O culto da arte em Portugal - 1

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O CULTO DA ARTE
EM
PORTUGAL


_RAMALHO ORTIGÃO_

O CULTO DA ARTE EM PORTUGAL

_Monumentos architectonicos--Restaurações--Desacatos
Pintura e esculptura--Artes industriaes
O genio e o trabalho do povo--Indifferença oficial--Decadencia
Anarchia esthetica
Desnacionalisação da arte--Dissolução dos sentimentos
Urgencia de uma reforma_


LISBOA
Antonio Maria Pereira, Livreiro-Editor
50--Rua Augusta--52
1896


Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa


_Á Commissão dos Monumentos Nacionaes_

dedica respeitosamente
este humilde trabalho

_O AUCTOR_


Durante a Renascença, e ainda atravez da Edade Média, tão
insufficientemente conhecida no enigma da sua cultura artistica, os
reis, os monges, os fidalgos, os burguezes enriquecidos ostentavam o
fausto e a pompa hierarchica não sómente construindo palacios e
castellos, que enobreciam os logares que elles habitavam, mas erigindo
basilicas e cathedraes, em que se concentravam todos os esforços do
talento de uma raça, e eram verdadeiramente os palacios do povo, doados
magnanimamente pelos mais poderosos aos mais humildes, em nome de Deus,
em nome do rei, em honra da patria.
N'esses edificios incomparaveis se achavam colligidas como em escolas
monumentaes, como em museus portentosos, todas as maravilhas da
sciencia, da poesia e da arte. A esculptura architectural, a estatuaria
dos mausoleus, a imaginaria dos altares, a illuminura dos missaes, a
pintura das vidraçarias, a talha dos retabulos subordinavam-se a um
pensamento commum, expresso n'um vasto symbolismo, comprehendendo as
fecundidades da terra e do mar, o trabalho do homem nos seus
desfallecimentos e nos seus triumphos, a perturbação dos sentidos pelo
peccado, a fatalidade do sangue, o horror do universal aniquilamento, e
o vôo da alma para Deus, levada por um immortal instincto de amor, de
paz, de verdade e de justiça.
Dentro d'essas egrejas, ameaçadas hoje de proxima ruina ou inteiramente
arruinadas, se celebravam todos os actos da vida religiosa, da vida
civil e da vida domestica. Ahi se casavam os noivos, se baptisavam os
filhos, se sepultavam os paes. Ahi se ungiam os reis, velavam as armas
os cavalleiros, professavam os monges, benziam-se os fructos da terra,
as bandeiras das hostes, as ferramentas da lavoura e os pendões dos
officios. Ahi se discutiam os interesses do povo, os direitos, as
franquias, os foros da communa. Ahi se prégava o Evangelho, se resava a
missa, e se representavam os autos populares da vida de Jesus e dos seus
santos; e nas vigilias da Natividade, da Epiphania e da Paschoa, quando
o orgão emudecia no coro e se calavam os cantos liturgicos, o povo
bailava ao longo da nave, sob as abobadas gothicas ou sob as cupulas
bysantinas, e as lôas e os villancicos, entoados pelos fieis, subiam
para o ceu com a fragancia das flores e com o fumo dos thuribulos, ao
repique das castanholas e ao rufar dos adufes.
Ao lado dos brazões e das divisas heraldicas pendiam dos muros os votos
modestos dos mais obscuros mesteiraes, dos mais humildes braceiros.
Esse alcaçar dos pobres, que era a egreja medieval, alcaçar mais
sumptuoso que o de nenhum rei, dava asylo incondicional, inviolavel e
sagrado, aos maltrapilhos, aos villões, aos mendigos, aos lazaros e ás
lazaras de todas as lepras do corpo e da alma, aos tinhosos, aos nus,
aos imbecis, aos ignorantes, aos criminosos, ás mulheres adulteras, ás
mancebas, ás mundanarias, ás barregãs.
