Raios de extincta luz - 4

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Tudo partido, enlaçado,
Em desesp'rados abraços,
Ruindo pelas quebradas,
Rolando pelos espaços,
Nos _paraisos perdidos_
E--agora--feitos desertos,
Como legião de demonios
Rugindo infernaes concertos;
Tudo vae, se rasga e parte,
Como em cidade assaltada,
Sob esses tufões gelados
Da tormenta--Gargalhada!
Das tormentas! Que sem conto
São esses ventos de morte;
E d'um ao outro horizonte;
E d'um modo e d'outra sorte.
Os suões do céo humano
E os simúns do seu deserto;
O que a gente vê ao longe,
O que a gente sente ao perto;
A gargalhada do sabio,
Que se chama... indagação;
A gargalhada do sceptico,
Que tem nome... negação:
A gargalhada do santo,
Que tem nome--fé e crença;
A gargalhada do impio,
Que se chama... indifferença:
A gargalhada da historia
Que se chama... Revolução:
E a gargalhada de Deus,
Que tem nome... Escuridão;
Eil-as 'hi vêm, as tormentas,
De todos os horizontes,
Subindo de todos vales,
Descendo de todos montes.
Eil-as 'hi vêm: já espectros,
Já como lavas ruindo:
Já nuvem, já mar, já fogo,
Mas sempre, sempre cahindo,
Desde a França... e são revoltas;
Da Allemanha... e são idéas;
Desde a America... e são fardos;
E da Russia... e são cadeias;
De Inglaterra... e são carvões
De fumo enchendo os pórtos;
Do Oriente... e são os sonhos;
E da Italia... Christos mortos;
Da Hespanha... e são traições,
Á noite, por traz dos brejos,
--Mão na faca e mão nas costas--
E _dê cá_... e são bocejos.
É d'estes lados que sopram...
E são os ventos assim...
Levando os cedros do monte
Como os lyrios do jardim...
* * * * *
E, comtudo, no meio da _alegria_
Terrivel, que enche o espaço como o ecco
Das grandes trovoadas--e debaixo
De tantos ventos e de tantos climas,
A Alma--a flor do Paraiso antigo--
Lyrio bello do valle--peito humano,
A Sulamite da Sião celeste--
A Psyche triste e palida, que vaga
Nas praias do infinito--a Alma, oh homens,
Em meio do folgar que vae no mundo,
Cada vez chora mais e mais soluça,
E mais saudosa--a eterna expatriada!--
........................................
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É que o rir do leão sempre é rugido--
E isto, que sae da bocca tenebrosa
Do mundo--e o mundo escuro diz Progresso,
E Força, e Vida, e Lei--isto é soluço
Que sae do peito condemnado,--e quando
Vae a sahir, para illudir o misero,
Diz á bocca: «Olha tu como nós rimos»...
Mas não é mais que o arranco da agonia!
Nem pode ser.--Aquelle riso enorme
Quando sae é co'o ruido das tormentas
E, como as grandes aguas, vae rolando,
E esmaga... e não consola!
É como a orgia
Que cuidando folgar... se está matando!
E como esses que dizem dos rochedos
Que _brincam_ com as ondas... quando as partem!
Não é o riso bello da Harmonia,
É apenas gargalhada de Possessos!
Ha dentro d'este mundo algum demonio,
Que o obriga a torcer assim a bocca
Lá quando mais se agita e mais lhe dóe!
Senão, olhae e vêde essa alegria
--Quer seja Idéa ou Força ou Arte, ou seja
A Industria ou o Prazer--de qualquer lado
Que rebente dos labios--vêde como
Faz frio a quem a vê! como entristece
Vêr o gigante louco dar-se beijos
Como em mulher formosa... e ao longe, ao longe
Todo o campo alastrado de flôr's mortas!
........................................
........................................
Mas basta! A luz doirada
Um dia hade surgir!
E a venda, d'esses olhos,
Por fim tambem cahir!
E a Gargalhada immensa
Fechar a horrivel bocca!
E ser canto suave
Essa atroada rouca!
Então!..................
........................
........................
........................
Alma, que sonhas?
Que louco desvairar!...
_Então!!_... Mas--Hoje--esta hora...
É toda p'ra chorar!
Coimbra, Novembro, 1863.


