O culto da arte em Portugal - 5

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manuscripto na mão do redactor.
Por essa mesma occasião os peritissimos e benemeritos photographos
portuenses Emilio Biel & Companhia, aos quaes tão valiosos e
desinteressados serviços devem as artes portuguezas, dirigiram ao
governo uma proposta para reproduzir pela photographia,--sem subsidio
algum do thesouro--todos os objectos expostos no palacio das Janellas
Verdes. Esta proposta ficou egualmente sem despacho.
Inutil me parece alludir ainda á dispersão das mais ricas peças do
mobiliario portuguez do seculo XVI e d'essa segunda renascença artistica
e industrial do nosso seculo XVIII.
Bufetes, arcas, armarios, contadores, tapeçarias da Persia, bordados e
rendas do reino, couros lavrados e guadamecins, azulejos, porcellanas
antigas da India, do Japão e da China, credencias, leitos torcidos ou
empennachados, canapés e cadeiras curvilineas ao gosto da Pompadour de
Odivellas, espelhos afestoados, de toucador e de sacristia, damascos da
Real Fabrica das sedas, louças artisticas do Rato, da Bica do Sapato, do
Porto, de Vianna, do Cavaquinho, da Panasqueira, de Darque, das Caldas,
de Estremoz, de Coimbra, tudo o bric-à-brac extrangreiro nos leva em
cada anno, com uma cubiça e uma rapacidade que bem melancholicamente
lembra a dos enviados de Verres no saque da Sicilia, do qual dizia
Cicero que só ficou da arte o que a ganancia não quiz. Ainda ha Verres,
como no tempo do velho mestre romano, mas já não ha verrinas.
D'esta desorganisação geral de toda a policia da arte resulta mais ou
menos lentamente, a quebra da tradição esthetica nacional, que é a seiva
de toda a producção artistica.
Á infecundação do individuo pelo espirito da raça corresponde o
desfallecimento do poder creativo, a inercia da intelligencia, a
esterilidade do estudo, a degeneração da phantasia, o abandalhamento do
gosto, a atrophia do proprio caracter, e, em ultimo resultado da
decadencia geral, a desnacionalisação pelintra de todo um povo.
Com o rebaixamento da arte rebaixa-se tudo, porque no mundo é producto
da arte tudo o que não é unicamente obra da natureza.
O homem degenera, porque, sempre e em toda a parte, o homem toma
fatalmente a configuração das coisas que o rodeiam e, para assim dizer,
lhe enformam a personalidade.
Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de
abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver egreja
que os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na arte de
Portugal faltam corações portuguezes.
Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da vida
intellectual.
Em resultado de não termos uma historia geral da arte portugueza,
devidamente systematisada e integralmente documentada em cada um dos
seus capitulos, vemos grassar, não só entre o vulgo mas entre pessoas de
saber, incumbidas de guiar e de reger a opinião, o erro criminoso,
profundamente desmoralisante, de que somos um povo inesthetico, incapaz
de concepções artisticas originaes.
A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de applicação e
de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas nevoentos,
anti-meridional, e vem falando uma lingua secreta, cabalistica,
interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o povo e para todos
os que não estiverem iniciados na morphologia espiritica das novas
seitas.
Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de
critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada
tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue vermelho da
raça, nem se retrata do vivo o genio do nosso povo, meigo, docil, de
apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente sociavel, amando a
grande alegria estridente das feiras, das tardes de touros, das romarias
dos seus santos populares, conservando nas infimas camadas sociaes um
residuo trovadoresco, de paladino e de menestrel, susceptivel ainda das
paixões mais profundas, todo de improvisação e de repentismo, capaz das
coisas mais imprevistamente grandes, poetico, aventuroso e destemido.
Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola
portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos
artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, sem
lição commum, não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o povo de
que derivam, communhão alguma de ideal ou de sentimento.
Por egual razão não teem caracter nacional, sendo portanto destituidas
de originalidade, e como taes inaptas para a luta da concorrencia
mercantil, todas as nossas industrias.
A decapitação official da nossa educação artistica manifesta-se ainda de
mais perto, acotovelando-nos e contundindo-nos por toda a parte, no
aspecto do povo, na apparencia das casas, na esthetica das cidades, na
apparencia dos predios, na decoração das praças, das avenidas, dos
cemiterios, dos jardins publicos, das lojas, das repartições do estado e
das habitações particulares.
