Orpheu Nº2 Revista Trimestral de Literatura - 2

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este Sonho immortal como um Cysne divino.


_FOLHAS MORTAS_

Dêste relogio belga, enorme, branco e triste,
tombam as horas como folhas mortas.
Por uma tarde outomnal, triste de spleen e folhas mortas:
Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste.
Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste
e as horas tombam como folhas mortas.
Porque não nasci eu um lirio nobre e triste,
pétala sem perfume entre essas folhas mortas?
Um Versalhes fulgura em cada illusão triste,
um Versalhes de outomno atapetado de folhas mortas!
Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste
e as horas tombam como folhas mortas...


_SOB OS TEUS OLHOS SEM LAGRIMAS_

Ah! não dirás por certo
que não te amei, que não soffri!
--Foi-me a tua alma assim como um salão deserto
onde, uma noite, me perdi.
Um ramo de violetas fenecia
em cada movel amortalhado pelo pó;
a purpura das cortinas, rubra, estremecia
presa a cada janella. Eu hesitava, só.
--E era meu coração, por ti quasi ferido,
á duvida infantil que o emmudecera já,
um velho piano adormecido
que ninguem mais acordará.

EDUARDO GUIMARAENS.


*ATELIER*

NOVELA VERTÍGICA
POR
RAUL LEAL


*Atelier*

Em ondas de perfúme estranho as convulsivas exalações do Sonho
iluminam vágamente o lár sombrio do artista que outra luz quasi não
possue. A poucos pássos duma téla, profunda como a dor que ela evoca,
o modelo por entre as vibrações duma alucinação sinistra todo
vigorosamente contórce a alma, pelo semblante derramando a tortúra que
a alma cava. Compreende a árte, no seu espirito sente a expressão do
belo que todo o arrasta e anciósamente procurando ao artista transmitir
a sublime inspiração da dôr, fórte, arrebatadora, na própria fisionomia
a idialisa torturando o espirito que só assim, no semblante se
concretisa... pela dôr! É gigantesca a sua personalidade que ao bélo
tudo sacrifica, que só do bélo sábe vivér!...
Envolvido nas trevas convulsivas que o seu espirito concebe, Luar
ardentemente transpira o delirio da morte, o espasmo eterno da
Existencia que só ele póde sentir, e é nesse ambiente de horror
vigorósamente concentrado nele, sintese suprema do Universo, é nesse
ambiente, forte e sublime, que Luar, o modelo idial, procura eternamente
arrastar a vida!... E o horror em que a sua alma se torna, ele domina
e... vigorisa...!
Cresce nesse momento duma arte tragica que a matéria mal toca e em que
só o espirito vibra em vibrações transcendentes que mal se concretisam
pela sensação, cresce nesses instantes, apagados para a vida vulgar
que o intimo das cousas não concebe, que o espiritualismo convulsivo
da Existencia totalmente desconhece numa inconsciencia estranha, cresce
na alma de Luar a loucura sublime de espirito que a tenebrosa, a
imaterial vertigem do Universo, da Vida delirantemente acentua numa
tragedia divina, que o transcendentalismo ardente da Ancia todo
dolorosamente exprime pelo espasmódico histerismo que a Existencia
forma, pelo arrebatamento convulsivo do Sonho Universal!... E nesses
instantes tudo nele vibra, tudo que é nele o Espirito... Da sua
concepção trágica se alimenta, alimentando-se, assim, da sua alma, da
sua alma que se torna a alma da Existencia!
No atelier do pintor Luar vigorosamente assim prepara a alma, preparando
assim, a expressão do semblante. E torna-se sublime, atinge a vertigem
do Infinito... Através do seu delirio, do sonho convulsivo que todo o
arrebata, ele desperta o artista que assim, todo se sublima tambem! É
Luar a própria inspiração que o artista eterisa...
Num crescendo impetuoso o sonho em que Luar todo se torna, no génio
do pintor se evóla todo e, assim, o artista em que o sonho vágamente
se esbáte perdendo-se por fim, na mesma diáfana atmosféra idial se
eléva, trágicamente divinisando a alma!... Tudo é etéreo e profundamente
convulsivo; uma alucinação vibrante tudo transforma, tudo arrebata
no seu turbilhão genial...! Uma poderósa acção mediumnica a levitação
total das cousas, assim eterisadas, provoca então... E é Luar o fóco
