O culto da arte em Portugal - 6

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ou, mais provavelmente, lá aprendemos a fabricar, deixando o typo do
balaio, com cujo nome se designa ainda na Bahia o farnel que de
ordinario se transporta no cesto portuguez d'essa configuração,
semelhante á de um alguidar. Mui frequentemente varia tambem o balaio, o
canistel, a cesta, a condeça, o ceirão e a ceira, a alcofa e a
alcofinha. A materia prima do cesto é o vime, o junco, a fasquia de
castanheiro, a fasquia de faia e a canna; a da ceira e da alcofa é o
esparto, a engeita, a palha de trigo e de centeio, a tabúa, a juta e a
pita. Em algumas regiões, como nas Caldas e Vizeu, os cestos são obras
primas incomparaveis de acabamento e de graciosidade. A canastrinha
burriqueira das Caldas, reduzida ao miniaturismo de dois centimetros, é
um simples prodigio de fabricação minudente e delicada. No Algarve a
alcofa, de filiação arabe, é por vezes ornada de apparatosas flores
bordadas a seda ou a lã.
Sem embargo, continuando a affirmar-se que não temos sentimento
artistico, desistimos por indisciplina, por ignorancia, por desanimo, de
transformar em industrias de concorrencia as nossas industrias
domesticas, e não negociamos com o extrangeiro nem tecidos de phantasia,
tão originaes como os que possuimos, nem papeis pintados derivados
d'esses tecidos, nem a louça, nem a cestaria, nem a filigrana,
immobilisada em typos decrepitos, e da qual tão lindos effeitos se
tirariam, applicando-a em ouro a serviços de toucador, a frascos de
cristal, a molduras de retratos, a encadernações de devocionarios, etc,
etc.
Tanto menosprezamos os productos quanto desconhecemos as fontes da nossa
civilisação artistica.
A arte que menos estudamos é a arte hispanhola, á qual todavia
indissoluvelmente nos prendem os mais estreitos vinculos de
temperamento, de tradição e de ideal. Juntamente com os hispanhoes
recebemos dos arabes as primeiras influencias que em toda a producção
artistica da Peninsula imprimiram a feição differencial mais
caracteristica e mais indelevel. Aos califados, que cobriram de
mesquitas Cordova, Sevilha, Granada, Santarem, Lisboa e Coimbra, devemos
o toque de orientalismo peculiar das formas architectonicas do nosso
stylo romanico, ogival e da renascença. E da mesma procedencia, mosarabe
ou mudejar, são algumas das nossas mais interessantes industrias, como a
da filigrana, a dos azulejos, a das sedas, a do papel, a da
encadernação, a dos couros lavrados, (a que chamavamos _cordovões_ por
nos virem de Cordova) a das esteiras, a dos tapetes, a das obras de
esparto, de palma, de pita. Até o fim do seculo XVI artistas
portuguezes, leonezes, castelhanos, valencianos, aragonezes, catalães,
asturianos, tivemos um ideal commum nas letras, na architectura, na
esculptura, na pintura, nas artes sumptuarias e nas artes industriaes,
celebrando identicos feitos de guerra, de religião e de amor, servindo
reis do mesmo sangue, heroes das mesmas aventuras, santos e santas da
mesma invocação popular.
Das nossas relações com Flandres só conheciamos--até ha bem poucos
annos--a influencia flamenga em Portugal, ignorando completamente a
reciproca acção dos portuguezes em Gand, em Bruges, em Antuerpia. Foi o
sr. Joaquim de Vasconcellos quem, investigando os annaes das confrarias
e o archivo das feitorias de Portugal, consignou que, em resultado da
protecção dada aos artistas nacionaes por D. João II e por D. Manoel, de
uma só vez chegaram a reunir-se em Paris cincoenta pensionistas
portuguezes. Aos trabalhos do mesmo investigador se deve acharem-se hoje
apurados varios nomes de pintores de Portugal trabalhando em Flandres,
entre os quaes Edwart Portugalois, discipulo de Quintino Metsys,
proclamado em 1504 mestre pintor da confraria de S. Lucas de Antuerpia.
Os trabalhos do sr. Joaquim de Vasconcellos estão sendo diligentemente
continuados pelo sr. Sousa Viterbo, na Torre do Tombo, e pelo sr.
