O culto da arte em Portugal - 4

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architectura da Renascença, tão especialmente amoiriscada n'esta parte
do Alemtejo; são os restos das suas antigas industrias locaes, a olaria,
a tapeçaria, a caldeiraria, a sellaria e a carpintaria de moveis; é
talvez ainda a sua tradicional cosinha, a doçaria famosa dos seus
conventos, a sua honrada assorda de cuentros, e o seu bolo pôdre, de
farinha de milho, azeite e mel, como o que se comeria talvez, entre os
hebreus da Biblia, á mesa de Abrahão.
Com as improvisações do seu modernismo Evora é como Vianna do Castello,
Braga, Guimarães, Coimbra, Thomar, Santarem, ou Beja, que sómente
interessam os viajantes pela sua antiga arte, e não valem realmente a
pena de que alguem as visite pelo que dão de novo.
Em Lisboa repudia-se a soberba egreja de Santa Engracia, o mais bello
dos nossos monumentos do seculo XVII. O interior do templo é de uma
magnificencia magestosa. A riqueza dos marmores sómente se pode comparar
á de Mafra. A mão d'obra é de uma perfeição magistral a ponto de parecer
indestructivel. Aproveitada para pantheon nacional esta egreja seria um
dos mais imponentes edificios da Europa. Falta unicamente á sua
conclusão a cupula do tecto e o lageamento do chão. Taparam-lhe o arco
da entrada a pedra e cal, não tem cobertura, e está servindo de armazem
de arrecadação do inutilisado material de guerra do Arsenal do Exercito.
A inoffensiva capellinha das Albertas, bem interessante pela
ornamentação tão portugueza dos seus embrechados, ha poucos dias ainda
acabou de desapparecer, como o convento da Esperança, sem se saber
porque, nem para que.
A restauração, que recentemente padeceu a egreja de S. Vicente de Fóra,
tão particularmente notavel pelos bellos mosaicos portuguezes que a
exornam, caracterisa-se bem no mau gosto da pintura com que se maculou a
nobreza d'aquelle templo.
Os attentados de restauro de que ainda nos tempos modernos tem sido
objecto a Sé de Lisboa são tão lastimosos quanto innumeraveis.
Finalmente, ao lado da Torre de Belem, o mais peregrino entre os mais
bellos monumentos da nossa architectura, estabelece-se o gazometro da
companhia de illuminação a gaz! A esbelta silhueta rendilhada do mais
suggestivo padrão da nossa gloria militar e maritima, já não emerge da
areia loura do Restello, em deslumbradora apotheose, na vasta
luminosidade do ceu e da agua, destacando-se das collinas de Monsanto,
como a alvura de uma hostia em elevação se destaca do fundo de um
retabulo esmeraldado, em altar de ouro fulvo, sob uma abobada azul.
Sacrosanta pela sua expressão moral, como a immaculada estalactite,
formada á beira do mar pela concreção mysteriosa de todas as lagrimas,
de saudade, de ternura, de consternação e de enthusiasmo, choradas por
um povo de embarcadiços; sacrosanta na sua forma artistica, como aquelle
dos monumentos de Portugal, em que o genio lusitano da Renascença, mais
expressivamente se revela como dominador da India, a Torre de Belem
emparceira-se com a chaminé do mais vil e sordido barracão, a qual
sacrilegamente a cuspinha e enodôa com salivadas de um fumo espesso,
gorduroso e indelevel, como se a incomparavel joia d'esse marmore, que o
sol portuguez carinhosamente sobredourara pelos afagos de tres seculos,
houvesse sido tão subtilmente cinzelada pelos artistas manoelinos para
escarrador de mariolas, por cima do qual todavia ainda algumas vezes, em
dias de gala, se desfralda e tremula o pavilhão das quinas, mascarrado
de carvão como um chéché de entrudo.
Ministerios de todos os diversos partidos politicos se revezam
consecutivamente no poder, sem que nenhum d'elles pareça attentar em um
tal desdouro, expressão viva do mais abandalhado rebaixamento a que,
perante as suas tradições historicas e artisticas, podia chegar a
degeneração de uma raça. Por seu lado o parlamento e a imprensa são
insensiveis á responsabilidade de taes civicias, porque esses dois
poderes do Estado, enrascados na baixa intriga partidaria, immobilisados
n'ella, como um enxame de pardaes n'uma bola de visco, de ha muito que
perderam o sentimento de nacionalidade e a noção de patria, relaxando
completamente aos archeologos, aos poetas e aos artistas a unica
legitima representação, desinteressada e altiva, do espirito portuguez.
