Raios de extincta luz - 2

Total number of words is 4510
Total number of unique words is 1636
35.8 of words are in the 2000 most common words
50.4 of words are in the 5000 most common words
58.2 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
humana e elevada. A novidade, o arrojo, talvez a mesma indeterminação do
pensamento, apenas vagamente idealista e humanitaria, fizeram a fortuna
do livro, junto da geração nova, o que prova pelo menos que _veiu no seu
momento_: é tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este cyclo os
sonetos comprehendidos na 3.^a secção dos _Sonetos completos_, muitos
dos quaes já entraram nas _Odes modernas_. Em 1874 teve este livro uma
2.^a edição muito correcta e contendo varias composições novas que
considero, tal como é e com todos os defeitos inherente á propria
essencia do genero, como definitiva.
N'esse mesmo anno de 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa
de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inacção,
a perspectiva da morte visinha, a ruina de muitos projectos ambiciosos e
uma certa acuidade de sentimentos, propria da nevrose, puzeram-me
novamente e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema
da existencia. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existencia em geral
incomprehensivel. Da lucta que então combati, durante ou 5 ou 6 annos,
com o meu proprio pensamento o meu proprio sentimento que me arrastavam
para um pessimismo vacuo e para o desespero, dão testemunha, além de
muitas poesias, que depois destrui (subsistindo apenas as que o Oliveira
Martins publicou na sua introducção aos _Sonetos_) as composições que
perfazem a secção 4.^a (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as v.
ex.^a, não preciso commental-as. Direi sómente que esta evolução de
sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo,
ainda o mais elevado e mais harmonico, ainda o de um Goethe ou de um
Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciencia suspensa, o
sentimento, no que elle tem de mais profundo, por satisfazer. A sua
religiosidade é falsa, e só apparente; no fundo não é mais do que um
paganismo intellectuel e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente,
sem poder sahir do naturalismo, dentro do qual nascera para a
intelligencia e me desenvolvera. Era a minha atmosphera, e todavia
sentia-me asphixiar dentro d'ella. O Naturalismo, na sua fórma empirica
e scientifica, é o _struggle for life_, o horror de uma lucta universal
no meio da cegueira universal; na sua fórma transcendente é uma
dialetica gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo.
Eram estas as consequencias que eu via sahir da doutrina com que me
creara, da minha _alma mater_, agora que a interrogava com a seriedade e
a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veiu ao
mundo.
A reacção forças moraes e um novo esforço do pensamento salvaram-me do
desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciencia moral
não pode ser a unica voz sem significação no meio das vozes innumeras do
Universo, refundindo a minha educação philosophica, achava, quer nas
doutrinas, quer na historia, a confirmação d'este ponto de vista. Voltei
a ler muito os philosophos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo ás
origens do pensammento allemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os
moralistas e mysticos antigos e modernos, entre todos a _Theologia
Germanica_ e os livros buddhistas. Achei que o mysticismo, sendo o
desenvolvimento psychologico, deve corresponder, a não ser a consciencia
humana extravagancia no meio do Universo, á essencia mais funda das
cousas.
O naturalismo appareceu-me, não já como a explicação ultima das coisas,
mas apenas como o systema exterior, a lei das apparencias e a
phenomenologia do Sêr. No _Psychismo_, isto é, no Bem e na Liberdade
moral, é que encontrei a explicação ultima e verdadeira de tudo, não só
do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos physicos