O egoismo dos tempos modernos torna-nos incompativeis com o commetimento
de tão grandes obras. Creamos instituições de caridade, fazemos
regulamentos de assistencia publica, e vangloriamo-nos de haver definido
pela revolução liberal o dogma da fraternidade humana, mas somos
fundamentalmente incapazes de consagrar á pratica das virtudes, de que
julgamos ter na historia o monopolio, monumentos como aquelles que
nossos avós lhe levantaram _a proll do comum e aproveitança da terra_,
dando em resultado que o mais andrajoso mendigo da portaria do mosteiro
de Alcobaça ou do mosteiro de Santa Cruz, com o seu alforge ao pescoço e
a sua escudella debaixo do braço, participava, além da ração quotidiana
que se lhe distribuia pelo caldeirão da communidade, de um agasalho de
principe e de um luxo d'arte com que hoje não competem os maiores
potentados, os quaes em suas casas e para seu recreio intimo se rodeiam
de todas as joias artisticas de que pela abolição dos vinculos e pela
extinção das ordens religiosas se apoderou o moderno commercio do
bric-à-brac.
Falta-nos a alta noção de solidariedade patriotica, falta-nos o desapego
dos bens de fortuna, falta-nos o largo espirito de abnegação, falta-nos
a illimitada liberalidade cavalleirosa, e falta-nos a fé dos nossos
avós.
Na architectura trabalhamos unicamente para nós mesmos, sem cuidados de
futuro, sem pensamento de continuidade de raça ou de familia,
deslembrados de que teremos vindouros e de que teremos netos.
Entre as nossas antigas construcções hydraulicas ha o aqueducto de
Elvas, que levou cem annos a fazer. Varias gerações successivas
acarretaram para essa construcção os materiaes; e lentamente,
pacientemente, foram collocando pedra sobre pedra, para que um dia a
agua chegasse a Elvas, e bebessem d'ella os netos dos netos d'aquelles
que de tão longe principiaram a recolhel-a e a canalisal-a. Uma tal
empresa é a humilhação e a vergonha do nosso tempo, imcapaz de pagar com
egual carinho ao futuro aquillo que deve á previdencia, aos sacrificios
e aos desvelos do passado.
O nosso ideal na arte de construir é que a obra se faça em pouco tempo e
por pouco dinheiro. Vamos abandonando cada vez mais, de dia para dia, a
pedra e a madeira, em que é nimiamente moroso para a morbida inquietação
do nosso espirito o trabalho de desbaste, de esquadria e de lavor.
Adoptamos, como material typico do nosso systema de edificar, o ferro, o
tijolo e a pasta. A casa cessou de ser uma obra de architectura para se
converter em uma empreitada de engenharia, e os delicados artistas da
pedra, da madeira e do ferro forjado abdicam da sua antiga missão
perante os subalternos obreiros encarregados de fundir, de amassar e de
enformar a vapôr a habitação moderna e o moderno edificio publico--a
gare, o quartel, o mercado ou a cadeia.
O seculo XIX, se com a impotencia de continuar a obra monumental dos
seculos que o precederam, accumulasse a incapacidade de comprehender e
de venerar essa obra, representaria um pavoroso retrocesso na historia.
Não succede assim, porque são inviolaveis as leis do progresso. Ao
seculo XIX coube patentear o estudo mais dedicado e o conhecimento mais
perfeito da arte antiga. A sciencia archeologica e a critica d'arte
nunca em nenhum outro periodo da civilisação chegaram á eminencia
attingida pelos investigadores contemporaneos. É tambem em sua maneira
um colossal monumento, dos mais gloriosos para a intelligencia, o que
erigiu a erudição do nosso tempo, constituindo scientificamente a
archeologia, definindo o seu methodo, fixando os seus limites,
especialisando o trabalho dos seus contribuintes, distinguindo da
archeologia litteraria a archeologia da arte, ramificando para um lado a
paleographia, a epigraphia, a ecdotica, a museographia e a propedeutica,
para o outro as bellas artes, as artes industriaes, a numismatica, e
ainda como desdobramento d'estes estudos a iconographia, a mithologia
figurada e a symbologia, particularisando emfim estas investigações a
cada povo e a cada epocha da humanidade, creando d'esse modo a
prehistoria, a egyptologia, a syriologia, que tão amplo clarão teem
derramado sobre os problemas da origem do homem, da distribuição das
raças, da formação das linguas. Fixaram-se pelas escavações de Troia, de
Mycenes, de Chypre, de Santorin e de Rhodes as origens orientaes e
pelasgicas da arte grega. Corrigiu-se na historia da ceramica a confusão
existente entre os vasos pintados gregos e etruscos. Refez-se
completamente sobre novos elementos e por um criterio novo a historia da
olaria, a da toreutica, a da glyptica, a da esculptura em barro, a dos
bronzes, a das joias, a da tapeçaria, a da illuminura. Desvendou-se o
conhecimento da tachigraphia hieratica e dos alphabetos hieroglyphicos,
ideographicos e phoneticos, que precederam o alphabeto grego e o latino.