Em Lisboa, por exemplo, onde não ha uma sala de concertos populares, nem
vem tocar para a rua a musica dos regimentos, onde no theatro de Dona
Maria se não representa Gil Vicente nem Garrett, onde no theatro de S.
Carlos se não canta Marcos Portugal, onde não ha um museu de arte
decorativa, nem um simples mostruario da nossa producção industrial, nem
um museu de pintura, coordenado, catalogado e etiquetado de maneira que
communique ao publico, assim como em todas as outras capitaes da Europa,
a lição que um museu contém, ha pelo contrario escaparates de
apparatosos armazens, que são para quem anda pelas ruas o contagioso
exemplo da mais corrompida perversão, do mais provocante e pomposo
relismo a que pode chegar o desvairamento do gosto. Mobilias em tal
maneira degeneradas que n'ellas desappareceu de todo o material de
construcção. A almofada que em toda a antiguidade e em toda a edade
média era um accessorio movel, e só no seculo XVI se principiou a fixar
com pregos ao banco ou á cadeira, invade boçalmente todo o movel, armado
em ripes de pinho, como uma eça de defunto, embrulhado em pelucia, que
nos esburaca os olhos pela insolente má creação da côr. E horripilantes
lindices de toucador, de escriptorio ou de sala, em que tudo parece
apostado em ser fingido, desde a etrusca ondulação do contorno até o
material empregado, porque todas as linhas são aleijadas, a prata é
zinco, o marfim é gesso, o charão é de papel e o marmore esculpido é de
sabão. E tudo isso se compra e se leva para casa, para infectar a
familia, para corromper o lar e para escrofulisar moralmente os meninos,
desconjuntando-os de dignidade domestica, inoculando-os de pelintrice e
de canalhismo de casta para a vida toda.
Ha uma avenida monumental em que, ao longo dos passeios destinados ao
transito do publico, em vez da ornamentação da flora regional, em vez
dos longos massiços de castanheiros, de laranjeiras, de palmeiras e de
bananeiras, como em Barcelona e em Sevilha, esverdinham e apodrecem dois
miseros e infectos arroios artificiaes no fundo de flexuosas ravinas,
gretando sinuosamente o solo, como canos dissimuladamente abertos em
fosquinhas para trambulhões do viandante.
Nos predios a prodigalidade vesanica das janellas percorre a superficie
das fachadas, havendo frontarias que parecem construidas unicamente com
hombreiras contiguas e sobrepostas; e, ao passo que em cidades amoraveis
e artisticas se criam premios e se abrem concursos de janellas floridas,
em Lisboa é prohibido ornamentar de flores o frontespicio das casas.
Os lindos _empedrados_ e _embrechados_ de tradição portugueza caem em
desuso, substituidos por cimentos incompativeis com a acção do nosso
clima.
O tão commodo, tão modico e tão gracioso typo da nossa antiga casa de
campo é substituido nas construcções modernas pelas fórmas de um
exotismo composito, as mais delambidas, mais pretenciosas e mais
chinfrins, hybrida confusão allucinada do châlet suisso, do cottage
inglez, da fortaleza normanda, do minarete tartaro e da mesquita
moira,--nodoa e vexame da paizagem portugueza nas redondezas de Lisboa.
Em presença de um tão inverosimil scenario de magica, de operetta ou de
revista do anno, ninguem, desajudado de outras indicações, anedocticas e
chorographicas, será capaz de adivinhar em que parte do mundo e entre
que casta de gente se está passando a peça. Tal é a delirante epidemia
de que estão combalidos os constructores contemporaneos, que, para ter
um indicio nacional da nossa tradição, entre as casas de campo ou de
praia construidas em torno de Lisboa nos ultimos vinte annos, temos de
ir a Cascaes vêr o typo, unico, da habitação dos condes de Arnozo, tão
saudosamente semelhante á casa de nossos avós, com o seu pequeno eirado
sobre uma arcaria de meio ponto, a sua porta de alpendre n'um patamar de
escada exterior, ao lado do retabulo em azulejo do santo padroeiro da
familia, as janellas de peitos guarnecidas de rotulas entre cachorros de
pedra, destinados ás varas do estendal, e servindo de misula aos vasos
de craveiros e de mangericos, em frente do poço de roldana, no mais doce
e tranquillo sorriso d'outr'ora.
