O culto da arte em Portugal - 7

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Uma vez decretada essa lei fundamental, e assignalada a responsabilidade
em que incorrem os que a transgridam, deveriam formar-se as commissões
regionaes, dependentes da commissão central, e incumbidas, em suas
localidades, da guarda e da conservação dos monumentos e dos objectos
d'arte. Estas commissões, á semelhança do que foi disposto na lei
italiana de 1878, da qual se inspirou em França, para a organisação de
eguaes serviços, a Direcção das Bellas Artes, seriam compostas de oito
vogaes, sendo quatro da nomeação dos municipios e quatro da nomeação do
governo, com um architecto inspector adjuncto, sob a presidencia do
governador civil ou do administrador do concelho.
Em toda a parte, ainda nos mais abandonados recantos da provincia, ha
sempre, onde existe um monumento, um homem pelo menos que o ama, que o
estuda, que o comprehende. É a collaboração preciosa d'esses pobres
poetas obscuros, d'esses modestos archeologos, ignorados da critica e do
publico, que aos organisadores das commissões locaes compete acolher e
utilisar.
O processo de inventariação de cada peça artistica constaria de duas
partes.
A primeira seria a reproducção photographica, ou em gesso, ou pela
galvanoplastica, do objecto inventariado, com registro do respectivo
cliché ou molde.
A segunda, a confecção de um simples verbete, impresso, correspondendo á
photographia por meio de um numero de ordem, e satisfazendo os seguintes
quesitos: 1.º Descripção summaria do objecto; 2.º Logar onde elle se
encontra; 3.º Nome do individuo ou da corporação em cuja posse se acha;
4.º Antecedentes; 5.º Attribuição; 6.º Avaliação; 7.º Escala em que
houver sido feita a reproducção.
Este systema, semelhante ao dos museus de Londres, de Berlim e de
Vienna, é o mais simples, o mais economico, o mais pratico, o mais
expedito. Com applicação ao inventario da arte hispanhola elle foi
proposto, pelo delegado de Portugal, ao grande jury da ultima exposição
historico-europeia em Madrid. Uma real ordem o mandou pôr em execução,
tendo-o sanccionado a approvação unanime de uma commissão presidida pelo
sr. Canovas del Castillo e composta de criticos de uma competencia
indiscutivel e de uma notoriedade europeia.
Com a collecção completa das photographias e dos verbetes a que alludo,
o estado, em Portugal, sem ter da riqueza artistica da nação um
inventario tão desenvolvido e tão perfeito como o que outros paizes
possuem, teria no emtanto um arrolamento explicito, e achar-se-hia
habilitado a ministrar-nos o mais efficaz meio de estudo.
Da collecção integral, subdividida em tantas series diversas quantos os
differentes criterios de classificação que se lhe applicassem, se
extrairiam collecções especiaes, em edições mais ou menos modestas,
relativas a cada ramo do ensino, geral ou especial, e destinadas ás
escolas de bellas artes, ás escolas industriaes, aos museus das escolas
primarias e secundarias, ás officinas, aos operarios, facultando assim,
ou gratuitamente ou por infimo preço, a todas as classes sociaes um
pronto meio de conhecimento da historia geral da arte, da historia da
arte em cada uma das suas mais especiaes applicações, da evolução das
fórmas e do desenvolvimento dos stylos, na architectura, na pintura, na
esculptura, na marcenaria, na serralheria, na ourivesaria, na ceramica,
em todos os ramos emfim do trabalho artistico e industrial.
Eliminando os numeros que relacionam os verbetes com as photographias,
os alumnos das escolas d'arte, procurando para cada photographia o
verbete correlativo, e satisfazendo por esse processo aos mais variados
quesitos de classificação, habituar-se-hiam, por meio dos exercicios
mais simplesmente pedagogicos, a discernir as épocas e os stylos,
retendo todas as diversidades da fórma pela memoria da vista.
Além do que, com o material reunido para o inventario dos monumentos
architectonicos e das riquezas artisticas da nação, o estado fundaria
simultaneamente o mais interessante museu de reproducções.
A Commissão dos Monumentos Nacionaes não é inteiramente, pelos seus
meios de acção e pelos seus fins, a commissão a que se refere a consulta
de 1890. Parece-me indispensavel, antes de tudo, que esta commissão se
reconstitua em bases mais amplas, e que d'ella se desdobre a commissão
do inventario geral da d'arte, ao qual é urgentissimo que se proceda.