Joaquim Mauricio Lopes, nosso consul, em Antuerpia.
Em uma recente publicação do sr. Mauricio Lopes, _Les portugais à Envers
au XVI^{ème} siècle_, demonstra-se por meio dos mais expressivos
documentos que a colonia portugueza, estabelecida em Flandres desde que
em 1386 o duque de Borgonha Filippe-o-Ousado concedeu licença para ahi
viverem mercadores de Portugal e dos Algarves com as suas familias e os
seus creados, foi para a civilisação que os acolheu de uma importancia
incomparavelmente superior á que jámais exerceu a colonia flamenga em
Portugal.
Os negocios dos portuguezes em Antuerpia, ao tempo da fundação da
primeira feitoria de Portugal por D. Manoel, negocios tendo por base,
além das exportações do reino, o commercio das especiarias trazidas da
India por Lisboa, montavam annualmente a cerca de cinco mil contos da
nossa moeda actual. O numero das casas portuguezas em Antuerpia era de
cento e doze. Os mercadores portuguezes representantes d'essas casas
viviam com um fausto verdadeiramente principesco. Em 1594, por occasião
da entrada triumphal de Filippe II, herdeiro de Carlos V, a cavalgada
portugueza ficou memoravel. Compunha-se de vinte senhores e de quarenta
creados, montando todos cavallos peninsulares, ricamente ajaezados. Os
senhores trajavam de brocado e seda côr de purpura, bordada de ouro e de
rubis, com botões, passamanes e collares de ouro. Todos os gorros eram
orlados de brilhantes. Os creados, equipados, de couraça e espada,
vestiam librés de seda verde e branca, com as bainhas das espadas de
seda branca.--O que era, segundo o chronista Cornelius Grapheus, _chose
moult riche et triomphante à voir_.
Nas festas da entrada em Antuerpia de Ernesto d'Austria, governador dos
Paizes Baixos, os portuguezes erigiram um arco triumphal, em que se viam
as figuras da Mauritanea, do Brasil, da Etiopia, da India, da Persia, do
Ganges, do Rio da Prata, com as estatuas de Filippe I, do principe
Filippe de Hispanha, de D. João II e de D. Manoel. Em outro arco de
triumpho, delineado por Ludovicus Nonnius e consagrado a Fernando
d'Austria, em 1635, expuzeram os portuguezes diversos quadros
representando, entre outras, as allegorias da Victoria, da Clemencia, da
Felicidade, da Religião, e os retratos de D. Affonso Henriques, D. João
I, D. Manoel e D. Filippe II.
Um d'esses portuguezes, o feitor Antonio Cirne, natural do Porto, nos
saraus do Palacio chamado de Portugal, pretextando que a turba ou a
lenha cheiravam mal, mandava cosinhar as eguarias com fogo de canela, e
queimar canela em todas as fogueiras das chaminés.
Outro portuguez, Simão Rodrigues d'Evora, era barão de Rhodes,
cavalleiro, senhor de Tewerden, de Broeckstraate; pela sua enorme
fortuna lhe chamavam o _rei pequeno_; possuia muitos predios na
principal arteria da cidade, e habitava um d'elles, em que
successivamente se hospedaram a infanta D. Izabel, a rainha Maria de
Medicis e o principe cardeal Fernando d'Austria; fundou, com o fim
caritativo de recolher doze senhoras da nobreza ou da burguezia
reduzidas á indigencia, o hospicio de Sant'Anna, onde um triptyco de
Otto Venius representava o retrato do fundador com seus filhos e sua
mulher D. Anna Lopes Ximenes de Aragão.
O luxo da colonia portugueza em Antuerpia assumia muitas vezes o mais
nobre e mais alto caracter artistico. A enthusiastica hospitalidade
conferida pelos portuguezes a Alberto Dürer ficou assignalada pelas
grandes festas a que deu origem. Dürer retribuiu esses favores com
presentes de quadros e de gravuras aos feitores e aos negociantes de
Portugal.