Nos mesmos letreiros das esquinas de ruas encontram-se denominações que
esbofeteiam o pundonor patriotico, a cultura historica e a dignidade
esthetica dos habitantes.
No Bairro Alto, onde a nomenclatura das ruas tão sympathicamente
suggeria a lembrança bucolica da antiga fazenda suburbana, em que os
jesuitas de S. Roque delinearam a nova cidade, como a rua da _Vinha_, a
do _Moinho de Vento_, a do _Poço_, a do _Carvalho_, a da _Rosa_, a da
_Atalaia_, ou os nomes dos officios que ahi primitivamente se arruaram,
como os _Calafates_ e as _Gaveas_, apaga-se, como n'uma rasura de conta
falsificada, esse lindo e piedoso vestigio da tradição lisboeta, para
dar ás ruas nomes novos e incaracteristicos, de sujeitos que n'ellas
moram ou se diz que por lá passaram. E com egual afouteza se dissolvem,
n'um borrão de brocha, sagrados disticos, ainda mais estreitamente
vinculados á historia do povo e á historia da cidade, como o da Rainha
Santa Isabel, como o dos Martyres de Marrocos.
Os trages populares, alguns tão pittorescos, tão suggestivos e tão
bellos, como os das mulheres da Murtosa, da Maia, de Santa Martha e de
Portuzello, como o dos boieiros do Ribatejo, dos pescadores de Ilhavo e
da Povoa, e dos montanhezes do Alemtejo e do Algarve, degeneram e
abastardam-se ridiculamente, porque não ha entre a gente culta quem
preze esse trage, quem o honre e quem o entenda.
Egualmente se desdenham e repudiam, por espirito de inconcebivel
extrangeirismo, os productos primorosos de algumas das nossas industrias
populares.
Nenhum outro povo matiza com mais harmonia de côr e mais graça de risco
esses tecidos dos teares ou dos bastidores caseiros, combinados com
estopa, com linho, com lã ou com algodão, de que se fazem os panos
liteiros, as sirguilhas, as saias e os aventaes das mulheres de Vianna,
e bem assim as colxas de linho bordadas a frouxo na Beira, e os tapetes
chamados de Arrayolos. Nenhum outro povo sabe tornear na roda do oleiro
com mais esbelteza e mais puro atticismo o pote ou a bilha de barro, a
pucara, o gomil e o pichel, de Coimbra, do Prado, de Mafra, de Redondo,
de Loulé.
Se ninguem mais artisticamente do que o portuguez sabe vestir a mulher,
arrear o cavallo, engatar a mula, e moldar a vasilha, ninguem, tão
pouco, melhor do que elle emalha a rede e enastra o cesto.
Dizem inglezes que metade da sua arte contemporanea se deve á iniciativa
e á propaganda do grande critico nacional John Ruskin, que Tolstoï
considera um dos maiores homens do seculo, e a quem Carlyle chamava o
_ethereal Ruskin_. Este glorioso campeão da esthetica e da arte em todas
as suas mais complexas e mais variadas manifestações não pode deixar de
ser lembrado por todos os que se interessam em taes assumptos. Os seus
numerosos livros sobre historia da arte, sobre a architectura, sobre a
pintura, sobre as artes decorativas e as artes industriaes, os seus
profundos estudos de _Turner e os antigos_ e dos _Pintores modernos_, a
sua triumphante campanha em favor dos monumentos historicos, das
industrias ruraes, dos preraphaelitas, das paizagens inglezas, são um
verdadeiro monumento litterario, e a bibliographia que se lhe refere
constitue toda uma litteratura, famosa na Inglaterra sob o nome
consagrado de _ruskineana_. Grande homem de acção, gloria dos da sua
raça, tomando por divisa _To day_, Ruskin não se emparedou, como a
maioria dos criticos, na torre eburnea dos extases poeticos e das
contemplações expeculativas. Tendo consumido rapidamente mil contos de
réis da legitima paterna em subvenções das mais generosas empresas
sociaes, em dadivas aos museus, em soccorro dos pobres, em fundações de
escolas e de officinas, reconstituindo pela venda dos seus livros, (a
trinta contos a edição) um rendimento de riquissimo proprietario, elle
fez-se gratuitamente professor de desenho, industrial e operario.
