Raios de extincta luz - 3

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Guardar um peito para amor sentir.
E antes que as terras illuminem fógos,
Com a luz divina que o Senhor lhe deu;
E antes que morram esses brilhos ultimos
Do sol nas dobras do nocturno véo;
Quero ao soido gemedor das ondas
Casar as magoas d'este immenso amor,
Ardente e puro, como aquelles lumes
Candentes fócos de vivaz fulgor.
Quero nas horas do crepusculo ameno
Sobre o rochedo sobranceiro ao mar,
Aos pés da virgem que escolheu minha alma
Ler-lhe nos olhos confissões sem par.
Figueira da Foz, 1860.


VIII
ASPIRAÇÃO


ASPIRAÇÃO

Porque é que minha alma anceia
De visões e magoas cheia,
Porque ao longe devaneia
Minha mente sem cessar?
Porque á tarde, em fins do dia,
Ao cahir da maresia,
Vou sobre a costa bravia
Magoas carpir sobre o mar?
Porque se me opprime o peito
--Já de ha muito á magoa affeito--
N'esse momento imperfeito,
Mixto de trevas e luz,
Quando tudo, ao longe e ao perto,
Se veste de um brilho incerto
E eu, d'esta alma no deserto,
Só diviso a paz na Cruz?
Porque ao murmurio das fontes,
Quando a sombra desce os montes,
Fito o olhar nos horizontes
E fico mudo a scismar!
Porque á noite, á lua cheia,
«Por noites da minha aldeia»,
Chóro e riu e devaneia
Meu agitado pensar?
Oh! quem é que assim me inspira
Á mente que me delira,
Ao coração que suspira
Allivios, consôlo e paz?
Quem faz que além d'esta vida
Veja uma outra promettida
E anceie essa patria querida,
Não esta patria fallaz?
Não vem de mim nem da terra
--Que tal ouvir não encerra--
O que este peito descerra
N'um hymno de tanta fé:
Eu scismo ás vezes de amores,
Porém são outros ardores,
Outros são os seus fervores,
Outro amor que este não é...
Eu tenho sonhos de gloria,
Que me acodem á memoria
Como a visão illusoria,
Que brilha e que se desfaz:
De ouro e nome tenho sêde;--
Do poder aspiro á séde...
Mas toda esta gloria cede
Á _gloria_ de luz e paz!
Oh! trasborda-me este affecto,
Que aqui dentro anda secreto,
Como de vaso repleto
Trasborda puro o licor!
Oh! inunda-me este oceano
De um amor tão sobre-humano,
Tam puro de todo o engano...
Que nem sei se é isto amor!
Oh! embala-me esta esp'rança,
Aonde a alma me descança
Em pura e santa bonança,
Tão bafejada de Deus,
Que não pode--eu bem o vejo--
Descender-me este desejo
Senão da patria que invejo...
Oh! esta esp'rança é dos céos!
És tu oh Deus que me chamas!
És tu Senhor que me inflammas
N'aquellas ardentes chammas,
Que me dão tão pura luz!
És tu, oh Pae! que da altura,
Olhando a minha amargura,
Me estendes a mão segura,
A mão que a ti nos conduz!
Sim! minha alma te pressente!
Guiada por luz ingente
D'esse fanal que não mente,
Já p'ra ti desprende o vôo...
Oh! quem tem essa luz querida,
Não tem outra promettida,
Não pode amar outra vida...
Senhor! eu busco-te... eu vou!
Coimbra, 1861


