fundada por Pelaio nas Asturias, e que depois se chamou Leão e Castella,
não foi uma nova sociedade que appareceu; não foi uma nova raça que pela
conquista substituísse no dominio da terra uma sociedade conquistada o
dissolvida. A monarchia leoneza foi a reacção wisigothica contra a
invasão arabe: mais nada. O throno de Leovigildo recuou deante do throno
dos califas até as margens do Deva, e d'abi voltou a Toledo. Ida e volta
foi por uma estrada coberta de cadaveres, e a viagem gastou tres
seculos. Mas com esse throno, na fuga e no triumpho, as instituições, as
leis, quasi os costumes, que o rodeavam, subsistiram por largo tempo. As
_Partidas_ de Affonso o _Sabio_ são a declaração de que a sociedade
wisigothica tinha emfim expirado, depois de dilatada agonia. Este codigo
feudal-canonico-romano é o verdadeiro ponto d'intersecção entre a
monarchia germanica e a monarchia moderna; e ainda áquem das _Partidas_,
quantas reminiscencias, quantos costumes, quantas leis, enraizadas no
solo Peninsula pela cuidadosa cultura dos godos, melhor radicadas talvez
ainda, como as arvores robustas, pelo tufão terrivel da conquista arabe,
não ficaram vivas, perennes, activas, no meio da sociedade moderna!
Ninguem mais que nós os filhos das Hespanhas se abraça ternamente com as
usanças do passado. É que ainda em nossas veias gira muito sangue dos
godos. Na historia das instituições, os povos da Peninsula são mais
velhos do que elles pensam.
Todos sabem que o codigo das _Partidas_ pertence á segunda metade do
seculo XIII, e que a epocha de Affonso VI pertence aos fins do XI, e
primeiros annos do XII. Para outro logar deixamos o exame das
alterações, quasi todas formaes e poucas substanciaes, que os francos
introduziram na organisação politica da Hespanha: é, porém, indubitavel
que a natureza da monarchia não tinha sido mudada. A substituição do
hereditario ao electivo na successão havia-se convertido em uso, é
verdade; mas este uso não pertencia exclusivamente aos tempos
posteriores a Pelaio. Anteriormente aos arabes, os godos tinham
conhecido a vantagem immensa d'aquelle systema de transmissão da corôa
ao systema electivo; e a successão de paes a filhos começava a fixar-se
como principio politico na côrte de Toledo, quando justamente uma
offensa feita a esse principio na enthronização de Rudericus (Rodrigo)
produziu a guerra civil, que abriu o caminho aos conquistadores
sarracenos.
A eleição do rei lá ficou, todavia, escripta na lei da terra, no codigo
wisigothico, e as consequencias naturaes do principio electivo
designadas nesta lei, e além d'isso traduzidas nos factos. A acclamação
do novo imperante, o _hominium_ ou preito e menagem que lhe faziam os
barões convocados a côrtes (_concilium_), e até a expressão de
_electus_, de que muitos reis de Oviedo e Leão usaram nos diplomas
fallando de si, provam que elles não se esqueciam de qual era o
fundamento legal da sua existencia politica[48]--a escolha dos godos.
D'esta circumstancia, d'este pensamento, que por assim dizer se achava
como incorporado no facto contrario--a successão hereditaria--e
modificava esse facto, nascia que todas as outras disposições do codigo
wisigothico, relativas ás obrigações contrahidas pelos reis no momento
da acclamação, se conservavam em vigor como nos tempos em que a
monarchia era na realidade electiva. Entre estas obrigações era uma das
mais importantes o prestarem juramento de nunca alhearem os bens ou
estados da corôa, e de não herdarem a seus filhos senão as terras ou
bens que adquirissem antes de subirem ao throno, ficando no patrimonio
do estado tudo o que depois da sua eleição n'elle tivessem
accrescentado[49]. Era a esta lei, observa Martinez Marina[50], que D.
Affonso o _Sabio_ se referia no seculo XIII, dizendo: «foro e
estabelecimento fizeram antigamente em Hespanha, que o senhorio do rei
nunca se dividisse ou alheasse.»[51] A tradição d'esta antiga
jurisprudencia veio ainda reflectir de algum modo entre nós na feitura
da _Lei mental_.
