Orpheu Nº2 Revista Trimestral de Literatura - 4

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Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas atravez duma imaginação quasi literaria,
A furia da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque,
Da chacina inutil de mulheres e de crianças,
Da tortura futil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres,
E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um mêdo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos á vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães dêles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para vêrem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa).
Aguilhôo uma ansia fria dos crimes maritimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciencias a uma mesa de jantar de provincia com a toalha atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abominaveis e não os achar grande cousa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dôr mas nunca deixar chegar lá...
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente--oh pavor por todas as minhas veias!--,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglez Jim Barns, com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas cousas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Bôca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim...
Vem surdamente, como se fôsse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro logar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um halito silencioso,
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e noturno, o sôpro fundo e confuso:
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô--yyy......
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô----yyy......
Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô------yyy.........
Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de saír dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nêrvos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquêtes que chegam cêdo.
Já não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higienica, forte, prática,
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis,
Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros,
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
Maravilhosa vida maritima moderna,
Toda limpeza, maquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão expontaneamente ajustado,
Todas as peças das maquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fôsse por leis naturais,
Nenhuma cousa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora ha a mais as maquinas
Com a sua poesia tambem, e todo o novo genero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das maquinas veiu trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve--
Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas especies!
Pequenos, grandes, de varias côres, com varias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapôres nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prasenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homerico, ó Ulisses!
O olhar humanitario dos faróis na distância da noite,
Ou o subito farol proximo na noite muito escura
(«Que perto da terra que estavamos passando!» E o som da agua canta-nos ao ouvido)!...
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas ha o comercio;
E o destino comercial dos grandes vapôres
Envaidece-me da minha epoca!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa epoca onde é tão facil
Misturarem-se as raças, transpôrem-se os espaços, vêr com facilidade todas as cousas,
E gosar a vida realisando um grande numero de sonhos.
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em rêdes de arame amarelo,
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higienico respirar o ar do mar.
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularisar-se.
Com um grande prazer natural e directo percorro com a alma
Todas as operações comerciaes necessarias a um embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigôr comercial do principio e do fim das cartas:
Dear Sirs--Messieurs--Amigos e Snrs,
Yours faithfully--... nos salutations empressées...
Tudo isto é não só humano e limpo, mas tambêm belo,
E tem ao fim um destino maritimo, um vapôr onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
Que tem amores, odios, paixões politicas, ás vezes crimes--
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Ha quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesario Verde, o sentias.
Eu é até ás lagrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não ha poesia no comercio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os póros... Neste ar maritimo respiro-a,
Porque tudo isto vem a proposito dos vapôres, da navegação moderna,
Porque as facturas e as cartas comerciaes são o principio da historia
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um misterio maritimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitorios duma mesma patria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das ágoas!
Grandes hoteis do Infinito, oh transatlanticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as especies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes--tantas especies dêles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se póde dar á vida,
Á vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma idéa revolucionaria.
É uma cousa que a gente aprende pela vida fóra, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burguezes,
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saíndo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpatico de proletario dos mares,
E sem duvida anunciado ontem na última página das gazetas.
Enternece-me o pobre vapôr, tão humilde vai êle e tão natural.
Parece ter um certo escrupulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer especie de deveres.
Lá vai êle deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai êle tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importancia.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favôr
De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,
(T-t--t---t----t-----t...)
O volante dentro de mim pára.
Passa, lento vapôr, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe vêr-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edificios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nitido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angustia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicirculo de não sei que emoção
No silencio comovido da minh'alma...

ALVARO DE CAMPOS,
_Engenheiro._


[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.]

*SANTA RITA PINTOR.*
PARIS ANNO 1913.

Syntese geometral de uma cabeça--infinito plastico de ambiente--
transcendentalismo phisico.

_(SENSIBILIDADE RADIOGRAPHICA.)_


_LUÍS DE MONTALVÔR_

*NARCISO*
POEMA

a Fernando Pessôa.