IX
A PYRAMIDE NO DESERTO


A PYRAMIDE NO DESERTO

Além na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva e apontas céos;
E deixas, sobranceira ás tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéos!
Tu só! Quem te creou? Mysterio immenso
Ao nascer te encobriu, te envolve o sêr...
E agora eis-te, rival das serranias,
Como ellas condemnada a não morrer.
Tu só! Além, na extrema do horizonte,
Passa o Arabe no auge do furor,
Luz-lhe na mão o alfange, o olhar fuzila,
Vão com elle em tropel morte e terror!
Mas lá surge do accaso arroxeado,
Ao mando de medonho furacão,
Nuvem de ardente pó que rue sobre elle,
Que o sepulta em deserto, árido chão.
Mas tu sorris ás furias da tormenta,
Não temendo arrostal-a inda uma vez,
E ella, a que troou pelos espaços,
Vem tremendo morrer-te ahi aos pés.
Do cimo sublimado, erguido ás nuvens,
Vês os sec'los nascer, ruir no pó;
E em meio da ruina dos imperios
Ficas tu, ó gigante, eterno e só!
Além, n'esse deserto a quem assombras,
Que vidas, que paixões se hão revolvido!
E a todas o deserto, qual sudario,
Nas dobras da mortalha ha envolvido.
Tu podes apontar ao viajante
Um nome ou um logar na solidão:
Dizer--Alli, Palmira foi cidade--
--Aqui, foi um heroe Napoleão.--
Tu só podes dizel-o. Quem mais sabe,
Que pó envolve agora o que morreu?
Quem pode differençar, n'um mar infindo,
Um pó de um outro pó que o envolveu?
Só tu! Na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva, e apontas céos;
E deixas, sobranceira ás tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéos!
Coimbra, Dezembro, 1859.


X
DESALENTO-CONFORTO


DESALENTO

_A Sorte, amigo, a sorte é dura ás vezes!
Agora nos affaga e nos alenta;
E logo nos opprimem seus revezes...
Após leda bonança vem tormenta;
Succede a noite escura ao claro dia,
E ao rapido prazer a magoa lenta!
Assim de minha ardente phantasia
Aos sonhos perfumados de venturas
Que a beijar-me a fronte eu já sentia,
Ai! seguiram-se tristes amarguras
Que a vida a pouco e pouco vão comendo;
Deixando espinhos só onde as verduras
Eram brandos aromas rescendendo_!
Alberto Telles

CONFORTO
(*PARAPHRASE DO SONETO ANTECEDENTE*)

A Sorte só p'ra o fraco é dura ás vezes!
P'ra o forte, que a virtude e crença alenta,
P'ra esse não ha sortes nem revezes...
Porque após da bonança vem tormenta,
Porque a noite succede ao claro dia,
É força definhar em magoa lenta?
Não! que aos males, que gera a phantasia,
O sabio oppõe as intimas venturas
Da virtude e da fé que em si sentia.
Não chores mais, poeta, as amarguras
Que só os bens da terra vão comendo:
A consciencia é jardim onde as verduras
Mil perfumes p'ra o céo vão rescendendo.


XI
A SENDA DO CALVARIO


A SENDA DO CALVARIO
Ave, Christus!

Deixae, deixae passar o homem forte,
O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte
Tambem é cruz de amor!
Deixae! na praça o povo agglomerado
Vomita a injuria alli;
E elle, sereno o rosto e resignado,
Olha o céo, e sorri.
Sorri... não fero riso de despreso
Que ao passar pelo labio perde o encanto,
Mas riso que transluz por entre o pranto
Ao que da cruz de amor arrasta o peso.
Sorri... Que mais importa ao homem forte
Ou despreso ou louvor,
Se da estrella seguiu, que foi seu norte,
O magico pallor?
Tem dentro, como em erguida fortaleza,
A fé, voz que lhe vae bradando--«Avante!
É teu premio o opprobrio do ignorante,
De tal morte morrer, tua grandeza!--»
E diz, vendo a consciencia onde serena
Lê a imagem de Deus,
E do futuro vendo a praia amena:
--«Posso subir aos céos!
Posso agora, depondo em terra o peso
Da missão dolorosa d'esta vida,
Buscar a patria minha promettida,
D'onde o divino amor transluz acceso.--»
Ai pode! Heroe, e martyr, deixa a terra,
Que é cumprida a missão:
O Mundo o teu preceito guarda e encerra
Na mente e coração...
Morres tu; mas a idéa que deixaste
Não morre, como a luz em fim do dia,
Nem o fogo do céo que em ti ardia,
Nem o exemplo sublime, que legaste!
Oh, martyr! cada lagrima chovida
N'essa senda de dôr,
Conquista mais um espirito p'ra vida,
Para a luz do Senhor;
E um dia (e talvez cedo venha o dia)
De cada dôr que ahi te curva agora,
Nascerá qual da noite nasce a aurora
Um mundo de verdade e de harmonia!
........................................
Deixae, deixae passar o homem forte,
O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte,
Tambem é cruz de amor!
S. Miguel, Julho de 1859.


