O culto da arte em Portugal - 2

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Torre, fizeram as mais demoradas e escrupulosas pesquizas para o fim de
satisfazer a curiosidade de Rakzynski, e nada appareceu.
É claro que esta ausencia de vestigios no real archivo nada prova sobre
o facto de ter estado ou não em Portugal o architecto de York. Não
consta tão pouco, dos documentos existentes no archivo, que tivesse
estado em Portugal durante nove annos o insigne esculptor italiano
Andrea Contucci, emulo de Miguel Angelo; e no emtanto este facto acha-se
fóra de toda a contestação.
O cardeal patriarcha Frei Francisco de S. Luiz, queixando-se da
negligencia e da superficialidade com que Frei Luiz de Sousa falla dos
primeiros architectos da Batalha, e propondo-se demonstrar que o auctor
da obra foi Affonso Domingues, diz que não vê razão para pôr em duvida a
habilidade dos nossos compatriotas, suppondo que houvessemos de reclamar
a assistencia de estrangeiros em uma epocha como a de D. João I, na
qual, exceptuadas as italianas, _nenhuma nação da Europa se achava mais
adeantada que a nação portugueza, tanto na arte da architectura, como em
todas as outras_.
O patriotismo imprudentemente levado até ás affirmações da natureza das
de Frei Francisco de S. Luiz, tem um inconveniente grave, que é o de
fazer sorrir os estrangeiros, da ingenua applicação dos nossos
sentimentos civicos á historia da arte européa.
Hoje, toda a gente sabe, porque esta ordem de conhecimentos tem-se
vulgarisado muito, que o systema gothico ou systema ogival, a que
primitivamente se chamou _Opus francigenum_, teve a sua origem na ilha
de França e na região circumstante. Foi n'esses logares que até o seculo
XII se construiram os primeiros edificios gothicos. O novo stylo chega
em França aos seus mais completos desenvolvimentos no seculo XIII, e
d'essa epocha datam as cathedraes de Amiens, de Pariz, de Reims e de
Chartres.
Os allemães e os inglezes teem contestado á França a prioridade do
emprego do arco ogival e dos desenvolvimentos architectonicos que d'elle
procedem. O que, porém, está acima de todo o litigio, é que o systema
ogival, chamado stylo gothico, ou gothico puro da igreja da Batalha, não
procede da invenção dos paizes meridionaes, de céu azul, mas sim das
regiões nevoentas de longos e rudes invernos.
No norte da Europa, durante a edade média, tratou-se de edificar a
grande cathedral que désse um abrigo espaçoso ás numerosas congregações
de fieis e de cidadãos; como a pedra escasseava, como a neve cahia em
abundancia e permanecia por longo tempo, procurou-se um modo de
construcção, que, sem difficultar a circulação da gente com grandes e
repetidos corpos de cantaria no interior do edificio, permittisse
empregar materiaes menos solidos e fazer tectos elevados e agudos, que,
não pesando excessivamente sobre os membros destinados a sustental-os,
deixassem facilmente resvalar e escorrer a neve pelas superficies
exteriores, impedindo o mais completamente possivel a infiltração da
humidade no interior do templo.
Foi d'estas causas, determinadas pela natureza do clima e do solo, pelas
condições sociaes, e não de um mero capricho inventivo, que resultou
para os architectos dos paizes septentrionaes o pensamento de readoptar
a abobada de aresta, que os romanos, depois de a haverem empregado,
puzeram de parte, para o fim de dar logar na construcção das basilicas
christãs á enorme quantidade de columnas legadas pelo paganismo.
Assim foi que nasceu, bem longe de Portugal e inteiramente fóra das
influencias cosmicas e das influencias sociaes geradoras do caracter e
da indole da nossa raça, que nasceu o stylo architectonico da egreja da
Batalha.
A affirmativa de que nenhuma nação da Europa, com excepção da Italia, se
achava mais adeantada do que Portugal do tempo de D. João I, nas artes
da architectura, sómente prova, da parte do cardeal frei Francisco de S.
Luiz, que este benemerito academico e illustre litterato, ou não viajou
nunca em França e na Allemanha, ou não visitou n'estes paizes os
monumentos anteriores ao fim do seculo XIV.
