Raios de extincta luz - 1

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_ANTHERO DE QUENTAL_

RAIOS DE EXTINCTA LUZ

POESIAS INEDITAS
(1859-1863)

COM OUTRAS PELA PRIMEIRA VEZ COLLIGIDAS
PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORSO BIOGRAPHICO
POR
THEOPHILO BRAGA

LISBOA
*M. GOMES, Livreiro-Editor*
70, _Rua Garrett_, 72
1892


RAIOS DE EXTINCTA LUZ


_TIRAGEM ESPECIAL_

_D'esta edição tirarem-se_:
4 Exemplares em papel das manufacturas imperiaes do Japão, numerados de
1 a 4.
16 Exemplares em papel Whatman, numerados de 5 a 20.


ANTHERO DE QUENTAL

RAIOS DE EXTINCTA LUZ

POESIAS INEDITAS
(1859-1863)
com outras pela primeira vez colligidas

PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORSO BIOGRAPHICO
POR
THEOPHILO BRAGA
LISBOA
*M. GOMES, Livreiro-Editor*
70, _Rua Garrett, 72_
1892


A
Wilhelm Storck, Oliveira Martins
Eça de Queiroz, Alberto Sampaio, Jayme Batalha Reis
Luiz de Magalhães, Joaquim de Araujo
João de Deus
D. Carolina Michaelis de Vasconcellos
Santos Valente, Alberto Telles
Antonio de Azevedo Castello Branco, José Ben Saude
F. Machado de Faria e Maia
José Falcão, Manuel de Arriaga
Anselmo de Andrade, Manuel Duarte de Almeida
etc., etc.
_a todos os que amaram e admiraram Anthero_
_C._


EXPLICAÇÃO PRÉVIA

A publicação d'este livro é um phenomeno litterario de alta importancia.
Compõe-se de uma collecção de _Poesias ineditas_ de Anthero de Quental,
na primeira phase artistica, de 1859 a 1863, quando o seu ideal era
ainda religioso, romantico e espiritualista. Phase ignorada do publico,
acha-se descripta pelo poeta na sua Autobiographia, quando allude á
«educação catholica e tradicional de um espirito naturalmente religioso,
nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra
conhecida.»
Ao dar á publicidade o livro revolucionario as _Odes modernas_, em 1865,
accentuada poesia de combate, Anthero rasgou todas as composições
anteriores, para que não ficassem vestigios d'esse periodo
contemplativo. Dera então o maximo relêvo á «revolução moral e
intellectual», como o facto mais importante da sua vida, segundo
confessa na Autobiographia. Truncando as suas origens artisticas,
apagava uma pagina psychologica, tão cheia de verdade e naturalidade,
que a critica nunca poderia reconstruir.
Por uma casualidade feliz um companheiro de Anthero de Quental, que por
esse tempo frequentava a faculdade de medicina, copiára todas as poesias
romanticas: chamava-se Eduardo Xavier de Oliveira Barros Leite,
fallecido prematuramente em 1872. Por um enlace de familia, obtive por
occasião da sua morte o caderno das poesias que copiára, e que o proprio
auctor, que lhe sobreviveu vinte annos, mal suspeitava terem sido
conservadas. Guardei-as pois, como um valioso documento, onde estavam os
primeiros germens do talento poetico de Anthero de Quental;
publicando-as depois da sua morte desgraçada, restituimos-lhe á vida
subjectiva uma pagina luminosa e sympathica que faltava á sua obra e á
litteratura portugueza.
O titulo do livro, _Raios de extincta Luz_, tem a significação do seu
apparecimento posthumo, e o valor de exprimir um presentimento do poeta,
ao começar com este hemistychio a invocação escripta em 1860 para uma
colleccionação projectada.
Para completar este monumento, fizemos pesquizas por albuns
particulares, onde ainda encontrámos primorosos ineditos. Ao dr. José
Bernardino agradecemos a contribuição valiosa com que enriqueceu este
livro; e a Joaquim de Araujo os excerptos ineditos da traducção do
_Fausto_ e outras composições dispersas, que Anthero reservava para
incluir em uma futura edição das _Odes modernas_ e das _Primaveras
romanticas_. Manda o dever moral que se reconheça a cooperação do activo
e intelligente livreiro-editor Manuel Gomes, que ligou a sua iniciativa
á publicação das poesias ignoradas do excelso poeta. Incorporando-as
n'este volume, aqui ficam reunidas a primeira e a ultima maneira
artistica de Anthero de Quental, podendo agora ser julgada de um modo
definitivo a sua obra poetica completa.