Consta no emtanto que brevemente será celebrado em Lisboa o centenario
da India; e da comprehensão que temos d'esse feito culminante da nossa
historia maritima daremos ao extrangeiro um testemunho definitivo,
mostrando o monumento que commemora tal façanha, envolto, como nas
dobras de um crepe, pela fumaçada de uma fabrica, que nós mesmos lhe
puzemos ao pé, para o deshonrar.

Se do exame da architectura dos nossos monumentos, passamos ao exame das
artes decorativas, da pintura e da esculptura amovivel, é mais lastimoso
ainda o espectaculo da nossa incuria.
Ao clero portuguez cabe principalmente a gloria de haver conservado o
que ainda resta do nosso patrimonio artistico.
Das galerias particulares de pintura que o conde de Raczynski ainda
encontrou em Portugal, no anno de 1845, quasi tudo se sumiu.
Demoliram-se, desappareceram, ou foram transformadas pela mudança de
dono, pela mudança de destino, pela transformação mais radical da vida
interior que as animava, quasi todas as casas que ainda em 1840 eram o
typo das habitações nobres em Lisboa.
Citarei, ao acaso da memoria: o palacio da marqueza de Niza, a Xabregas,
fundado no seculo XV pela rainha D. Leonor; o palacio chamado dos
Patriarchas, o de Pessanha e o do conde de S. Miguel, á Junqueira; o do
marquez de Pombal ás Janellas Verdes; o do conde de Carvalhal na Rocha
do Conde d'Obidos, famoso outr'ora pela collecção das suas mobilias; á
Cotovia o do conde de Ceia e o do conde de Povlide; no Calhariz os de
Braancamp, do duque de Palmella e do marquez de Olhão; o do marquez de
Castello Melhor e o do conde de Lumiares, no antigo Passeio Publico; na
collina do Castello o do marquez de Ponte de Lima, o do marquez de
Alegrete, o do marquez de Tancos; no Campo de Santa Clara o do visconde
de Barbacena, o do conde de Resende, o do marquez de Lavradio, e um
pouco mais para leste o do conde da Taipa; o do visconde da Bandeira, a
S. Domingos; e finalmente o do marquez de Borba, o do conde de Almada, e
o do morgado de Assintis, cujo theatro era o mais sumptuoso entre todos
os numerosos theatrinhos particulares que havia em Lisboa no principio
do seculo, como o do barão de Quintella, o do visconde de Anadia, o do
conde de Almada, e o do conde de Sampaio.
A maior parte d'essas casas eram ainda, pelo seu antigo recheio, apesar
dos estragos do terremoto, apesar da rapina da invasão franceza,
verdadeiros sanctuarios d'arte. Mobilavam-as as mais ricas peças das
industrias do Oriente que existiam na Europa, escriptorios, papelleiras
e bahus monumentaes de charão, bufetes e contadores feitos na India ou
fabricados em Lisboa por marceneiros aqui educados, no tempo de D.
Manoel, por artistas indianos.
Os serviços de mesa e os vasos decorativos eram das mais antigas e das
mais preciosas porcellanas da China e do Japão. A collecção das colxas e
dos panos de armar, com que no dia da procissão de Corpus-Christi se
revestiam inteiramente as fachadas de todos os predios da Baixa, eram de
brocado, de damasco, de setim e de veludo, constellados a matiz e a ouro
nos mais deslumbrantes desenhos persas.
Os bragaes, de linho da Hollanda, da Flandres e do Reino, arrecadavam-se
nas sumptuosas caixas encouradas, que foram no seculo XVI uma das
industrias famosas de Lisboa.
Nas gavetinhas dos contadores e nos escaninhos dos armarios e das arcas
estavam as joias, as rendas, os aljofares, os entretalhos, os firmaes,
as chaparias, os ouros de martello, e as obras mais diminutas e subtis
das antigas bordadoras e colxoeiras de Lisboa,--restos de coifas, de
face e gravis, redes, cadenetas, desfiados.
As baixellas brazonadas, de ouro e prata, levantadas em bestiões e em
silvados, a martello, ou cinzeladas por emulos de Benvenuto Celini,
trasbordantes de ornato, em encaiches de arabescos e de laçarias, eram
um luxo commum a todas as familias nobres, e refulgiam pelas grandes
festas do anno em todas as casas de jantar.
