Orpheu Nº2 Revista Trimestral de Literatura - 1

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*"ORPHEU"*
REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA

Propriedade de: ORPHEU, L.^da
Editor: ANTONIO FERRO

DIRECTORES
*Fernando Pessôa*
*Mario de Sá-Carneiro*

*ANO I--1915* *N.^o 2* *Abril-Maio-Junho*

*SUMARIO*
ANGELO DE LIMA _Poemas Inéditos_
MARIO DE SÁ-CARNEIRO _Poemas sem Suporte_
EDUARDO GUIMARAENS _Poemas_
RAUL LEAL _Atelier_ (novela vertígica)
VIOLANTE DE CYSNEIROS (?) _Poemas_
ALVARO DE CAMPOS _Ode Marítima_
LUÍS DE MONTALVÔR _Narciso_ (poema)
FERNANDO PESSÔA _Chuva oblíqua_ (poemas interseccionistas)

*Colaboração especial do futurista*
*SANTA RITA PINTOR*
*(4 hors-texte duplos)*

_Redacção_: 190, Rua do Ouro--Livraria Brazileira.
_Oficinas_: Tipografia do Comercio, 10, Rua da Oliveira,
ao Carmo--Telefone 2724
LISBOA


"Orpheu" iniciará na _rentrée_ uma longa série de conferencias de
afirmação, sendo as primeiras as seguintes:

A Torre Eiffel e o Genio do Futurismo, por _Santa Rita Pintor_.
A Arte e a Heraldica, pelo pintor _Manuel Jardim_.
Teatro Futurista no Espaço, pelo _Dr. Raul Leal_.
As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo psicologico, por
_Mario de Sá-Carneiro_.

*SERVIÇO DA REDACÇÃO*

Varias razões, tanto de ordem administrativa, como referentes á
assunção de responsabilidades literarias perante o publico, levaram
o _comité_ redactorial de _ORPHEU_ a achar preferivel que a direcção
da revista fôsse assumida pelos actuais directores, não envolvendo
tal determinação a minima discordancia com o nosso camarada Luís
de Montalvôr, cuja colaboração, aliás, ilustra o presente numero.

De principio, concordara o _comité_ redactorial de _ORPHEU_ em não
inserir colaboração artistica: por isso mesmo se adoptou uma capa que
o era, brilhante composição do arquitecto José Pacheco. Posteriormente
á saída do primeiro numero, julgou, porêm, o mesmo _comité_ que seria
interessante inserir em cada numero desenhos ou quadros de *um*
colaborador, em vista do que decidiu *fixar* a capa, tirando-lhe o
caracter artistico e dando-lhe um simples e normal aspecto tipografico.
A realisação desta parte do nosso programa começa no numero actual com
a inserção dos quatro definitivos trabalhos futuristas de Santa Rita
Pintor.

O _Manifesto da Nova Literatura_, que havia sido anunciado como devendo
fazer parte do n.^o 2 de _ORPHEU_, não é nêle inserto nem o acompanha.
É motivo disto a circunstancia de que, envolvendo a confecção dêsse
manifesto o desenvolvimento de principios de ordem altamente scientifica
e abstracta, êle não pôde ficar concluido a tempo de ser inserto. Ou
aparecerá com o 3.^o numero da revista, ou mesmo antes, talvez, em
opusculo ou folheto separado.

O 3.^o numero de _ORPHEU_ será publicado em outubro, com o atraso dum
mês, portanto--para que a sua acção não seja prejudicada pela
época-morta.

Os _hors texte_ de Santa Rita Pintor insertos no presente numero foram
fotogravados nos _ateliers_ da *Ilustradora* segundo clichés de

*BARROS & GALAMAS*
146, Rua da Palma--LISBOA

*CONDIÇÕES*

Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores.

Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta
Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta
devolveremos os originais.

São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria
Brazileira--190 e 192, Rua Aurea, Lisboa.