XII
A JOÃO DE DEUS


A JOÃO DE DEUS
DEPOIS DE LER A SUA POESIA

Fique em silencio eterno a minha lyra;
Pomba do céo tu vae; Deus te bem fade,
N'esta alma em teu logar guardo a saudade,
Se a essencia sobrevive á flor que expira.
........................................

Foi o canto do cysne, o canto derradeiro
D'aquella augusta voz que se esvaiu no ar;
Adeus da terna amante ao seu amor primeiro
Que eterno ella julgou, mas cedo viu findar;
Ultimo adeus de quem, ha pouco ainda crente
--N'uma hora apenas--vê, qual sombra na corrente,
Morrer-lhe as illusões co'a morte d'esse amor
E triste se envolveu no vêo de uma erma dôr.
Soffreu da soledade... E onde ha hi um peito
Que não soffra tambem, ainda ao mal affeito?
Soffreu da soledade em que a alma lhe ficou,
Depois que ao longe e triste o ecco se finou
D'aquella _unica voz_, que ainda repetia
A sua voz, bem como, á tarde em fins do dia,
A nuvem que passou reflecte um raio ao sol,
Que mesmo occulto a tinge aos fogos do arrebol.
Soffreu quando da sorte a mão pesada veiu
Poisar-lhe sobre o peito e comprimiu alli
A ancia que animára o arfar d'aquelle seio,
Seio que só bateu--poesia!--amor!--por ti!
E elle então disse: «Aqui deponho a minha lyra:
Se esta alma a outros céos, a outra patria aspira,
Se esta ancia infinita não posso aqui fartar,
Que val'--ecco sem voz--que val' o meu cantar?
Val' mais que eu, em silencio, espere o grande dia,
Cuja aurora immortal, em luz, em poesia,
Me hade envolver, e assim levar-me áquelle céo.
Céo do que amou, creu, esperou e soffreu.
Emtanto--esp'rando--viva em silencio profundo,
Deixando em vão rugir,--qual voz do mar--o mundo;
Aqui guardo a saudade, esse talisman só,
Como da flor já secca inda se guarda o pó.--»
Cobriu o rosto após co' manto da tristeza;
O sol d'aquelle céo fugiu ao longe... além...
E a noite sem luar, sem brilho, sem belleza
Ao negro que hia lá veiu ajuntar tambem.
........................................
........................................
Poeta, essa não é tua missão. Curvar-se
Um momento é do homem; porém não prostrar-se
Gemendo em desalento, e face contra o chão,
Como quem acceitou da dôr a escravidão.
Poeta é quem tem fé, quem busca no futuro
A crença que lhe nega este presente impuro:
Não quem deixa cahir a lyra, não quem vae
Pedir ao desalento abrigo e amor de pae.
É virtude soffrer, nunca perder a crença;
É ter esp'rança tal que a dôr mais crua vença;
É não pedir seu premio aos homens, mas a Deus,
E passar n'este valle, o olhar fito nos céos.
Tal é tua missão:--Luctar! O soffrimento,
Ao pé do eterno bem, o que é mais que um momento?
Coimbra, Março, 1861


_Como a poesia de João de Deus citada na epigraphe da p. 73, não
foi incorporada nas collecções das_ Flores do Campo _e_ Folhas
Soltas, _transcrevemol-a aqui para intelligencia do texto dos
nossos cadernos manuscriptos de Coimbra, notando as variantes da
primeira estrophe_.


ADEUS

_Fique em silencio eterno a minha lyra_;
Vae, effluvio de Deus! _Deus te bem fade:
N'esta alma, em teu logar_ fica _a saudade,
Se a essencia sobrevive á flôr que expira.
Dizer-te adeus! não pude; quando occorre
Tal voz ao labio, o labio empallidece,
Como a nota da lyra nos fallece
Ante a lua que cae, e o sol que morre:
Ante o sôpro que varre o cedro e o vime,
Ante o sublime aspecto do oceano,
Ante a esposa do martyr sobrehumano,
Ante tudo o que é grande e que é sublime.
Embora!... quando a lampada crepita
Já falta d'oleo, languida esvoaça;
A nuvem estala; ruge a onda e passa,
Guarda silencio a abobada infinita_.
João de Deus


XIII
PER AMICA SILENTIA LUNAE


PER AMICA SILENTIA LUNAE

Guardai in alto.........................
........................................
Dante, _Inf._ C. 1.^o

I

Eu amo a noite ás horas socegadas
Que o Senhor manda á terra, como balsamo
A tanta dôr que a punge, e o sol do dia
Parece escarnecer com tanto brilho,
Nem sabe respeitar; quando o silencio
Com manto protector envolve os tristes,
Os que choram saudades; quando o orvalho
Refresca o seio á flôr, e em cada balsa
A viração prepassa suspirando;
Quando é mais puro o ár, mais doce a brisa,
Mais sumidos, mais vagos os rumores,
E detraz da montanha, saudosa
Como a virgem dos sonhos, surge a lua.