elementares. A _monadologia_ de Leibnitz, convenientemente reformada,
presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo
naturalista e espiritualista. O espirito é que é o typo da realidade: a
natureza não é mais do que uma longiqua imitação, um vago arremedo, um
symbolo obscuro e imperfeito do espirito. O Universo tem pois como lei
suprema o bem, essencia do espirito. A liberdade, em despeito do
determinismo inflexivel da natureza, não é uma palavra vã: ella é
possivel e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser
um carcere: elle é pelo contrario o senhor do mundo, porque é o seu
supremo interprete. Só por elle é que o Universo sabe para que existe:
só elle realiza o fim do Universo.
Estes pensamentos e muitos outros, mas concatenados systematicamente,
formam o que eu chamarei, embora ambiciosamente, a minha philosophia. O
meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como um buddhista. Ha, com
effeito, muita coisa commum entre as minhas doutrinas e o Buddhismo, mas
creio que ha n'ellas mais alguma coisa do que isso. Parece-me que é esta
a tendencia do espirito moderno que, dada a sua direcção e os seus
pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior
estado de banca rota, senão por esta porta do psychodynamismo ou
panpsychismo. Creio que é este o ponto nodal e o centro de attracção da
grande nebulose do pensamento moderno, em via de condensação. Por toda a
parte, mas sobretudo na Allemanha, encontram-se claros symptomas d'esta
tendencia. O occidente produzirá pois, por seu turno, o seu Buddhismo, a
sua doutrina mystica definitiva, mas com mais solidos alicerces e, por
todos os lados, em melhores condições do que o Oriente.
Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a exposição dogmatica
das minhas idéas philosophicas. Quizera concentrar n'essa obra suprema
toda a actividade dos annos que me restam a viver. Desconfio, porém, que
não o conseguirei; a doença que me ataca os centros nervosos, não me
permitte esforço tão grande e tão aturado como fôra indispensavel para
levar a cabo tão grande empreza. Morrerei, porém, com a satisfação de
ter entrevisto a direcção definitiva do pensamento europeu, o Norte para
onde se inclina a divina bussola do espirito humano. Morrerei tambem,
depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de
pensamentos tão irmãos das mais intimas aspirações da alma humana e,
como diziam os antigos, na paz do Senhor!--Assim o espero.
Os ultimos 21 Sonetos do meu livrinho dão um reflexo d'esta phase final
do meu espirito e representam symbolica e sentimentalmente as minhas
actuaes idéas sobre o mundo e a vida humana. É bem pouco para tão vasto
assumpto, mas não estava na minha mão fazer mais, nem melhor. Fazer
versos foi sempre em mim cousa perfeitamente involuntaria; pelo menos
ganhei com isso fazel-os sempre perfeitamente sinceros. Estimo este
livrinho dos _Sonetos_ por acompanhar, como a notação de um diario
intimo e sem mais preoccupações do que a exactidão das notas de um
diario, as phases successivas da minha vida intellectual e sentimental.
Elle fórma uma especie de autobiographia de um pensamento e como que as
memorias de uma consciencia.
Se entrei em tão largos desenvolvimentos biographicos, foi por entender
que, sem elles, se havia de perder a maior parte do interesse que a
leitura dos meus _Sonetos_ pode inspirar. Os criticos allemães acharão
talvez interessante observar as reacções provocadas pela inoculação do
Germanismo, no espirito não preparado de um meridional, descendente dos
navegadores catholicos do seculo XVI. Poderá essa ser mais uma pagina,
embora tenue, na historia do Germanismo na Europa, e porventura parecerá
curiosa aos que se occupam de psychologia comparada dos povos.
Ao bom e amavel espirito que me introduz, a mim neophyto, n'esses
grandes circulos do pensamento e do saber, tributo, além de muita
sympathia, indelevel gratidão.
E sou de v. ex.^a com a maxima consideração
criado m.^o obrg.^o
_Anthero de Quental_.