tenebroso da alucinação sinistra que em redór se esbáte, vagificando-se
mais!...
No arrebatamento vibrante em que a alma de Luar, em que Luar consigo
arrasta tudo, uma paixão crescente fortemente se esboça e ela que a
personalidade genial do modelo agita toda, nas convulsões da carne
toda se exprimindo, em ondas soluçantes d'ancia se espraia
impetuosamente através do éter nebuloso que todo se perde na mansão do
artista!... Formidavel se torna a paixão crescente que tudo arrebata
e tudo quer arrebatar... Como duendes infernaes que mal se esbocem, a
concepção doentia de Luar sombras efémeras vertiginosamente gera e
tudo que os sentidos ainda pode ferir, num paroxismo de loucura se
debate convulsivamente em estertôr qual caterva turbilhonaria de todas
as expressões da dôr que só uma alma vigorosa conceber póde! Sim, tudo
na alma de Luar se transforma e tudo ardentemente êle quer
transformar...! Ele quer transformar, tudo no seu espirito
arrebatando!...
É para o artista que a sua alma trabalha, é pois, o artista que na sua
concepção mais se divinisa...! É êle o reflexo vibrante do seu sonho,
do sonho que o forma, em que convulsamente todo se eterisa...! Suprema
emanação se torna da sua alma!... Só a inspiração o sublima, o
personalisa--e a inspiração é Luar!
Esse ser estranho que ele próprio criou e que na tela genialmente lhe
derrama a alma, Luar, cheio d'ancia, conservar quer no seu espirito e
transformando-se, então, em ondas de volúpia a sua paixão ardente, a
paixão da dôr, como laços infernais as lança ao artista que num
turbilhão de fôgo, o fogo da sua paixão, todo arrebatar quer para a
sua alma!... Uma luta intima, obscura se gera! Impetuosas são as
convulsões de espirito que, emanadas de Luar, a personalidade do
artista sacodem toda mas, como resplendor diáfano duma luz infinita,
no artista surgem esbatidas, perdendo-se através do espaço!... E Luar
isto pressente e o seu próprio sonho, na imaginação do pintor
rialisado, ele quasi deixa desprender... pelo temor duma vitória
alheia! A sua própria fôrça inspiradora o aterrorisa. Se rialmente o
artista se não deixasse enlevar no sonho de Luar, acaso na vaga
eterisação espiritual encontrar-se-hia?... Não e, assim, qualquer
fôrça esmagadora, de Luar mal vinda, abruptamente o não faria
despenhar-se na matéria em que já permaneceria e que o hábito tornaria
então, quasi insentivel. Luar teme ser incompreendido. Se toda a sua
paixão sobre o artista desencadear num deboche supremo, paroxismo da
arte, o artista que, simples reflexo do foco inspirador, o não atingiu
ainda, e nubelosa instável, simples irradiação do sonho em que
vagamente se banha, toda poderá romper, perdendo-se para sempre da
alma de Luar numa queda fatal. Mas a ancia é igualmente forte, a ancia
em completar a evolução do artista no foco tenebroso da sua alma!...
Porém, a fôrça infinita Luar não possue ainda, a sua fôrça esbate-se,
a continuidade do Infinito não contém... A arte, em seu luxurioso
paroxismo espasmo da dôr, ainda na alma do artista se define, se
concretisa em imagens, só a imagem ele concebe, não concebe o Espirito,
o Absoluto Indefinido que num deboche de espirito vertiginosamente se
desencadearia!... E acaso o vigôr duma luxúria transcendente e a
selvática brutalidade material o artista não poderá confundir,
despenhando-se do sonho diáfano que, emanado de Luar, nele se esboça,
apenas?...
Luar quer o artista arrebatar emfim, por totalmente o interiorisar em
si através dum deboche convulsivo--ardentemente anceia mas o temor
hesitante o torna, o temor de ser incompreendido, de como simples
animal, cheio de cio, ser considerado, emfim, de perder para sempre a
alma a que tanto aspira!... Teme a sua fôrça e a sua fraqueza, a sua
fôrça que, por uma ilusão cruel, o horror da matéria pode desenrolar
perante o artista, erguido acima dela que, assim, desprezivel se
mostra, a sua fraqueza que mais não pode elevar o artista, mais, até
ao paroxismo da arte que é o paroxismo do deboche e... da dôr!... E o
artista admira Luar, não o sente, nas convulsões da sua alma não se
quer fundir... Não admiramos o que a nós é estranho, sentindo então,
o que já não admiramos?...