II

Eu amo então a noite.--Paz e esperança
A quem soffre, buscando algum allivio;
Ao feliz exultando de alegrias
A lembrança de Deus a quem as deve;
A quem descreu de achar inda na terra
Ventura que lhe foge... o olvido ao menos;
A toda a crença um exultar de affectos;
A todo o desconforto, uma esperança;
A toda a natureza, amor e vida;
Eis o thesouro santo que nos abre
--A nós e ao mundo--a noite, eis seu tributo.
É doce então abrir os seios d'alma
Aos effluvios do céo: flor que hão crestado
Ardentias do sol, e ainda timida
Palpitando entre o susto e a esperança,
Retoma agora aos poucos novo alento
Ao sentir-se segura, e abrindo o calix
Estremece de amor a cada gôtta
Dos orvalhos do céo: como que a vida
Solta de tanto laço que a comprime,
Como gaz que ao calor se ha dilatado,
Se expande livre agora e cresce e absorve
Em si mil harmonias, mil poderes
Que esse universo tem: como as correntes
Occultas, que os oceanos communicam,
A natureza e o espirito permutam
Sympathias e forças, em que a alma
Mais cresce e mais comprehende, e mais abrange,
E n'este permutar de força e força
Quasi na vida universal se funda.

III

Passa a lua; do alto olhando a terra
Procura o triste por lhe dar allivio;
Prepassa a viração e busca do ermo
A florinha minada que refresque;
Corre manso o regato, e banha a erva
Que um pé calcou, e o sol deixou crestada;
Tremúla a estrella, symbolo de esperanças,
Enviam-se harmonias as espheras;
Tudo amor, tudo affectos communica;
E o espirito do homem busca livre
Da sob'rana harmonia a eterna fórmula,
Do eterno amor o fóco, a patria sua.
Lembranças de um viver já pressentido,
Ou memorias--talvez--de uma outra vida,
Que nos relembra vaga, e como em sonhos,
E sobre o fundo d'esta se destacam
Como pela penumbra um vulto incerto...
Aspirações, memorias, ou saudades,
O que nos enche o peito e nos enleva
Como um sonho de amor--e mais ainda--
Senão este mysterio do futuro,
Esta attracção do sêr a vida nova,
Que se foge e se busca e nos revela
A vida universal, então sentida
Mais forte na harmonia do Universo?

IV

Busca-se, anceia-se, e o alvejar da campa
Mais que o sorriso de uma amante é doce;
A lembrança da morte mais que a esp'rança
Do poder ou da gloria nos enleva;
Terrores, incertezas se dissipam,
E sem saudade, sem temor se anhela
Mais mundo, mais espaço, e viver novo!

V

E quem pode temer? Teme o que um dia
Sonhou na mente uma ambição terrena
E mais não vê por todo esse universo,
E além d'elle não vê sublime e grande:
O, que engolfado nos prazeres do mundo,
Esqueceu o seu Deus e seus destinos
Nem sonha mais ventura além da campa:
O que pungido por cruel espinho
De uma duvida atroz, sente a cada hora
Cahir-lhe a uma e uma cada crença
De sobre alma, deixando-a erma e nua,
Como as humidas prégas de um sudario,
Aos poucos desdobrado, deixam vêr-se
Os descarnados membros do cadaver.