_ORPHEU_ publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72,
ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e
1$500 réis fracos no Brazil.

*ASSINATURAS*
(Ao ano--Série de 4 numeros)

Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo
Brazil 5$000 réis (moeda fraca)
União Postal 6 francos


*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^ia--Editores*
190 e 192, RUA AUREA--LISBOA

Acaba de aparecer:

*CÉU EM FOGO*
NOVELAS POR
MARIO DE SÁ-CARNEIRO

GRANDE SOMBRA--MISTÉRIO
O HOMEM DOS SONHOS--ASAS--EU-PROPRIO O OUTRO
A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA
O FIXADOR DE INSTANTES--RESSURREIÇÃO

1 VOLUME DE 350 PAGINAS

CAPA DESENHADA POR
JOSÉ PACHECO

Preço 70 centavos


*POEMAS INÉDITOS*
DE
ANGELO DE LIMA


_*CANTICO--SEMI-RAMI*_

--Oh! Noute em Teu Amor Silenciosa!
--Oh! Estrellas na Noute, Scintillantes,
Como Ideaes e Virginaes Amantes!...
--Oh! Memoria de Amor Religiosa!...
--Já Fui... uma Creança Pubescente
Que des'brocha em Amor Inconsciente
Como n'um Vago Sonho... Commovente
Desabrocha uma Rosa Olorescente
--A Adolescente... Casta e Curiosa!
--E já Fui... a Galante com Requinte
Para dar-me, Esquivando-me em Acinte
De P'rigos da Ventura Cyspresinte
--Sensitiva... Ao Brisar, do Sol Orinte...
--A Nubente... Temente e Desejosa!
--E já Fui... a Noivada pelo Amante,
A Cingida de Abraço Palpitante,
Anxe do Sacrificio Inebriante!
--A Flôr que Quebra o Gyneceu... Hiante,
--A Desvirgada... Grata e Dolorosa!
--Oh! Memoria de Amor Religiosa!
--Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes
Como Ideaes e Virginaes Amantes...
--Oh! Noute em Teu Amor... Silenciosa!
Já Fui... como a Senhora, sim, durante
Uns Tempos de Ventura Confortante
Nos Confortos de um Lar... Hoje Distante...
--Como Dista, da Noute, um Paço Encante...
Já Fui... uma Matrona Virtuosa!...
E já Fui... a Devota pelo Amor,
A Adulterin... que Trahe o seu Senhor!...
E a que sentiu Doer o Coração
Ao Fim de Tanta e Cada uma Vez
Por cada Intento só Colhêr Revez
Nas Esp'ranças da Sua Devoção!...
Oh! Noute! em Teu Amor Silenciosa!
Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes
Como Ideaes e Virginaes Amantes...
Oh! Memoria de Amor Religiosa!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E se Ha de Amor, algum Amor Eleito,
Aquella Tambem Fui, que Ninguem Fôsse,
Que, n'um Mysterio, como o Inferno, Doce,
Amei a Minha Filha, no seu Leito...
Sim, se Ha de Amor algum Amor Eleito,
Minhas Irmãs, Cingi-me ao Vosso Peito
E Ouvi-Me esta Memoria Dolorosa...
Já Fui Aquella que Perdeu a Esp'rança,
E Errou Espasma Noutes sem Termino,
Entre a Treva das Selvas Pavorosa,
Anxe em busca de Amantes do Destino...
--E A que Lembrou os Tempos de Creança!...
--E já Fui como a Sombra da Saudade
Amando a Lua, pela Immensidade!
--Oh Noute! em Teu Amor, Silenciosa!
--Oh Estrellas, na Noute, Scintillantes
Como Ideaes e Virginaes Amantes!
--Oh Memoria de Amor, Religiosa!...