Similhante instituição obsta a que qualquer cessão de Raimundo a seu
primo tivesse validade ainda quando subisse ao throno, quanto mais sendo
apenas um simples pretendente. Assim, ao passo que se vê não ser o pacto
successorio mais que um documento da ambição dos dous condes, conhece-se
tambem que é escusado procurar n'elle o titulo da independencia
portugueza. Ainda, repito, subindo ao throno, Raimundo teria exorbitado
das suas attribuições: teria offendido uma das partes essencialissimas
do direito politico da Hespanha, se houvesse alheado da corôa uma tão
importante porção de territorio como Portugal, sem consentimento do
_concilium_, ou _côrtes_. Fernando Magno tinha entendido isto
perfeitamente quando, para dividir a monarchia em tres estados que
herdassem seus tres filhos, as convocou em Leão a fim de obter o
consentimento nacional[52].
Nestas considerações, a meu ver, está a razão capital de se dever
recusar a sancção historica a essas tradições de dotes, d'infeudações,
de direitos hereditarios, que se tem acceitado de antigas chronicas com
demasiada boa fé.
Não concluirei já agora, sem accrescentar alguns reparos aos argumentos
negativos, que faz o sabio auctor das _Memorias do conde D. Henrique_, a
favor da opinião que sustenta a legalidade do acto de separação que deu
origem á monarchia portugueza.
Aquelle erudito illustre observa que, practicando o conde depois da
morte d'Affonso VI todos os actos de um soberano independente (e isto,
creio eu, ninguem contesta hoje), não appareceu um documento público em
que os leonezes accusassem Henrique e depois D. Theresa de _rebeldes_,
ou em que exigissem vassalagem d'elles; que não _ha prova alguma
positiva e certa de que por esse singular motivo fizessem a guerra aos
portuguezes_; que finalmente nenhuma das _numerosas_ chronicas
d'aquelles tempos haja feito menção da dependencia de Portugal, salvo a
_Historia Compostellana_, a que, n'esta parte, o illustre auctor das
citadas _Memorias_ parece recusar o seu assenso por ser obra d'estylo e
modo d'historiar _exaggerado_, e ás vezes manifestamente apaixonado.
O governo do conde Henrique divide-se em dois periodos distinctos: o
primeiro, que corre de 1096 até 1109, isto é, até a morte _d'Affonso_
VI: o segundo desde esta epocha até a morte d'elle proprio em 1112[53].
Quanto á primeira não pode haver questãpo sobre a sua dependencia do
monarcha: os diplomas d'esse tempo não consentem a menor sombra de
dúvida a similhante respeito. Quanto á segunda tambem me parece
indubitavel que o conde saccudiu o jugo de Leão; mas o que não posso
admittir é que os leonezes legalisassem este facto com o seu
reconhecimento antes do tempo de D. Affonso Henrique.
Bastaria dizer aqui que um argumento negativo bem pouco fôrça pode ter
contra provas em contrario deduzidas da propria natureza, instituições,
leis e costumes do paiz. Mas não ha só isso; considerando em si o
argumento, elle não parece dos mais vehementes no seu genero. Vejamos.
Primeiro que tudo, _as numerosas chronicas d'esses tempos_ parece-me uma
expressão demasiado vaga e incerta. Se o respeitavel sabio, a que
alludo, intende por _chronicas d'esses tempos_ os escriptores
_contemporaneos_ do conde e ainda de D. Theresa, que lhe sobreviveu 18
annos, eu desejaria saber onde existe esse grande numero d'ellas, para
as lêr, e evitar assim os avultados erros, em que por ignorancia das
fontes historicas terei provavelmente caído. Se intende os escriptores
dos tempos immediatos, seja-me permittido lembrar-lhe que Rodrigo de
Toledo, escrevia na primeira metade do seculo XIII[54], concorda com a
_Historia Compostellana_ em chamar _rebellião_ ao procedimento do
conde[55], e n'esse caso não é _singular_ o testimunho d'aquella
importante historia.