*NARCISO*

Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas!
E até onde irá o aroma dos seus gestos
que sei tentam prender meus olhos que, funestos,
sonham um esplendor fatal de pedrarias?
Tarde de tentação! Que estranhas melodias
inquietam o ceo de um rumor ignorado?
Seringe! Tua flauta arrosa de encantado
e sangue de Ilusão esta tarde em demencia
que a legenda recorda; e da immortal essencia
do sonho esta hora antiga exhuma o velho idilio.
Ha mãos de festa e sonho em meu deserto exilio!
A Beleza é pra mim, ó ninfas! o segredo
com que Deus me vestiu de Lindo!... Ai, tenho medo
de morrer o que sou ás mãos desse desejo
das ninfas; mas está a sombra que não vejo
depois e antes de mim e, se afundo o olhar na ancia
de me ver, só me vejo ao collo da Distancia!
Deixai dormir um pouco o ceo nos olhos meus,
eu não os quero abrir antes que os feche,--Deus!--
Ninfas! vós penteais o pavor á janella
da minha alma atravez a hora sombria e bella.
Corôas não serão sobre mim as de flôres
que desfolhais, mas brancos braços de amôres
que abrem nocturnamente e num paiz sem dia...
Sois o sonho de mim ao collo da Alegria!
Vossa presença põe o medo em meu destino.
As taças que entornais do aroma sibillino
da seducção, de tédio enchem o que me déste,
ó Deus!
Gela meu ser ao sorriso terrest'e
das virgens, que reflecte a tarde a rescender
do olor de Pan!
... E o olhar dóe por no o esconder
do ceo; pois para toda a alma dormir, do bello,
o serafico azul é como um pezadêlo!
Porêm como fugir ao sonho que me faz
como estrangeiro em mim; do bello azul, voraz
a bôca triste, sem côr e de humanas dôres--
como se triunfal e de palidas flôres
da noite, fôssem de um sonho, na hora escultado?
Captivo em mim sou como o dragão que, inviolado,
bebe a scintillação da s'nora claridade
do cabello sinistro, onde a luz arde e invade
de metalico hallor o nixo onde se acoite...
Vossos cabellos ai! chovem como oiro, á noite!
como fios de horror da teia do mistério...
Do cabello, o esplendor do oiro esteril, é aério
c'mo de arachnideo sonho ou de siderio tecto
cinzelado no olhar--um reflexo de insecto--
no frio vôo num ar de somno e oiro e luto...
Avalanches de tédio em seu cabello escuto!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fixo a carne, spectral, como ante inerte frizo
de sombras, a nudez, linha esquecida em riso
sobre chammas, cruel,--Joia dos calafrios!--
Um horror de ónix néva entre os meus dedos frios!
Contemplo o meu destino em mim.
Ninfas, adeus!
Meus gestos irreaes tem seculos de Deus!
Na paisagem do ser corre um rio sem fim:
Os meus gestos são como a outra margem de mim...
Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos.
É sempre noite lá no fundo dos meus gestos
onde espreita Deus: ha luar nas minhas mãos...
As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos,
--mundos de sonolencia ardendo em reliquarios:
Joias celestes, vós, meus gestos solitarios!
Por mim divaga o ceo. E morre um diadêma
á minha fronte triste e pensativa, emblêma
da alma palida como um velho pálio ou ouro...
Comtudo que torpor me encosta ao sorvedouro
c'mo esfinge que se inclina ao abysmo e debruça,
a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça?
É que um gesto sem nome em minha alma se aclara,
e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara!
Meus gestos vão como esta agua sempre correndo
pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo,
á voz da agua--cristal sonoro do alhear-me!--
No novelo de mim a minha ancia a enredar-me.
Ó agua sempre triste em seu ir pela parte
da terra que é livida e c'mo alma que se farte
de sonhos! Não será a minha sombra ausente
um ar vosso--ou serei a imagem da corrente?
Quem descesse o mistério e visse a semelhança
nesse intimo torpor das cousas, onde cansa
essa fuga do tempo em sombra reflectida...
Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida,
e se olhasse pra traz t'ria medo de mim...
(Inter-lunio de nós no sonho d'alêm-fim...)
O que me reflectir roubará meu segredo.
O tempo escorre por nós como alguem com medo
por sobre um muro... Crio olhos de ser distante...
Na alma porei as mãos como por um quadrante...
As mãos são tempo... e tudo é um somno de si...
Miro-me, e não serei a sombra onde me ví?...
Ó espelho sem hora! Ó agua em somno, lustral,
--espelho horizontal de tédio c'mo um canal
sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dôr!
Só me reflicto e não me vejo no torpor
da agua que abana o tempo... ai, o tempo é a voz
com que se acorda o medo--escultura de nós
na distancia...
Em rumor, na agua, vago demencia
e durmo de Beleza ao collo da Aparencia,
que foge como esta agua e este tempo a correr...
Marulhar de mim no fundo do meu ser...
Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contin'os...
Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos
como arabescos...
Abro os braços, mas em vão,
e ergo-me de mim com vestes de comoção!
Resta-me contemplar pela noite que inundo
de mim, pendido sobre a aparencia do mundo.
Minha sombra exilada esculto-a na doçura!
Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura!
Sinto que a minha voz já atravessou Deus!...
Cresço sobre mim, ó noite em delirio!
Adeus!
Imagem de ser bello ás mãos da minha infancia.
Sou echo de rumor quebrado na distancia.
Alma da noite antiga incendiada a lavores!