A egreja da Batalha, que data d'essa epocha, é chronologicamente um dos
ultimos edificios em stylo gothico puro construidos na Europa, e, apesar
de toda a sua belleza, está, como obra d'arte e como magnificencia
monumental, bastante abaixo de alguns outros edificios construidos cem
ou duzentos annos antes, como a cathedral de Strasburgo (1015 a 1275),
Reims (1215), Amiens (1222), Colonia (1248) a Sainte-Chapelle em Pariz
(1248), Notre-Dame (1275), etc.
Bastaria que o auctor da interessante memoria sobre a construcção do
convento da Batalha, encorporada na collecção das memorias da Academia,
tivesse olhado em Pariz para as estatuas de Sainte-Chapelle e para os
baixos-relevos da egreja de Notre-Dame; que tivesse observado um momento
as esculpturas de Chartres, de Reims e de Amiens; para ter uma idéa do
enorme abysmo que no tempo de D. João I nos distanciava ainda dos
grandes mestres da architectura e da esculptura franceza, que se
chamaram Pierre de Montreuil, Thomas e Regnaut de Carmont, Jean de
Chelles, Hugues Libergier e outros artistas leigos, sem contar os muitos
monges anonymos com que se illustrou na historia da arte, a ordem de
Cluny, no seculo XII e no seculo XIII.
Na Allemanha, temos, precedendo a Batalha, a cathedral de Colonia; na
Inglaterra Canterbury, Westminster, Salisbury, Lincoln e York; e em
Hispanha, Burgos e Toledo.
Anterior á Batalha não ha em Portugal monumento algum que prenuncie,
prepare e explique a apparição d'este.
Nos primeiros tempos da monarchia, em quasi todo o periodo affonsino, os
artistas e os obreiros eram em geral arabes ou mouros. O portuguez era
como os seus reis, soldado ou agricultor. Para as especulações
estheticas faltava-lhe a paz, a tranquillidade, a riqueza. Mal lhe
chegava o tempo para desbravar o sólo e para bater os inimigos, que de
todas as partes rodeavam a pequena sociedade nascente, aventurosa e
aguerrida.
A Batalha, com a delicada pureza das suas linhas, já então consagradas
na Europa, surge repentinamente, imprevistamente, esporadicamente, na
corrente da architectura portugueza, como a flor desconhecida de uma
planta exotica.
D'onde é que foi transplantado para terra portugueza este producto de
uma civilisação superior, em que o desenvolvimento da vida municipal,
iniciada pelas fortes corporações operarias e mercantis, impellira as
communas a construirem as luxuosas cathedraes, que eram ao mesmo tempo,
nas cidades novas, um asylo de religião e um fóco de vida civil?
Não sei responder peremptoriamente a esse quesito.
O problema assim estreitado é, no fim de contas, de pura curiosidade.
O architecto inglez Hope, na sua _Historia da Architectura_, diz que o
estylo ogival não tem propriamente nem uma patria nem uma nacionalidade.
Só poderia ter nascido no seio de alguma ordem religiosa ou de uma
corporação de pedreiros livres, porque o clero e os pedreiros livres
eram as unicas corporações que na edade média possuiam os conhecimentos
necessarios para o plano e para a execução dos edificios sagrados, quer
para as communidades monasticas, quer para a egreja latina em geral.
Hope acrescenta: como os conventos e sobretudo as _lojas_ dos pedreiros
livres se compunham de cidadãos de todos os paizes, que reconheciam a
supremacia da egreja romana, não seria possivel determinar positivamente
os inventores do stylo ogival quando mesmo se houvesse descoberto o
logar preciso do seu berço.
Em toda a parte onde apparecem as primeiras amostras d'esse stylo ellas
não são a obra de individuos de um paiz determinado, mas sim de uma
congregação encerrando no seu gremio homens de todas as nações.
Na _Real Encyclopedia_ de Leipzig lê-se com referencia ás associações
maçonicas que ellas se compunham de homens de arte de todos os paizes
formando uma só corporação dirigida por um ou por varios chefes.