O mogno francez do imperio, com as suas applicações de bronze,
representando fachos, pyras ardentes, lyras e tropheus de guerra,
invadira com as modas da revolução liberal muitas casas lisboetas, sem
todavia desthronar inteiramente o precioso mobiliario da Renascença, em
cedro, em pau rosa, em sandalo, em nogueira, em carvalho ou em ebano, ao
gosto mudegar ou ao gosto florentino, embutido de marfim, de
madreperola, de prata, de esmaltes limosinos ou aragonezes. Abundavam as
cadeiras e os catles de couro lavrado ou de guadamecim, cravejado no
carvalho ou no pau santo com pregos cinzelados de cobre ou de prata; e
nas poltronas, nas commodas, nas meias-commodas, nos escaparates, nas
cadeirinhas, nas molduras dos espelhos e das sobreportas predominavam as
formas curvilineas da influencia de Luiz XIV e de Luiz XV na época de D.
João V e de D. Maria I.
Na talha dos oratorios encontravam-se alguns d'esses baixos relevos em
madeira, polychromicos, em escala mui clara, tão caracteristicos da
nossa esculptura em madeira do seculo XVII, bem accentuadamente revelada
nas obras de Bouro, de Tibães, de S. Gonçalo de Aveiro, e da Sé Nova de
Coimbra.
O presepio era um appendice por assim dizer obrigatorio; sempre que não
occupava um compartimento especial da casa, o presepio concentrava-se na
sua machineta em forma de urna, semelhante ás que se destinavam a conter
uma cella de Santo Antonio ou uma arribanasinha de menino Jesus.
Todas as familias historicas tinham a sua mais ou menos consideravel
galeria de pintura: paineis de devoção, retratos de antepassados, e um
ou outro quadro de genero ou de paizagem, em tela ou em cobre,
attribuidos a Breughel, a Rosa di Tivoli, a Tenniers ou a Rubens, obras
em geral apocryphas e mediocres. Grassavam, com tenacidade talvez
excessiva, as Josephas d'Obidos e os Morgados de Setubal, mas entre os
retratos do seculo passado, encontravam-se alguns preciosos, como os de
Pelegrini em casa dos viscondes de Anadia, como os pintados por Madame
Guiard, por Gérard e por Therbouché, em casa do visconde de Sobral.
Entre os quadros de devoção destacavam-se frequentes obras primas
nacionaes, do seculo XVI, referidas á vida da Virgem Maria, á lenda de
Santa Ursula, aos agiologios de alguns santos portuguezes, como
Verissimo, Maxima e Julia.
Nos sotãos d'essas antigas casas havia accumulações seculares de moveis
inutilisados, de miudezas rejeitadas e esquecidas, com as quaes se
sepultariam documentos inapreciaveis para a historia da nossa influencia
na evolução europeia das artes sumptuarias: cadeiras aluidas e canapés
desconjuntados, desusados manicordios, velhos cravos de charão,
abandonadas espinetas, em cujo teclado amarellecido se teriam dedilhado
as primeiras composições de Palestrina e de Cimarosa; antigos arreios de
tiro e de sella, braseiras, perfumadores, lanternas e candieiros de
cobre, velhos palmitos contrafeitos de conchas e de pennas, montões de
manuscriptos, montões de gravuras, dentes de elephante, ferrugentas
clavinas de pederneira; e, entre feixes de cacetes e de chibatas de
marmelleiro, talvez, desarticulado e roto, algum d'esses chapeus de sol,
que nós fomos os primeiros que fabricámos e que introduzimos na Europa,
ou algum d'esses primitivos leques, em quarto de circulo, que os
companheiros de Fernão Mendes Pinto trouxeram da China, com os primeiros
apparelhos de chá, com os primeiros vasos de porcellana, com as
primeiras caixas de sinaes e pastilhas, doando a Roma e a Florença, a
Paris e a Londres todos os principaes attributos e os themas
fundamentaes de toda a arte da casa e de toda a elegancia feminina da
civilisação moderna.
E tudo isso desappareceu, ou se está evolando, com o successivo
desmanchar de todas as velhas casas, n'um saudoso e doce perfume de
camphora, de mofo, de alfazema e de bejoim, errante no ar dos casarões
despejados.