A OBRA POETICA DE ANTHERO DE QUENTAL

1. _Sonetos de Anthero_. Editor Sténio. Coimbra, Imprensa Litteraria,
1861. In-8.^o de XII e 23 pag. Contém 21 Sonetos, dos quaes 16 foram
incorporados nos _Sonetos completos_; os 5 restantes ficam incluidos nos
_Raios de extincta Luz_. O prologo é uma apresentação em verso por
Santos Valente. A carta a João de Deus sobre a theoria do Soneto foi
reproduzida no vol. II do _Circulo camoniano_.
2. _Beatrice_. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1863. In-8.^o grande,
de 40 pag. Este poemeto, formado de trechos lyricos, está incorporado
nas _Primaveras romanticas_.
3. _Fiat lux_. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1864. In-8.^o grande,
de 16 pag. Extremamente raro, por que foi rasgado pelo auctor poucos
dias depois de publicado. Fica incorporado este poemeto nos _Raios de
extincta Luz_.
4. _Odes modernas_. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1865. In-8.^o
grande, de 160 pag. O texto termina a pag. 150, sendo as ultimas 10 pag.
occupadas por uma nota.
----Segunda edição (Contendo varias composições ineditas). Porto, 1875.
In-8.^o pequeno, de 186 pag. N'esta foi cortada a carta dedicatoria a
Germano Meyrelles, e bem assim a dedicatoria dos Sonetos _A Ideia_, a
Camillo Castello Branco; os versos que começam: «Como a serpente larga a
pelle antiga» (pag. 100), _Á Irlanda_ (pag. 121), e as duas quadras
sobre Mahomet e o Christo (pag. 133).
5. _Primaveras romanticas_ (Versos dos vinte annos). Porto, Imprensa
Portugueza, 1871. Com retrato photographico. In-8.^o grande, VII e 202
pag. Uma grande parte d'estes versos fora primeiramente publicada no
_Seculo XIX_, jornal de Penafiel, em 1864, e outros com o pseudonymo de
Carlos Fradique Mendes. (Vid. n.^o 2).
6. _Sonetos_ (Bibliotheca da Renascença, I). Porto, Imprensa Portugueza,
1881. In-8.^o pequeno, de 32 pag. e 4 não numeradas. Contém 28 Sonetos
colligidos por Joaquim de Araujo.
7. _Sonetos completos_. Publicados por J. P. de Oliveira Martins. Porto,
Livraria Portuense de Lopes e C.^a--Editores. 1886. In-8.^o pequeno; 48
pag. de introducção por Oliveira Martins, e 126 de texto.--Contém a
collecção dos _Sonetos_ da Bibliotheca da Renascença, e todos os Sonetos
dispersos pelas outras obras de Anthero, á excepção de 5 Sonetos
desprezados (Vid. n.^o 1) e do Soneto _Accusação_ (Aos homens de sangue
de Versalhes em 1871), que vem nas _Odes modernas_, a pag. 167 (Vid.
n.^o 4).
----Segunda edição. Porto, 1891. Accrescentada com a traducção allemã do
Dr. Wilhelm Storck, e algumas versões italianas.
8. _Cadencias Vagas_. Separata dos versos colligidos por Joaquim de
Araujo para o volume dos _Raios de extincta Luz_. Lisboa, Typographia da
Academia real das Sciencias, 1892. In-16.^o, VIII e 72 pag. (Tiragem
restricta).
9. _Raios de extincta Luz_. Poesias ineditas (1859-1863) com outras pela
primeira vez colligidas. Publicadas e precedidas de um Escorso
biographico por Theophilo Braga. Lisboa. M. Gomes. Livreiro-Editor, 70,
Rua Garrett (Chiado), 72. Typographia da Academia real das Sciencias,
1892. In-16.^o, de XLVIII pag. de introducção, e 258 pag. de texto.
Entram n'esta collecção as seguintes:
*Folhas avulsas*:
I. _Poesia_ de Anthero de Quental recitada na noite de 13 de maio de
1862, no Theatro Academico, por A. Fialho Machado.
II. _A Gennaro Perrelli_, Ao artista e patriota italiano. Imprensa
Litteraria (Sem data).
III. _Á Italia_. Poesia de Anthero, recitada no Theatro Academico por A.
Fialho Machado, na noite de 22 de outubro de 1862. Coimbra, Imprensa
Litteraria.
IV. _Zara_. Poesia. Imprensa portugueza. Porto. Folha solta, com
restricta tiragem para as pessoas da familia do Dr. Antonio Joaquim de
Araujo.
V. _A casa do Coração_. Impressa sobre um fundo lithographado, com o
retrato de Anthero, e distribuida no Saráo da Liga das Artes Graphicas,
no Porto, em honra do illustre morto.
* * * * *
ORDEM PARA UMA EDIÇÃO DEFINITIVA DAS OBRAS POETICAS COMPLETAS DE ANTHERO