XIX
Á ITALIA


Á ITALIA
POESIA RECITADA NO THEATRO ACADEMICO POR A. FIALHO DE MACHADO
_na noite de 22 de outubro de 1862_

Italia e Portugal! que duas patrias!
Ambas tam bellas, tam amadas ambas!
Uma, a patria do berço; outra a das almas:
Uma, a das artes; outra a dos combates!
Oh! deixae que hoje, aqui, sobre o meu peito,
As estreite, a final.--Ha quanto tempo
Eu quizera juntar-vos, pelas frontes,
Beijar-vos, bem unidas, soluçando,
Como quem, tendo pae, mãe encontrasse.
Portugal! nobre filho de guerreiros!
Viste, primeiro, o sol da liberdade,
Mais feliz, não maior e nem mais digno
Que tua irmã, a Italia.--Ella, entretanto,
Chorava, olhando o céo, negro de nuvens!
Cobriram-n'a de affrontas! sobre os hombros
A toga negra, já como sudario:
O seu corpo partido em dez retalhos:
O extrangeiro assentado nos seus lares...
E não se via sol no céo da Italia!
Dizei-me vós, se pode o grande rio
Existir, sem que as fontes o basteçam?
Se pode quem nasceu fadado ás glorias,
Esquecido morrer? Se os fortes netos
De Mario e de Catão, ir assentar-se
Sosinhos sobre o tumulo dos fortes
--Olhos no chão e pulsos algemados?
Se é possivel que exista um povo--um povo!--
Sem ser livre, e sem sol o céo da Italia?!
O céo da Italia!... esse céo
Tem, por sol, a liberdade!
Riqueza... de claridade...
Mas se foi Deus quem lh'a deu?!
O que Deus dá é sagrado!...
'Stava o povo escravisado
E par'cia, de esquecido,
Prostrar-se tam compungido
Ante os pés de seu Senhor?!
Pois bem! a esse povo escravo
Bastou-lhe o brado d'um bravo
Para se erguer,--eil-o em pé!
E aos tyrannos, aos senhores,
Aos fortes, cheios de fé,
Bastou-lhes ouvir os clamores
D'essa turba esfomeada
Para deixarem a espada...
Raia a nova claridade,
A aurora da liberdade,
D'um proscripto no palor!
O povo toma as espadas,
Meias gastas e olvidadas,
Sobre as campas dos avós:
E, ainda vestido de dó,
Com esforço sobrehumano,
Ergue os hombros... e o tyranno
Treme... nuta... eil-o no pó!...
Quem derruba, sobranceiro,
Altos colossos por terra?
Quem é que faz d'uma guerra
A festa do mundo inteiro?
Um homem?
Não!
A Justiça!...
Deus!--o unico juiz
Dos povos na grande liça!
Só Deus!--
Elle dá ao triste
Allivios... não odios vís!
A essa Italia que hoje existe
Segredou-lhe, em quanto oppressa,
Como sagrada promessa,
Em vez de iras da vingança,
Estas palavras d'esperança:
«Tudo tem allivio á magoa:
A flôr murcha, a gotta d'agua;
Cruz, o moribundo exangue;
Um filho, a fera mais seva;
Amor, o martyr; a treva,
Um raio de claridade...
E o povo, que é vida e sangue,
Não hade ter liberdade?!»


XX
A GENNARO PERRELLI

A GENNARO PERRELLI
AO ARTISTA E AO PATRIOTA ITALIANO

A arte é como a luz: brilha do alto,
Mas quer livre brilhar: do Deus do bello
Ella é religião: seu templo immenso
Quer sacerdotes mas rejeita o bonzo.
E o artista é como astro gravitando
Em céo e espaço livre: acaso o servo
Pode entoar um canto de ventura?
Só a mão, que não aperta
Grilhão de escravo, disperta
Na arte tal magestade,
Tal sentir e tal verdade--
Vêde essa fronte inspirada
Do artista, allumiada
Ao clarão da liberdade!


XXI
GUITARRILHA DE SATAN


Estes versos appareceram pela primeira vez publicados com o
pseudonymo de _Carlos Fradique Mendes_.


GUITARRILHA DE SATAN

Estranha apparição
Que em minhas noites vejo,
Ó filha do desejo!
Ó filha da soidão!
Não sei qual é o teu nome,
E d'onde vens ignoro:
Sei só que tremo e choro
Como de frio e fome!
Que por fundir comtigo
Suspiros, ais, rugidos,
Déra ideaes queridos,
Deuses e fé que sigo.
Sim! dera as prophecias
E os cultos salvadores,
E os Golgothas e as dôres
E as Biblias dos Messias!
Por ti minh'alma clama,
Corre a meus braços breve,
Sejas de fogo ou neve,
Sejas cristal ou lama!
Se és Beatriz, sou Dante;
Sou santo, se és divina;
Se és Laïs ou Messalina,
Sou Nero, ó minha amante!
1869.