VI

Mas quem se assenta ás horas do mysterio,
Entre as flôres do prado, ou sobre a encosta
Da collina virente e olhando a lua
Que banha em luz a esphera crystallina,
Inveja quem habita n'esses mundos...
E fita o olhar por esse espaço, e cuida
Sondar-lhe o infinito; quem anhela
Desvendar-lhe os mysterios e buscando
A região que se sonha e não se avista
Dal-a por patria á sua alma... oh! esse
A viagem não teme, antes anceia,
Quebrada a fórma d'este sêr, alar-se
Em busca de outra mais perfeita, e sempre
De degráo em degráo, de esphera em esphera,
--Metempsycose eterna!--sublimar-se
Na progressão d'este ascender constante
Da parte ao todo, do mortal principio
Em busca de um futuro inattingivel,
Porém melhor cada hora, e a cada passo.
E quem pode temel-a, essa viagem,
Quando fitando o olhar no alto, avista
Banhado em luz o espaço immenso e puro,
Patente e franca a estrada do Universo,
E como que visivel o infinito?
Quando tudo no céo e pela terra
Parece, como irmão, dar-nos confiança
Em nós e em si para seguir avante?
Quando se sente palpitar no seio
Não só já a mesquinha vida propria
Mas todo o grande sêr do que é creado?
Quando nas aras do Universo, o espirito
Communga, como irmão, na mesma crença,
Com tudo quanto vive, e a mais aspira,
Ah! quem pode temer, noite de encanto,
Noite pura e sagrada ao Deus de affecto,
Protegido por tua luz amiga,
A aspiração dos immortaes destinos.
Um pouco mais ao peregrinar constante,
A entrevista do infinito e do homem?

VII

Por ti, noite de amor, por ti nos desce
Tanta ventura ao seio; e como o orvalho
Que o pó da terra ressequido e árido,
Que o vento impelle, fixa sobre o sólo
E como que consola e allivia,
Assim como teu effluvio o triste espirito
Que incerto das paixões refoge á duvida,
N'uma crença fixaste--a crença eterna
Do amor universal, todo harmonias,
Porque és affectos toda! Em cada balsa
Descanta um rouxinol; a cada rosa
Uma brisa osculou; em cada fonte
Brilha um raio da lua; em cada peito
Murmura um ecco que de amor só falla!
Mosteiro da Batalha, 1861.


XIV
NA PRIMEIRA PAGINA DO INFERNO DO DANTE


NA PRIMEIRA PAGINA DO INFERNO DO DANTE
(C. C. P. P.)

Este é o livro das vinganças nobres,
O inferno dos que têm o céo na terra:
Nem vingança; justiça.
--Oh vós que as lagrimas
Trazeis sempre nos olhos, sem que sequem,
Lazaros no banquete da existencia,
Oh filhos do dever! lêde este livro,
Porque atravez de um mundo de miserias,
Do largo perigrinar chegando ao termo,
Heisde ouvir, lá das bandas do futuro,
A grande voz do Christo, a voz eterna,
Erguer-se sobre os filhos da verdade:
«--Felizes dos que soffrem--terão premio:
Feliz do pobre e triste, orphão de affectos,
Será rico: no céo seu pae o espera!»
Coimbra, Dezembro, 1861.


XV
DANTE--DIVINA COMEDIA


DANTE--DIVINA COMEDIA
(PURGATORIO, CANTO VI)

Oh Italia aviltada! Oh não sem rumo
No meio da tormenta!
E era esta a rainha das provincias?
Hoje... cloaca informe!
Outr'ora mal bradasse:--«Patria, Patria!»
Um cidadão, um filho,
Alma nobre--acolhias-l'o no seio
No seio que lhe abrias!
Agora espreita cada um o peito
Do visinho e olha o gladio:
E os que estreita no cinto o mesmo muro
E o mesmo fôsso... comem-se!
Alonga, alonga, oh triste, pelas praias
Teus olhos macerados;
Desce-os, desce, infeliz, ao proprio seio...
A paz! onde a encontraste?
Julho, 1862.


XVI
MOMENTOS DE TEDIO
SONETOS


MOMENTOS DE TEDIO


I
Sinite parvulos ad me venire

Ventura! aurora d'outro eterno dia--
Amor--Verdade--Bem--Quanto desprende
Seu vôo cá da terra e quanto estende
Azas no céo, só busca esta harmonia,
E as alturas fechadas! tudo esfria
E morre, lá por cima, e não se entende...
Certo é que o fructo só p'ra terra pende,
Parece que p'ra terra a luz se cria!
Ha tanto quem sem lucta espere havel-a!
Sem se erguer, quêdo o mundo, cuide vêl-a...
Talvez, se assim quedasse, a possuisse!
Chama-se isto voar! Toda essa altura
Dava-a bem por uma hora de ventura...
Antes minha alma não voasse... e visse!
Coimbra, Novembro, 1862.