Creou-se a critica scientifica dos textos. Colligiram-se e
classificaram-se as inscripções gregas e romanas dessiminadas pela
Europa, e definiu-se o methodo de as datar. Leram-se os carcomidos
graffitos de Pompeia, os papyrus carbonisados de Herculanum, as cartas
lapidares da edade média e os palimpsestos de Plauto, de Cicero, de
Marco Aurelio, de Tito Livio, de Euripedes e dos scribas carolingeanos.
Interpretaram-se os documentos de procedencia egypcia, copta ou phenicia
sepultados nos jazigos das mumias. E os mysteriosos caracteres
hieroglyphicos e cuneiformes das inscripções egypcias, caldéas, assyrias
e persas foram simplesmente trasladados a vulgar. Determinou-se a edade
dos manuscriptos pelo systema das abreviaturas e da pontuação e pela
evolução da letra desde a oncial da _Iliada_ no palimpsesto
greco-syriaco do Museu Britannico até a minuscula italiana egual á dos
primeiros caracteres da imprensa. Inspeccionaram-se e inquiriram-se as
primitivas habitações do homem, as suas primeiras fortificações, os seus
mais antigos sepulcros,--a caverna, a cidade lacustre, os castros e os
dolmens. Na architectura principiou-se a estudar por novos meios de
critica as causas dos seus progressos e da sua decadencia, prendendo
assim pelos mais estreitos vinculos ao destino da arte o destino do
homem. Por tal modo se transfigurou completamente desde o seu alicerce
até o seu remate o vasto edificio da historia, segundo a resumida
formula dada por Champolion Figeac: que todos os monumentos, ainda os
mais communs e os mais grosseiros, conteem factos cujo conjuncto é como
a estatistica moral das sociedades extinctas.
D'esse novo criterio resultou a attenção especial com que todos os povos
cultos principiaram a considerar a obra material do passado; e assim
nasceu, com uma nova palavra, a nova maneira de _restaurar_ os edificios
publicos.
Em mais de um documento da edade média se encontram provas de que os
antigos poderes não abandonavam, tão completamente como hoje se poderia
suppor, ao accaso de qualquer iniciativa, sem beneplacito do estado, as
edificações consagradas ao publico. No _Codigo de las partidas_, lei
6.ª, titulo X, dizia Affonso o Sabio, n'aquella saborosa lingua de que
mais tarde se desdobrou o portuguez e o castelhano: «Por bienaventurado
se debe tener todo home que pueda facer eglesia, do se ha de consagrar
tan noble cosa et tan sancta como el cuerpo de Nuestro Señor Jesucristo,
et como quiere que todo home ó mujer la puede facer a servicio de Dios,
pero con mandamiento del obispo, como es dicho en la ley segunda deste
titulo, con todo eso debe catar dos cosas el que la ficiere, que la faga
complida et apuesta; et esto tambien en la labor como en los libros et
en las vestimientas...»