E é horrivel a angústia em que Luar se debate, ele jámais sonhou uma
dôr assim! Como farrapos de nuvens tenebrosas numa dança macabra,
figuras vagas e obscuras da alma de Luar se erguem, dolorosamente se
contorcendo todas e todas vertiginosamente se debatendo numa loucura
genial, a loucura da Existencia, do Espirito..., e nessa vertigem
suprema em que a tortura e a convulsão doidamente se misturam, se
confundem, um ponto de luz sinistra, numa expressão vaga de sonho, ao
fundo se esboça através da lividez da morte e como que indiferente ao
turbilhão lúgubre de dôr que só a alma de Luar soube criar!... É o
artista que, espiritualisado na concepção sublime do modêlo, na
alucinação tenebrosa da sua alma estranha, ao longe vagueia a alma
perdidamente, num cinismo de estéta friamente admirando a dôr que, num
debate prodigioso, o espasmo da morte intensifica através dum cáos
infinito, duma vertigem convulsiva...! Sôfregos turbilhões a alma de
Luar do seu próprio âmago tenebroso arranca mas, quais vagas
impetuosas que todas se despedacem, se percam de encontro ao trágico
granito, as torrentes tempestuosas dêsse feérico oceano espiritual
todas aterrorisadoramente se quebram por entre as rígidas malhas
impenetráveis da alma do artista!
Todo êsse convulsionismo gigantêsco que sublima Luar, essa ancia
invencivel, ardente de, por um deboche estulto, dominar o artista, o
modêlo mais não pode suportar e, caindo, então, numa prostração
infinda em que toda a sua alma se dissolve, como que um campo noturno
se torna duma batalha passada o qual uma luz pálida, sombria de lua
vagamente ilumine, a luz vaga que o artista da sua alma toda, então,
exála!... Foi o artista a luz vaga do ultimo quadrante quando, num
delirio de morte, numa cavalgada inconsciente, nuvens tenebrosas em
convulsões a envolvem sem a arrebatar, e agora, sempre sereno, frio,
lúgubre, a sua pálida luz derrama na alma do modêlo através duma vaga
neblina silenciosa, da névoa melancólica em que a alma de Luar toda
se exála, se esvai...!
Mas uma torrente de fôgo Luar novamente abraza e do seu repouso
instantâneo, súbito, se erguendo, numa arrancada formidável sôbre o
artista se lança, cravando-o de beijos em que lhe quer arrebatar a
alma! Em convulsões que o repouso alimentou, todo o seu espirito se
põe, torna-se indomável, gigantêsco, impetuoso qual vaga rancorosa
que um vulcão eleve, qual torrente devastadora de Apocalypse Fatal!...
O artista cheio de pasmo o olha, e naquela arrancada impetuosa ambos
na terra se despenham, esquecendo o sonho, a alucinação... A paz volta
aos espiritos, uma paz lúgubre, cheia de preságios sinistros! O
paroxismo da dôr não poude ser atingido, para ambos se perdeu...!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Passaram-se já alguns dias. O artista uma comoção profunda no seu
espirito sofre, sob um novo aspecto olha o modelo, já quási lhe sente
a alma... Encarna-se na tenebrosa escabrosidade do seu espírito
trágico, sente-o mais belo, mais profundo, sublime...! Os transes
variados em que bruscamente se lançára Luar naquela tarde tragica,
essa variedade de transes que o modelo tão vigorosamente suportára,
entontece-lhe a alma, já não o admira apenas, deseja-o e cheio de
ardor, de ancia!...
Procura-o em toda a parte e, por fim, encontrando-o, repleto duma
luxuria de espirito lhe diz: «Jámais te compreendi, Luar, como agora
te compreendo. Talvez te não compreendesse ainda se logo tivesse
cedido ao teu desejo. Mas o tempo tive de refletir, de sonhar em ti.
A tua nobreza estranha que, após o meu pasmo, subitamente te acalmou
os nervos, fundamente me impressionou, os contrastes da tua alma são
maravilhosos e só a tua personalidade sublime, genial... a oscilações
bruscas de caráter poderia resistir! Quero-te pois, a tua ancia é,
hoje, a minha; sem os teus beijos profundos não posso passar, a minha
carne na tua se entranhará para que na tua alma se espiritualise
toda!...» E procura-lhe a boca. Luar suávemente o afasta, dizendo-lhe,
apenas: «Refleti tambem, sonhei... Amanhã conhecerás o meu sonho.»
No dia seguinte, o artista recebe uma carta que os seguintes termos
contém:

_Meu querido amigo_

Estranharás talvez que só agora te exponha o meu sonho derradeiro mas
preciso de toda a minha alma e, só quando escrevo, aos borbulhões
caudalosamente a broto de mim. Sem a pena, mantenho-me numa concentração
trágica, mal mostro aos outros o meu espirito. É que o derramamento
da alma no papel é ainda quási espiritual, a alma em excesso se não
exteriorisa, impuramente se não materialisando.
Diz-me, se num drama, se numa tragédia vigorosa uma tempestade
formidavel, num paroxismo fatal, se desencadeasse toda, atingindo, por
fim, um limite definido que a banalisasse, acaso admirarias esse drama,
essa tragedia?... Pois bem, o indefinido a que na arte nós aspiramos,
essa ancia de idial que mais do que o idial para nós vale, essa ancia,
esse desejo infinito e jámais satisfeito deve encher a nossa vida que
a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!...
É vertiginosa a Existencia e espiritual, transcendente é a vertigem
dela! Jámais a extensão conhece, no Espirito Puro que a extensão
transcende, a vertigem se personalisa, se consubstancia, se acentua
toda, não se espalha numa actividade mecanica, é a actividade
espiritual, o dinamismo puro!... Está nisso a sua beleza, a sua propria
existencia que, só assim, toda confundida num Todo, no Infinitesimal,
na Mónada, que só assim se acentua toda, só assim se dá!... É sublime
o convulsionismo espiritual e só ele é sublime! De que deriva a sua
sublimidade? Da sua energia que só no Espirito, na Mónada se acentua
toda!...
Ha pois, na vertigem convulsiva da Existencia uma expansão tenebrosa.
Toda a actividade, a energia toda que a forma, no espaço e no tempo
não se expande, mantem-se torturada no Infinitesimal. É infinita,
eternamente tudo alcança, infinitesimalisa-se, espiritualisa-se pois...
Só no transcendental existe, só nele eternamente se debate!
Tem uma expansão, uma liberdade infinita que, como infinita, tudo
atinge eternamente, como que eternamente se autodestruindo assim!...
Se só no Transcendental existe, se é transcendente, se no mesmo
ponto infinitesimal, na Mónada, eternamente se debate é que a si
própria se contorce toda numa tortura infinita!... E não exprime a dôr
e sobretudo a ancia o convulsionismo transcendente, torturado,
contorcido da actividade pura, espiritual?... não é ela a expressão
sublime da Vertigem?... Na dôr, na ancia devemos viver!
A transcendentalisação suprêma da energia pura, espiritualisando-a, em
absoluto a indefine, o Infinitesimal em que a energia eternamente se
debate, o indefinismo absoluto contêm. E ela propria, a própria
atividade em si não exprime já o Indefinido?... Quando transcendente,
é o indefinismo dela absoluto, ela torna-se a Vertigem! E que cousa é
a ancia, a ancia em si, senão o limiar privilegiado dessa Vertigem
Pura, o seu sintoma magnifico, a sua acentuação humana?... Ao indefinido
na arte aspiramos pois, a um indefinido cheio de tortura, «rafiné»
como o que o génio de Baudelaire compreendeu e quando essa tortura do
Indefinido enche o intimo da nossa alma, então, cheia d'ancia--e,
assim, Nietzsche quasi a desejou--ela quasi atinge o paroxismo eterno
da Existencia que toda se debate na Vertigem Infinita! E não só na
arte deve existir a ancia mas tambem na vida, a ancia dolorosa do
Indefinido!...
A ancia não é só a dôr, não é qualquer dôr. Pode esta ser deprimente,
humilhante: e sempre o é quando não compreendida, quando em sua beleza
suprema sentida não pode ser!... A dôr forte, virilisadora, a dôr
profunda e amoral, a dôr em que o eu domine, dôr de espirito... é que
é a dôr suprema, a dôr estética! Dominar na dôr, sentir a fôrça de
viver nela, prazer infindo...! E a tortura transcendental da Existencia
em que a Vertigem toda se acentua, se impõe, se personalisa, a dôr
suprema, a dôr personalisadora não exprime toda?...
Afastemos pois, a nossa carne. Se a satisfizéssemos, não, se
satisfizéssemos o espirito que, só êle, através da carne atua,
banalisar-nos-íamos, ao nosso drama daríamos um final burguez! Ele
teria um fim, um limite determinado de que, em breve, as nossas almas
se enfartariam decerto. Sejamos estétas, vivamos eternamente do desejo
que, só êle, personalisa a alma, para a nossa vista espiritual
gigantesca tornando-a!... É estranho o meu pedido mas, acaso, estranha
não é a Vertigem da Existencia?...
Adeus!...