I. _Raios de extincta Luz_ (1859 a 1863).
II. _Primaveras romanticas_ (1863 a 1865).
III. _Odes modernas_ (1865 a 1871).
IV. _Sonetos completos_ (1860 a 1884).


I
PALAVRAS ALADAS


PALAVRAS ALADAS

Raios de extincta luz, eccos perdidos
De voz que se sumiu no espaço absorta--
Meus cantos voarão de edade em edade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.
Não sabe a folha já mirrada e secca,
Que um sôpro do tufão levou revolta,
Que outro sopro talvez desfaça em breve--
Não sabe a triste o ramo onde nascera,
A seiva que a nutriu, quando inda bella,
O tronco que adornou com verde galla,
E onde entre irmãs folgou por tarde amena?
Soltos do tronco, sem calor, sem vida,
Filhos orphãos que um seio não aquece,
Um seio maternal ebrio de affectos,
Meus cantos voarão de edade em edade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.
Mas se alguem, vendo a folha abandonada,
Lembrar e vir na mente o tempo antigo
Em que bella, vestindo pompa e gallas,
Brilhou rica de seiva e luz e vida;
Se na mente sonhar a pura essencia
Que animara esse pó ahi revolto;
Se corpo der á sombra fugitiva,
E a voz unir ao ecco, e o foco ao raio;
Se alguem souber do canto o sentir intimo,
Oh, esse ha de entender a vida, a crença
D'essa alma que animara outr'ora o canto.
Se alguem tiver no peito a urna mystica
Onde o Amor se recolhe, esse hade amar-me;
Se livre, por tyrannos não comprado,
Pulsar um coração, esse commigo
Hade a aurora saudar do _novo dia_;
Se uma alma recordar a eterna patria
Que lhe dera o Senhor, do céo saudosa
Commigo a Deus n'um hymno hade elevar-se.
Aos mais será mysterio o canto e a lyra,
Á Liberdade, a Amor e a Deus votada:
E já, soltos do tronco onde medraram,
Meus cantos voarão de edade em edade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.
Coimbra, Novembro, 1860.


II
LAÇO D'AMOR


A poesia _As Estrellas_ appareceu pela primeira vez publicada na segunda
parte da _Beatrice_ (p. 27 a 31), mas sem titulo, e com a epigraphe
_Excelsior_. O poeta leu-m'a em 1861 com o titulo _As Estrellas_, como
uma das suas melhores Odes. No manuscripto que possuo tem a
data:--_Figueira, Setembro_--1860; não apresenta variantes apreciaveis
da edição do 1863, por isso a não reproduzimos.
_T. B._


LAÇO D'AMOR
_Ao amigo Santos Valente enviando-lhe para o seu Album a poesia AS
ESTRELLAS_