Na parte em que a commissão tem de responder pela conservação dos
monumentos nacionaes, é preciso, a meu ver, que ella se complete, tanto
no programma dos seus trabalhos como no pessoal que tem de pôr em
execução esse programma, não de um modo como até hoje officioso e
facultativo, mas rigorosamente obrigatorio, sendo-lhe indispensavel para
esse effeito a aggregação e a collaboração effectiva de dois
architectos, a presidencia do sr. ministro, e a publicação periodica de
um boletim em que regularmente se communiquem ao publico os resultados
do trabalho feito.
Conseguidas as condições de consistencia technica, de auctoridade e de
expediente, que no estado presente lhe fallecem e a innutilisam, cabe á
commissão arrolar definitivamente, pela photographia e pela escripta, os
monumentos confiados á sua guarda bem como as obras d'arte que o paiz
possue; nomear as commissões locaes; definir claramente o que é
_conservar_, o que é _restaurar_, e o que é _continuar_ ou _concluir_ um
monumento; redigir desenvolvidamente e em suas mais particulares
minudencias (porque n'este ponto tudo está por definir e por
estabelecer) os programmas especiaes a que tem de satisfazer
rigorosamente todo o projecto de conservação, de restauro ou de
acabamento na obra de cada edificio.
Os cuidados de _conservação_ devem ser obrigatorios e extensivos a todos
os monumentos. Para esse effeito o programma é simples, e a despesa
insignificante, ainda perante os mais modestos recursos. As occasiões em
que cabe _restaurar_ são relativamente raras. E nenhum edificio,
qualquer que seja a sua importancia historica ou artistica, convem
_concluir_, a não ser nos casos em que vantajosamente elle se possa
adaptar a algum dos serviços vigentes da civilisação contemporanea. Este
mesmo criterio economico se deveria applicar á opportunidade das
_restaurações_. Da inobservancia d'estes preceitos fundamentaes resultou
o contrasenso de restaurar o edificio dos Jeronymos sem previamente se
accordar no destino que tem de ter esse edificio, como se podesse ser
indifferente, no modo de reconstruir uma casa, que ella tenha de ser uma
escola, um museu, um archivo, um recolhimento, um quartel, um banco ou
uma habitação particular![1]

Ao governo de sua magestade, para esse fim solicitado pelos homens que
com tão patriotico desinteresse constituem a Commissão dos Monumentos
Nacionaes, compete prefazel-a e fortifical-a com a regulamentação e
auctoridade de que ella carece, ou dissolvel-a.

Se o Estado não intervem cumpre aos governados levar a effeito, por um
decisivo esforço de iniciativa, a obra a que se recusem os que governam.
Está-nos dado o exemplo na actividade e na abnegação de alguns cidadãos
benemeritos.
O sr. bispo-conde de Coimbra funda na sua diocese o mais completo e mais
interessante museu de ourivesaria sagrada que existe em Portugal, e
emprehende e realisa, sob a intelligente collaboração do sr. Antonio
Augusto Gonçalves, a restauração da Sé Velha e a de Santa Cruz, com uma
segurança de criterio, de que não ha exemplo em obra alguma do mesmo
genero modernamente consumada pelas officinas officiaes.
O sr. bispo de Beja applica um egual fervor ás obras do convento da
Conceição; e na mesma cidade de Beja por iniciativa da municipalidade,
por concurso patriotico de alguns cidadãos, funda-se o mais copioso e o
mais bem catalogado dos nossos museus archeologicos.
Em Evora o sr. Francisco Barahona custeia por si só a dispendiosa
reparação do sumptuoso templo de S. Francisco, sem a qual teria já
desabado ou desabaria em breve a mais bella egreja portugueza do tempo
D. João II.
Na ultima visita que fiz, em setembro passado, á Sé de Braga, ahi me foi
affirmado que o respectivo prelado estava elaborando o projecto da
reconstituição artistica d'aquelle importante monumento.
Em Cette e em Paço de Sousa, camaras, juntas de parochia, simples
influencias individuaes invidam os mais louvaveis e mais instantes
esforços para a conservação dos monumentos gloriosos a que n'esses
logares se alliam os nomes de Egas Moniz, de Gonçalo Veques e de Estevam
da Gama.
A obra tão desvelada da extincta Sociedade de Instrucção do Porto e a da
Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, são verdadeiros monumentos de
erudição, de estudo, de trabalho pratico, de piedade patriotica.