_*NEITHA-KRI*_

Ó Noute Immensa pela Immensidão!
Recebe em Ti a minha Confissão.
Eu Nunca disse ao Verdadeiro, Não!
Nem devoro em Remorso o Coração!...
Sou a Grande Rainha Neitha-Kri...
Sou Devota da Noute Pensadora...
E Neith é grande, pelos Ceus Senhora...
E Eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!...
Meu Irmão era o Rei Mentha-Suf'reh!...
--E Morreu Enlevado em Sonho Ideal
D'um Phyltro que Eu lhe dei para tomar!...
--Mentha-Suf'reh não Conheceu o Mal
--E o Destino Elegeu-me p'ra Reinar
Sobre os Milagres do Paiz d'Esneh!...
--Sou a Grande Rainha Neitha-Kri!
--Sou Devota da Noute Pensadora
--E Neith é Grande! pelos Ceus Senhora!
--Sou a Rainha!... Sou Nofrei-Ari!...
--No meu Corpo Divino e Perfumado
Tenho a Carne Côr Mate da Belleza
Que é Ammarella de Côr e Delicada,
Da Côr Loura da Chamma Incendiada...
--Tenho o Porte das Damas da Nobreza
Nas Formas do Meu Corpo Consagrado!...
--A Thiara Suprema que Investi
Coroa a Minha Fronte Sobranceira,
Real, Sagrada, Mystice, Altaneira...
--E Então--ó Neith--sou Divina em Ti!...
Na Sombra d'Esta C'roa dos Thanitas
Palpitam-me no Seio Delicado
Anceios de Desejos Escondidos,
Mysteriosos, quasi Indefinidos,
Mesmo ao Saber do Meu Olhar Velado
--Que tu, ó Noute! em Teu Amor Excitas...
O Peitoral Sagrado da Magia
Repousa nos seus Ouros Esmaltados,
Frio sobre os meus Seios Excitados,
Como tacite, Oraculo, do Dia...
--Sob o Pê-chênte Cintural Pendente
Sobre o Vigor suavemente Curvo
Das minhas Côxas no meu star de Hyerata
Que Antros Ardentes e que, Amor, Dilata
De um Ardor Fulguroso... porque Turvo...
De que Immanencia... de que Immanescente?...
--Ó Noute minha Mãe na Immensidão!
--Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora...
--Scintil d'Estrellas n'Essa Solidão...
--Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!...
--Erguida nas Sandalias Encurvadas
Sou de Pé ante Ti, ó Verdadeira!
Dama da Vida, pelo Amor Ungida...
Senhora Principal... Dama da Vida!
Eu, Tua Padre-Mãe!--a Derradeira...
--Entre as Vagas de Incenso a Ti Votadas...
--Meu Olhar é Fulguro docemente,
Como se n'este Espelho da Verdade
Da minha Alma Polytica de Rei,
--N'Aquella Presciencia com que Sei
--Se Reflectisse a Minha Lealdade
--Ou a Luz d'Algum Astro Transcendente...
--E os meus Braços Frementes Alongados,
Cingidos nos Annilos Rictuaes,
Têem na Mão o Seter dos Grandes Paes
Como as Chaves dos Sellos Reservados...
Sou mais Sabia que os Sabios--Eu emfim
--Eu que Sei o Segredo Consagrado
Das Filtragens do Lotus Divinal
Que Floresce em o Rio de Occidente
E que Evoccam o Sonho Absorvente
Em que Esquecem--a par da Dor do Mal--
Os Estrangeiros, o seu Lar Deixado...
--Que Encontram outro Lar juncto de Mim...
--Meu olhar é Fulguro docemente
Em Profunda Dulcissima Certeza
Como as Astres do Ceu Immanescente...
E Mãe--ó Neith-eu! ó mais que Pura!
--Como as Estrellas d'um Fulgor Fremente...
--Sou a Ventura Filha da Tristeza
D'Esse Teu Medictar Saudosamente...
--E assim como os Astros Fascinantes
Geram Fatas as Horas dos Instantes,
--Meu Amor--o Sem Fim--gera a Loucura!