Diogo Duarte, filho de Gaspar Duarte, possuia uma das primeiras galerias
de pintura em Flandres. Foi recentemente publicado na Hollanda um
catalogo dos seus quadros, entre os quaes havia obras de Dürer, de
Breughel, de Metsys, de Maubeuge, de Ticiano, de Tintoreto, de Andrea
del Sarto, e um Raphael, que constava haver sido adquirido do principe
D. Manoel de Portugal em troco de diamantes no valor de 2:200 florins.
Muitos dos nossos compatriotas estabelecidos em Flandres cultivavam as
sciencias e as letras, contando-se entre elles professores, medicos,
escriptores celebres, como Amato Lusitano, Rodrigo de Castro, Garcia
Lopes, Damião de Goes, etc.
Outro curioso symptoma da nossa desaffeição dos estudos da arte nacional
é a estagnação das velhas idéas preconcebidas na apreciação dos nossos
monumentos architectonicos. Já me referi ao ôco basbaquismo privilegiado
de que é objecto absorvente o monumento da Batalha. Devo aclarar um
pouco mais, ainda que rapidamente, esse phenomeno.
Por notavel superstição epidemica, por inercia de espirito, por
servilismo intellectual, por pedantismo classico, por costume, por
commodidade, por convenção admirativa, ou por qualquer outro motivo, os
criticos portuguezes, que mais teem governado a opinião, estabeleceram
axiomaticamente, como coisa definitivamente demonstrada e assente, que o
unico puro e genuino exemplar de stylo gothico existente em Portugal é o
da Batalha. Toda a modificação nas linhas constructivas ou nos motivos
ornamentaes d'esse typo passou, por effeito de tal dogma, a
qualificar-se de _decadencia_. Capellas imperfeitas, decadencia!
Claustro dos Jeronymos, decadencia! Egreja de Christo e de S. João em
Thomar, decadencia! Santa Cruz e S. Marcos, em Coimbra, decadencia!
Decadencia emfim toda a obra architectonica da época manoelina.
A termos acceitado tal principio na sua applicação pratica, teriamos
tido na nossa architectura ogival do seculo XVI um neo-gothico, fixo e
invariavel, como o neo-greco-romano da renascença, que é o triumpho
consagrado do dogmatismo na arte, a immobilidade canonica nos systemas
de construir, a cristalisação da rotina, a sujeição de toda a
imaginação, de todo o poder inventivo a uma formula invariavel. Teriamos
tido de submetter-nos ao despotismo da Batalha, como tão cegamente, tão
estupidamente, tão inconcebivelmente, nos temos submettido por tantas
centenas de annos ao despotismo de Vitruvio e das suas cinco ordens, com
os seus correspondentes aphorismos de proporção e de symetria, seu
pedestal, sua columna e seu entablamento, repetindo sempiternamente,
sobre os mesmos dados estaticos, o mesmo denticulo, o mesmo modilhão, a
mesma canelura, o mesmo triglypho, a mesma gôta, a mesma carranca! Ora
precisamente o stylo manoelino da nossa architectura, com toda a sua
effusão esculptural, com todo o avassalante symbolismo dos seus motivos
ornamentaes, com toda a arbitrariedade dos seus processos, com todas as
suas desproporções e todas as suas assymetrias, não é precisamente senão
a contraposição da liberdade creativa dos nossos architectos-esculptores
á enfatuação idolatrica, á pedantesca preceituação rhetorica, ao
esmagador e exhaustivo despotismo das _cinco ordens_, com que o
neo-classicismo da renascença razoirou todo o talento humano. O stylo
gothico prestava-se como nenhum outro, pela extrema flexibilidade dos
seus principios fundamentaes, aos desenvolvimentos de pura arte, com que
o esculptor, completando a obra do engenheiro, e fazendo-se assim
architecto, pode aviventar a pedra de um edificio, convertendo-a n'um
elemento de sympathia e de solidariedade social, fazendo vibrar na
palpitação do seu lavor evocações de idéas e de sentimentos proprios dos
homens da sua raça e da sua terra. Os artistas manoelinos não teriam
feito talvez monumentos _correctos_, na accessão indigente em que as
academias empregam esta palavra, mas fizeram monumentos
_expressivos_,--o que é melhor. Porque não são as academias que pautam
as proporções e os limites da creação artistica. Tudo o que se pode
formular em preceito cessa de ter valor em arte. A obra de arte não é um
producto de escola: é a livre expressão individual de uma alma,
convertida em realidade objectiva, e communicando aos homens uma
vibração nova do sentimento.