ANTHERO DE QUENTAL
ESCORSO BIOGRAPHICO

Bem conhecida é esta alta individualidade, que se manifestou entre a
moderna geração com um extraordinario temperamento de luctador, e que de
repente caíu em uma apathia invencivel, em um desalento moral
progressivo, em uma decadencia physica precoce, e por ultimo no
desespero, que em 11 de setembro de 1891 determinou o suicidio. Quando
em tão breve espaço vemos essas bellas organisações litterarias, como
Camillo Castello Branco, Julio Cesar Machado e Anthero de Quental
truncarem a sua carreira pelo suicidio, não pode deixar de explicar-se
essa fatalidade pela nevrose que n'elles era o estimulo do seu talento e
o motor das suas desgraças. E essa mesma nevrose, que se manifestava
brilhantemente pela invenção imaginosa, pela graça delicada ou pela
inspiração poetica, nunca lhes deixára adquirir uma disciplina mental
que os levasse á analyse de si mesmos, nem uma subordinação moral que os
fortificasse contra o seu espontaneo pessimismo. A critica da acção
litteraria de Anthero de Quental está implicita n'esta caracteristica do
seu organismo.
Anthero de Quental nasceu na Ilha de S. Miguel em 1842, em uma familia
de morgados; n'aquella pequena ilha a falta de cruzamentos nas familias
aristocraticas tem determinado uma terrivel degenerescencia, que se
manifesta pela idiotia e pela loucura. Na familia de Anthero de Quental
existem casos d'esta terrivel _tare hereditaire_. A frequencia na
Universidade de Coimbra, desorientadora para as mais fortes
organisações, não deixou de actuar profundamente no espirito de Anthero
de Quental, lançando-o em uma dissolvente anarchia mental pelos habitos
das arruaças escolares e pelas leituras radicalistas que o levavam a uma
grande sobreexcitação. Foi n'esta crise da adolescencia que em Anthero
de Quental desabrochou o talento poetico e a paixão revolucionaria, que
deu origem a uma liga de espiritos emancipados de todo o
supernaturalismo e de toda a auctoridade temporal, que se denominou a
_Sociedade do Raio_. Este titulo provinha das imprecações que lançavam
ao espaço em occasião de trovoadas, provocando o raio para que os
fulminasse, como expressão de uma vontade individual no universo. As
perseguições contra a Polonia e as luctas pela libertação e unificação
da Italia, tambem acordaram o interesse de Anthero para as questões
politicas. As suas leituras favoritas eram os livros de Proudhon, de
Feuerbach, de Quinet e Michelet, e isso rapidamente, vivendo em uma
atmosphera de discussão permanente, de uma dialectica de sophismas,
aggravada por uma irregularidade de vida, que veiu mais tarde a
determinar a doença que o embaraçou na sua actividade. Anthero de
Quental vivia entre um grupo de estudantes que o divinisára,
considerando-o como um apostolo, um iniciador da humanidade. E elle
proprio chegou a acreditar n'aquella missão, e passados annos, em uma
carta autobiographica, definia-se como o porta-estandarte das idéas
modernas em Portugal.
N'este periodo da vida de Anthero era elle dominado por um condiscipulo
natural de Penafiel, chamado Germano Vieira de Meyrelles, a quem dedicou
a primeira edição das _Odes modernas_. Este Germano Meyrelles era um
typo rachytico e aleijado, dotado de um sarcasmo maligno, resultado da
sua imperfeição physica; exerceu no espirito de Anthero uma acção
corrosiva, privando-o de todos os enthusiasmos, e levando-o quasi á
apathia mental. Quando Germano Meyrelles morreu miseravelmente, deixando
duas crianças filhas naturaes, Anthero tomou conta d'ellas e educou-as
em sua companhia, deixando-lhes o remanescente da sua herança.
O talento de Anthero revelou-se pela poesia no jornal _O Academico_; em