Affonso V escreve de Almada, em 1467, aos juizes, vereadores,
procuradores e homens bons da cidade de Evora para que se permitta a
Sueiro Mendes levar duas pedras que estavam nos açougues, e eram do
antigo templo romano, para antipeitos das janellas de uma casa, que a
esse tempo edificava. «E porque as ditas pedras aproveitam pouco honde
estam e em as ditas casas faram muito, e ainda é nobresa as cidades
haverem em ellas bôas casas taes como as do dito Sueiro Mendes, e seu
fundamento he as faser para nós em ellas havermos de pousar, Nós vos
rogamos e encomendamos que vos prasa lh'as quererdes dar, e Rodrigo
Esteves mestre das nossas obras em essa cidade terá cuidado de as tirar
donde estam, etc.» Estas linhas são um traço caracteristico da policia
do tempo. D'ellas se deduz que era preciso no seculo XV requestar a
intervenção regia para bulir em duas pedras de um velho monumento,
operação que hoje se realisa com menos formalidades, e até, como é
sabido, sem formalidade alguma. Era porém entendido como doutrina
corrente não desdizer da nobreza de uma cidade que cantarias de stylo
romano se transpuzessem do edificio a que pertenciam para edificio de
stylo completamente diverso. Aquillo que modernamente se entende pelo
neologismo restaurar é operação desconhecida dos antigos. A obra
architectonica seguia sempre e invariavelmente quer em novas
edificações, quer em reparação de antigas, o systema e o stylo da epocha
em que era feita. Sem falarmos do Egypto, da Grecia, de Roma, onde as
reconstrucções se emprehendiam, sem o menor sentimento de respeito pela
tradição, em vista de celebrar uma gloria coeva com os mesmos materiaes
que haviam servido á glorificação de feitos anteriores, como no arco de
Constantino feito com as pedras do arco de Trajano, vemos em toda a
Europa, e mais particularmente em Hispanha e em Portugal, edificios em
cujos stylos sobrepostos perfeitamente se espelha o independentismo das
influencias diversas atravez das successivas phases da construcção por
differentes vezes interrompida. Uns nascem genuinamente bysantinos e
desenvolvem-se romanicos; outros começam romanicos e concluem gothicos;
outros, gothicos de nascença, acabam no clacissismo greco-romano do
renascimento; e é frequente nas nossas egrejas entrarmos por um portal
do seculo XVI para nos defrontarmos com uma capella mór no stylo barroco
de D. João V, de D. José ou de D. Maria I. D'esses casos de
polyarchitectonismo encontramos exemplos em Toledo, em Burgos, nos
Jeronymos, na Batalha.
A cathedral de Colonia é n'este ponto de vista, um facto particularmente
expressivo. A construcção, principiada no meado do seculo XIII,
proseguida muito lentamente, suspende-se no fim do seculo XV por
desanimo de a concluir segundo o plano primitivo. No seculo XVII e no
seculo XVIII, a nave, abrigada por um tecto provisorio, é ornamentada em
stylo rococo. Sómente em 1842 se encetaram os trabalhos de uma
restauração authenticamente archeologica, segundo o plano original,
cabendo o projecto da conclusão a um architecto que ao mais profundo
estudo do stylo ogival reunia o talento mais esclarecido e mais
perspicaz.
Na historia da cathedral de Milão circumstancias analogas ás de Colonia
veem ainda corroborar a affirmação de que unicamente ao seculo XIX cabe
o privilegio de restaurar monumentos. A obra de Milão iniciada no seculo
XIV, é interrompida por desavenças entre os architectos, uns allemães,
outros italianos, outros francezes; é continuada no seculo XVI em stylo
da renascença; e tão sómente em 1805 a restauração do monumento no seu
stylo primitivo, segundo os programmas mais tarde definidos, se achou
determinada por Napoleão I, o qual pela vastidão do seu genio, ainda que
pouco propicio aos humildes, muitas vezes se adeantou do seu tempo, e em
muitas campanhas da intelligencia indicou de antemão o ponto da
victoria, assim como ao principiar a campanha de Italia assignalava na
carta do Piemonte o logar de Marengo.
Foi Vitet, nomeado inspector geral dos monumentos historicos em 1830,
quem primeiro indicou em França o programma das restaurações
architectonicas, presentemente seguido em toda a parte:--em Hispanha,
onde depois da real ordem de 4 de maio de 1850, se não emprehende obra
de especie alguma nos edificios monumentaes sem prévia consulta da
commissão dos monumentos historicos e artisticos; em Inglaterra e na
Allemanha, que haviam precedido a França na protecção da arte nacional;
na Italia, emfim, na Belgica, na Dinamarca, na Suecia, na Noruega, na
Grecia, na Turquia.