Estão nas bibliothecas extrangeiras, em França e na Inglaterra, as mais
preciosas illuminuras dos nossos codices e das nossas arvores
genealogicas.
Das encantadoras figurinhas dos presepios de Faustino José Rodrigues, de
Antonio Ferreira, de Machado de Castro, já não ha intacta senão a
collecção da Sé. Destroçaram-se as da Madre de Deus, do Coração de Jesus
e do marquez de Borba em Santa Martha.
O que ainda persiste da obra tão curiosa e tão caracteristica dos
barristas de Alcobaça está ao desamparo no abandono d'aquelle
incomparavel monumento.
Lanças, espadas, adagas, elmos de todas as fórmas--almafres, capellinas,
bacinetes, barbudas e morriões--, couraças, escarcellas, grevas,
manoplas, escudos e rodellas, todas as peças, emfim, da armadura dos
nossos heroes da Africa e da India, desappareceram com as balças, as
sinas, os estandartes e as bandeiras das suas hostes.
A espada de Vasco da Gama é hoje propriedade de um particular, que ha
pouco tempo adquiriu por compra essa reliquia nacional.
Uma espada e um capacete de torneio, que se diz terem pertencido ao
Mestre de Aviz, peças ferrugentas, sujas, sem estojo nem outro qualquer
resguardo que as defenda da irreverencia do publico, estão na Batalha á
mercê dos moços, dos pedreiros e dos visitantes, que de chacota se
adornam com essas armas, em galhofa carnavalesca.
Na cathedral de Toledo, na soberba capella dos Reis Novos, preciosamente
edificada por Alonso de Covarrubias, em tempo de Carlos V e por
disposição testamentaria de Henrique II de Trastamara, vê-se uma
armadura portugueza. Guardada por castelhanos, essa armadura
suspende-se, d'entre os ornatos platerescos da capella, por cima do
órgão, em todo o respeito devido a um trophéo sagrado. E um dos guardas
da cathedral, explica ao publico, apontando essa reliquia:--«Aquella é a
armadura do alferes portuguez Duarte de Almeida, o qual, batendo-se na
batalha de Toro contra nós outros, tendo tido decepadas as duas mãos,
morreu ás lançadas, segurando nos dentes a bandeira do seu rei.» E em
frente do arnez, que vestiu o corpo sanguento e exanime de um inimigo,
Castella inclina-se reverente e commovida, fazendo-nos corar, perante a
grandeza de tal exemplo, da lenda grosseira em que envolvemos a pá da
padeira Brites--_Quantos vivos rapuit omnes esbarrigavit_,--a qual pá
uma esperta e linda creada de Aljubarrota faz o favor de ir buscar, e de
tirar de dentro de um saco, para a mostrar n'um patamar de escada aos
viajantes que para esse fim lhe vão bater á porta.
Não está feita nem estudada a historia dos nossos vidros, dos nossos
esmaltes, da iconographia da nossa habitação, e do nosso trage.
Uma das obras primas da nossa joalheria, a propria custodia de Belem,
lavrada por Gil Vicente, o famoso ourives, tio do poeta, acha-se
desfigurada nas suas dimensões primitivas pela interpollação de um novo
hostiario e de duas pilastras, que já não são do primeiro ouro das
conquistas, mas de simples prata dourada.
Depois dos tão numerosos e tão grosseiros erros a que tem dado origem a
investigação da identidade de Grão Vasco, a historia, a classificação e
a attribuição da nossa incomparavel pintura do seculo XVI, encontra-se
ainda por fazer.
A restauração dos antigos quadros está constituindo na historia da nossa
arte uma catastrophe ainda mais destruidora que a da restauração da
nossa architectura.
Alguns annos mais sobre o systema devastador que se está seguindo, e
ninguem poderá reconhecer nas taboas da nossa grande época uma só
pincelada dos admiraveis discipulos e dos emulos que tiveram em Portugal
os Van Eik, os Memling, os Gerard David, os Van der Weiden, os Quinten
Massys ou os Dierik Bouts.