Que heide dar de melhor? Ai, n'estes tempos
De pobres affeições, de tibias crenças,
--Fonte que os sóes do estio tem seccado--
Aonde ha fé tam viva, que trasborde,
Enchendo um peito n'outro peito amigo?
Que esperanças cá da terra ha hi tam firmes,
Tam ricas de futuro, que dois sêres
Possam firmar-se n'ellas sem receio
E abandonar-se todo ao seu arrimo,
Qual braço de mulher em braço de homem?
E quem pode encontrar-se em egual via,
E ir, com norte egual, seguir seu rumo
Quando tantos caminhos vão cruzando
N'estes tempos o mundo do espirito?
Ah, n'este sec'lo, amigo, solitario
Cada qual segue triste a sua estrada,
Caminheiro de um dia, e silencioso,
Contando, como o avaro, os tristes restos
Das suas illusões, das suas crenças,
A si pergunta o que ficou de tudo;
Olha as bandas longiquas do horizonte
E de novo interroga, em desalento,
Se o futuro lhe guarda alguma esp'rança,
Se o abysmo é o termo da jornada?!
Se lá de longe em longe alguma tenda,
Se uma fonte que ensombra alta palmeira.
Lhe alveja no deserto; se inda um pouco
Lhe repousa a cabeça afadigada,
Não faz, crente no Deus que o tem guiado,
A oração da noite, a acção de graças
E, antes que cerre as palpebras, medita...
No repouso só busca o esquecimento:
Dorme o somno agitado de uma noite
Sob a tenda que o acaso lhe depara;
De manhã, sem levar uma saudade,
Sem as deixar tambem, eil-o seguindo
Do fatal peregrinar a longa via.
Que lhe importa o passado ou o futuro?
P'ra dôr que soffre em si tudo é presente,
Aqui, ali, em toda a parte o punge...
Quem lhe dera esquecer, não recordar-se...
Orações? são incenso cujo aroma
É de lagrimas... e as d'elle se hão seccado!
Orgulhoso na dôr, da dôr o orgulho
Fal-o erguer solitario e silencioso,
Como se ergue o granito no deserto
Ermo, nú... se medita... e só comsigo.
Assim vae cada qual seguindo o rumo
Que o accaso ou o fado lhe depara:
Quem se pode encontrar? que laço estreito
Ha que os aperte? Idéa ou sentimento
Aonde em crença egual juntos communguem?
........................................
........................................
........................................
Com tudo Deus existe! e nós, seus filhos,
--Ingratos--se n'uma hora o olvidámos,
Dentro temos a voz de eterno brado!
Quem pode renegar seu pae? Nós somos
Como esse Adão occulto no arvoredo
Que não quer responder a _quem_ o chama:
Porém se a voz do pae clamou tres vezes,
Não pode resistir--«Eis-me presente.»--
Dissidentes no mais, Deus nos reune:
No impio, ou crente, em todos Deus existe
E todos chama a si, e a todos ama.
Nós somos como rios que descendem
De varia serra, e em vario leito correm:
Mas, que importa? essas serpes tortuosas,
Após rodeios mil, após mil voltas,
Vão todas dar no mar; some-as o Oceano.
Que importa a crença varia e o vario affecto?
Este laço de amor a todos une:
--Existe um Deus que é Pae; somos seus filhos.
Coimbra, Maio, 1861.


III
FORÇA--AMOR


FORÇA--AMOR

O que destroe os mundos,
E dá que os mar's frementes,
Em volta aos continentes,
Cavem abysmos fundos;
A mão que faz que a noite,
Sem luz, amor, encanto,
Se envolva em negro manto
Aonde o mal se acoite;
Que pôs no olhar o brilho,
E deu ao labio o riso,
Á planta o pomo liso.
Seio de mãe ao filho;
O que é verbo da vida,
Do amor, da luz, do affecto,
O que sustenta o insecto
E a planta desvalida;
E disse á nuvem branca
--Em densas trevas morre,
E disse ao vento--corre,
Assola, espalha, arranca;
Quem faz da vida morte,
De puro incenso, fumo;
E deixa, em mar sem rumo,
O homem luctar co'a sorte;
Se é Deus... oh! não! não pode
Do amor o foco immenso,
Que abraza em fogo intenso,
Se á mente nos acode;
Não pode o sôpro d'elle
Mandar a morte e o pranto,
Em vez do doce encanto,
Que immenso amor revele!
Algum genio das trevas,
--Espirito infecundo--
Espalha sobre o mundo
Estas vinganças sevas.
Não elle; o Deus suave!
D'aquelle seio immenso,
Só manda á terra o incenso
E o balsamo que a lave!
........................................
........................................
--«Estranhas ver a morte?
De vida andas repleto:
O Deus, o Deus do affecto
Tambem é o Deus forte:
Poeta! és tu que ignoras
--Envolto em sonho aéreo--
O revolto mysterio
De mais revoltas horas!--
Dezembro, 1860.