Violet-le-Duc, o erudito mestre a quem tanto deve o ensino da
archeologia e das artes, completou o programma de Vitet, não sómente
ampliando os seus preceitos, mas dando da applicação d'elles o mais
notavel exemplo na restauração do castello le Pierrefonds.
Conhecidos os livros de Violet-le-Duc, estudados com tão paciente
laboriosidade, escriptos com tão lucido e penetrante engenho, e
conhecida a legislação européa baseada n'esses estudos tão completos e
tão perfeitos, a questão puramente administrativa de dar aos monumentos
nacionaes de cada povo a protecção que se lhes deve, quando menos por
simples solidariedade intellectual na civilisação do nosso tempo, é
questão perfeitamente illucidada e rigorosamente definida.
Vejamos agora qual é em Portugal, perante as responsabilidades da
administração, o reflexo das ideias, cuja historia procurei resumir, com
o fim de pôr o assumpto na perspectiva que a sua magnitude pede.

Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos os
attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a mais
desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos
architectonicos da nação, os quaes assignalam e commemoram os mais
grandes feitos da nossa raça, sendo assim por duplo titulo, já como
documento historico, já como documento artistico, quanto ha, sobre a
terra em que nascemos mais delicado e precioso para a honra, para a
dignidade, para a gloria da nossa patria.
Dos desacatos de lesa magestade nacional, a que tenho a dôr e a vergonha
de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam directamente a
cumplicidade official. Os primeiros são uma consequencia de desdem; os
segundos são um resultado de incapacidade.
A auctoridade, incerta, vagamente definida, a quem tem sido confiada a
conservação e a guarda da nossa architectura monumental, procede com
esse enfermo, de quem se incumbiu de ser o enfermeiro, por dois methodos
differentes: umas vezes deixa-o morrer; outras vezes, para que elle
mesmo não tome essa resolução lamentavel, assassina-o. Na primeira
hypothese a calamidade correlativa chama-se _abandonar_. Na segunda
hypothese a catastrophe correspondente chama-se _restaurar_,--gallicismo
technico, recentemente introduzido no vocabulario nacional, mas ainda
não definido vernaculamente na applicação pratica.
Para o argumento que tenho em vista produzir, tomarei unicamente d'entre
os differentes desastres com que se deshonram e enxovalham os nossos
monumentos, o desastre denominado _restauração_.
Serei laconico, sem deixar de ser sufficientemente expressivo, porque os
factos são de uma eloquencia que esmaga toda a especie de replica na
materia de que se trata.
Aqui temos tres edificios restaurados ou em restauro a expensas da
nação, sob os auspicios do estado: Os Jeronymos, a Madre de Deus e a
Batalha.
Nos Jeronymos a construcção desmoronou-se, sem provocação alguma de
agente extranho, por mero desequilibrio de si mesma. Inutil todo o
commentario. A restauração, ainda antes de terminada, cahiu. Que prova
mais lastimavelmente completa, evidente e cabal, de que foi
insufficientemente estudado, logo nos seus primordiaes elementos, o
programma de tal restauração?! As seguranças de execução falham
precisamente na parte mais rudimentar do problema.
Attente-se em que não se trata ainda de uma questão de archeologia, nem
de uma questão de arte; não se apresenta nenhuma d'essas subtis
difficuldades inherentes ao estudo das fórmas constructivas ou
ornamentaes, ao discernimento dos diversos stylos, ao pleno conhecimento
das antigas escolas no tempo e na região a que o edificio pertence.
Resolve-se apenas realisar uma simples tarefa de construcção, e esquece,
incumbindo esse trabalho de simples mestre de obras ao mais distincto
dos scenographos, que a primeira condição de um architecto a quem se
confia a restauração de um monumento é que elle seja, antes de tudo,
acima de tudo, o mais habil, o mais experiente, o mais perito de todos
os constructores.
Na Madre de Deus, onde aliás o primitivo portal da rainha D. Leonor foi
discretamente reconstituido na moderna fachada do edificio, temos o
infortunio de ir encontrar no consecutivo restauro de uma fabrica do
tempo de D. João III novos capiteis de columnas, nos quaes em vez da
ornamentação vegetal do nosso seculo XVI se vê reinar nos entablamentos
a figuração, absolutamente imprevista e inopinada, de uma locomotiva de
caminho de ferro, arrastando fumegante o respectivo comboyo, tudo
lavrado mui laboriosamente em pedra, e demandando um tunel. Este
assombroso phenomeno de pathologia archeologica estou convencido de que
dispensa ainda mais do que o caso dos Jeronymos a investigação da
autopsia.