1861, levado pela admiração do lyrismo de João de Deus, cultivou a fórma
do Soneto, que estava longe ainda da belleza que attingiu na sua ultima
phase pessimista.
As idéas politicas revolucionarias e negativistas de que se deixára
possuir determinaram a primeira alteração nas suas concepções poeticas.
Em 1865 publicou em Coimbra a collecção de poesias d'esta phase
revolucionaria com o titulo de _Odes modernas_; mas os productos da sua
actividade poetica, transição para as _Odes modernas_ e _Sonetos_, são
totalmente desconhecidos, porque Anthero de Quental rasgou todas as
composições que não se harmonisavam com o seu novo ideal revolucionario.
Um dos adoradores de Anthero de Quental, que o acompanhava nas tropelias
nocturnas, e que tambem morreu doido em 1872, Eduardo Xavier, colligira
em volume essas poesias da phase romantica; é essa collecção que
possuiamos que hoje publicamos, da existencia da qual o proprio Anthero
nem suspeitava.
A crise moral de Anthero começou propriamente em 1865, quando se achou
sósinho em Coimbra; o curso juridico a que elle pertencia acabára a
formatura em 1863; Anthero teve de repetir um anno, e ao terminar a
formatura em 1864, achou-se sem estimulos que o obrigassem a saír de
Coimbra. Vivia então solitario, meditabundo, desenfadando-se em
digressões nocturnas. Foi n'esse anno de 1865, que irrompeu a celebre
_Questão de Coimbra_; eu é que o estimulei a saír á estacada, dando
réplica ás insidias de Castilho.
Anthero publicou n'esse anno a carta _Bom senso e bom gosto_, que o
revelara ao paiz um polemista ardente, um estylista vigoroso, um
espirito possuido de uma alta inspiração. Anthero de Quental contrahira
perante o paiz e a geração moderna o compromisso de pôr em obra essas
generosas aspirações. De dia a dia tornava-se mais reparavel o seu
silencio, mais censuravel a falta de actividade litteraria. Anthero
soffria um profundo mal estar, que o não deixava entregar-se ao remanso
do estudo; saíu de Coimbra para ir viver em Penafiel com o seu amigo
Germano; depois foi para Guimarães para ao pé de Alberto Sampaio; foi
para o Algarve para o seu amigo Negrão; foi á America, a Pariz, aos
Açores, e por ultimo fixara-se mais algum tempo em Villa do Conde. Não
estava bem em parte alguma.
Os trabalhos litterarios não o seduziam; em Lisboa achou-se com José
Fontana, que se aproveitou do seu perstigio moral para a organisação do
partido socialista, e junto com outros rapazes, Eça de Queiroz, Jayme
Batalha Reis, inaugurou em 1871 as _Conferencias democraticas_ do
Casino, mandadas encerrar pelo ministro marquez d'Avila.
N'estes dous actos Anthero foi impellido, caindo outra vez na apathia de
onde nunca mais saiu, promettendo apezar de tudo vir a publicar um
_Programma para os trabalhos da Geração moderna_. Por occasião da
encyclica de Pio IX proclamando o Syllabus, e por occasião da revolução
de Hespanha em 1868, Anthero de Quental publicou dous opusculos, mais
para mostrar as suas aptidões de folliculario do que a vista clara e o
seguro juizo dos acontecimentos. A sua doença moral tornava-se uma lesão
physica, accentuando-se a sua doença nervosa em 1874.
Na impossibilidade de toda a ordem de trabalho, mas carecendo de occupar
a imaginação no meio dos seus soffrimentos, Anthero de Quental ia dia a
dia burilando um ou outro soneto, em que dava expressão ao estado moral
em que se achava; os amigos foram colligindo estes sonetos, vindo ao fim
de algum tempo Oliveira Martins a formar um precioso volume de que elle
mesmo foi o editor carinhoso. Fez a esse livro uma introduccão vaga
sobre intenções buddhicas e intuições nirvânicas, mas não nos deu a nota