A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua categoria,
deduz-se da maior ou menor quantidade das idéas que a sua obra suggere e
dos sentimentos cuja percussão ella determina. Nos monumentos
architectonicos é pela sobreposição do ornato esculptural ás linhas
geometricas da construcção que a arte se exerce. É principalmente na
esculptura que reside a expressão poetica do monumento.
Em Portugal teem sido acusados os architectos manoelinos de invadirem
pelo vegetabilismo ornamental todos os perfis da construcção,
submettendo assim as fórmas constructivas á ornamentação esculptural. Os
grandes criticos da Inglaterra, que tão consideravel impulso teem dado
ás idéas estheticas e á moderna evolução artistica, entendem porém, ao
contrario dos nossos, que a sciencia de edificar e de dispor linhas é na
construcção de um monumento um ramo secundario da arte de esculpir. Esta
affirmativa envolve a consagração da escola manoelina pela critica que
n'este seculo mais minuciosamente e mais profundamente tem estudado a
arte gothica e a arte da renascença.
Nada todavia mais afflictivo, de peor indicio para os destinos nacionaes
da arte, que o descaso do publico, pervertido em seu instincto pela
carunchosa doutrina academica, perante esses monumentos em que sob, o
reinado de D. Manoel, os artistas portuguezes tão vigorosamente
accentuaram a palpitação victoriosa do genio, da originalidade, da
poesia, da gloria do povo lusitano.
O que se convencionou chamar _decadencia_ na ultima evolução do stylo
gothico em Portugal é a modificação portugueza d'esse stylo, é a sua
nacionalisação, é a originalidade local, imposta pelos architectos
portuguezes do seculo XVI, a um systema geral de construcção, commum a
toda a Europa. Dirão que não é isso precisamente um novo stylo.
Certamente que não, se unicamente chamarmos stylo novo em architectura á
constituição complexa e integral de todo um systema de edificar. Mas, se
tomarmos a palavra stylo em tal accepção, nenhum stylo é novo em toda a
architectura da edade média e da renascença. Todo o processo
constructivo nos veiu inicialmente da Grecia, de Roma, de Bysancio, da
Syria, do Egypto. Os mesmos gregos não inventaram a columna, nem os
romanos descobriram a abobada. O que constitue a originalidade na
architectura de qualquer povo é, como em Portugal, na época manoelina, a
subordinação de um systema qualquer de geometria architectural ás
condições do clima e da paizagem, á natureza dos materiaes empregados, á
flora, á fauna, á concepção religiosa, á historia, á poesia, ao
temperamento e á psychologia dos artistas, em cada região. Quanto mais
intensa for a intervenção d'esses factores mais original será a obra.
Assim, na evolução do gothico na architectura portugueza, quanto menos
modificado, isto é, quanto mais _puro_ fôr o stylo, mais insignificante
será o monumento como documentação artistica, como expressão social.
É á _decadencia_ do gothico da Batalha que nós devemos o incomparavel
claustro dos Jeronymos, segundo Haupt _o mais bello claustro de todo o
mundo_, bem como a fachada da egreja de Christo, em Thomar, onde a
flammejante janella da sala do capitulo é a obra mais eloquente, mais
convicta, mais poetica, mais enthusiasticamente patriotica, mais
estremecidamente portugueza, que jámais realisou em nossa raça o talento
de esculpir e de fazer cantar a pedra.
Na ornamentação d'essa janella, em que, juntamente com o sentimento mais
entranhado das energias da natureza, rebenta, palpita e brada, em torno
da idéa christã, todo o sagrado pantheismo das velhas religiões da
India, conjugam-se, n'uma gloriosa harmonia de antiphona a toda a voz,
acompanhada ao orgão, no deslumbramento dos cirios, no aroma das
açucenas, no fumo dos thuribulos doirado pelo sol, os elementos
decorativos do symbolismo mais poderoso, da suggestão mais profunda. O
artista, em plena posse da sua idéa, em completa independencia do seu
espirito, em inteira liberdade dos seus meios de execução, desdiz todos
os votos, abjura todos os principios, renega todos os canones, infringe
todas as regras, e prescinde de todo o applauso dos mestres, sufocando
nas entranhas da sua propria vaidade a opinião de si mesmo, unicamente
porque tem fé na verdade que enuncia, porque concentrou toda a força da
sua alma, toda a energia do seu cerebro, toda a paixão do seu sangue, no
amor da obra em que elle representa o pensamento que o domina. E em
torno d'elle e d'esse objecto amado, como em torno de todos os que
verdadeiramente amam, tudo mais na terra acabou e desappareceu.