II
A UM CRUCIFIXO
(_Primeira elaboração do Soneto de p. 20 dos_ Sonetos Completos)

Dieu n'est pas! Dieu n'est plus

Ha mil annos, oh Christo, ergueste os magros braços,
E clamaste da cruz: «Ha Deus!» e olhaste, oh crente,
O horizonte futuro, e viste em tua mente
O alvor _do céo_ banhar _de luz_ esses espaços!
Porque morreu sem ecco o ecco de teus passos?
E de tua palavra (oh Verbo!) o som fremente?
Morreste! ó dorme em paz: não volvas, que descrente
Arrojáras de novo á campa os membros lassos!...
_Ha mil annos! ha mil! Que é d'ella a tua esp'rança?
Ainda, como então, Amor--traduz--Vingança,
E é o int'resse glacial das almas o sudario_!
_Ainda_, como então, víras o mundo exangue?
E ouvíras perguntar: «De que serviu o sangue
Com que regaste, oh Christo, as urzes do Calvario?!»
Coimbra, Novembro, 1862.
* * * * *

VARIANTE DO 2.^o TERCETO

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céo, frio como um sudario.


III
DECOMPOSIÇÃO

«Eu não sou dos que a patria só adoram»
Como adora o regato a propria serra:
Deus n'uma gleba apenas não se encerra;
Se visita esses mundos, que demoram
De céo a céo, tambem cafres o imploram.
Mas deixae que uma lagrima sincera
Possam os olhos dar, olhando-a, á terra
De onde a primeira vez aos céos se foram.
Sim, vêr-te, Portugal! eu chóro ao ver-te!...
Como ao Leão gigante do Occidente
Lhe cáe a garra, e em nada se converte!...
Não é isto o que eu chóro: o que me dóe,
É como aquella juba omnipotente,
Em pennas de pavão se decompõe!...
Coimbra, Janeiro, 1863.


IV
NIHIL

Homem! Homem! mendigo do Infinito!
Abres a bocca e estendes os teus braços
A vêr se os astros cáem dos espaços
A encher o vacuo immenso do finito!
Porque sóbes á rocha de granito?
Porque é que dás no ár tantos abraços?
E cuidas amarrar com ferreos laços
Um reflexo da sombra de um esp'rito?
Vê que o céo, por escarneo, a luz nos lança!
Que, á tua voz, a voz da immensidão
Responde com immensa gargalhada!
A idéa fechou a porta á esp'rança,
Quando lhe foi pedir gazalho e pão...
Deixou-a cara a cara com o Nada!!...
Maio, 1863.


V
QUINZE ANNOS
(_Primeira elaboração do Soneto de p. 30 dos_ Sonetos Completos)

Eu amo a vasta sombra das montanhas
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossaes de aranhas.
D'ali o nosso olhar vê tão extranhas
Coisas, por esse céo! e tão ardentes
Visões _amostra_ o mar de ondas trementes
E as estrellas, d'ali, vê-as tamanhas.
Amo a grandeza _tenebrosa e_ vasta:
A grande idéa como _um grande fruito_
De _um_'arvore colossal que _isto_ domina;
Mas tu, criança, sê tu boa... e basta,
Sabe amar e sorrir... _mulher, é muito_...
Mas a ti só te quero pequenina...
Coimbra, 18 de abril de 1863.


VI
SARCASMOS

Está deserta a estrada do Infinito,
É apenas o cêo do nada espelho,
A eternidade é fossil: Deus é velho,
E o homem olha o céo de fito em fito!
A cruz de Christo está feita um palito,
Embrulham-se caminhos no Evangelho;
Cada qual dá a Deus o seu conselho:
Nem já é Verbo o verbo... é só um _Dito_!
Nada d'isto me dá a mim cansado;
Mas morrer Satanaz tambem de frio...
Mas não haver já mal que se combata...
Não poder já ao demo um condemnado
Render a alma immortal... por desfastio...
É isto o que me dóe, o que me mata!...
Maio, 1863.