viva do poeta. Os _Sonetos_ de Anthero produziram uma forte impressão,
não só pela profundidade dos sentimentos como principalmente pela
perfeição esmeradissima da fórma; porque os versos das _Odes modernas_,
na expressão das paixões revolucionarias, eram pouco plasticos, e
revelavam mais o philosopho do que o artista.
Nos _Sonetos_ Anthero transfigurara-se. O Dr. Storck, que acabava de
traduzir em bellos versos para a lingua allemã a obra completa de
Camões, ao receber um exemplar dos _Sonetos_ de Anthero fez a alta
consagração de os traduzir para essa lingua eminentemente philosophica.
Para acompanhar a sua traducção pediu o Dr. Storck a Anthero algumas
notas biographicas; em carta de 14 de Maio de 1887 escreveu o poeta uma
especie de Autobiographia que vem junto dos _Sonetos_. É um documento
importante, não pelos dados biographicos, que são vagos e exagerados,
mas pelo alcance psychologico, porque pelas phrases com que Anthero se
glorifica dando-se como o estylísta dotado com o _dom da prosa
portugueza_ e o _porta-estandarte das ideias_ em Portugal, vê-se que
obedecia a uma certa vesania mental, que lhe motivava fundas decepções e
terriveis desalentos. N'esta phase de espirito, Anthero caiu debaixo da
influencia de Oliveira Martins, que não foi mais saudavel do que a de
Germano Meyrelles. Oliveira Martins tinha sido um dos seus
collaboradores na organisação democratica e socialista em Lisboa, quando
publicava a _Republica_ e o _Pensamento social_; mas um dia abandona o
seu ideal, e filia-se em um esgotado partido monarchico a que pretendeu
ir levar vida nova. Foi esta apostasia uma desillusão para Anthero;
soffreu-a calladamente, pedindo aos amigos que lhe não fallassem n'isso.
Vivia então em absoluto isolamento em Villa do Conde, onde era visitado
como um pontifice. Em Janeiro de 1890 deu-se o facto brutal do
_Ultimatum_ do governo inglez sobre a questão africana; da natural
reacção do sentimento nacional contra este acto de selvagismo
diplomatico, nasceu no Porto o movimento de agremiação da _Liga
patriotica do Norte_.
Para dar aos espiritos uma certa unificação moral, lembraram-se do nome
de Anthero de Quental; foram buscal-o a villa do Conde, e conseguiram
interessal-o pelo movimento nacional. Prezidiu a alguns comicios e a
sessões preparatorias da _Liga patriotica do Norte_; mas o poeta não
conhecia a mechanica das assembléas parlamentares, foi facilmente
envolvido por todos aquelles que procuravam desnaturar um movimento tão
saudavel, e por fim quando a _Liga patriotica_ se dissolveu com o mais
escandaloso fiasco, Anthero de Quental retirou-se á sua impotencia,
ferido com um desalento mortal. A data do seu testamento em 9 de
setembro de 1890 revela que elle já pensava em acabar com a existencia.
A dissolução dos caracteres dos seus contemporaneos de Coimbra mais o
desalentava; partira para a ilha de S. Miguel em Julho de 1891, e a
falta de interesse e o tedio de aquella solidão augmentada pela
mesquinhez da vida de Ponta Delgada, determinou a fatal resolução de 11
de setembro, em que se suicidou com dous tiros de rewolver na bocca. Foi
uma existencia verdadeiramente desgraçada; não se revelou com a pujança
que possuia. Herdeiro de uma terrivel nevrose, não teve a ventura de
deparar uma doutrina moral, uma philosophia que lhe fortificasse o
espirito; pelo contrario, as suas leituras de Schopenhauer, e a cultura
do ideal pessimista em que se enlevava artisticamente, incutiram no seu
espirito a ideia do suicidio que involuntariamente se tornou effectiva.
A sua obra é mais um documento psychologico do que um producto
esthetico; e n'este sentido será estudada e confrontada com a de outros
genios egualmente desgraçados.