As columnas na janella da sala do capitulo são polipeiros de coral, dos
mais profundos recifes do Oceano, e troncos d'essa palmeira, cuja sombra
cobriu o berço da civilisação no littoral mediterraneo, providencia dos
peregrinos nos oasis do deserto, á qual os arabes da Peninsula dedicavam
uma festa de primavera, tendo por fundamento a disseminação do polen,--a
arvore santa, a arvore da Biblia, a arvore de Jesus, cujo ramo symbolico
é um attributo da paixão e da paschoa, da gloria e do martyrio. Os
demais elementos decorativos são as ondas do mar, taes como ellas se
representam na heraldica; são os troncos seculares e as raizes profundas
dos sobreiros dos nossos montes, extrema expressão de força na
fecundidade da seiva, que prende o roble, assim como a tradição e a
familia prendem a debil e errante creatura humana, ao coração da terra
em que nasceu. Guizeiras, como as das mulas de tiro engatadas á carreta
alemtejana, emmolham contorcidas varas de sobro e de azinho, como nos
feixes de lictor da magistratura romana. Solidas correntes e possantes
cabos de bordo, de que pendem em discos as boias de cortiça, enlaçam a
decoração, amarrando-a vigorosamente á empena por fortes argolões, como
se amarraria uma nau ao caes de um porto. Toda a composição, partindo
das espaduas de um homem, que parece sustentar-lhe todo o peso, ascende
n'uma trepidação de algas e de folhagens para a cruz de Christo entre as
espheras que tomara por empresa o rei venturoso de Portugal triumphante
na vastidão dos mares, em todo o circuito do globo. E o poema
esculptural remata por cima da janella na rosacea magestosa do templo,
formada em circulo pelas pregas e pelo bolso arfante da vela rizada de
um galeão da India.
O nosso povo porém desaprendeu de ver a obra artistica do seu passado, e
nem sequer levanta os olhos para os seus mais communicativos monumentos,
que ninguem lhe explica, que ninguem o ensina a comprehender e a amar.

Resumamos agora a historia do que officialmente se tem feito no intuito
malogrado de proteger os monumentos publicos e de conservar e defender
os productos d'arte.
Em julho de 1890 o então ministro da Instrucção Publica consultou sobre
a questão de que se trata uma commissão de artistas, de archeologos e de
escriptores. Da resposta, até hoje inedita, d'essa commissão, de que me
coube a honra de ser relator, transcreverei alguns periodos.
O arrolamento da nossa riqueza artistica, que se propõe effectuar o
ministerio da instrucção publica e das bellas artes é--ponderava o
relatorio--a pedra fundamental de toda a construcção destinada a dar á
arte portugueza o logar que lhe compete na historia geral da
nacionalidade, na orientação do sentimento collectivo do povo, no
conjuncto dos elementos de impulsão e de progresso para o
desenvolvimento das industrias, no respeito do paiz, emfim, e no da
Europa.
O inventario de que se trata, comprehendendo não só os edificios
monumentaes mas os documentos archeologicos e os productos artisticos de
toda a especie, seria, primeiro que tudo, a documentação preciosa para a
historia da arte em Portugal,--determinação das suas origens ethnicas e
sociaes, fixação dos seus caracteres distinctivos e sua relação com a
psychologia do povo, com os sentimentos, com as aspirações, com as
ideias, com os costumes e com as instituições sociaes. Esse repositorio
tornar-se-ia o espelho em que se achariam reflectidas, com todas as suas
modalidades, segundo as influencias especiaes de cada época, de cada
phase de cultura, de cada estadio social, todas as forças emotivas,
todas as aptidões estheticas da nossa raça. A historia dos seus
monumentos é para cada povo a historia da sua individualidade, porque
não ha monumento artistico que não traduza, mais ou menos directamente,
a acção intellectual e politica da sociedade que o concebeu.