_*NINIVE*_

--Alem Foi--a Ninive da Piedade,
A Cidade do Lucto Singular
E a Sepultura da Semi-Rami...
--E Hoje... stá por Ali, Vaga, a Saudade...
--E anda no Ceu Supremo a Eterna Istar...
--E... Passa, ás Vezes, a Serpente...--Ali!...


Na Camara Longinqua e Silenciosa
Da Sepultura da Semi-Rami...
--Relegada da Vida Gloriosa
--Na Paz Final da Morte Mysterosa
--Fria e Saudosa
--Dorme a Semi!...
--Morreu na Guerra em um Paiz Distante...
--Na Expedição Fatal em que Morreram
Trez Milhões de Soldados...--e ainda Mais...
--E os Guardas d'A Que Fôra a Triumphante
--Fieis..., os Seus Cem Guardas Immortaes...
Na Piedade Final do Ultimo Preito
Denotando os Seus Corpos Vigorosos
--Mantendo sobre os Hombros Pressurosos
O Feretro Sagrado da Semi...
--Por Caminhos Infindos Escabrosos
Em Terras de Inimigos... e Chacaes...
--Por Soes de Fogo...--Vastos Areaes...
--E Pavôres Sacros de Paiz Levante...
--Trouxeram Seu Cadaver do Distante
--E Inhumaram-A Alli...
--Fria e Saudosa!...
--Na Camara Longinqua e Silenciosa
Da Sepultura da Semi-Rami!...


_*....?....*_

--Eras... nos Tempos... Antes da Edade...
Teu Gesto Gloro Gerou a Vida!...
--E Apoz Teu Gesto...
--Supremo... Immesto...
--Grande e Tacida...
--Depoz... É a Noute na Immensidade!...


--E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso
Disse a Mu-Ang--Alguma Vez, Accaso...
--Olha a Nuvem no Céu... e como Corre!...
--Assim as Horas da Ventura Minha...
--Quem Tem Filhos na Terra--Esse Não Morre!...
--Despozae--Se Sois Rei--uma Rainha
--Que É Tanto como Vós Pela Grandeza...
--E... Depois... de Espozardes a Belleza
Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
--E o Rei Mu-An' disse á Rainha, Então...
--Junto de Vós... Enlevo-me de Encanto...
--Longe, Porém, do Meu Paiz--Ha tanto,--
Que Nem, Meus Reinos, Já Eu Sei se São...
--Volto ao Meu Reino... n'Esta Dôr Tamanha...
--Seja--A da Mãe do Rei--Esta Montanha
Onde Alastra Este Bosque de Arvoredo
Junto ao Lago... em que Estamos... em Adeus!...
--Ó Mãe do Rei... Vós M'Enlevaes nos Céus
--Mas o Meu Coração Soffre em Segrêdo!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


--Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su
--Filhos do Céu nas Filhas do Kiang
--Consagraram no Throno dos Hoang
--Aureolados do Pavão Azu?...
--E Algum Dia... Encostaram-se Tranquilos
Sobre a Meza de Joias do _Estar Manso_
--E Cerraram os Olhos nos Seus Cilos...
--E Abateram Seu Gesto Socegado
De Imp'radores do Imperio Consagrado...
--No Gesto da Decencia e do Descanso!...


_*EDD'ORA ADDIO...--MIA SOAVE!...*_
Aos meus amigos d'ORPPHEU

--Mia Soave...--Ave?!...--Alméa?!...
--Maripoza Azual...--Transe!...
Que d'Alado Lidar, Canse...
--Dorta em Paz...--Transpasse Idéa!...
--Do Occaso pela Epopéa...
Dorto... Stringe... o Corpo Elance...
Vae Á Campa...--Il C'or descanse...
--Mia Soave...--Ave!...--Alméa!...
--Não Doe Por Ti Meu Peito...
--Não Choro no Orar Cicio...
--Em Profano...--Edd'ora... Eleito!...
--Balsame--a Campa--o Rocío
Que Cahe sobre o Ultimo Leito!...
--Mi' Soave!... Edd'ora Addio!...