N'essa prodigiosa pintura nacional, em que tivemos por mestres os
flamengos, acha-se todavia registrada a historia de toda a vida
portugueza desde o meiado do seculo XV até o fim do seculo XVI, isto é,
durante o periodo do nosso maior brilho e da nossa maior riqueza, no
apogeu da nossa gloria. São raras as puras composições historicas e
raros os retratos d'esta época. Os grandes feitos da navegação e da
guerra celebravam-se de preferencia nas tapeçarias, que se perderam, e
constituiam o principal adorno d'arte dos paços dos reis e dos palacios
dos nobres. Na pintura religiosa, porém, e nos quadros votivos,
conservados nas egrejas e nos conventos, as figuras do seculo
misturam-se em brilhante anachronismo ás figuras sagradas, e muitas
authenticas physionomias se accusam energicamente nos pomposos cortejos
que envolvem as scenas biblicas. A memoria do que fomos está ahi, por
nós mesmos consagrada, com o maior esplendor a que chegou o nosso genio
artistico, nas taboas dos paineis, no pergaminho das biblias e dos
devocionarios portuguezes. Ahi estão os reis, as rainhas, os sacerdotes,
os guerreiros e os letrados portuguezes do cyclo da renascença. São
essas as caracteristicas figuras dos nossos avós: as faces cheias, a
pelle tostada, a carne rija, os olhos rasgados, as boccas imperativas. A
essas nobres e delicadas cabeças femininas serviram de modelo as mais
lindas mulheres da Lusitania, de olhos de amendoa, malicioso olhar
avelludado, obliquo e enygmatico, sobrancelhas longas alteando nas
fontes, rostos ovaes, boccas quentes e vermelhas, queixo carnudo vincado
na base, testa arredondada e lisa, cabello espesso e fino apartado ao
meio em duas curvas de bambolim, e uma gesticulação leve, sinuosa e
ondulante. Teriamos que interrogar longamente, laboriosamente, esses
venerandos paineis para apprender tantas coisas que ignoramos da
physionomia do nosso passado, o trage, as armas, as joias, a mobilia, os
utensilios da casa e os estados do espirito.
O estudo completo d'esses quadros constituiria a mais importante, a mais
bella obra da nossa historiographia.
_A patria portugueza segundo os documentos da pintura nacional nos
seculos XV e XVI_, poderia ser o titulo d'esse incomparavel livro, em
que collaborariam todas as aptidões intellectuaes de que dispõe o paiz,
por meio de successivas monographias, relativas a cada ramo do saber e
comprehendendo todos os pontos de vista em que pode ser considerado o
quadro:
1.º _Os aspectos da paizagem_, os caracteres da _flora_ e da _fauna_
portugueza, que nós tão opulentamente enriquecemos, pelo commercio das
conquistas e dos descobrimentos; no tempo em que Lisboa era o primeiro
jardim de acclimatação, o primeiro jardim zoologico e o primeiro mercado
da Europa, pela introducção do chá, do café, do assucar, do algodão, da
pimenta, do gengibre do Malabar, da canella de Ceylão, do cravo das
Molucas, do sandalo de Timor, das teccas de Cochim, do bejoim do Achem,
do pau de Solor, do anil de Cambaya, da onça, do elephante, do
rhinoceronte, do cavallo arabe.
2.º _O mobiliario_, cuja fabricação tão fecundamente desenvolvemos por
meio de officinas estabelecidas em Lisboa por artifices indianos, e
estabelecidas na India por artifices portuguezes, sob a administração de
Affonso de Albuquerque.
3.º _A indumentaria_, comprehendendo, além da historia do _traje_, a dos
_tecidos_, a dos _bordados_ e a das _rendas_, industrias procedentes da
China, da Persia, de Benguella, tão profundamente influenciadas pelo
nosso contacto nas suas origens, tão especialmente desenvolvidas no
Reino, pelo lavôr do paço, onde trabalhavam ao bastidor e á agulha as
mais pacientes e subtis _lavrandeiras_ mandadas á rainha pelos capitães
da India.
4.º _As armas_, de guerra, de torneio e de côrte.
5.º A _ourivesaria_ e a _joalharia_, abrangendo a analyse das alfaias
religiosas, lampadas, tocheiros, relicarios, thuribulos, retabulos, a
tão curiosa evolução em Portugal da fórma e do ornato dos calices, das
custodias e das cruzes; e na ourivesaria profana as innumeraveis peças
em ouro ou prata da baixella e da joalharia portugueza da Renascença,
como escudellas de faldra e de orelhas, salseiros, oveiros, vinagreiras,
almofias, tumadeiras, almaraxas, escalfadores, confeiteiras,
perfumadores, esquentadores, brazeiros, pomas-candis, alcaforeiros,
taxos de perfumar luvas, copas, taças, gomis, bacias d'agua ás mãos,
maças, chaparias de gualdrapa, andilhas, estribos, taboas de cavalgar,
guarnições de cavallo, com rosas, sostinentes e copos; cofrinhos,
arrecadas, firmaes, pontas de ouro, brochas de livro, cadeias,
guarnições de coifa, trançadeiras, crochetes, cintas, tiras de cabeça,
tiratestas, dormideiras de ouro para volantes, e as contas variadissimas
de filigrana mourisca, de ambar das Maldivas, de almiscar da China, de
rubis do Pegu, de diamantes de Narsinga, de perolas de Kalckar.