XXII
SERENATA


D'esta poesia escreveu o auctor ao sr. dr. Wilhelm Storck, em carta
por este communicada a J. de Araujo: «A... _Serenata_ nunca foi
impressa que eu saiba, embora não seja de modo algum inédita, pois
tendo sido composta ha 4 annos, na Ilha de S. Miguel, a pedido de
um grupo de rapazes, que ali formaram uma sociedade cantante, é lá
muito conhecida e cantada por esses e outros nos seus passeios
musicaes em bellas noites de verão.»
Storck traduziu esta poesia. Ácerca da traducção escrevia-lhe D.
Carolina Michaëlis, em maio de 1891: «A. de Q. recebeu a sua
traducção da _Serenata_, a qual lhe agrada extraordinariamente.
Antepõe-na ao original d'elle, e diz que lhe sôa como uma canção
allemã.»


SERENATA

Cahiu do céo uma estrella,
Ai, que eu bem a vi tombar!
Era a noite pura e bella,
Murmurava ao longe o mar...
Era tudo extase e calma,
Perfume, encanto, fulgor...
Só no fundo da minha alma
Que desconforto e que dôr!
Dorme e sonha, minha bella,
Emballada ao som do mar...
Cahiu do céo uma estrella,
Triste do que a viu tombar!
Era uma estrella cahida,
Uma entre tantas, não mais!
Era uma illusão perdida,
Era um ai entre mil ais!
E has de viver torturado,
Louco, incerto coração,
Só por um astro apagado,
Por uma morta illusão?
Dorme e sonha, minha bella...
Como chora ao longe o mar!
Cahiu do céo uma estrella,
Ai de mim que a vi tombar!
1873.


XXIII
O POSSESSO


O POSSESSO
(_Commentario ás_ Litanies de Satan)


I

Não creio em ti, Deus-Padre omnipotente,
Creador d'esse espaço constellado,
Que do Cahos e o Nada conglobado
Arrancaste o Universo refervente;
Não creio em ti, Deus-Filho, em cuja mente
Foi o Bem inefavel feito e nado;
E não creio no Espirito gerado
Do eterno Amor, como uma chamma ardente;
Saibam-n'o a terra e os céos: do Crédo antigo,
Cheio de Graça e Fé, refugio e abrigo,
Benção da noite e prece da manhã,
Só creio no Peccado ineluctavel,
Na Maldição primeira inexpiavel,
E no eterno reinado de Satan!


II

Quando o Tedio, com plumbeo capacete,
Esmaga a fronte ao homem desolado,
E o Fausto pensador vê a seu lado
A Negação sentada ao seu bufete,
Seu labio é vil tres vezes, se repete
Preces vãs e esconjuros, humilhado:
O nome de Homem, tragico e sagrado,
Só a quem desafia a Deus compete!
É grata a maldição á alma robusta
Do que nenhum pavor divino assusta,
E no Vasio ergueu seu templo e altar...
Mais fecundo que o Céo, creou o Inferno
A blasfemia.--Honra, pois, e preito eterno
A Satan, que nos deu o blasfemar!
1873.


XXIV
EPIGRAMMA TRANSCENDENTAL


EPIGRAMMA TRANSCENDENTAL

Quem vos fez, céo profundo e luminoso,
Terra fecunda, poderoso oceano,
E a ti deu vida, coração humano,
Que és todo um céo e um mar mysterioso,
Bem sabia que o céo, o mar, a terra,
Tinham de ser só carcere e gehena;
Que havia a vida ser só lucto e pena,
E campo, o coração, de eterna guerra.
Por isso o estranho artifice sombrio,
Que, concebendo o plano da obra ingente,
Ironico talvez, talvez demente,
Logo se arrependeu e o confundiu;
Não deu seu nome, como o archonte epónymo,
Á obra de sua mente e sua mão:
O Creador furtou-se á Creação...
E sendo um máo auctor ficou--anonymo.
1879.