Eu sei que existe um certo numero de _chronicons d'esses tempos_,
publicados pela maior parte nos appendices da _Hespanha Sagrada_. Mas
infelizmente para o nosso caso, aquelles em que os successos vem mais
particularisados, e que mereceriam não o nome de _historias_, mas
talvez, alguns pelo menos, o de _chronicas_[56], não ultrapassam a
epocha d'Affonso VI. Taes são o d'Isidoro de Béja, o do Biclarense, o de
Sebastião de Salamanca, o de Sampiro, o Monge de Sillos etc. Os que
passam áquem da morte d'Affonso VI são apenas um aggregado de datas
relativas aos seculos XII e XIII e aos anteríores, datas estremes de
nascimentos, batalhas, obitos e phenomenos naturaes. Em taes monumentos,
essencialmente chronologicos, como fôra possivel encontrar a menção do
facto que pela sua propria natureza devia ser lento, e concluido por uma
série de actos graduaes e escuros, praticados successivamente durante
annos? Como se poderia achar uma historia politica em rudes apontamentos
de monges ignorantes, que muitas vezes para indicarem uma batalha
importante contentavam-se com dizer: _Era de tal_--_Foi a de Sagralias:
foi a d'Ucles_? Eu, ao menos, não creio que similhante espécie ahi se
podesse encontrar.
Mas, se abstrairmos d'estes _chronicons_, que obras historicas nos
restam escriptas n'esse tempo ou proximamente, com tal extensão, que
devamos buscar n'ellas noticia d'este facto politico e complexo? Conheço
apenas tres: a _Historia Compostellana_, a _Chronica d'Affonso VII_, e o
livro de D. Rodrigo Ximenes _Das coisas de Hespanha_. Como já notei, a
primeira e terceira chamam rebellião a esse facto: a segunda é que
guarda silencio a similhante respeito. Tire d'aqui o leitor a conclusão
que quizer, não se esquecendo que já ponderei sobre o valor historico
que me parece têr a _Chronica d'Affonso VII_.
O clarissimo auctor das _Memorias do conde D. Henrique_ regeita, ao que
parece, n'este ponto a auctoridade dos historiadores compostellanos
(postoque na _Memoria sobre a origem de Portugal_ os houvesse
qualificado de _não suspeitos_) por serem _exaggerados_ e _apaixonados_.
Esta observação é exactissima. Quem ler dez ou vinte capitulos d'aquella
chronica ficará plenamente convencido de tão inquestionavel verdade, sem
que lhe seja preciso ter presente a extensa dissertação de Masdeu a este
respeito.[57] Mas o que _exaggeram_ os tres conegos de Sanctiago
auctores do livro?--A perversidade de D. Urraca, e as virtudes do
arcebispo Diogo Gelmirez. Não ha injúria que elles não vomitem repetidas
vezes contra aquella rainha, que sem ser sancta, ou pelo menos beata,
como a pinta Flores, não foi tão detestavel mulher como os tres honrados
conegos a descreveram. Por outra parte não ha lisonja ridicula ou louvor
despropositado que não dirijam ao seu velhaco, hypocrita, cubiçoso e
violento patrono. Porque serão pois elles suspeitos mostrando-se
favoraveis ás pretensões de D. Urraca ácerca de Portugal, quando, além
d'isso, não tinham motivo nenhum de odio contra D. Theresa, que
beneficiou a sé de Compostella, e que até, andando Diogo Gelmirez com a
rainha D. Urraca devastando o Minho, lhe deu aviso de que sua irmã o
queria prender ou matar? É realmente incomprehensivel para mim o motivo
por que na questão da legitimidade ou illegitimidade da separação de
Portugal a _Historia Compostellana_ haja de ser-nos suspeita por
exaggeração e parcialidade.
Finalmente, a exigencia de um documento leonez, pelo qual conste a
pretendida sujeição de Portugal, parece-me demasiado violenta. Qual
devia ser o documento? Um manisfesto? No seculo XII não creio existisse
ainda essa divindade dos homens honestos, chamada opinião pública. Nas
questões politicas recorria-se ás armas para obter justiça ou desforço,
e não se faziam allegações. Se apparecesse um tal documento, a prova da
sua falsidade seria a sua existencia; e todavia só por um manifesto
poderiam constar directamente as pretensões de D. Urraca e de Affonso
VII. Indirectamente, porém, na propria _Memoria_, a que alludo, se
lembra seu respeitavel auctor do que D. Urraca se intitúlava _rainha de
toda a Hespanha_. Que mais podia fazer? Doações em Portugal de bens da
corôa? Ninguem lh'as quizera, porque não se effeituariam, visto que
Portugal não a tinha por senhora. Providencias governativas? Não lhe
obedeceriam. De que titulo, pois, pode resultar a prova directa que se
exige?
