Orpheu Nº2 Revista Trimestral de Literatura - 3

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Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo--
Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu scismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei porque sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sôbre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabôr das cousas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, dôce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos,
Queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer!
E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,
Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia!
Sôa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava comnosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andámos com êle vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde êle ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado ágoa prós pulmões!
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando--ai de mim!--os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilisação moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilisado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Êsses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Êsses mares, misteriosos, porque se sabia menos dêles.
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horisonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam mêses.
Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,
Penetram-me físicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas,
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.
Chamam por mim as ágoas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, fôste tu
Que me ensinaste êsse grito antiqùíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das ágoas,
A voz inédita e implícita de todas as cousas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longinqùas, das travessias perigosas.
Êsse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Êsse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras cousas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da bôca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos cortidas e escuras:
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yyyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yyyy...)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O extase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apêlo lançado ao meu sangue
Dum amôr passado, não sei onde, que volve
E ainda tem fôrça para me atraír e puxar,
Que ainda tem fôrça para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
Ir para Longe, ir para Fóra, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se prá frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me!...
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos!
Pensando nisto--ó raiva! pensando nisto--ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Súbitamente, trémulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
Eh marinheiros, gageiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que teem tombadilhos, que teem pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convez!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagonia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fôstes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos tôscos em colónias à prôa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fôsse nada,
Como se isso fôsse natural,
Como se a vida fôsse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar actual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossivel!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranqùílas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Quero ir comvôsco, quero ir comvôsco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fôstes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, emfim, a extraordinários portos!
Fugir comvôsco à civilisação!
Perder comvôsco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber comvôsco em mares do sul
Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir comvôsco, despir de mim--ah! põe-te daqui pra fora!--
O meu traje de civilisado, a minha brandura de acções,
Meu mêdo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de ágoa chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de soes,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gosarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares,
Sôbre convezes, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar prá Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a caír das cousas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longinqùas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqùílos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente,
Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, préguem-a às quilhas.
E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!
Cálquem aos pés nos convezes meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa vêrga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
_Marooned!_
O sol dos trópicos poz a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fôgo, fôgo, fôgo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavôr plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
_Fifteen men on the Dead Man's Chest._
_Yo-ho-ho and a bottle of rum!_
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
_Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!_
_Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!_
_Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!_
Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sôbre amuradas!
Cabeças de creanças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
Roço-me por tudo isto como um gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sôbre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó--yyyy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó--yyyy...
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me comvôsco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas,
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos convezes,
Trincasse velas, remos, cordâme e poleâme,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E ha uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Ha uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
Núvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apresados foge prá loucura--essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, núvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fôsse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fôsse meu corpo e meu sangue, compozesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e ôsso, de todos os piratas do mundo!
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles!
E sentir tudo isso--todas estas cousas duma só vez--pela espinha!
Ó meus peludos e rudes herois da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliqùídade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado
Sôbre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladoras!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amôr todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha femininidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das creanças
E leváveis as mãis às amuradas para vêrem o que lhes acontecia!
Estar comvôsco na carnágem, na pilhágem!
Estar orquestrado comvôsco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só sêr-vos a fêmea, sêr-vos as fêmeas, sêr-vos as vítimas,
Sêr-vos as vítimas--homens, mulheres, creanças, navios--,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso acto abstrato de orgia,
Não era só isto que eu queria ser--era mais que isto, o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne--fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sôbre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convez onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu
Fôsse uma célula consciente--e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fôsse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
_Fifteen men on the Dead Man's Chest._
_Yo-ho-ho and a bottle of rum!_
Eh-lahô-lahô-laHO--lahá-á-ááá--ààà...
Ah! a selvageria desta selvageria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, prático à forca, sensível a tudo,
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Gloria,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir d'acôrdo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação!
Por andar com a _douceur des moeurs_ às costas, como um fardo de rendas!
Môços de esquina--todos nós o sômos--do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ância das cousas absolutamente crueis e abomináveis,
Que roe como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vasios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sôbre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer,
A minha ância masóquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sôbre os convezes,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sôbre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma!
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer cousa como se eu fôsse
Arrastado--ó prazer, ó beijada dôr!--
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no *MA-A-A-AR!*
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! *EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!*
Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!
*FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.*
*YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!*
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Hé-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á-á--ààà!
*AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó--yyy!...*
*SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó----yyyy!...*
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DARBY M'GRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!*
*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!*
Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim.
Decresce sensívelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim,
Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqùíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Súbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longinqùa chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dêle, como algas, boiam meus sonhos desfeitos...
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò--yy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò----yy......
Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescôr nocturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia do enorme misterio humanissimo das ondas nocturnas.
A lua sobe no horizonte
E a minha infancia feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fôsse um arôma, uma voz, o eco duma canção
Que fôsse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa socegada, ao pé do rio...
(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar tambem,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo...
Se eu agora chegasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas.
Aquêle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto...)
Uma inexplicavel ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquélas victimas--principalmente as crianças--
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas fôram minhas victimas;
Terna e suave, porque não o fôram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
Que longe estou do que fui ha uns momentos!
Histería das sensações--ora estas, ora as apostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acôrdo com esta emoção--o marulho das ágoas,
O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais...,
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longinquos, dum azul japonez,
As casas de Almada,
E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina!...
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma caricia.
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infancia ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas ágoas!...
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu...,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fôsse já crescido de mais para isso)...
Lembro-me e as lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida,
E ergue-se uma leve brisa maritima dentro de mim.
Ás vezes ela cantava a «Nau Catrinêta»:
_Lá vai a Nau Catrinêta_
_Por sobre as ágoas do mar..._
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela--e afinal que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta»... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
_Estando a Bela Infanta_
_No seu jardim assentada..._
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
_Estando a Bela Infanta_
_No seu jardim assentada,_
_Seu pente de ouro na mão,_
_Seus cabelos penteava..._
Ó meu passado de infancia, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tenue de confusas causas na alma!
Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inuteis,
Leves brisas de contradicção roçando pela face a alma...
Evoco, por um esforço voluntario, para sahir desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, sêco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
_Fifteen men on The Dead Man's Chest._
_Yo-ho-ho and a bottle of rum!_
Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...
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