A ideia do inventario projectado não é--para honra nossa--inteiramente
nova. No reinado de D. João V existia na Bibliotheca Real uma obra em
cinco volumes, datada de 1686 e intitulada «Theatro do reino de Portugal
e dos Algarves por suas cidades, villas, fortes e fortalezas como que
por scenas repartido.» Mais tarde mandou o referido soberano ao Padre
Frei Luiz de S. José, monge do Cister e artista peritissimo, que fizesse
os debuxos de todas as povoações do Minho, o que elle cumpriu no anno de
1726. Por indicação da Academia Real da Historia, e para o fim de
inventariar e conservar os monumentos nacionaes, publicou-se o decreto
de 20 de agosto de 1721, e fundou-se o primeiro dos nossos museus
archeologicos. Infelizmente os livros a que nos referimos não chegaram a
ser dados á estampa, e os originaes foram destruidos pelo terremoto de
1755, juntamente com a Bibliotheca Real, e com o museu estabelecido nas
casas dos duques de Bragança, ao Thesouro Velho.
As disposições do alvará de 20 de agosto de 1721 constam do seguinte
trecho do mesmo alvará: «Hei por bem que d'aqui em deante nenhuma pessôa
de qualquer estado, qualidade e condição que seja, desfaça ou destrua em
todo nem em parte, qualquer edificio, que mostre ser d'aquelles tempos
(assim designados: Phenices, Gregos, Persos, Romanos, Godos e Arabios)
ainda que em parte esteja arruinado; e da mesma sorte as estatuas,
marmores e cippos em que estiverem esculpidas algumas figuras, ou
tiverem letreiros phenices, gregos, etc.; ou laminas, ou chapas de
qualquer metal, que contiverem os ditos letreiros, ou caracteres; como
outrosi medalhas ou moedas, que mostrarem ser d'aquelles tempos, nem dos
inferiores até o reinado do Senhor Rey D. Sebastião; nem encubrão ou
ocultem alguma das sobreditas cousas: e encarrego ás camaras das cidades
e villas d'este reyno tenham muito particular cuidado em conservar e
guardar todas as antiguidades sobreditas, e de semelhante qualidade que
houver ao presente, ou ao deante se descobrirem nos limites do seu
districto; e logo que se achar ou descobrir alguma de novo, darão conta
ao secretario da dita Academia Real para elle a communicar ao director e
censores, e mais academicos; e o dito director e censores, com a noticia
que se lhes participar, poderão dar a providencia que lhes parecer
necessaria para que melhor se conserve o monumento assim descoberto.
Etc.»
Em 4 de fevereiro de 1802, novo alvará sobre a mesma materia, assim
designado: «Alvará com força de lei pelo qual Vossa Alteza Real he
servido suscitar o alvará de lei de 20 de agosto de 1721, ordenado em
beneficio da Academia Real da Historia Portugueza para a conservação e
integridade das estatuas, marmores, cippos, e outras peças de
Antiguidade: mandando que as funcções do mesmo Alvará, que até agora
pertenciam ao secretario da dita Real Academia, fiquem da data do
presente em deante pertencendo ao Bibliothecario Maior da Bibliotheca
Publica; tudo na forma acima declarada.»
Em janeiro de 1844 o Bibliothecario Mór da Bibliotheca Nacional de
Lisboa José Feliciano de Castilho, informava o respectivo ministro nos
seguintes termos: «Para o bibliothecario mór passaram attribuições que
competiam á Academia Real da Historia, mas infelizmente essa lei vigente
tem sido até hoje letra morta, a tal ponto que até ignoram as suas
disposições os proprios encarregados do seu cumprimento, com grave
detrimento, não só d'este magnifico repositorio, que ha muitos annos se
acha estacionario em aquisições archeologicas, mas tambem de todo o
reino, onde o bibliothecario mór deveria sempre ter, por obrigação do
seu cargo, promovido a conservação e segurança dos monumentos que não
podem ou não devem transportar-se.»