CARTA AUTOBIOGRAPHICA
*DIRIGIDA AO PROFESSOR WILHELM STORCK*
Traductor dos _Sonetos completos_

Ponta Delgada (ilha de S. Miguel, Açores),
14 de maio de 1887.
Ex.^{mo} Snr.

Só agora me chegou ás mãos a sua estimada carta de 23 de abril ultimo,
pelo facto de me encontrar, ha dois mezes, n'esta ilha (que é a minha
patria) trazido aqui por urgentes negocios de familia. A demora das
communicações com o continente explica este atrazo.
Agradeço a v. ex.^a as amaveis e para mim tão honrosas expressões de sua
carta, e nada me póde ser, como poeta e como homem, mais grato do que o
apreço que um tal mestre e critico manifesta pelas minhas composições,
ao ponto de querer ser meu interprete e introductor junto do publico o
mais culto do mundo e que mais direito tem a ser exigente. Discipulo da
Allemanha philosophica e poetica, oxalá que ella receba com benignidade
essas pobres flôres, que uma semente sua, trazida pelo vento do seculo,
faz desabrochar n'este solo pouco preparado. Qualquer que seja a sua
fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil espirito, que
generosamente me toma pela mão, para me apresentar.
As informações biographicas e bibliographicas que v. ex.^a me pede,
podem reduzir-se ao seguinte: nasci n'esta ilha de S. Miguel,
descendente de uma das mais antigas familias dos seus colonisadores, em
abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45 annos. Cursei, entre
1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ella bacharel formado
em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito que me
interessou e absorveu durante aquelles annos, tendo sido e ficando um
insignificante legista.
O facto importante da minha vida, durante aquelles annos, e
provavelmente o mais decisivo d'ella, foi a especie de revolução
intellectual e moral que em mim se deu, ao sahir, pobre creança
arrancada do viver quasi patriarchal de uma provincia remota e immersa
no seu placido somno historico, para o meio da irrespeitosa agitação
intellectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as
encontradas correntes do espirito moderno. Varrida n'um instante toda a
minha educação catholica e tradicional, cahi n'um estado de duvida e
incerteza, tanto mais pungentes quanto, espirito naturalmente religioso,
tinha nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra
reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrivel de espirito,
partilhado mais ou menos por quasi todos os da minha geração, a primeira
em Portugal que sahiu decididamente e conscientemente da velha estrada
da tradição.
Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a
natureza, o acordar das paixões amorosas proprias da primeira mocidade,
a turbulencia e a petulancia, os fogachos e os abatimentos de um
temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de
paciencia e methodo, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com
que, aos 18 annos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia.
No meio das cahoticas leituras a que então me entregava, devorando com
egual voracidade romances e livros de sciencias naturaes, poetas e
publicistas e até theologos, a leitura do _Fausto_ de Goethe (na
traducção franceza de Blaze de Bury) e o livro de Rémusat sobre a nova
philosophia allemã exerceram todavia sobre o meu espirito uma impressão
profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o
_Germanismo_; e, se entre os francezes, preferi a todos Proudhon e
Michelet, foi sem duvida por serem estes dois os que mais se resentem do
espirito de Alem-Rheno. Li depois muito de Hegel, nas traducções
francezas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi allemão); não sei se
o entendi bem, nem a indepencia do meu espirito me consentia ser
discipulo: mas é certo que me seduziam as tendencias grandiosas
d'aquella estupenda synthese. Em todo o caso o Hegelianismo foi o ponto
de partida das minhas especulações philosophicas, e posso dizer que foi
dentro d'elle que se deu a minha evolução intellectual.
Como accommodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado
prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e
Proudhon? Mysterios da incoherencia da mocidade! O que é certo é que,
revestido com esta armadura mais brilhante do que solida, desci confiado