LUÍS DE MONTALVÔR.


[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.]

*SANTA RITA PINTOR.*
PARIS ANNO 1912.

Decomposição dynamica de uma mesa--estylo do movimento.

_(INTERSECCIONISMO PLASTICO.)_


*CHUVA OBLÍQUA*

POEMAS INTERSECCIONISTAS
DE
FERNANDO PESSOA


*Chuva obliqua*

*I*
Atravessa esta paysagem o meu sonho d'um porto infinito
E a côr das flôres é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do caes arrastando nas aguas por sombra
Os vultos ao sol d'aquellas arvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pallido
E esta paysagem é cheia de sol d'este lado...
Mas no meu espirito o sol d'este dia é porto sombrio
E os navios que sahem do porto são estas arvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paysagem abaixo...
O vulto do caes é a estrada nitida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das arvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cahir amarras na agua pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a agua do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paysagem toda, renque de arvores, estrada a arder em aquelle porto,
E a sombra d'uma náu mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu vêr esta paysagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

*II*
Illumina-se a egreja por dentro da chuva d'este dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ella é o templo estar acceso,
E as vidraças da egreja vistas de fóra são o som da chuva ouvido por dentro...
O esplendôr do altar-mór é o eu não poder quasi vêr os montes
Atravez da chuva que é ouro tão solemne na toalha do altar...
Sôa o canto do côro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a agua no facto de haver côro...
A missa é um automovel que passa
Atravez dos fieis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Subito vento sacode em esplendôr maior
A festa da cathedral e o ruido da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre agua perder-se ao longe
Com o som de rodas de automovel...
E apagam-se as luzes da egreja
Na chuva que cessa...

*III*
A Grande Esphynge do Egypto sonha por este papel dentro...
Escrevo--e ella apparece-me atravez da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pyramides...
Escrevo--perturbo-me de vêr o bico da minha penna
Ser o perfil do rei Cheops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abysmo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pyramides a escrever versos á luz clara d'este candieiro
E todo o Egypto me esmaga de alto atravez dos traços que faço com a penna...
Ouço a Esphynge rir por dentro
O som da minha penna a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vel-a uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detraz de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre elle e a penna que escreve
Jaz o cadaver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal diffusa
Entre mim e o que eu penso...
Funeraes do rei Cheops em ouro velho e Mim!...

*IV*
Que pandeiretas o silencio d'este quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Ha danças sensuaes no brilho fixo da luz...
De repente todo o espaço pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do tecto, muito mais longe do que elle está,
Abrem mãos brancas janellas secretas
E ha ramos de violetas cahindo
De haver uma noite de primavera lá fóra
Sobre o eu estar de olhos fechados...

*V*
Lá fora vae um redemoinho de sol os cavallos do carroussel...
Arvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira illuminada, luar no dia de sol lá fóra,
E as luzes todas da feira fazem ruido dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha á cabeça
Que passam lá fóra, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das arvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Apparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam á cabeça,
E toda esta paysagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruidos e luzes é o chão d'este dia de sol...
De repente alguem sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cahe
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos d'aquella rapariga que abandona a feira,
Sósinha e contente como o dia de hoje...

*VI*
O maestro sacode a batuta,
E languida e triste a musica rompe...
Lembra-me a minha infancia, aquelle dia
Em que eu brincava ao pé d'um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha d'um lado
O deslisar d'um cão verde, e do outro lado
Um cavallo azul a correr com um jockey amarello...
Prosegue a musica, e eis na minha infancia
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vae e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavallo azul com um jockey amarello...
Todo o theatro é o meu quintal, a minha infancia
Está em todos os logares, e a bola vem a tocar musica
Uma musica triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarello.
(Tão rapida gira a bola entre mim e os musicos...)
Atiro-a de encontro á minha infancia e ella
Atravessa o theatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarello e um cão verde
E um cavallo azul que apparece por cima do muro
Do meu quintal... E a musica atira com bolas
Á minha infancia... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavallos azues e jockeys amarellos...
Todo o theatro é um muro branco de musica
Por onde um cão verde corre atraz da minha saudade
Da minha infancia, cavallo azul com um jockey amarello...
E d'um lado para o outro, da direita para a esquerda,
D'onde ha arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orchestras a tocar musica,
Para onde ha filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memorias da minha infancia...
E a musica cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavallo azul, o maestro, jockey amarello tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga d'um muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desapparece pelas costas abaixo...

_8 de Março de 1914._

FERNANDO PESSÔA.
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