--Estes Versos Antigos Que Eu Dizia
Ao Compasso Que Marca o Coração
Lembram Ainda?...--Lembrarão um Dia...
--Nas Memorias Dispersas Recolhidas
Sequer, na Piedosa Devoção
D'Algum Livro de Cousas Esquecidas?...
--Accaso o Que Ora Canta... Vive... Existe
Nunca Mais Lembrará--Eternamente?...
--E, Vindo do Não-Ser, Vae, Finalmente,
Dormir no Nada... Magestoso e Triste?...

ANGELO DE LIMA.


_MARIO DE SÁ-CARNEIRO_
*POEMAS SEM SUPORTE*

a Santa Rita Pintor.


_ELEGIA_

Minha presença de setim,
Toda bordada a côr de rosa,
Que fôste sempre um adeus em mim
Por uma tarde silenciosa...
Ó dedos longos que toquei,
Mas se os toquei, desapareceram...
Ó minhas bôcas que esperei,
E nunca mais se me estenderam...
Meus Boulevards d'Europa e beijos
Onde fui só um espectador...
--Que sôno lasso, o meu amor;
--Que poeira d'ouro, os meus desejos...
Ha mãos pendidas de amuradas
No meu anseio a divagar...
Em mim findou todo o luar
Da lua dum conto de fadas...
Eu fui alguem que se enganou
E achou mais belo ter errado...
Mantenho o trôno mascarado
Aonde me sagrei Pierrot.
Minhas tristezas de cristal,
Meus débeis arrependimentos
São hoje os velhos paramentos
Duma pesada Catedral.
Pobres enleios de carmim
Que reservara pra algum dia...
A sombra loira, fugidia,
Jámais se abeirará de mim...
--Ó minhas cartas nunca escritas,
E os meus retratos que rasguei...
As orações que não rezei...
Madeixas falsas, flôres e fitas...
O «petit-bleu» que não chegou...
As horas vagas do jardim...
O anel de beijos e marfim
Que os seus dedos nunca anelou...
Convalescença afectuosa
Num hospital branco de paz...
A dôr magoada e duvidosa
Dum outro tempo mais lilaz...
Um braço que nos acalenta...
Livros de côr á cabeceira...
Minha ternura friorenta--
Ter amas pela vida inteira...
Ó grande Hotel universal
Dos meus frenéticos enganos,
Com aquecimento-central,
Escrocs, cocottes, tziganos...
Ó meus Cafés de grande vida
Com dançarinas multicolôres...
--Ai, não são mais as minhas dôres
Que a sua dança interrompida...