«Protegidos por privilegios ou cartas patentes emanadas das auctoridades
ecclesiasticas e seculares, emprehendiam as maiores construcções em toda
a Europa e são auctores d'esses magnificos edificios chamados gothicos e
que antes se deveriam chamar _Altdoutsch_. Achamos o stylo de todas as
construcções d'essa época fundamentalmente identico. As associações
alludidas compunham-se de architectos e de obreiros italianos, allemães,
flamengos, francezes, inglezes, escocezes e até gregos. Foi d'essa
maneira que nasceram os monumentos seguintes: o _mosteiro da Batalha em
Portugal_, a cathedral de Strasburgo, a de Colonia, a de Meissen, a de
Milão, o convento do Monte Casino, e todos os edificios notaveis da
Inglaterra.»
Esta hypothese--e chamo-lhe hypothese, porque não conheço os documentos
positivos em que se baseia o escriptor allemão--condiz perfeitamente com
a lição de Frei Luiz de Sousa, e é talvez de todas a mais verosimil com
relação aos constructores da Batalha.
Que fosse, porém, uma associação de artistas e de operarios; que fosse
Stephan Stephenson, como indica Murphy, de quem devemos crer que não
inventou esse nome e o recebeu, como diz, dos empregados do archivo da
Torre do Tombo; que fosse, como pretende Hope, mestre Ouet, Huguet ou
Huet, de nação inglez, que trabalhou nas obras e cujo nome Frei
Francisco de S. Luiz encontrou como testemunha no contracto de
aforamento, em que se fala de Affonso Domingues; como quer que seja,
emfim, a hypothese que menos verosimilhança offerece é a de ter sido o
monumento delineado e construido pelo mestre portuguez Affonso
Domingues, como em Portugal se tem geralmente escripto.
O mais superficial exame aos edificios anteriores á Batalha manifesta do
modo mais evidente que não tinhamos nem escola, nem tradições, nem
tendencias de que procedesse um artista como o que delineou e construiu
a egreja da Batalha.
Vilhena Barbosa, nos _Monumentos de Portugal_, repete ainda a versão
relativa a Affonso Domingues como constructor da Batalha, mas
accrescenta: «É muito para admirar, não devo negal-o, que houvesse
n'aquella época em Portugal um artista tão consumado como o que fez o
risco do monumento, achando-se a architectura entre nós, antes da
execução d'esta obra em um estado, que, se não era de grande atrazo,
tambem não se lhe poderá chamar de adiantamento; em um estado pelo menos
que nenhuma memoria ou documento nos auctorisa para o considerarmos como
escola d'onde pudesse sahir um artista tão completo.»
A seguir, Vilhena Barbosa, procurando conciliar o arrojo do seu reparo
com a tradição geralmente recebida, exclama um tanto contricto: «N'este
caso lançarei mão de uma conjectura, não pela necessidade de sahir do
embaraço, mas porque me parece acceitavel e muito plausivel. Vem a ser
que talvez Affonso Domingues tivesse sahido da sua patria antes da
acclamação do mestre d'Aviz, com o intento de se instruir e aperfeiçoar
na sua arte. Bem sei que n'essa época não eram dados os artistas, pelo
menos os nossos, a procurar taes meios de estudo. Entretanto, tendo
estado em Portugal, no reinado de D. Fernando e com alguma demora, dois
principes inglezes, o duque de Cambridge, e um seu irmão natural, filhos
de D. Duarte III, rei de Inglaterra, pode ser que Affonso Domingues,
levado pelo amor da arte ou por outro qualquer respeito, se resolvesse a
acompanhar algum d'elles na sua volta para Inglaterra, paiz classico da
architectura gothica no genero da Batalha.»
Confessemos que é preciso ter vontade de attribuir por força a Affonso
Domingues uma obra que este não podia fazer, para formular a conjectura
de que _talvez elle se tivesse resolvido_ a ir a Inglaterra com os
filhos de Duarte III.