IV
PAZ EM DEUS


PAZ EM DEUS
...pax hominibus bona voluntate.

O Deus que me creou pôz-me no peito
Um thesouro tão rico de esperança,
Que não ha quem m'o roube ou quem m'o gaste;
E pôz-me n'alma fonte tão perenne
D'aquelle Eterno-Amor, que de lá desce,
Que não ha sol ou calma que m'a seque.
A fonte que nasceu em solo árido
Se um dia murmurou, morreu no outro;
Mas a que vem dos montes, que o céo tocam,
Descendo lentamente e sem ruido,
Té que brota entre as flores da campina,
Essa não morre com a luz de um dia...
Fonte de puras aguas abundantes,
Traz do céo sua origem. Lá se esconde,
Entre nuvens, o foco que a alimenta:
Eterna, como o céo d'onde partira,
E serena, como elle, a paz e a vida,
Como elle, tem no seio e d'elle manam.
Assim d'aquelle amor. Constante e puro,
Que ardor ou calma ou sol pode seccal-o?
Que pó da terra conspurcar-lhe o brilho?
A maldade dos homens não te mancha,
Oh minha paz, oh minha pomba candida!
Na terra o caçador te aponta a flecha,
E o tiro parte em vão. Como tocar-te,
Se tão alto voaste, e o dardo apenas
Mediu a meia altura que levavas?
A flecha cae na terra... ao céo tu foges!
Vae pomba immaculada! irei comtigo
Abrigar-me tambem no seio eterno,
Quando um dia o Senhor julgar que é finda
A missão que me deu de aqui servil-o.
Aqui fica-me a esp'rança que me alente,
Fica a luz que me guia, o Amor, a crença.
E foi Deus quem me deu o meu thesouro,
Como á ave que vôa deu a penna,
Que a libra pelo espaço; e ao olho morto
Do ancião, a luz que aponta melhor mundo.
Na assembléa dos homens, se um, olhando-me
Disser--«Aquelle é rei»--irei prostrar-me
Diante do Senhor, abrindo o espirito
Á voz que dentro d'elle Deus murmura;
E Deus vendo-me puro na consciencia
Dirá--«Ergue-te em paz: não és culpado»--!
Se sentir dentro d'alma alguma f'rida
Vertendo sangue e fel, em dor extrema,
Buscarei no Senhor o meu alivio:
E o Senhor, pondo um dedo sobre a chaga,
Dirá--«Fica-te em paz: estás curado»--!
Oh minha doce paz! por ti se cumpram
Os decretos do Eterno: tu me escuda
Dos tiros que a maldade em mim dispara;
A força do leão põe-me na mente,
A mansidão da pomba dentro d'alma.
Oh pomba ingenua, pomba immaculada,
Filha do céo ao céo voemos juntos.
Janeiro, 1861.


V
N'UMA NOITE DE PRIMAVERA


N'UMA NOITE DE PRIMAVERA
(*DO POEMA VASCO*)