6.º _As embarcações_--galeões, naus, caravellas, bergantins, fustas,
toda essa portentosa collecção dos nossos barcos de guerra e dos tão
variados typos empregados na cabotagem e na pesca, testemunhos
sobreviventes ainda hoje do nosso genio maritimo e das suggestões do
mais remoto trato do oceano, como se demonstra na forma dos saveiros,
que trouxemos do Bosforo, e na da muleta do Seixal, que é o navio grego
do tempo de Herodoto.
7.º _A olaria e a cestaria popular_, em que tão atticamente se affirma o
hereditario engenho artistico da nossa raça, e cujos productos tanto se
compraziam em reproduzir os nossos pintores.
8.º Emfim: _A psychologia das figuras_ pela physionomia, pelo gesto,
pelo sorriso, pelo olhar; os usos e os costumes; os temperamentos
predominantes; a moda, o toucado; o corte do cabello, o talho da barba,
etc.
Da pintura portugueza, que constitue a mais importante parte da riqueza
artistica da nação, não ha porém catalogo, nem inventario, nem rol. Nos
nossos depositos de antigos quadros, em Lisboa, em Coimbra, em Vizeu, em
Thomar, em Lamego, em Evora, em Setubal, o povo portuguez passa
indifferente, abstrahido, expatriado, sem guia que o condusa ás fontes
da tradição e da nacionalidade, em que cada um de nós tem a mais
restricta e a mais instante obrigação de ir retemperar e fortalecer de
portuguezismo o seu sangue, dessorado pela mais falsa educação a que se
pode condemnar um paiz.
Não ha collecção publica, chronologicamente completa, dos nossos
incomparaveis azulejos. Esta industria artistica é no emtanto d'aquellas
de que mais legitimamente nos podemos gloriar. Até o seculo XVII o
azulejador portuguez acompanhou a evolução peninsular, de influencia
mudegar e de influencia italiana. Desde o seculo XVII adoptamos o gosto
hollandez, e no seculo XVIII os nossos artistas desenvolvem no azulejo
azul e branco, em vastas composições historicas e de genero, paizagens,
merendas, caçadas, allegorias religiosas e lendas monasticas,
enquadradas em bellas grinaldas polychromicas, o mais seguro e adestrado
talento de composição historica e decorativa.
Raro será o anno em que de Portugal não tenha desapparecido um quadro
inestimavel ou um codice precioso, sem qualquer apparencia de coherção,
sem o minimo reparo, ao menos, do poder executivo, das côrtes ou da
imprensa. Á hora a que escrevo estas linhas me dizem que está á venda ou
vendido em Londres um livro de horas com que o rei D. Manoel brindára um
fidalgo da sua côrte, ordenando-lhe que vinculasse esse manuscripto, que
era uma gloria da nação.
Não é, em rigor da verdade, muito mais risonho que o destino das obras
d'arte que saem para o estrangeiro o destino das que ficam no paiz.
É bem conhecida a historia do primeiro dos nossos museus industriaes,
fundado em Lisboa por Fradesso da Silveira. Esse museu extinguiu-se
suavemente, a pouco e pouco, até chegar a não existir do deposito
primitivo senão unica e exclusivamente as prateleiras em que elle havia
sido collocado.
O rico museu das antiguidades do Algarve, recolhidas ha dezeseis annos
por Estacio da Veiga, ainda hoje se não acha instalado.
Da inestimavel collecção das antigas peças de louça e de obras de barro,
que haviam pertencido ao convento da Madre de Deus, e que o architecto
Nepomuceno recolhera em uma das casas d'aquelle edificio, desappareceu
tudo.
Tão vasta é a nossa riqueza artistica e tão profundo o desleixo de a
escripturar, que são quasi tão frequentes as surpresas no que se
encontra como no que se perde.