Ainda quando admittida a singular camaradagem do duque de Cambridge e de
seu irmão com Affonso Domingues, camaradagem conjecturada por Barbosa, e
de que não ha o minimo vestigio historico, não será talvez inutil
reflectir que depois d'essa excursão a Inglaterra--paiz tão debilmente
_classico na architectura gothica_, no tempo de Duarte III, que não
tinha um architecto indigena, nem monumento gothico algum, que se possa
pôr em confronto com as obras magnificas do continente--Affonso Domingos
voltaria de Inglaterra, no tocante ao conhecimento da arte de edificar,
proximamente no mesmo estado em que para lá tivesse ido, o que
facilmente se demonstra, como vamos vêr.
Sabe-se que desde o seculo X se organisaram na Italia, iniciadas pela
Lombardia, essas associações de artistas seculares, architectos,
esculptores, illuminadores, imaginarios, vidristas, entalhadores e
canteiros, empregados pela egreja nas vastas obras da primeira
renascença da Europa, subsequentes aos terrores do millenio, que por
muitos annos paralysaram todas as faculdades artisticas da humanidade
estupefacta perante a prophecia pavorosa do proximo aniquilamento
universal.
Estas confrarias, creadas e protegidas pelo clero, tomaram o nome geral
de _franco-maçonaria_ ou de _pedreiros livres_, e compunham-se de
associados, que, depois de haverem passado por todos os minuciosos
tramites de uma longa aprendizagem, adquiriam geralmente o direito de
exercer a profissão na qualidade de mestres.
Com a rapida e maravilhosa prosperidade das novas cidades da Italia
Septentrional nasceram egrejas sumptuosas e conventos magnificos, que em
poucos annos cobriram uma grande superficie da Lombardia e dos Estados
adjacentes.
Chegado o momento previsto em que as ordens religiosas de Italia
cessaram emfim de ter obras em que empregar a associação, cada vez mais
numerosa e mais habil, dos pedreiros livres, pensaram estes em dilatar a
sua actividade fora do solo natal.
Este expatriamento não representava unicamente uma expansão artistica
mas tambem uma forte propaganda e uma consideravel conquista
internacional da egreja latina.
Essa grande companhia edificadora de monumentos religiosos, de
cathedraes e de mosteiros, mobilisada n'uma companhia de arte atravez do
Norte da Europa, constituia como que um solido reforço esthetico,
temporal, naturalista e humano á sagrada legião espiritual vulgarisadora
do credo latino pela ramificação das ordens religiosas sobre todas as
latitudes da terra.
Cada egreja e cada convento edificados em paizes estranhos e longinquos
eram--diz Hope--um novo feudo adquirido ao papa.
A egreja comprehendeu inteiramente o alcance d'este grande facto, tão
importante na historia da arte romanica, da arte lombarda, da arte
gothica e de todas as artes liberaes na Europa, depois de cahida a
influencia da antiga civilisação hellenico-romana.
Como incentivo e amparo da vasta odysséa, a que se aventuravam os
denominados pedreiros livres receberam então da auctoridade pontificia,
emminente a todos os conflictos e discordias de soberania para soberania
e de nacionalidade para nacionalidade, privilegios incomparaveis,
destinados a assegurar á confraria errante uma especie de inviolavel
monopolio esthetico e artistico, como o que em nossos dias poderia
resultar de um congresso universal, tendo em vista pôr acima de qualquer
contingencia politica um interesse commum a toda a especie humana.
Diplomas e bulas papaes confirmaram para todos os paizes, que houvessem
reconhecido a fé catholica apostolica romana, todos os privilegios que a
confraria dos pedreiros livres havia recebido dos Estados de que era
oriunda.
Ella dependeria directamente e unicamente da auctoridade pontificia,
isenta de todas as leis e estatutos locaes, dos editos dos reis ou dos
regulamentos dos municipios e de toda e qualquer imposição obrigatoria
para os naturaes do paiz em que se encontrasse.
Só á associação caberia o direito e o poder de taxar os salarios, e de
prover em capitulo, sem appellação nem aggravo, a quanto dissesse
respeito ao seu proprio governo. Era expressamente prohibido a todo o
artista não iniciado nem admittido na associação estabelecer para com
ella qualquer especie de concorrencia, assim como era defeso, sob pena
de excomunhão, a todo o soberano manter os seus subditos n'esse acto de
rebeldia ás prescripções da egreja.