para a arêna: queria reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a
meio caminho da formação de mim mesmo! Consummi muita actividade e algum
talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornaes, em
folhetos, em proclamações, em conferencias revolucionarias: ao mesmo
tempo que conspirava a favor da União Iberica, fundava com a outra mão
sociedades operarias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal
a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns 7 ou 8
annos uma especie de pequeno Lassalle, e tive a minha hora de vã
popularidade.
Do que publiquei por esse tempo, ahi vae o que ainda posso lembrar. O
meu primeiro folheto é do anno de 1864. Intitula-se: _Defeza da Carta
Encyclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal_. É um
protesto contra a falta de logica com que as folhas liberaes atacavam o
_Syllabus_, declarando-se ao mesmo tempo fieis catholicos. O auctor,
glorificando o Pontífice pela belleza da sua altitude intransigente em
face do seculo, via n'essa intransigencia uma lei historica, resava
respeitosamente um _De profundis_ sobre a egreja condemnada pela mesma
grandeza da sua instituição a cahir inteira mas não a render-se, e
atacava a hypocrisia dos jornaes liberaes.
O meu ultimo folheto é de 1871. Intitula-se: _Carta ao ex.^{mo} marquez
de Avila e Bolama, sobre a Portaria que mandou fechar as Conferencias do
Casino lisbonense_. As Conferencias Democraticas tinham sido fundadas
por mim com o concurso de homens moços (que quasi todos têm hoje nome na
politica) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operaria.
Pareceram perigosas ao governo, que arbitrariamente as mandou fechar. O
meu folheto parece que concorreu, segundo se disse, para a queda do
ministerio, que, de resto, não podia durar muito, sendo dos chamados de
transição. É uma diatribe, mas eloquente.
Entre esses dous extremos, colloca-se a famosa _Questão Litteraria_ ou a
_Questão de Coimbra_, que durante mais de 6 mezes agitou o nosso pequeno
mundo litterario, e foi o ponto de partida da actual evolução da
litteratura portugueza. Os _novos_ datam todos de então. O Hegeltanismo
dos Coimbrões fez explosão.
O velho Castilho, o Arcade posthumo, como então lhe chamaram, viu a
geração nova insurgir-se contra o sua chefatura anachronica. Houve em
tudo isto muita irreverencia e muito excesso; mas é certo que Castilho,
artista primoroso mas totalmente destituido de idéa, não podia presidir,
como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo
aspirava a uma nova direcção, a _orientar-se_ como depois se disse, nas
correntes do espirito da época. Havia na mocidade uma grande fermentação
intellectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não
comprehendia, julgou poder supprimil-a com processos de velho pedagogo.
_Inde irae_. Rompi eu o fogo com o folheto _Bom senso e Bom gosto, carta
ao ex.^{mo} A. F. de Castilho_. Seguiu-se Theophilo Braga, seguiram-se
depois muitos outros, _la melée devint génerale_. Todo o inverno de 1865
a 66 se passou n'este batalhar. Quando o fumo se dissipou, o que se viu
mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes,
que não queriam saber da Academia nem dos Academicos, que já não eram
catholicos nem monarchicos, que fallavam de Goethe e Hegel como os
velhos tinham fallado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e
Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes barbaros
e sciencias desconhecidas, como glottica, philologia etc., que
inspiravam talvez pouca confiança pela petulancia e irreverencia, mas
que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa fé e que, em
summa, havia a esperar d'elles alguma cousa, _quando assentassem_.
Os factos confirmaram esta impressão: os 10 ou 12 primeiros nomes da
litteratura de hoje sahiram todos (salvos 2 ou 3) da Escola Coimbrã ou
da influencia d'ella. O Germanismo tomara pé em Portugal. Abrira-se uma
nova éra para o pensamento portuguez. O velho Portugal ainda conservado
artificialmente por uma litteratura de convenção morrera
definitivamente. D'esta especie de revolução fui eu o porta estandarte,
com o que me não desvaneço sobre maneira, mas tambem não me arrependo.
Se a uma ordem artificial se seguia uma especie de anarchia, é isso
ainda assim preferivel, porque uma contem germens de vida, e da outra