1.^o FRAGMENTO
Esta quadra d'amor quanto nos punge,
Com tão doce pungir! Como sorrindo
Nos mata de desejos; nos esmaga
Sob o peso infinito dos anhelos,
Que esta vida e mil outras não fartaram!
Esta quadra d'amor, com seus sorrisos,
Quanto nos punge o peito, ai, quanto mata!
Tal é a essencia do Amor; tal Deus ha posto
Um veneno no mal, na flôr um áspide!
Prazer e dôr, sereis talvez um unico,
Unico sêr, que nos penetra e abraza
N'um fogo que nos doe, mas que é tão doce?
Punhal, que ferindo o peito, nos consola,
Mas, que a affagar nos vae roubando a vida,
Antegosto do que é o céo e o inferno?
Será isto o amor? será?... quem sabe?
Talvez! Se é laço universal e unico
Deve o bem como o mal juntar n'um todo;
Se é vida é tambem morte; se é saudade,
É desejo tambem; e se algum anjo
O creou, ha demonio que o perturba;
Se é um sol que nos brilha dentro d'alma,
Tambem queima e devora, tambem mata!
E é isto amor? será! será! quem sabe?
De vida mais completa é antegosto,
De melhor existir que além começa:
Talvez! então o amor será a morte?
Triste noiva, é mistér esp'rar-lhe a vinda
Para amar e gozar e viver muito?!
Celebre-se o hymeneo sobre uma campa:
Aguarde-se a hora extrema, como aurora
De um bem, que além da vida só começa;
E contando os momentos como sec'los,
O primeiro dos dias seja o ultimo...
Mas será isto amor? será!... quem sabe?
Talvez!... Mas quando a lousa funeraria
Rangendo, cobre um corpo estremecido:
Quando a terra só pode dar-lhe os osc'los,
Que inda ha pouco lhe davamos convulsos,
Que vem, que vem aos olhos? Vem só lagrimas
E ao peito vem só dôr! O lucto, o pranto
Se assentam sobre as campas, não a esp'rança!
E será isto amor? será!... quem sabe?
Mas as lousas são frias. Quem pernoita
Na deveza onde só o eterno somno
Se dorme... não! ninguem por lá pernoita!
As dôres, como gazes, se evaporam;
No ambiente da vida os ais não podem
Muito tempo eccoar; ha tanta lagrima,
Tantas consolações para os que soffrem!
Não duram, não!... a mão que enchuga o pranto
Beija-se... e mais... e mais... encontra-se a alma
Com quem se casa a pobre solitaria:
E a outra! a outra lá! partiu-se o laço...
E é isto amor? será! será?... quem sabe?
Feliz do que viaja em mundo novo!...
Triste do que ficou sobre uma lousa
Assentado a chorar: o que é da esp'rança?
Nunca sahiu da campa voz amiga
A consolar a dôr! Fica-lhe apenas
Um premio, triste premio! o das lagrimas:
Esse--se foi constante--hade cingir-lhe
A fronte com a c'roa... do martyrio...
E será isto amor? será!... quem sabe?
........................................

2.^o FRAGMENTO
........................................
Será! será! Que importa, se é tão doce,
Se mata com um sorriso, entre caricias!
Vae, razão fria! vae... isto ou aquillo
Que importa seja o amor?! É sempre bello
--Um momento sequer--gozar a vida.
É bello o amor; é bella a vida; é bello
Tudo aonde o Senhor a mão ha posto...
E o Senhor fez o mundo! e a ti, ó noite,
Noite de primavera, deu-te estrellas,
Que são almas no espaço a procurar-se;
A ti, mulher, a ti deu-te o mysterio
De matar ou dar vida... e a mim, sim!--creio--
Inda hade dar-me uma hora de ventura!
........................................
Oh! dae-me a taça do veneno doce,
Que mata embriagando! Dae-me prestes
Uma taça de amor aonde libe!...
Abril, 1861.


VI
PSALMO


PSALMO
(CXXXII DE DAVID)
Do amor he santo o laço!
O forte ao fraco ajude:
Ao irmão mais fraco escude
Do irmão mais forte o braço.

E a graça do Senhor virá sobre elles:
Virá, bem como um oleo perfumado,
Que na fronte de Arão cahido, escorre,
Que inunda a barba toda, e vem descendo
'Té que a fimbria da tunica lhe beija.
Virá, bem como o orvalho sobre o monte
Sacrosanto de Hermon, e sobre o cimo,
O cimo de Sion, que Deus amara:
Porque sobre as justas frontes
Dos irmãos que estreita o amor,
--Mais que o orvalho sobre os montes--
Desce a graça do Senhor.
Novembro, 1860.