_Lisboa--março de 1915._


_MANUCURE_

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Subita sensação inexplicavel de ternura,
Todo me incluo em Mim--piedosamente.
Emtanto eis-me sózinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas--ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Boçal, quadrangular e livre-pensadora...
Fóra: dia de Maio em luz
E sol--dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Não podem tolerar--e apenas forçados
Suportam em nauseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que ha de ter cantores
Entre os amigos com quem ando ás vezes--
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos--
Que escrevem, mas têem partido politico
E assistem a congressos republicanos,
Vão ás mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil côres no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flexas, listas volúveis, discos flexiveis,
Chegam tenuemente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os scenarios que entretanto Fui...
Eis como, pouco a pouco, se me fóca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalisado...
Inatingivel deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...
E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por innumeras intersecções de planos
Multiplos, livres, resvalantes.
É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação--
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nêle se incrusta,
Varar a sua Beleza--sem suporte, emfim!--
Cantar o que êle revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilisado, sucessivo--perpétuo ao Infinito!...
Que calótes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triangulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum vôo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténnis!--
Que loiras oscilações se ri a bôca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que léques, se a dançarina russa,
Meia-nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Ouro!
--Que rendas outros bailados!
Ah! mas que inflexões de precipicio, estridentes, cegantes,
Que vertices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos--pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por êle, separado por êle
Em multiplos intersticios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...
--Ó beleza futurista das mercadorias!
--Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
--Madeira dos caixotes,
Como eu anseara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros...--
Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos--
Negras, vermelhas, azuis ou verdes--
Gritos de actual e Comercio & Industria
Em transito cosmopolita:
*FRAGIL! FRAGIL!*
*843--AG LISBON*
*492--WR MADRID*
Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosferica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
Á minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco--célere,
Imponderável, esbelto, leviano...
--Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar ás cabriolas,
Em séries instantaneas de quadrados
Ali--mas já, mais longe, em lozangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se ás mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos obliquos,
Simbolismos aereos de heraldicas ténues
Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sôno horisontal,
Vá lá, se erguem tambem na sarabanda...
Meus olhos ungidos de Novo,
Sim!--meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variavel sempre
E livre--em mutações continuas,
Em insondáveis divergencias...
--Quanto á minha chávena banal de porcelana?
Ah, essa esgota-se em curvas gregas de anfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a ouro emite...
É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...
... Dos longos vidros polidos que deitam sôbre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalisações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, azes--na poeira multicolor--.
*APOTEOSE.*
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Junto de mim ressoa um timbre:
Laivos sonoros!
Era o que faltava na paisagem...
As ondas acusticas ainda mais a subtilisam:
Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
Lá se esgueiram gentis, franzinas côrsas d'Alma...
Pede uma voz um numero ao telefone:
Norte--2, 0, 5, 7...
E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:
ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA!
[Nota do Transcritor: Aqui surge a composição com números.]
Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...
Não tem fim a maravilha!
Um novo turbilhão de ondas prateadas
Se alarga em écos circulares, rútilos, farfalhantes
Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...
--Meus olhos extenuaram de Beleza!
Inefavel devaneio penumbroso--
Descem-me as palpebras vislumbradamente...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
... Começam-me a lembrar aneis de jade
De certas mãos que um dia possuí--
E ei-los, de sortílégio, já enroscando o Ar...
Lembram-me beijos--e sobem
Marchetações a carmim...
Divergem hélices lantejoulares...
Abrem-se cristas, fendem-se gumes...
Pequenos timbres d'ouro se enclavinham...
Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...
Quebram-se estrelas, sossobram plumas...