Esta _Internacional_ carolingiana, bem mais poderosa do que a
_Internacional_ napoleonica sahida dos primeiros movimentos socialistas
do segundo imperio, desenvolveu-se rapida e portentosamente. Muitos
gregos vindos de Constantinopla se reuniram aos primeiros artistas
confederados, vindo em seguida allemães, francezes, belgas e inglezes.
Desdobraram-se successivamente as diversas lojas ou series de
agrupamentos, em que cada dez associados obedeciam a um chefe em
communicação com os chefes das demais decurias e com a direcção central.
Os ecclesiasticos da mais alta categoria, os prelados, abbades mitrados
e bispos, accrescentavam a força e o prestigio da associação,
alistando-se como membros da irmandade.
Todos os soberanos da christandade se gloriavam em honrar com especiaes
distincções e particulares privilegios as suas lojas nacionaes.
Para o fim de evitar que individuos estranhos á associação aproveitassem
fraudulentamente os enormes beneficios de que ella tinha o privilegio, e
bem assim para que, em qualquer região do mundo, cada irmão pudesse
communicar com os seus consocios, fazendo conhecer a sua iniciação e o
seu grau na confraria, estabeleceram-se as senhas secretas, os _signaes
maçonicos_, por meio dos
quaes os consocios se reconheciam em qualquer parte, e revestiu-se o
acto de iniciação e matricula de formalidades solemnes, de provas
especiaes, de juramentos terriveis, por via dos quaes cada novo confrade
se obrigava não sómente a não revelar a quem quer que fosse os signaes,
com que mutuamente se entendiam os pedreiros, mas a esconder dos
estranhos todos os processos technicos e todas as regras do officio, de
que a associação tinha a posse. Esta collaboração phenomenal dos
melhores obreiros, de todos os grandes artistas e de todos os sabios do
mundo, associados da maneira mais engenhosamente completa e perfeita
para exercer a arte de edificar, elevou a architectura religiosa n'este
periodo á mais alta perfeição scientifica e technica, a que jámais
chegou a obra da intelligencia e da mão do homem.
Quando a longa e laboriosa gestação de todos os demais ramos do saber
humano se discriminava apenas em rudimentos embrionarios, de uma
confusão tenebrosa, a architectura constituia o mais perfeito corpo de
leis estheticas e de leis scientificas. Crearam-se as mais elevadas e as
mais caracteristicas fórmas de stylo, resolveram-se os mais complicados
e os mais difficeis problemas de calculo, de geometria e de mechanica,
acharam-se, emfim, innumeraveis processos chimicos e methodos technicos,
que se perderam e nunca mais se substituiram, porque com a grande
confraria dos maçons morreu a tradição de que elles tinham a guarda e o
segredo.
No tempo de Eduardo III a maçonaria, que só um seculo depois acabou na
Inglaterra sob o reinado de Henrique VI, mantinha-se em pleno vigor.
Ora, dado que só muito lentamente e por via de provas espaçadas e
progressivas podia o obreiro no gremio da confraria subir á qualificação
de mestre, e só como simples obreiro podia ser admittido e iniciado,
dado por outro lado que era tal o segredo sobre os methodos de edificar
que toda a planta, todo o risco, todo o calculo, todo o estudo graphico,
era invariavelmente e escrupulosamente destruido immediatamente depois
de utilisado em qualquer obra, parece-me não haver um excessivo arrojo
em conjecturar que Affonso Domingues n'uma viagem a Inglaterra, no tempo
de Eduardo III, nada aprenderia de architectura, ficando estranho á
maçonaria, e, tendo-se iniciado n'ella antes de vir construir a Batalha,
seria então da maçonaria e não d'elle o monumento de que se trata.