Prova directa digo, porque só esta tinha em mente por certo o sabio, de
cuja opiniões me vejo constrangido a afastar-me, quando escreveu que não
existe documento pelo qual _conste a pretendida sujeição_[58]. Era
impossivel que elle se não lembrasse do tractado que traz Brandão[59] em
cujo preambulo se lê: «É este o juramento e convenio que faz a _rainha_
D. Urraca a sua irmã a _infanta_ D. Theresa.» Desejaria eu saber porque,
intitulando-se a viuva do conde Henrique constantemente _regina_ nos
documentos de Portugal, consentiu em um tractado de paz com sua irmã que
esta reservasse para si similhante titulo, e lhe désse unicamente o
d'_infanta_? Como se registou tal denominação no _Liber Fidei_ de Braga,
d'onde a tirou Brandão, sendo assim offensiva da legitima independencia
e senhorio real de D. Theresa?
Accrescentarei uma conjectura. O documento produzido por Brandão não tem
data. Quem lêr attentamente os capitulos 40 e 42 do livro 2.^o da
_Historia Compostellana_ poderá talvez attribui-lo ao anno de 1121, em
que D. Urraca acompanhada do guerreiro arcebispo Diogo Gelmirez entrou
por Portugal dentro, e o devastou, chegando D. Theresa ás estreitezas de
se ver cercada no castello de Lanhoso. Distraídos pelos perigos do seu
heroe Gelmirez, que n'esta occasião D. Urraca, dizem elles, quiz prende,
esqueceram-se de narrar expressamente as consequencias politicas da
guerra. Mas dos factos referidos n'esses capitulos se pode deduzir que
as duas irmãs fizeram pazes, e até os dois campos inimigos conviveram
familiarmente[60]. Aquelle tractado não é por ventura mais que o
desfècho da invasão; bem como as condições vantajosas que por elle devia
obter D. Theresa, o repentino intento de prender o arcebispo, e a
notoria perfidia e turbulencia d'aquelle sancto varão, me fazem
suspeitar que elle tramaria alguma traição contra a sua soberana, a qual
odiava cordialmente, e tractando secretamente com D. Theresa (cujo
repentino accésso de amor por um homem que lhe devastava o paiz é aliás
inexplicavel) pretenderia com a juncção das suas forças ás portuguezas
aniquilar D. Urraca. Se assim foi, porque isto é apenas uma conjectura
verosimil, habilmente andou a rainha em conceder uma paz vantajosa a sua
irmã, para poder desaggravar-se da traição de Gelmirez. Admittida esta
hypothese, o documento do _Liber Fidei_ e a _Historia Compostellana_
concorda e explicam-se excellentemente.
O titulo d'_infanta_, dado com exclusão de outro a D. Theresa, não
apparece unicamente no _Liber Fidei_. Remettendo Bernardo, arcebispo de
Toledo, a Diogo Gelmirez copia de certas letras apostolicas relativas ao
celebre Mauricio Bordino, arcebispo de Braga, envia-lhe com ellas outras
dirigidas á _infanta dos portuguezes_[61]. Vê-se d'esta passagem, da
carta do primaz que tal era o titulo diplomatico com que na côrte de
Toledo se designava D. Theresa; titulo vago, que mostra, a meu vêr, a
incerteza d'aquella côrte entre o facto, que provavelmente não tinha
fôrça para annullar, e o direito de supremacia, que julgava evidente.
Ficarei aqui pelo que toca ao facto da origem da independencia de
Portugal: algum dia examinaremos como ella se consolidou e legalisou.
Chama-nos mais grave assumpto--a historia social do nosso paiz n'essa
épocha.


*CARTA IV*

A folhinha d'algibeira, tecendo o catalogo dos nossos reis, divide-se em
quatro dynastias: a 1.^a Luso-Capêta, a 2.^a, do Mestre d'Aviz, a 3.^a
dos Philippes, a 4.^a Brigantina. A folhinha resume e representa o
estado da sciencia historica do nosso paiz.
Mas a folhinha, salvo o incompleto e inexacto d'aquellas divisões
dynasticas, tem razão. Ella tece o catalogo das familias reaes. Quem não
tem razão é a sciencia, que, annunciando a _Historia de Portugal_, em
vez de distribuir as épochas chronologicas pelas transformações
essenciaes da sociedade, sujeita a ordem dos acontecimentos sociaes ás
mudanças das raças reinantes. Isto é altamente absurdo.