Dorido, para roubar meus olhos á riqueza,
Fincadamente os cerro...
Embalde! Não ha defesa:
Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
Durante a escuridão--
Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...
--Ó mágica teatral da atmosfera,
--Ó mágica contemporanea--pois só nós,
Os de Hoje, te dobrámos e fremimos!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a exgotar-se em ritmos iriados!
Eu proprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!...
(Como tudo é diferente
Irrealisado a gás:
De livres pensadoras, as mesas fluidicas,
Diluidas,
São já como eu catolicas, e são como eu monarquicas!...)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Sereno.
Em minha face assenta-se um estrangeiro
Que desdobra o «Matin».
Meus olhos, já tranquilos de espaço,
Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
Começam a vibrar
Toda a nova sensibilidade tipografica.
Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação!
Itálico afilado das crónicas diarias!
Corpo-12 romano, instalado, burguez e confortavel!
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
Tipo miudinho dos pequenos anuncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!...
E os ornamentos tipograficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os «puzzle» frivolos da pontuação,
Os asteriscos--e as aspas... os acentos...
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!...
[Nota do Transcritor: Aqui surge uma composição com caracteres.]
--Abecedarios antigos e modernos,
Gregos, góticos,
Slavos, arabes, latinos--,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...
(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomotopaica,
Rescendente da beleza alfabetica pura:
Uu-um... kess-kresss... vliiim... tlin... blong... flong... flak...
Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)
Mas o estrangeiro vira a página,
Lê os telegramas da Ultima-Hora,
Tão leve como a folha do jornal,
Num rodopio de letras,
Todo o mundo repousa em suas mãos!
--Hurrah! por vós, industria tipografica!
--Hurrah! por vós, empresas jornalisticas!
*MARINONI* *LINOTYPE*
*O SECULO* *BERLINER TAGEBLATT*
*LE JOURNAL* *LA PRENSA*
*CORRIERE DELLA SERA* *THE TIMES*
*NOVOÏE VREMIÁ*
Por ultimo desdobra-se a folha dos anuncios...
--Ó emotividade zebrante do Reclamo,
Ó estética futurista--_up-to-date_ das marcas comerciais,
Das firmas e das taboletas!...
*LE BOUILLON KUB*
*VIN DÉSILES* *PASTILLES VALDA*
*BELLE JARDINIÈRE*
*FONSECAS, SANTOS & VIANNA* HUNTLEY & PALMERS *"RODDY"*
_*Joseph Paquin, Bertholle & C.^ie*_
_*LES PARFUMS DE*_ *COTY*
*SOCIÉTÉ GÉNÉRALE*
*CRÉDIT LYONNAIS*
*BOOTH LINE* *NORDDEUTSCHER LLOYD*
*COMPAGNE INTERNATIONAL DES WAGONS LITS
ET DES GRANDS EXPRESS EUROPÉENS*
E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tudo isto, porêm, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
Pois toda esta Beleza ondeia lá tambem:
Numeros e letras, firmas e cartazes--
Altos-relêvos, ornamentação!...--
Palavras em liberdade, sons sem-fio,
MARINETTI + PICASSO = PARIS < *SANTA RITA PIN-
TOR + FERNANDO PESSOA
ALVARO DE CAMPOS
!!!*
Antes de me erguer lembra-me ainda,
A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
Nos bares... não sei porquê...
--_Un vermouth cassis_... _Un Pernod à l'eau_...
_Un amer-citron_... _une grenadine_...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Levanto-me...
--Derrota!
Ao fundo, em maior excesso, ha espelhos que reflectem
Tudo quanto oscila pelo Ar:
Mais belo através dêles,
A mais subtil destaque...
--Ó sonho desprendido, ó luar errado,
Nunca em meus versos poderei cantar,
Como anseara, até ao espasmo e ao Oiro,
Toda essa Beleza inatingivel,
Essa Beleza pura!
Rólo de mim por uma escada abaixo...
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava...
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Decido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:
--Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...
Tum... tum... tum... tum tum tum tum...
*VLIIIMIIIIM...*
*BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...*
*FUTSCH! FUTSCH!...*
*ZING-TANG... ZING-TANG...*
*TANG... TANG... TANG...*
*PRÁ Á K K!...*

_Lisboa--Maio de 1915._

MARIO DE SÁ-CARNEIRO.


[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de _Hors Texte_ de Santa Rita Pintor.]

*SANTA RITA PINTOR.*
PARIS ANNO 1913.

Compenetração estática interior de uma cabeça--complementarismo
congénito absoluto.

_(SENSIBILIDADE LITHOGRAPHICA.)_


*POEMAS*
DE
EDUARDO GUIMARAENS


_SOBRE O CYSNE DE STÉPHANE MALLARMÉ_

Um sonho existe em nós como um cysne num lago
de agua profunda e clara e em cujo fundo existe
um outro cysne branco e ainda mais branco e triste
que a sua fórma real de um tom dolente e vago.
Nada: e os gestos que tem, de caricia e de afago,
lembram da imagem tenue, onde a tristeza insiste
em ser mais alva, a graça inversa que consiste
a dolente mudez de um espelho presago.
Um Cysne existe em nós como um sonho de calma,
placido, um Cysne branco e triste, longo e lasso
e puro, sobre a face occulta de nossa alma.
E a sua imagem lembra a imagem de um destino
de pureza e de amôr que segue, passo a passo,
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