Revertendo ao escrupuloso e esclarecido estudo de Mousinho, notemos que
elle não encontrou nem quem o continuasse nem sequer quem se lhe
submettesse entre os restauradores que se lhe seguiram. As capellas
imperfeitas, incomparavel joia da architectura portugueza mais
caracteristicamente regional, acham-se no mesmo abandono em que ficaram
em 1843, depois que elle as desinfestou dos parasitas arbustivos e das
herbaceas, cujas radiculas se tinham por tal modo multiplicado nos
intersticios das cantarias que em muitos pontos houve que desmontar as
lageas para extirpar as hervas e refazer os massames substituidos pelo
intimo estojo vegetal, que inchando por todas as juntas da pedra,
ameaçava desarticular e destruir tudo por uma derrocada geral.
Sem exposição de plano referido ás obras que recentemente se tem feito,
e cuja doutrina nos daria uma base de estudo e de discussão, quem, como
eu, não tem voto na materia para a resolver por sentença, precisaria de
entrar em uma longa serie de pacientes raciocinios e de humildes
demonstrações para pôr em evidencia todos os erros que em taes obras se
teem comettido. Para não tornar pelo emprego d'esse processo,
excessivamente longo este modesto estudo, tomarei um ponto capital,
sufficientemente expressivo para dar a medida do criterio empregado na
restauração da Batalha.
Pela entrada principal da egreja, á semelhança do que succede em grande
parte das egrejas gothicas, desciam-se na Batalha alguns degraus,--sete
se me não engano--para chegar ao pavimento da nave central. Um dos
restauradores que se succederam a Mousinho de Albuquerque, tendo-se por
assistido de razões plausiveis para modificar o alludido systema,
rebaixou o terreno exterior ao nivel do pavimento da egreja, e supprimiu
os degraus, serrando as hombreiras e substituindo as cantarias que lhe
serviam de base. A porta principal do monumento da Batalha ficou por
esse modo tendo de altura a dimensão de duas larguras em vez de largura
e meia approximadamente, segundo a dimensão primitiva. O architecto
havia previamente submettido o seu projecto ao exame das estações
superiores, e o respectivo ministro sanccionara a obra com a sua alta
approvação.
Será difficil encontrar em um tão breve episodio de construcção uma tão
vasta affirmativa de desoladora ignorancia.
Poderá parecer excessiva e condemnavel ousadia que um simples curioso se
arrogue o direito de qualificar de ignorante um architecto em exercicio
da sua profissão. O erro é todavia no caso sujeito tão flagrante que não
supporta defesa. Um barbarismo architectonico está tanto ao alcance de
um escriptor como um barbarismo grammatical está ao alcance de um
architecto.
Toda a gente sabe que ha em architectura uma inilludivel medida de
proporção e de relacionação que se chama a _escala_. Sem escala não ha
obra de architectura nem ha construcção alguma sensata, por mais
subalterna, por mais infima que ella seja. Na architectura grega a
unidade abstracta d'essa medida é o modulo. Na architectura da edade
média a unidade é o homem. N'este simples principio, tão magistralmente
exposto por Violet-le-Duc, se baseia o caracter essencial da
architectura medieval. D'essa referencia de toda a construcção á
pequenez da estatura humana resulta o singular effeito de grandiosidade
que distingue os monumentos gothicos dos monumentos neo-classicos, Nossa
Senhora de Pariz de S. Pedro de Roma, ou a egreja da Batalha da egreja
de Mafra. Para esse effeito contribue o aspecto das successivas fileiras
da cantaria á altura das paredes e das pilastras, porque a escala
gothica, determinada pela altura do homem, se subordina correlativamente
ás dimensões do material. Assim pela serie das juntas, sempre em
evidencia na sobreposição das cantarias, a vista calcula rapidamente,
por instincto arithmetico, a grandeza de uma fabrica como a da Batalha,
estabelecendo a proporção entre as dimensões da pedra e a estatura do
homem, e entre a altura do homem e a elevação da nave.
Do que fica exposto resulta que a simples substituição de uma pedra por
uma pedra de dimensão differente na base de uma hombreira no portal da
Batalha é, em si mesma e isoladamente, como troca de pedra por pedra, um
grave erro, porque essa base de hombreira, devendo ter tido inicialmente
a dimensão exacta e precisa, que á esquadria da cantaria impõe a
dimensão do bloco, é um elemento fundamental da escala pela qual se rege
todo o edificio; e não pode como tal nem supprimir-se nem alterar-se.