_Luar._

_Janeiro de 1913._

RAUL LEAL.

(Do livro inédito _Devaneios e Alucinações_.)


*POEMAS*
DUM ANÓNIMO OU ANÓNIMA QUE DIZ CHAMAR-SE
VIOLANTE DE CYSNEIROS


*N. B.*--Apareceram-nos na Redacção estes belos poemas, que um anónimo
engenho doente realisou. Publicamo-los, porque disso são dignos,
importando-nos pouco a personalidade vital de que possam emanar. Toda
a obra de arte é a justificação de si-propria.

_Orpheu_.


_A ALVARO DE CAMPOS,
O MESTRE._

Na noite negra e antiga
Ha só a luz do Pharol:
Ora loira, côr do sol,
Ora vermelha, inimiga.
No seio negro e profundo
Da noite em treva dormindo
O Pharol é Outro Mundo,
Ora chorando, ora rindo.
Na noite negra, afinal,
Tudo a elle se limita:
Só o pharol é real!
A treva nunca tem fim,
Ó sensação infinita,
--Sou já só Pharol de Mim!

_Junho, 1915._

* * * * *
Toda a minh'Alma se prende
Naquella forma de graça;
Mas não é na forma viva
Mas sim na Linha que passa.
Toda a minh'Alma se prende,
Bate as Asas--esvoaça...
E é como a sombra distante
D'aquella Linha que passa.
A vida é só o Espaço
Que vai da propria Linha
Á sombra d'ella num traço.
Quando a Morte fôr vizinha,
Fundidas no mesmo Espaço
Será tudo a mesma Linha.

_Junho, 1915._


_A ALVARO DE CAMPOS,
O MESTRE._

I
Para Além d'aquelles montes
Não ha aves, nem ha fontes,
Nem ribeiros, nem campinas,
Nem casaes pelas collinas.
Para Além d'aquelles montes
Não ha segredos de fontes,
Nem Sombras nas Alamedas,
Nem hervas, passos ou sedas.
Para Além d'aquelles montes
Já não ha arcos de pontes,
Nem mãos finas de donzellas,
Nem lagos, barcos ou vellas.

II
Para Além d'aquelles montes
Existe apenas Espaço!
Espaço e tempo são Pontes
Que Deus tem no seu regaço.
Pontes que ligam de Auzente
Infinito e Eternidade.
Só sensações são Presente,
Só nellas vive a Verdade.
Passado nunca passou,
Futuro não o terei:
Pois sempre Presente sou
No que Fui, Sou e Serei.