nada havia a esperar. Pertence ainda a essa epoca o folheto: _Dignidade
das Lettras e Litteraturas officiaes_.
Durante o anno de 1867 e parte de 68 viajei em França e Hespanha e
visitei os Estados Unidos da America. No fim d'esse anno de 68 publiquei
o folheto: _Portugal perante a Revolução de Hespanha_. Advogava ahi a
União Iberica por meio da Republica Federal, então representada em
Hespanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Côrtes
Constituintes. Era uma grande illusão, da qual porém só desisti (como de
muitas outras d'esse tempo) á força de golpes brutaes e repetidos da
experiencia. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas cousas
da sociedade!
O meu _Discurso sobre as causas da decadencia dos Povos peninsulares nos
seculos XVII e XVIII_, embora pizasse um terreno mais solido, o terreno
da historia, resente-se ainda muito da influencia das ideias politicas
preconcebidas, da critica historica com _tendencias_. É do anno de 1871.
N'esse anno e no seguinte tomei parte activa no movimento socialista,
que se iniciava em Lisboa, e tanto n'essa cidade como no Porto escrevi
bastante nos jornaes politicos. Incidentemente publiquei n'um pequeno
volume, uma serie de estudos com o titulo de _Considerações sobre a
Philosophia da Historia litteraria portugueza_. Creio que é, ainda
assim, o que fiz de melhor, ou pelo menos, de mais razoavel em prosa.
Confesso sinceramente que dou muita pouca importancia a todos esses meus
escriptosinhos de occasião, e até, ás vezes, preciso de certa força de
reflexão para me não envergonhar de ter publicado tanta cousa pouco
pensada. E todavia era applaudido! Porque? Em primeiro logar, creio eu,
porque os que me applaudiam não pensavam, ainda assim, mais nem melhor
do que eu. Em segundo logar, porque me concedeu a natureza o dom da
prosa portugueza, não da prosa de convenção, arremedando o estylo dos
seculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o seu typo na lingua viva e
falada hoje, analytica já nos movimentos da phrase, mas na linguagem
ainda e sempre portugueza. Isso agradou, porque era o que convinha e, em
summa, acabei por ser citado como modelo da prosa moderna! É certo porém
que tudo aquillo são escriptinhos de accasião e que, em prosa, não
produzi ainda o que se chama _uma obra_, isto é, uma cousa original,
pessoal e aprofundada. Ha muito tempo que sei escrever, mas foi
necessario chegar aos 45 annos para ter que escrever. Por isso, deixemos
toda essa farragem que não cito senão para corresponder ao desejo de v.
ex.^a na materia bibliographica. E passemos aos versos.
Além da collecção de sonetos que v. ex.^a conhece, publiquei ainda mais
dois volumes. Um, de 1872, com o titulo de _Primaveras Romanticas_
contêm os meus _Juvenilia_, as poesias de amor e phantasia, compostas na
sua quasi totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por varias
publicações periodicas, e que só em 72 reuni em volume, juntamente com
mais alguma cousa posterior, do mesmo caracter e estylo. Talvez a melhor
maneira de caracterisar esse volume será dizer em francez que é _du
Heine de deuxième qualité_. Como muitas pessoas, por cá, têm achado essa
semelhança, por isso a indico. A 2.^a secção dos _Sonetos completos_ que
não contêm senão composições d'esse periodo dará a v. ex.^a uma idéa
sufficiente do fundo e do estylo d'aquella poesia; assim como a 3.^a
secção lhe dará idéa das _Odes modernas_, cuja 1.^a edição appareceu em
1865. Não sei bem como caracterisar este livro: não é certamente
mediocre; ha n'elle paixão sincera e elevação de pensamento; mas além de
declamatoria e abstracta, por vezes aquella poesia é indistincta, e não
define bem e typicamente o estado de espirito que a produziu. O que ella
representa perfeitamente é a singular alliança, a que atraz me referi
já, do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francez. Acima
de tudo é, como dizem os francezes, _poesia de combate_: o pamphletario
divisa-se muitas vezes por detraz do poeta, e a egreja, a monarchia, os
grandes do mundo, são o alvo das suas apostrophes de nivelador
idealista. N'outras composições, é verdade, o tom é mais calmo e
patenteia-se n'ellas a intenção philosophica do livro, vaga sim, mas
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