Mr. Thierry, fallando das divisões dynasticas applicadas á historia
franceza, já observou a impropriedade de similhante systema[62].
«Supponde (diz elle) que um estrangeiro, pessoa de juizo, que não seja
hospede na leitura dos historiadores originaes da decadencia do imperio
romano, e que nunca houvesse aberto um volume moderno da nossa historia;
supponde, digo, que ao encontrar a primeira vez um livro d'estes lhe
corra o indice, e divise ahi por balizas, ou antes por fundamentos da
obra, a distincção das diversas raças. Que idéa quereis que faça d'estas
raças e do pensamento do auctor? Ha-de provavelmente crer que tal
distincção corresponde á de diversas gentes, ou gaulesas ou peregrinas,
cuja mistura produziu a nação franceza; e quando souber que se enganou,
que são unicamente diversas familias de principes, sobre as quaes versa
todo o systema da nossa historia, ficará sem duvida cheio
d'assombro.»--Esta reflexão do mais célebre historiador francez da
épocha presente, é inteiramente applicavel ao nosso paiz.
Com effeito, quem, á vista das diversões estabelecidas na _Historia de
Portugal_, imaginará, por exemplo, que os acontecimentos sociaes do
ultimo quartel do seculo XIII, isto é, do reinado de D. Diniz, consituem
uma divisão naturalissima, uma verdadeira épocha historica, ao mesmo
tempo que a intrusão dos Philippes apenas mereceria tal nome? Quem
adivinhará que no reinado de D. João II se completa uma revolução
capital na indole da organisação politica do paiz, ao passo que a
revolução de 1640 traz á sociedade portugueza levissimas mudanças no seu
mode de existir? Ninguem o crerá, se attendendo unicamente ás épochas
assentadas pelos historiadores se persuadir de que a historia é a
biographia dos individuos eminentes.
A historia pode comparar-se a uma columna polygona de marmore. Quem
quizer examina-la deve andar ao redor d'ella, contempla-la em todas as
suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é
olhar para um dos lados, contar-lhe os veios da pedra, medir-lhe a
altura por palmos, pollegadas e linhas. E até não sei dizer ao certo se
estas indagações se teem applicado a uma face ou unicamente a uma
aresta.
Mas é similhante trabalho desprezivel? Não por certo. Este exame miudo,
feito com consciencia, tem grande applicação, e ainda em si é
importante; mas dar-nos isso como a historia da nação é, salvo erro,
enganar redondamente o genero humano; é não perceber os fins da
historia, a sua applicação como sciencia; é sobretudo fazer uma coisa, a
que podêmos chamar novella, distincta sómente d'aquellas a que se dá tal
titulo, pelo tedioso, árido e sem sabor da leitura que offerece.
As divisões historicas actuaes nasceram d'este modo falso (por
incompleto) de considerar o passado. A necessidade de estabelecer uma
chronologia rigorosa era evidente: os factos politicos e a vida dos
homens publicos precisavam de ser fixados com exacção no correr dos
tempos, principalemente para o julgamento dos diplomas, genero de
monumentos, em que as gerações extinctas se pintam melhor, que em
nenhuns outros. O erro, a meu vêr, foi acreditar que ficando-se aqui
existia a historia: erro digo, e completo; porque nem se quer a
biographia dos homens eminentes surgiu de taes averiguações. Temos a
certidão do seu nascimento, baptismo, casamento e morte. Se foi um
guerreiro, temos a descripção das suas batalhas; se legislador, a medida
intellectual e moral de seu espirito, os seus habitos e costumes, não os
conhecemos. E porque? Porque esse homem é uma abstracção: está separado
do seu seculo. As opiniões, os costumes, os usos, todos os modos, emfim,
de existir da épocha em que viveu, são desconhecidos para nós; e todavia
tudo isso, toda essa existencia complexa de muitos milhares de homens, a
que se chama nação, devia ter uma influencia immensa, absoluta,
n'aquella existencia individual do homem illustre, que o historiador
acreditou poder fazer-nos conhecer com os simples extractos de quatro
chronicas, cosidos com bom ou máu estylo ás respectivas certidões de
baptismo, de casamento e de obito.