Organisou a casa editora das suas proprias obras, a _Ruskin House_,
fundou a _Saint-George's Guild_, em Londres, a Sociedade Protectora dos
Monumentos Architectonicos, e as sociedades de leitura de Manchester, de
Glascow e de Liverpool; ensinou a Inglaterra a comprehender a obra de
Turner; fundou o culto dos primitivos, introduzindo na _National
Gallery_ os preciosos quadros de Benozzo Gozzoli, de Perugino, de
Botticelli, de todos os grandes predecessores de Raphael; e deu á arte
todo um novo ideal e uma religião nova, creando uma pleiade
brilhantissima de proselytos, de collaboradores e de discipulos, entre
os quaes figuram Madox Brown, Rosseti, Collingwood, Millais, Morris,
Thomaz Dean, Woodward, Munro, Hunt, Burne Jones, Hook e Brett, e Giacomo
Boni, o actual conservador dos monumentos nacionaes da Italia. Foi elle
emfim que deu a mais alta expressão á auctoridade esthetica em nossos
tempos, impedindo, em nome da arte, que um traçado de caminho de ferro
deturpasse a belleza de uma collina na paizagem ingleza, e levando uma
commissão da Camara dos Lords a consultar uma commissão de artistas
sobre se a passagem de uma linha ferrea não affectaria ruinosamente a
parte de riqueza publica representada pela tranquilla e doce poesia de
certo valle.
É porém com um intuito especial,--a proposito das nossas tão resistentes
industrias tradicionaes e domesticas,--que eu invoco o nome glorioso de
Ruskin.
O trabalho rural da fiação á mão e da tecelagem no estreito e primitivo
tear caseiro achava-se totalmente extincto na tradição ingleza. Ruskin,
considerando os poderosos elementos de economia, de moralidade, de
satisfação, de educação esthetica e de intima poesia, destruidos pela
suppressão d'essa antiga actividade artistica da familia no campo
inglez, dedicou-se com um esforço portentoso a fazer reviver em Langdale
e em Keswick a extincta industria caseira dos panos de linho e dos panos
de lã em pequenas manufacturas domesticas, tendo por unico auxiliar da
força individual uma vela de moinho nos cabeços das collinas ou a
corrente da agua á beira dos riachos. Elle mesmo dá o exemplo da nova
organisação do trabalho na familia, construindo o seu famoso moinho de
Laxey. Recompõe-se uma antiga roda de fiar com as peças desarticuladas e
esquecidas de um d'esses abandonados apparelhos encontrados em casa de
uma velha tecedeira. É reconstruido um primitivo tear sobre o modelo
florentino e medieval de um quadro de Giotto. Ruskin envolve esse novo
movimento retrogrado do trabalho na propaganda mais activa e mais
eloquente. A sua palavra calorosamente apaixonada, colorida e mordente,
encontra em todo o Reino Unido um ecco extraordinario. As teias do novo
linho caseiro, um tanto rugoso, um tanto irregular, cegado no campo,
espadelado, assedado, fiado, córado e tecido pela mesma mão de mulher, á
porta ou á janella de uma cabana, ao ar dos campos, ao ramalhar das
faias, ao canto das cotovias, denotando nos accidentes da factura, como
n'uma obra d'arte, a caracteristica individualidade do artifice,
substituida á banal perfeição estupida e antipathica do apparelho
mechanico, desbanca rapidamente a obra da fiação a vapor, cae em moda
entre as pessoas de gosto aperfeiçoado, recebe a alta protecção da
princeza de Galles, torna-se de rigor em todos os enxovaes elegantes, e
faz-se pagar mui remuneradoramente por preços consideravelmente
superiores ao dos productos da grande industria mechanica.