Nas restaurações da Batalha, umas já em realidade, outras ainda em
projecto, falta, primeiro que tudo, o meditado programma de conjuncto no
ponto de vista archeologico, no ponto de vista artistico e no ponto de
vista technico, visando o assumpto por todos os lados de que elle pode
ser encarado: qualidade do solo, influencias da atmosphera, escolha de
materiaes, condições de resistencia e de equilibrio, systema geral de
structura, determinação do stylo, desde as suas grandes linhas e dos
seus motivos dominantes até os ultimos desenvolvimentos d'essas linhas,
até o extremo desdobramento d'esses motivos, mão de obra, direcção e
apprendisagem em todas as officinas de que depende o restauro, etc.
Seria por um programma d'essa natureza que a competencia do architecto
restaurador deveria principiar a affirmar-se. Perante essa prova,
comprehendendo o estudo do monumento, plantas, alçados, photographias,
desenhos de projectos, systemas de stylisação, methodos de estudo e de
trabalho, regimentos de officinas, etc., poderiamos nós, que não somos
architectos, mas simples criticos, fiscaes da arte em nome do publico,
decidir se o restaurador da Batalha está ou não está ao nivel da sua
missão. Sem prova d'essa ordem que cotejemos com os requisitos a que
teem de satisfazer, nos paizes extrangeiros, os architectos a quem se
entrega a restauração de um monumento, nós não podemos julgar senão de
um modo muito imperfeito, tendo de entrar mais ou menos no exame da
execução, para o qual nos fallece a competencia profissional.
Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque é o unico architecto portuguez de
quem conhecemos, com relação á historia do edificio e ao plano da
restauração da Batalha, estudos especiaes, consubstanciados n'uma
memoria publicada, depois da morte do auctor, em 1867. A monographia a
que me refiro, além de mui interessantes revelações sobre os vandalismos
perpetrados pelos ultimos frades que habitaram o mosteiro e chegaram a
quebrar os preciosos vidramentos das janellas para presentearem os
visitantes com cabeças das figuras de que elles se compunham, contém
alguns principios mui judiciosos e bem definidos, sobre o modo como esse
perito restaurador, que a influencia do rei D. Fernando fizera nomear,
comprehendia a sua delicada missão. E excellente o methodo por elle
proposto para a conservação das Capellas imperfeitas. Notam-se alguns
excessivos e infundados rigores de zelo, como na parte em que ao
restaurador repugna adoptar, para o fim de pôr o monumento ao abrigo das
intemperies, processos de resguardo mais perfeitos que os conhecidos ao
tempo da construcção primitiva, taes como, por exemplo, o emprego de
cimentos modernos na vedação de uma cobertura, etc. A memoria programma
de Mousinho de Albuquerque é não obstante um trabalho de incontestavel
merecimento, que muito augmenta de valor se levarmos em conta que esse
illustre architecto escrevia em 1840, quatro annos depois d'aquelle em
que o rei D. Fernando visitou o edificio, chamando para elle pela
primeira vez a attenção dos poderes publicos.
Até Mousinho a architectura da Batalha foi na litteratura portugueza um
puro thema de rhetorica. O romantismo tinha-nos trazido a moda do
gothico por via de Chateaubriand e de Victor Hugo. Os romances, as
xacaras, as baladas e os solaus, com as suas castellãs, os seus
paladinos, os seus pagens, os seus menestreis e os seus respectivos
attributos--lanças, montantes, elmos, guantes de ferro, falcões, adagas,
béstas e bandolins, pediam um scenario de fortificação feudal, fossos e
pontes levadiças, revelins, caminhos de ronda, ameias, torres de
menagem, amplas chaminés com trasfogueiros forjados, ogivas e abobadas.