VII
Á BEIRA-MAR


Á BEIRA-MAR
*O CREPUSCULO*

Oh! vem Maria! sobre a rocha erguida
Em asp'ra costa, sobranceira ao mar,
Vamos sósinhos ver as brancas ondas
Sobre os rochedos, em cachões, saltar!
Alli, bem juntos, ao cahir da tarde,
De mãos trocadas a fallar de amor,
Quero, ao contar-te mil segredos d'alma,
Ver-te nas faces virginal pudôr.
É proprio o sitio, é propicia a hora,
Incerta, dubia entre sombra e luz;
Já descem trevas pelos fundos valles,
Inda algum brilho sobre o mar reluz:
Inda no dorso das inquietas ondas
Dourada fita tremeluz, além;
Mas, já ao longe, da campina os viços,
Envolvem sombras que dos montes vêm.
Gigante immenso de esplendor e brilho,
O sol, um instante, viu-se alli nutar;
Depois cançado, declinando rapido
A lassa fronte repousou no mar.
Semelha ao entrar-lhe pelo seio tumido,
Que de mil fógos inda foi tingir,
Medalha de ouro, que em caldeira immensa,
A pouco e pouco visse alguem fundir.
Em tanto a sombra vae descendo os montes
E envolve as terras mysterioso véo;
Já se divisa, vergonhosa e timida,
Pallida estrella tremular no céo:
Como em teu seio, pura virgem, nasce
Ligeira magoa de fugaz pezar,
Que vae crescendo, e transmudada em lagrimas
Te vem dos olhos nos crystaes brilhar:
Como nos brota dentro de alma, e lavra
A pouco e pouco no veloz crescer,
Algum affecto que em paixão tornado
Nos vem no peito com fulgor arder:
Assim da estrella nasce o brilho, e cresce
A pouco e pouco pelo céo de anil;
Ponto luzente, no começo apenas,
Por fim brilhante, entre saphiras mil.
Soidão callada pela terra alarga-se
Preludio augusto da _nocturna voz_;
Em doce enlevo, scisma o homem statico
Em Deus, comsigo meditando a sós.
Hora saudosa de incerteza mystica,
De lucta harmonica entre sombra e luz.
Por ti nos desce sobre o seio ardente
A santa crença que p'ra Deus conduz!
Hora em que é grato no regaço amigo
De alguma esperança de melhor porvir,
Olvidar magoas de um presente incerto,
E, esp'rando, e crendo, n'essa fé dormir.
Em que amor gera dentro de alma os laços
Que as almas ligam com estreito nó,
E que no arroubo de amoroso rapto
Funde dois sêres n'uma vida só.
E eu tambem quero sentir n'alma os intimos
Celestes gosos que esta hora tem;
Em livro aberto lêr um nome augusto
Que em lettras de ouro vejo escripto além.
E no regaço da mulher amada,
Que é minha esp'rança de melhor porvir,
Quero estas magoas ir depôr e apenas
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Raios de extincta luz - 3
  • Parts
  • Raios de extincta luz - 1
    Total number of words is 4368
    Total number of unique words is 1597
    34.1 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Raios de extincta luz - 2
    Total number of words is 4510
    Total number of unique words is 1636
    35.8 of words are in the 2000 most common words
    50.4 of words are in the 5000 most common words
    58.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Raios de extincta luz - 3
    Total number of words is 4526
    Total number of unique words is 1511
    33.4 of words are in the 2000 most common words
    48.0 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Raios de extincta luz - 4
    Total number of words is 4238
    Total number of unique words is 1703
    35.4 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    53.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Raios de extincta luz - 5
    Total number of words is 3719
    Total number of unique words is 1603
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    44.5 of words are in the 5000 most common words
    50.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.