Mas temos de considerar ainda que com essa mudança de pedra se offendeu
o preceito da unidade, alterando a fórma e a dimensão de um dos mais
importantes membros da construcção. O conjuncto de um monumento--diz
Quatremère de Quincy--é de tal modo combinado, que n'elle se não pode
nem tirar nem pôr nem alterar o que quer que seja. E Violet-le-Dué
desenvolve esse preceito da maneira seguinte: «É um erro grosseiro
suppôr que um qualquer membro de architectura da edade média pode ser
impunemente accrescentado ou diminuido. N'esta architectura não ha
membro algum, que não esteja na escala do monumento para que foi
composto. Alterar esta escala é tornar esse membro disforme... Os erros
de escala que escandalisam em um monumento novo e lhe tiram todo o
valor, tornam-se monstruosos quando se trata de uma restauração.» As
dimensões das portas--já dizia Vinhola--devem ser de uma proporção
relativa á escala pela qual se construir o edificio, á grandeza das suas
differentes peças e finalmente ás particularidades da obra e do local em
que esta fôr feita. Com relação ás portas nas ordens jonica, dorica,
corinthia e toscana as proporções entre a altura e a largura dos
portaes, acham-se geometricamente determinadas pelos discipulos de
Vitruvio. Na architectura gothica a porta representa porém um papel mais
preponderante que em qualquer outro systema de construcção. «De hora
avante--proclama Violet-le-Duc referindo-se ao periodo medieval--a porta
deixará de augmentar em proporção com o edificio, porque, sendo feita
para o homem, conservará sempre a escala propria do seu destino.»
A medida de extensão na edade média era a toeza, correspondente á
estatura do homem alto. A porta da egreja destinada a dar passagem ao
portador de uma lança de guerra ou de torneio, de um baculo, de uma cruz
ou de um pendão, tinha a altura fixa e invariavel de duas toezas a duas
toezas e meia, segundo as regiões em que se construia. O portal gothico
tem ainda, como titulo ao nosso respeito pela sua inviolabilidade, a
condição de representar na fachada do templo como que um summario de
toda a obra. É do principio da arcada, de que a porta é o motivo
predominante, que se deduzem e desenvolvem systematicamente todas as
demais fórmas constructivas e ornamentaes na architectura do edificio.
Archivoltas, nervuras, pilastras, columnelos, janellas, nichos, misulas,
baldaquinos, trifolios, que são na egreja da Batalha senão applicações e
desdobramentos successivos, engenhosamente variados, das linhas
constitutivas da porta principal do templo?
Quão tragicamente profunda tem que ser a indisciplina official em todos
os serviços da arte para que possa dar-se um attentado da ordem
d'aquelle a que me refiro:--para que um architecto proponha, para que
uma repartição publica auctorise, para que um ministro da corôa
sanccione--sem protesto do districto, do municipio ou da parochia--que
se desfigure o primeiro dos nossos monumentos da edade média, alterando
as fórmas de uma porta, que é a porta principal d'essa gloriosa egreja
de Santa Maria de Victoria, que os architectos do mestre de Aviz alçaram
pela bitola dos estandartes, dos balsões e das bandeiras de Aljubarrota,
e segundo a altura a que chegava nas hombreiras o bico do bacinete ou a
cimeira do morrião dos da ala da madresilva ou da ala dos namorados!
Se fosse meu proposito enumerar os erros commettidos nas restaurações da
Batalha teria de referir-me ás vís deturpações por que está passando a
capella do fundador; ao detestavel altar mór, em cuja pedra tão
miseramente se acha reproduzido por uma especie de grafito o desenho de
um mosaico, e a odiosa coloração das vidraças, em que o doce tom de
ambar, que os vidristas da edade média obtinham por uma emulsão de mel
na preparação da tinta, se vê substituido pelo de um reles amarello cru,
de refalsado topasio. O inacreditavel tabernaculo com que houve o arrojo
de empachar o ambito de uma das naves, sob pretexto de construir uma
capella baptismal, teria ainda que deter por algum tempo o meu
horrorisado espanto perante esse tão insolente e tão irrespeitoso abuso
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