As egrejas, para os effeitos de grandiosidade no stylo, sempre que não
eram ermidas eram cathedraes. Os romanticos chamavam cathedraes a todos
os grandes templos, como o da Batalha, o do Carmo e o dos Jeronymos. O
romance historico, tanto em voga durante a geração litteraria de
Alexandre Herculano, tinha exigencias decorativas analogas ás da poesia
cavalheiresca. Os estudos de critica e de archeologia artistica, tendo
por objecto os nossos monumentos architectonicos, davam em resultado
geral uma especie de lenga-lenga de eruditos ciceroni.
A Batalha tem sido constantemente, desde a primeira apparição da
_Abobada_ no _Panorama_, até hoje, o _grande livro de marmore_, o
_immortal poema_, a _Divina Comedia portuguesa_, a triumphante
affirmação da nacionalidade independente, definitiva, fundada pela
vontade do povo, pela espada do mestre de Aviz, pela lança de D. Nuno
Alvares Pereira e pela penna de João das Regras.
Com effeito, nada mais bello, na historia nacional, do que o feito
d'armas de Aljubarrota e o monumento de Nossa Senhora da Victoria,
destinado a commemorar esse feito, por voto de D. João I. Mas d'ahi a
poder-se dizer que o edificio da Batalha é, como a epopéa dos
_Luziadas_, a imagem technica das idéas e dos sentimentos da patria,
medeia--me parece--um largo abysmo.
Olhemos por um momento a historia d'esta construcção.
Frei Luiz de Sousa diz que «El-rei chamara de longes terras os mais
celebres architectos que se sabiam; convocara de todas as partes,
officiaes de cantaria déstros e sabios; convidara a uns com honras, a
outros com grossos partidos, e obrigara a muitos com tudo junto.» Este
testemunho é precioso e está acima de toda a suspeita, porque nos vem de
um frade de S. Domingos, que habitou por muitos annos o convento da
Batalha, e que, como chronista da ordem, conheceu inteiramente pelo
archivo do convento quanto se sabia da historia da sua fundação.
Frei Francisco de S. Luiz contesta, sem provas, que fossem architectos
celebres chamados de longes terras, como diz Sousa, os iniciadores da
grande obra, e cita como auctor do risco Affonso Domingues, porque
d'elle se sabe que teve parte na direcção das obras nos primeiros annos
da fundação, e não consta de documento authentico que qualquer outro
architecto interviesse nos trabalhos durante os dezeseis annos que
medeiam entre o seu começo e o anno da morte de Affonso Domingues, em
1402.
Todos os que se seguiram a Frei Francisco de S. Luiz, adoptaram esta
opinião; de modo que se tornou uma cousa tão corrente como se estivesse
demonstrada que foi Affonso Domingues quem construiu a Batalha.
James Murphy, porém, no seu livro _Travels in Portugal_, affirma, por
_informações que lhe foram dadas em Lisboa por empregados da Torre do
Tombo_, que o encarregado da construcção foi o architecto inglez Stephan
Stephenson, socio das _free and accepted masons_, que tinham a sua séde
principal em York. Stephenson teria vindo a Portugal por intervenção da
rainha D. Filippa, mulher de D. João I, ingleza de nação, filha do duque
João de Lencastre e neta de Eduardo III.
O conde de Rakzynski diz a este respeito, que desde que examinou as
gravuras do convento da Batalha, na obra _in folio_ de Murphy, se
convenceu de que a analogia existente entre a Batalha e a cathedral de
York não permitte a minima duvida acerca da origem commum d'estes dois
edificios. «Que o plano da igreja da Batalha--diz Rakzynski--seja obra
de um portuguez ou de um inglez, a verdade é que as duas igrejas
nasceram de inspirações artisticas analogas, homogeneas e
contemporaneas, e o estylo de ambos me parece identico. Esta impressão
tornou-se para mim ainda mais forte, depois que visitei a Batalha.»
Temos, pois, sobre a origem estrangeira d'este monumento tres votos
importantes: o de Fr. Luiz de Sousa, o de James Murphy e o do conde de
Rakzynski, aos quaes recentemente se juntou o architecto Haupt.
Na Torre do Tombo não se encontra documento algum relativo á construcção
da Batalha, nem á vinda de Stephenson a Portugal. Em 1845, Alexandre
Herculano e o Visconde de Juromenha, auxiliados pelos officiaes da
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