_Junho, 1915._


_AO SR. MARIO DE SÁ-CARNEIRO._

Ha pouco quando bordava
Picou-me a ponta dos dedos
A agulha com que bordava...
E a seda toda de branca,
Branca da côr dos meus dedos,
Essa seda que era branca
Ficou com papoulas rubras...
Que o sangue das minhas veias
Já creou papoulas rubras...
Mas tão sós e tão alheias!

_Junho, 1915._


_AO SR. FERNANDO PESSOA._

Nada em Mim é necessario
Nem mesmo o que foi sonhado,
Ó contas do meu rosario
D'um sonho nunca acabado.
Tudo tão feito de Mim...
Só meu longe de passado
É como um sonho sem fim
Que o Outro tenha sonhado.
Cruso os meus braços. Não fallo.
Ouço uma voz dolorida
Dentro de Mim evoca-lo.
Marinheiro! Ilha Perdida!
E o meu sentido a sonha-lo
É a verdade da vida.

_Junho, 1915._


_AO SR. ALFREDO PEDRO GUISADO._

Sobre misterios já idos
Ergui-me em curva e de pé
Do meu corpo fiz sentidos
Num sonho de Salomé.
Curvos os olhos doridos...
Curvas as mãos e os braços...
Todo o meu corpo pedaços
Dos espelhos dos sentidos...
Dancei... Dancei... E o Ver-Me
Toda de curva e de pé
Era o sentido de Ser-Me.
Presente no meu olhar,
Eu fui Outra Salomé
Feita de Mim a dançar.

_Junho, 1915._


_AO SR. CÔRTES-RODRIGUES._

Passo no mundo a vivê-lo,
Passo no mundo a senti-lo,
E esta côr do meu cabello
É o vê-lo e o possuí-lo.
Passo no mundo a sonhá-lo,
Numa forma de vivê-lo,
E o meu sentido d'olhá-lo
É o sentido de vê-lo.
Só em Mim me concretiso,
E o Sonho da minha vida
Nesse Sonho o realiso.
E sempre de Mim Presente,
Todo o Meu Ser se limita
Em Eu Me Ser Realmente.

_Junho, 1915._


_A MIM PROPRIA
DE HA DOIS ANNOS_

As minhas mãos são esguias,
São fusos brancos d'arminho,
Onde fiaste e não fias
O Sonho do teu carinho.
As minhas mãos são esguias,
Côr de rosa são as unhas,
E nellas todos os dias
Ponho a pomada que punhas.
Quando Eu as fico polindo
Perpassa nellas em ancia
A tua boca sorrindo...
Mas os meus dedos em i
Dizem a longa distancia
Que vae de Mim para Ti.

_Junho, 1915._

VIOLANTE DE CYSNEIROS.


*ODE MARÍTIMA*
POR
ALVARO DE CAMPOS

a Santa Rita Pintor.


*Ode marítima*

Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido,
Ólho e contenta-me vêr,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Ha uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque êle está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos comsigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É--sinto-o em mim como o meu sangue--
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessôa
Que fôsse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado,
Insensívelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que ágoas? E porque, penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fumo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados
Em divino extase revelador
Ás horas côr de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Ha sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos de vagar nas ágoas,
Quando o navio larga do porto!
Fluctuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar,
Virar cabos longinqùos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...
Ah, as praias longinqùas, os cais vistos de longe,
E depois as praias proximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Dêste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sôbre as ilhas longinqùas das costas deixadas passar,
Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.
Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um mêdo
--O mêdo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo--
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fôsse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer cousa,
Uma perturbação de afeições a que vaga patria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma ôca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr
Se soubesse como sê-lo...
A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
Na minha imaginação êle está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado obliqùo.
Os navios que entram a barra,
Os navios que sáem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Supônho-me vendo-os duma praia deserta)--
Todos êstes navios abstractos quasi na sua ida,
Todos êstes navios assim comóvem-me como se fôssem outra cousa
E não apenas navios, navios indo e vindo.
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar nêles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
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