Para a constituição integral da historia da arte e da tradição artistica
portugueza, quantas contribuições dedicadas, quantos esforços
individuaes, desassociados e dispersos, na obra, tão incomprehendida e
tão despremiada, dos srs. Joaquim de Vasconcellos, Martins Sarmento,
Antonio Augusto Gonçalves, Gabriel Pereira, Sousa Viterbo, Luciano
Cordeiro, Ferreira Caldas, Ribeiro Guimarães, Alberto Sampaio, Julio de
Castilho, Theophilo Braga, Leite de Vasconcellos, Pinho Leal, Albano
Bellino, Teixeira de Aragão, Vilhena Barbosa, Conceição Gomes, Filippe
Simões, Manoel de Macedo, José Pessanha, Fonseca Benevides, Valentim,
Vieira Natividade, Figueiredo da Guerra, visconde de Condeixa, Borges de
Figueiredo, Marques Gomes, Rodrigo Vicente de Almeida, Zephyrino
Brandão, Possydonio da Silva, Freitas Costa, Avelino Guimarães, Freire
d'Oliveira; e quantos outros, tanto mais sympathicos quanto mais
obscuros!
O unico inutil da phalange sou talvez eu, que em vez de uma accurada
monographia, estou aqui fazendo um indice de assumptos, que só
devidamente trataria se de cada uma d'estas paginas tirasse um livro.
Possam ellas ao menos communicar a outros corações a sympathia, que
filialmente prende o meu á terra em que nasci, e á raça de que procedo!
É pelo culto da arte, invocado n'estas paginas, que a religião da
nacionalidade se exteriorisa e se exerce.
Desde que nas consciencias se extinguiu a fé, é por meio da arte que as
tradicções se transmittem, que os sentimentos se coordenam, que os
affectos se depuram, que as paixões se enobrecem. É pela arte, que a
exprime, que a poesia do christianismo sobreviverá aos seus dogmas no
enternecimento, no amor, na saudade dos homens. É tambem pela arte que
em nossa memoria a poesia da historia sobreleva das instituições, dos
systemas, das theorias e dos homens, sobre que ella versa.
A politica, depois da desastrosa fallencia de todas as modernas theorias
liberaes, cessou por toda a parte de ser um foco de attracção para as
idéas ou para os sentimentos humanos. As leis continuam a fazer-se com o
destino unico de serem consecutivamente e invariavelmente decretadas,
infringidas e revogadas, para se substituirem por leis novas, que por
seu turno se decretam, se infringem e se revogam, como succedeu ás
anteriores, como succederá ás que se seguirem.
No momento presente são unicamente os poetas, os philosofos e os
artistas que governam espiritualmente o mundo. D'ahi, nos paizes de
cultura mental, dominando todos os phenomenos da decadencia moderna, uma
effusão de sympathia, de tolerancia, de benevolencia, de perdão, que
caracterisa bem o nosso tempo, e de que não ha na historia outro
exemplo.
Quando recebemos da Inglaterra a ultima affronta de chancellaria, a que
deu motivo o tratado de Lourenço Marques, quem na minha susceptibilidade
portugueza mais suavisou esse golpe foi o critico d'arte John Ruskin,
proclamando solemnemente e categoricamente aos estudantes de Glascow que
os estadistas inglezes (tratava-se então do sr. Disraëli e do sr.
Gladstone) lhe não mereciam nem mais respeito nem mais consideração que
duas velhas gaitas de folle.
Ruskin separava assim e distinguia radicalmente a Inglaterra do _Foreign
Office_ e de lord Salisbury, da Inglaterra de _South Kensington_, de
_British Museum_, da _National Gallery_, de _Ruskin Museum_, de Darwin,
de Spencer, de Carlos Dickens, de Turner, de Burne Jones, para a qual
tenderá sempre e irrevogavelmente a terna gratidão do nosso espirito.
É unicamente pela arte, inherente á natureza humana, progressiva e
eterna, que hoje em dia os homens se associam no destino e na
solidariedade da especie.
É pela arte que o genio de cada raça se patenteia, que a autonomia
nacional de cada povo se revela na sua autonomia mental, e se affirma,
não só pela sua especial comprehensão da natureza, da vida e do
universo, mas pelo trabalho collectivo da communidade, na litteratura,
na architectura, na musica, na pintura, na industria e no commercio.
É pelo culto da arte, e pela educação artistica que esse culto
comprehende, que a producção industrial se especialisa, se valorisa pela
originalidade caracteristica do producto, e transforma pela
prosperidade, unicamente determinada pelo ensino, toda a economia de uma
nação, como se evidenciou nos ultimos tempos em Inglaterra, na Austria,
na Allemanha, por via da simples reconstituição dos museus e da
multiplicação das escolas.
Finalmente,--se para cada povo a arte é a segurança da tradição, o
refugio das consciencias, o mais puro reflexo da imagem benigna da
patria, a fonte mais caudal de todos os progressos moraes, economicos e
até politicos,--para cada homem, na tortura de tantas incertesas moraes
na magoa e na ruina de tantas crenças extinctas, de tantos ideaes
desfeitos no melancholico decurso da nossa edade, a arte é ainda--como
diz Schopenhauer--_a unica flôr da vida_.
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