Exito egual ao dos panos de linho na industria caseira dos lanificios na
ilha de Man. É conhecida não só em toda a Inglaterra mas em toda a
Europa a fama d'esses resistentes tecidos ruraes fabricados á mão, de
desenhos combinados na urdidura e na trama com as côres naturaes da lã,
sem preparo algum chimico ou mechanico, de tintura ou de acabamento; e a
mais cara de todas as fazendas de luxo para traje de trabalho, de caça,
de viagem, de equitação, é o famoso _homespun_ ou _Laxey homespun_, do
nome da localidade em que se estabeleceu o primeiro moinho de Ruskin. É
a esta evolução das pequenas industrias ruraes, hombreando em valor
remunerativo com as grandes industrias, e não a destructiva absorpção do
trabalho da familia pelo trabalho das grandes empresas fabris que eu
chamo _transformação de industrias caseiras em industrias de
concorrencia_,--formula que geralmente se toma em sentido diverso
d'aquelle que eu lhe ligo.
Em Portugal é certo que definham de dia para dia, e que successivamente
se vão extinguindo as nossas velhas industrias ruraes. Esmorece
calamitosamente, por culpa da administração economica dos nossos
governos, a industria delicadissima das obras de filigrana de ouro e de
prata, ainda em nossos dias servida por numerosas familias ruraes dos
districtos do Porto e de Braga. Morreu em Bragança a industria da
sericultura e a da fabricação do veludo. Acabou em Guimarães, entre
outras industrias interessantissimas, a da manufactura caseira das sedas
e dos brocados. No Algarve talvez que já hoje se não faça um unico
trabalho de pita. Tem diminuido consideravelmente o numero dos teares
caseiros na Covilhã, na serra de Monchique, na serra da Estrella. Nas
margens do Lima, porém, entre Vianna do Castello e Ponte de Lima, ha
ainda algumas das mulheres mais lindas e das mais bem educadas de todas
as portuguezas, que fiam e tecem em suas casas o linho, a lã, o algodão,
e se vestem completamente, da maneira mais elegante, com os tecidos mais
consistentes e mais bellos, de sua fabricação exclusiva em todas as
phases por que passa a materia prima, desde que é cegada no campo ou
tosquiada no carneiro até se converter em vestido. Á feira semanal de
Vianna as raparigas d'essa região trazem em lindas canastras, além dos
ovos e dos frangos que criam, além da manteiga que fabricam, as teias de
pano de linho, os cortes de saias de lã e de algodão, as peças de
sirguilha, que tecem, e as rendas que fabricam a bilros ou á agulha. As
de Villa Nova de Ourem fazem ainda fitas excellentes; e no mercado de
Thomar vende-se em graciosos novellos da fórma de casulos a melhor
linha, branca ou preta, que se pode comprar em Portugal. Conserva-se
ainda a antiga tradição das _mantas do Alemtejo_, citadas já por Gil
Vicente na _Farça dos almocreves_, a dos liteiros e mantas de retalhos,
a dos lindos alforges da Extremadura, do Alemtejo e do Algarve, de
Minde, d'Alte e de Redondo, e a d'esses famosos tecidos de lã, que são o
_homespun_ portuguez, e que em sua variedade se denominam bureis,
estamenhas, briches, saragoças, jardos, sorrubecos.
Meditemos na maravilhosa obra operada por Ruskin n'um sentido esthetico,
que á primeira vista se figura retrogrado, mas que encerra talvez em
germen o destino futuro, preciosamente moralisante de todas as
industrias, desde que os aperfeiçoamentos da electricidade desloquem o
eixo do trabalho fabril, levando a casa de cada artifice por meio de um
tenue fio de arame o quinhão de força que tem para distribuir por cada
operario do seculo que vem o immenso e incalculavel esforço propulsôr do
sopro dos ventos, do fluxo e refluxo das marés, da corrente dos rios,
dos cyclones das Pampas ou das cataractas do Niagara. E em presença da
revolução das industrias caseiras da Inglaterra, onde todo o vestigio de
tradição desapparecera, ponderemos o que se pode fazer em Portugal, onde
a tradição sobrevive com uma energia prodigiosa a todos os desdens e a
todas as oppressões que a esmagam!