Como exemplo direi que era assentado não haver em Portugal vestigio
algum da influencia immediata de Van Eik na pintura portugueza, e não
existir do infante D. Henrique, o Navegador, mais que um retrato, na
miniatura annexa ao bello manuscripto de Azurara, presentemente
propriedade da _Bibliothèque Nationale_, em Paris. É entretanto nosso, e
existe em Portugal, um retrato egualmente contemporaneo e authentico, em
tamanho natural, magistralmente pintado a oleo sobre madeira. Esse
retrato precioso, inteiramente desconhecido do publico, eu mesmo o vi no
dia 19 do mez de julho de 1895. Faz parte de um grupo de varios
personagens, é da segunda metade do seculo xv, e pertence a um jogo de
quatro paineis, de dimensões eguaes, relacionados entre si por analogia
de data e de assumpto. Está bem conservado, e acha-se, com os tres da
serie a que pertence, no corredor do claustro de cima no edificio de S.
Vicente de Fóra, no vão de uma janella, junto dos aposentos habitados
n'essa occasião por s. ex.^a revd.^{ma} o sr. arcebispo de Mitylene.
O illustre escriptor inglez sr. Prestage mandou fazer d'esse retrato uma
reproducção photographica, destinada a illustrar a nova edição ingleza
da _Chronica da Guiné_.
Na linda egreja do convento de Santa Iria, que o fallecido architecto
Nepomuceno comprou por 300$000 réis, e se achava encorporada no mosteiro
fundado por D. Maria de Queiroz, viuva de Pedro Vaz de Almeida, veador
da fazenda do infante D. Henrique, ha um retabulo em baixo relevo de
bella pedra d'Ançan, que é simplesmente, pelo desenho, pelo stylo, pela
mão d'obra e pelo estado de conservação em que se acha, uma das obras
capitaes da esculptura da Renascença em Portugal. Compõe-se de dezesete
figuras. Junto da cruz, de que pende a mais ideal figura do Redemptor,
está prostrada Santa Maria Magdalena. Acompanham-a a Senhora da
Soledade, as tres Marias, Nicodemus, José de Arimathea e S. João
Evangelista. No primeiro plano, dois soldados a cavallo, em magnifico
trage do seculo XVI. Enquadra a composição um bello portico, de columnas
e tabellas preciosas, chancellado pelo brazão dos Valles. Só outro
Calvario, o do claustro do Silencio, em Coimbra, obra, por certo, do
primeiro dos esculptores de Santa Cruz, hoje profundamente cariada e
quasi delida, se poderia comparar, de par com o pulpito da mesma egreja,
á esquecida esculptura da abandonada egreja de Thomar.
Em egual descaso e esquecimento, ignorado da grande maioria dos
viajantes e dos estudiosos, o monumental e sumptuosissimo panthéon dos
Silvas, da preclara familia de D. Ruy Gomes, em S. Marcos, cerca de
Coimbra. O bello portal alpendrado d'esta egreja tem a data de 1510. Os
cinco sarcophagos de que se compõe o jazigo verdadeiramente regio dos
Silvas, assim como o retabulo em pedra no altar mór da egreja constituem
uma preciosidade esculptural de valor incomparavel. Este admiravel
repositorio da nossa esculptura quinhentista foi ha poucos annos
vendido, com a cerca adjunta do extincto mosteiro, pela quantia de seis
contos de réis.
Os preciosos quadros da pintura portugueza do seculo XVI, completamente
desarrolados, despercebidos dos compradores extrangeiros, e ainda hoje
dispersos pelo paiz, são em numero talvez superior aos dos quadros de
mesma época recolhidos pelo estado depois da abolição das ordens
religiosas. O illustre critico sr. Joaquim de Vasconcellos tem, só á sua
parte, noticia de não menos de cem obras desconhecidas do publico. Das
que existem no Museu Nacional de Lisboa, na arrecadação da Academia das
Bellas Artes e nos demais depositos do paiz, não ha uma só photographia
registrada pelo Estado, á semelhança do que se faz em todos os museus do
mundo.
Por occasião da ultima exposição, tão interessante, realisada nas salas
devolutas, das Janellas Verdes, para celebrar o Centenario de Santo
Antonio, a direcção das Bellas Artes não respondeu ao pedido da modesta
quantia de 50$000 réis que a commissão executiva da mesma exposição lhe
dirigiu para que se publicasse o respectivo catalogo, que ficou em
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