XVII
AMOR DE FILHA


AMOR DE FILHA
(NO ALBUM DE UMA SENHORA)

...........o sangue é vida,
e as Mães a fonte d'ella...
João de Deus

Ainda a trabalhar, dedos formosos!
Nem tanto affinco: Deus tambem não quer
Que se cumpra o preceito tanto á letra;
Preceito é trabalhar, não que se estraguem
Esses formosos dedos de mulher.
Já o sol se escondeu atraz da serra,
E o bordado não céssas de bordar;
Quando abri de manhã esta janella,
Já lá estavas no posto, de olhos roxos,
Como se foram roxos de chorar!
Forte trabalho! não me enganas, bella!
Bem sei eu quem te dá tamanho ardor...
Pois nem um olhar a quem passou na rua,
Dizendo:--É bella! e olhando-te? nem isso?...
Ai tanto trabalhar! só por amor...
Que importa o que passou? no peito um nome
Te domina, e na mente uma imagem só...
Feliz cabeça, que hade ornar em breve
O bordado gentil em que trabalhas
Com esse affinco, que causou meu dó.
Feliz! sim; que lhe guarda aquelle peito
Largo e rico thesouro de affeição;
Pois magoar estes olhos, e estes dedos
Formosos estragar--homem ditoso--
Só faz o amor que vem do coração!...
Tu, que talvez repouzes no ocio brando,
(Se não corres talvez de flôr em flôr)
Vê tu que sacrificios immerecidos!...
Mas um menino cego é quem nos vence,
Que a isto e a mais obriga o louco amor!
........................................
Mas, não! Quem lá no fundo, meio occulto
Entrevejo na sombra, como quem
Teme do dia a luz--luz orgulhosa,
Luz que ao feliz afaga, ao triste afflige--
Quem triste e só, se occulta mais além?
Quem, se o dia findou, recebe o beijo
E outro recebe logo que é manhã?
Quem--emquanto a alampada nocturna
Alumia a vigilia--sente em sonhos
Uma lagrima de amor molhar-lhe as cans?
Perdão, mulher! e mais que mulher, filha,
Perdão! louco julguei e impio tambem,
Que tinhas outro amor: como se possa
Ter uma filha amor ou pensamento
Que todo não pertença a sua mãe!
Feliz, quem--pobre--tem um tal arrimo;
Quem--cega--pode vêr uma tal luz:
Quem--cega e pobre e triste e desprezada--
Tem uma mão de filha que piedosa
Té aos degráos do tumulo a conduz!...
........................................
É nobre o teu trabalho, mulher bella--
Bella d'aquella luz que vem dos céos,
A quem nas áras da fiel piedade
Sacrifica illusões da mocidade
E segue o seu caminho crente em Deus!
Nem mais um riso, amigos! Respeitemos
O que ella faz ali com tanto ardor;
Não são enfeites vãos, do prazer socios,
É o pão de uma mãe que ali grangêa,
Trabalha por amor... mas outro amor.
Trabalha e enchuga o pranto á velha enferma:
Trabalha noite e dia; é Deus que o quer:
Que importa á filha, quando a mãe lhe soffre,
Que o sol nasça ou decline, ou que se estraguem
Os seus formosos dedos de mulher?
Coimbra, 1862.


XVIII
GARGALHADAS


GARGALHADAS
(NO ALBUM DO SEU CONDISCIPULO DR. JOSÉ BERNARDINO)

_Risum teneatis_!

Bem é fallar de tristezas
Por estes tempos de risos,
Em que passa a Gargalhada
Na face dos paraisos,
E, como o vento do pólo
Forte--mas triste, mas frio--
Que leva as folhas co'as flores,
Como as enchentes do rio.
É o nivel da egualdade
Desde a rocha até á flor,
Desde o amor da virtude
'Té á virtude do amor.
Como os remoinhos de pó
Que a gente vê, a tremer,
Sob-la tarde, nas estradas,
Como demonios correr;
Como a espuma batida
Que a rocha escarra no mar
E a onda depois atira,
Com escarneo, por esse ár;
Como os grôus em debandada
Ao partir-se-lhe a cadeia:
E o torvelinho que atira
No deserto os grãos de areia;
Como tudo, emfim, que geme
No abraço dos turbilhões
E, de olhos postos no inferno,
Lança ao céo as maldições:
Folhas mortas e flores vivas,
Pó da terra e diamantes,
Aguas correntes e charcos,
Os de perto e os mais distantes;
Vozes profundas da terra,
Vozes do peito gementes,
De envolto as feras bravias
Com as aves innocentes;
Como as palhas assopradas
Depois das malhas, na eira,
Ou gottas de agua rolando
De alta náo na larga esteira--
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