É notoria desde o seculo XVI a aptidão artistica, que distingue o nosso
marinheiro em todas as pequenas industrias de bordo, nos mais delicados,
pacientes e engenhosos trabalhos tendo por base o cabo ou o fio de linho
torcido ou entrançado. Ninguem como elle manusêa os ferros e as
amarrações, o poleame e o talhame, o cabo, a adriça ou o pano. Ninguem
como elle confecciona o coxim, a gaxeta, o mixelo, o unhão, a boça, a
linga, o estropo, o repuxo, o massete ou a agulha. E não o ha mais
dextro em lançar a volta, em enastrar a pinha e em dar o nó de escota,
de fateixa ou de botija, o nó direito e o nó torto, o de cogula, o de
borla de pescador, ou o de espia. Em toda a nossa costa, desde o Minho
até o Guadiana, a enorme variedade de fórmas nas embarcações da pesca
maritima, da pesca fluvial e da pesca lacustre, basta para evidenciar a
persistencia da tradição no grande genio maritimo de tão pequeno povo.
Os que ainda vão á pesca do bacalhau, á Terra Nova, equipam de uma
maneira especial a escuna ou o patacho, preferindo porém o typo latino
do hiate e do lugre. Os que vão á cavalla, á pescada e ao sarrajão, no
mar de Larache, embarcam nos cahiques de Olhão, semelhantes aos de toda
a costa algarvia e aos de Lisboa e Setubal, de prôa redonda,
apparelhando com dois bastardos. Á pesca do alto vae a lancha de
Caminha, construida no portinho de Gontinhães; a lancha póveira, de
bocca aberta, apparelhando com um só mastro e a verga munida de uma
grande vela latina; o _barco da pescada_, de Buarcos, de borda alta e
duas pequenas toldas, apparelhando com dois mastros; o catraio da
Nazareth; o _barco da sacada_, de Peninhe, de convez corrido com quatro
escotilhas e dois mastros, com as vergas preparando em cruz; a _rasca da
Ericeira_, a da Figueira da Foz e a da Vieira; as canôas de Belem, de
Cezimbra, de Setubal e do Algarve, chamadas em Lisboa _enviadas_ ou
_canôas da picada_, e no Algarve _andainas_. Na pesca maritima costeira
empregam-se embarcações numerosas e variadissimas. Na arte de galeão
agrupam-se: o _galeão_, coberto, de prôa direita e arrufada,
apparelhando com o latino triangular, que amura ao bico de prôa e caça á
pôpa, em mastro inclinado para vante; o _galeonete_; o _buque_, curvo na
roda de prôa e sem coberta; a canôa do galeão, e o _acostado_, que se
emprega no transporte do peixe. Na armação fixa do atum e da sardinha,
nas _almadrabilhas_, ou _almadravas_, como antigamente lhes chamavamos,
do nome arabe que os hispanhoes conservam, labuta o _calão_, grande
lancha, de bocca aberta, armando com estropo oito ou dez remos por
banda, tendo na prôa arredondada, rematada no alto por duas femeas, uma
saliencia vertical de puas em serra, semelhando um lombo de peixe, e,
pintado de cada lado, um olho arregalado para o horizonte; a _barca da
testa_; a _barca das portas_; a _barca da gacha_, e o _laúde_.
Na costa do Algarve, as almadravas occupam hoje approximadamente os
mesmos logares que tinham no seculo XVI; e o _calão_ é, como alguns
barcos do Douro, de prôa comprida e alta, propria para atracar a margens
escarpadas ou para varar com facilidade na praia, o typo mais analogo ao
das embarcações portuguezas de ha trezentos ou quatrocentos annos.
_Nas artes de arrastar para terra_ figuram as _xavegas_ do Algarve, os
_saveiros_ e as _meias-luas_, de Espinho, Furadouro, S. Jacintho, Costa
Nova, Mira, Tocha, Buarcos, Lagos, e outros logares, desde o sul do
Douro até a Vieira, reapparecendo, mais abaixo, na costa de Caparica e
da Galé, e na praia de Sines. _Nas redes de alar a reboque_ trabalham as
_muletas_ e os _bateis do Seixal_.