Em seguido propõe o bibliothecario que se torne effectiva a
responsabilidade dos governadores civis no cumprimento da lei de 20 de
agosto de 1721; que esses funccionarios se correspondam regularmente com
o bibliothecario, etc.
Ficou porém tão morta a letra d'essa consulta como a da lei a que ella
se refere.
Por decreto de 10 de novembro de 1875 é nomeada uma commissão para
propôr ao governo, com a reforma do ensino das Bellas Artes e com o
plano de um museu, «as providencias que julgar mais adquadas á
conservação, guarda e reparação dos monumentos historicos e dos objectos
archeologicos, de importancia nacional, existentes no reino.» A
commissão alludida responde ao governo por meio da memoria redigida pelo
marquez de Sousa Holstein, e assim se desempenha do encargo que lhe fôra
confiado.
A louvavel diligencia empregada a convite do governo pela Real
Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes, para o fim
de lançar em 1880 as bases de uma inventariação systematica dos
monumentos nacionaes, não foi, assim como o zeloso trabalho da commissão
de 1875, seguida de resultados praticos.
Independentemente da preceituação official, teem sido modernamente do
mais importante auxilio para o conhecimento dos nossos valores
artisticos a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental, celebrada em
Lisboa em 1882, a exposição de Coimbra, a exposição de Aveiro, a
exposição de Guimarães, a recente exposição do centenario antonino, e as
exposições de ourivesaria e de ceramica promovidas e effectuadas no
Palacio de Cristal do Porto pela muito benemerita Sociedade de
Instrucção.
De algumas das exposições alludidas ficaram documentos de alto valor.
Imprimiram-se relatorios de muita importancia, e numerosos productos
expostos foram reproduzidos pelo desenho e pela photographia. Da valiosa
collecção photographica, para a qual principalmente contribuiram Carlos
Relvas, Pardal, Rochini, Biel & Companhia, bem como dos catalogos dos
museus e das exposições celebradas, se poderia extrahir desde já um
esboço de inventario, que não seria difficil aperfeiçoar e prehencher,
emprehendendo novas exposições e systematisando completamente as
investigações e os estudos correlativos.
A commissão de 1890, a que acima me referi, propunha que, sem prejuizo
das pesquisas que, convém continuar, para recolher ou arrolar os valores
artisticos que ainda se conservam ignorados em poder de corporações ou
de particulares, a commissão incumbida do inventario geral e definitivo
desse quanto antes principio aos seus trabalhos, tomando por materia as
peças de que ha conhecimento, já pelo exame de que foram objecto nos
museus onde existem, ou nas exposições até hoje feitas, já pelos
catalogos e relatorios que d'essas exposições existem, já pela
consideravel collecção de photographias que reproduzem os objectos
expostos.
Emquanto á catalogação e á conservação dos objectos pertencentes a
particulares ou a corporações de caracter civil ou religioso, não
conviria desde já estabelecer principios absolutos. O modo de proceder
dos delegados do governo em tal serviço seria indicado pelas
circumstancias particulares de cada occorrencia, sendo porém altamente
para desejar que os prelados do reino, conscientes dos estreitos
vinculos que ligam o esplendor das artes á gloria do catholicismo,
conseguissem fazer penetrar na convicção das auctoridades eclesiasticas
das suas circumscripções quanto é inseparavel da historia da egreja a
historia da arte christã, e quanto o museu, em paizes tradicionalmente
catholicos, é ainda uma fórma do culto ou um desdobramento d'elle na
ordem civil, além de ser o permanente attestado da alliança da crença
religiosa com a immortal aspiração da poesia no coração e no espirito da
nossa raça.
Para regra definitiva do processo a que se refere o alvitre que acabo de
expor é indispensavel que seja devidamente estudada e promulgada uma
lei, semelhante á que existe hoje na Italia, em França, nos Paizes
Escandinavos, na Russia, na Hispanha, na Grecia, na Turquia, tendo por
fim definir claramente e assegurar, de combinação com a legislação
canonica, com os principios da concordata e com a legislação geral da
propriedade, os direitos especiaes do Estado com relação á guarda dos
monumentos e á parte que elle tem na posse dos objectos d'arte,
determinando assim o caracter especial da propriedade artistica.
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