É por isso que, além de ser absurdo em these geral resumir e representar
a sociedade nos individuos, tal absurdo se torna mais monstruoso, quando
os tomamos como medida das phases da sociedade. O homem, assim collocado
fóra de todas as relações sociaes, que lhe modificaram d'este ou
d'aquelle modo o aspecto moral, podendo representar todas as épochas,
pertencer a todos os tempos, tomar todas as physionomias, nada
representa, a nada pertence, nenhuma physionomia tem; e quando n'elle
buscâmos a imagem do seu tempo, não a achâmos, até porque nem a d'elle
proprio existe. Ajunctem-se, porém, estas individualidades abstractas,
embora na ordem do tempo constituam uma dynastia, uma série de capitães,
de legisladores, de magistrados; junctas ou separadas, ellas nunca
poderão representar uma épocha historica; o seu apparecimento ou a sua
falta nunca serão balisas verdadeiras das diversas transformações pelas
quaes passam os povos na sua vida de seculos.
Abramos os livros de qualquer historiador nosso. Sejam os do homem que
mais attingiu o espirito da sciencia historia, exceptuando Antonio
Caetano do Amaral de João Pedro Ribeiro: sejam o terceiro e quatro
volumes da _Monarchia Luzitana_, por Fr. Antonio Brandão. Brandão
começou a sua narrativa com o conde Henrique e concluiu-a com D. Affonso
III, ou porque sentisse que este era rigorosamente o primeiro periodo da
nossa historia, ou por mera casualidade, o que eu não creio[63].
Corram-se esses dois volumes; estudem-se as physionomias do conde, de D.
Affonso I, e dos seus successores até D. Affonso III: comparem-se com as
mais bem conhecidas dos nossos reis modernos; com a de D. João IV, de D.
Affonso VI, de D. Pedro II, de D. João V. Creremos que foram
contemporâneos uns dos outros: a sua côrte parece-se com as d'estes; o
teor da sua vida, domestica ou publica, os pensamentos politicos, a
fórma de administrar, de legislar, de fazer guerra são, com levissimas
excepções, similhantes; e resumindo n'essas physionomias falsificadas,
n'essas mascaras historicas, o aspecto social da épocha, ficam os
seculos XII e XIII similhantes necessariamente á segunda metade do XVII
e primeira do XVIII. A nossa imaginação transporta para aquelles tempos
a côrte esplendida, ceremoniatica, erudita, hypocrita e louçan de D.
João V; ou as intrigas mulherís, os odios covardes, os mexericos
fradescos, e as vinganças tenebrosas do tempo de Affonso VI e de D.
Pedro II, cobertos com um manto de decencia, de compostura, de
regularidade nas fórmas.
Assim, crendo que temos lido a historia portugueza dos seculos XII e
XIII, apenas saberemos as datas d'esses primeiros reinados, a
antiguidade d'algumas familias, os successos militares ou politicos de
então. Quanto ao resto, não só ignorâmos o que era a sociedade
primitiva; mas, o que é peior, compomos d'ella uma fabula com as
reminiscencias da nossa vida, com as tradições de nossos paes, ou com as
anecdotas, que estes ouviram aos seus. Feito isto, está feito o nosso
bastimento de sciencia historica.
* * * * *
Mas voltemos os olhos para os monumentos d'aquellas eras antigas, em que
ellas fielmente se reflectem, e fechemos os livros: busquemos a historia
da sociedade e deixemos por um pouco a dos individuos. Os primeiros
documentos que nos cairem nas mãos destruirão essas illusões: sentiremos
a infinita differença entre uns e outros tempos: veremos que os reis, os
nobres, o clero, os cidadãos, os camponezes de então, eram reis, nobres,
clero, cidadãos, e camponezes bem diversos dos actuaes. Pouco bastará
para nos persuadirmos de que a biographia das familias ou dos
inidividuos nunca pode caracterisar qualquer épocha; antes, pelo
contrario, a historia dos costumes, das instituições, das idéas, é que
ha de caracterisar os individuos, ainda quando quizermos estudar
exclusivamente a vida d'estes, em vez de estudar a vida do grande
individuo moral, chamado povo ou nação.
Transcreverei varios documentos relativos ao primeiro periodo da nossa
historia. Serão os que successivamente me occorrerem, sem fazer escolha.
Reflicta n'elles o leitor, que conhecer os nossos livros historicos. Que
julgue se algum d'estes lhe faz suspeitar ao menos o que por aquelles
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