O sr. Arthur Baldaque da Silva, no seu precioso livro _Estado actual das
pescas em Portugal_, enumera ainda, entre os diversos typos de
embarcações empregadas em varios systemas de pesca, o _batel de
Espozende_, o _barco de Vianna do Castello_, a _barquinha do rio Lima_,
a _bateira da Figueira da Foz_, a _lancha de Buarcos_, a _lanchinha do
Tejo_, o _ilhavo da Tarrafa_, o _batel de Peniche, o cahique_ e a
_lancha de Peniche_, os _poveiros_ de Lavos, de Buarcos, da Nazareth, de
Cascaes, de Cezimbra, de Setubal; o _catraio_, a mais genuina embarcação
portugueza da nossa costa meridional, a _caçadeira_ e a _focinheira de
porco_ da Ericeira, a _maceira_ da costa do Norte, o _cahique de Sines_,
o _barco minhoto_, construido em Lanhellas e em Forcadella, o _batel do
Cavado_, o _barco do Douro_, o _esgueirão da ria de Aveiro_, a _lancha
de Villa Franca_, a _bateira do Mondego_, a _lanchinha_ e a _chata do
Tejo_, e outros do continente, sem contar os barcos de cabotagem, os
typos da Africa, dos Açores, da ilha da Madeira, não descriptos,
infelizmente. São ainda de notar, entre as jangadas mais
caracteristicas, as de Marinhas, para a pesca do polvo; as de Fão e da
Apulia, para a apanha do sargaço; as de Neiva e as de Sedovem.
Com essa phantastica riqueza de documentos maritimos, assombro de todos
os outros povos, é verdadeiramente inacreditavel que em Portugal não
haja um museu naval, em que estes documentos se confrontem e se estudem.
Não ha tal museu.
Em terra é tão variada a collecção popular das vasilhas, dos fogareiros
e dos cestos caseiros, como é variada na agua a fórma das embarcações. A
simples nomenclatura do vasilhame portuguez dá, só de per si, uma idéa,
ainda que bem incompleta, da multiplicidade das suas fórmas, porque ha
typos que variam de região para região, de dez em dez leguas de
perimetro. Esses typos principaes são a talha, o pote, o cantaro, o
caneco, o tenor, a tarefa, a pucara, o gomil, a escudella, a tijela, a
infusa, a meia, a quarta, a quartinha, a pinta, a sumicha, a
sangradeira, a alquara, a vieira, o almude, a tamboladeira, o alguidar e
o alguidarinho, o alcadafe, o moringue, o boião, o tarro, o cantil, a
almofia, o alcatruz, o porrão, o côcho, o picho, o pichel, a almotolia,
a ancoreta, a taleiga, a galheta, o caldeirão, a caldeira e a
caldeirinha, o tacho, a caçoila, a copa, a bateia, o jarro, a batega, a
pichorra, a botija, a cabaça, a malga, etc. Alguns d'estes nomes jogam
com o antigo systema de medidas abolidas no seculo XVI, quando se
estabeleceu o systema novo, tendo por base o quartilho. A vasilha
correspondente á velha medida, condemnada no reinado de D. Sebastião,
sobreviveu porém na tradição e no costume. A _sumicha_, por exemplo, com
quatro decilitros de capacidade, tão maneira, tão graciosa, tão bem
proporcionada a uma sêde d'agua, é ainda hoje na olaria de Coimbra o
pucaro consagrado, que no pote da região, de uma elegancia tão fina e
tão attica, se encasa no alguidarinho que lhe serve de tampa.
As fórmas populares d'essa vasilharia, umas trazidas do Peru e do
Mexico, como a do moringue e seus derivados, outras, provenientes de
typos gregos e etruscos, da cratera, da amphora, da ambula, do askos, do
bombylio, etc., são por toda a parte, em nossos districtos ceramicos, as
mais bellas, as mais engraçadas ou as mais nobres, as mais
irreprehensivelmente puras, parecendo que á roda mechanica do operario
as foi delineando, contornando, envolvendo sempre, a peça por peça, o
sorriso acariciante de um artista.
De uma humilde panellinha portugueza de barro preto, de Prado ou de
Molellos, deduziram em França o assucareiro, a leiteira, a cafeteira e o
bule de um serviço de almoço, que ficou tradicional na fabricação de
Sèvres.
A industria popular da cestaria acompanha na evolução das fórmas a
industria do oleiro. Todos os que percorreram as feiras e os mercados do
nosso paiz notariam que cada região tem a sua canastra, o seu cabaz e o
seu gigo, differentes na fórma ou no ornato. Ha-os de todas as
configurações, fundos e chatos, quadrados, octogonos, arredondados,
oblongos, cubicos, cylindricos, espheroidaes, lembrando algumas vezes a
fórma e a construcção americana dos samburás, dos tipitis e dos côfos
tupis, feitos de taquara e de cipó, que introduzimos talvez no Brazil
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