XXV
NA SEPULTURA DE ZARA


Estes bellos versos não eram destinados á imprensa, e appareceram
publicados em uma revista de Lisboa, sem consentimento do auctor ou
da familia da menina cuja morte pranteiam. Anthero recusara-se a
imprimil-os, como se vê da seguinte carta que appareceu entre os
papeis de Eduardo Coimbra e que a mãe do mallogrado moço, a sr.^a
D. Anna Coimbra offereceu com varios outros documentos ao mais
querido amigo de seu filho:

«_Villa do Conde, sabbado.
Meu joven poeta

São reservados, e pertencem ao nosso Joaquim os versos a que
allude. É claro que sem licença d'elle não devem imprimir-se.
Deixe-os no tumulo da desditosa criança, que lá fallam melhor aos
que a estremeceram. Se porém combinarem trasladal-os para qualquer
publicação, addiccione o meu amigo ao nome da pobre Zara o do
desolado irmão. Para elle foram feitos, a elle serão dedicados.
E nada mais por hoje, meu amado poeta

Seu do C._
Anthero de Q.»


ZARA
A JOAQUIM DE ARAUJO

Feliz de quem passou por entre a magoa
E as paixões da existencia tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa,
E leve, como a sombra sobre a agua.
Era-te a vida um sonho. Indefinido
E tenue, mas suave e transparente...
Acordaste, sorriste... e vagamente
Continuates o sonho interrompido.
1881.


TRADUCÇÃO ALLEMÃ
DE WILHELM STORCK

Glückselig wer vorüberging am Weh
Des Lebens und der Leidenschaft Getose
Unwissend, wie vorübergeht die Rose,
Und flüchtig, wie der Schatten ob der See.
Dein Leben war ein Traum, begriffen kaum
Und leicht und Lieblichkeit D'u trankest;
Du wachtest auf und lacheltest und sankest
Züruck in Deinen unterbroch'nen Traum.
Münster, abril, 91.


XXVI
GLOSA CAMONIANA


Dous ou tres dias antes da morte de Eduardo Coimbra (8, outubro,
84) escreveu Anthero esta bella quadra junto do leito, em que o
moço poeta, quasi agonisante, lhe pedia «um improviso» para a
carteira-album que pouco antes mandara comprar. Essa carteira
offereceu-a a mãe do poeta em recordação dolorosa, ao fiel amigo,
que rubricára n'ella o seu nome, junto do de Anthero, e que dias
depois lhe entregava a chave do caixão do pobre Eduardo.


GLOSA CAMONIANA
(NA CARTEIRA DE EDUARDO COIMBRA)

Pés em chagas, seguimos pela via
Dolorosa, em demanda da Verdade;
Mas achal-a entre os homens ninguem hade...
_Triste o que espera_! _triste o que confia_!
1884.


XXVII
AS FADAS


Estes versos foram escriptos em Lisboa, para a collecção--_Thesouro
poetico da infancia_, que o proprio auctor coordenou. Foram lidos
no dia immediato a João de Deus, «que delles se mostrou
satisfeito», como Anthero escrevia a um amigo. «Para mim, poeta de
genero apocalyptico, foi um verdadeiro _tour de force_.»


AS FADAS

As fadas... eu creio n'ellas!
Umas são moças e bellas,
Outras, velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, á beira do mar...
Algumas em fonte fria
Escondem-se, emquanto é dia,
Sáem só ao escurecer...
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder...
O vestir... são taes riquezas,
Que rainhas, nem princezas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu...
Quando a noite é clara e amena
E a lua vae mais serena,
Qualquer as póde espreitar,
Fazendo roda, occupadas
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.
O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flóres
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.
Eu sei os nomes d'algumas:
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areaes,
Vive junto ao mar, sósinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos baptisados reaes.
Morgana é muito enganosa;
Ás vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir...
Ora festiva, ora grave,
E vôa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.
Que direi de Melusina?
De Titania, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja gloria
Enche as paginas da historia
Dos reinos de el-rei Merlin?
Umas tem mando nos áres;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquella vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha do condão.
O que ellas querem, n'um pronto,
Fez-se alli! parece um conto...
Mesmo de fadas... eu sei!
São condões que dão á gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou joias, que nem um rei!
A mais pobre creancinha
Se quiz ser sua madrinha,
Uma fada... ai, que feliz!
São palacios, n'um momento...
Belleza, que é um portento...
Riqueza, que nem se diz...
Ou então, prendas, talento,
Sciencia, discernimento,
Graças, chiste, discrição...
Vê-se o pobre innocentinho
Feito um sabio, um adivinho,
Que aos mais sabios vae á mão!
Mas, com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não hade rir.
Querem ellas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes hade mentir.
Quem as offende... Cautela!
A mais risonha, a mais bella,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga aggressiva,
É serpente que alli está!
E têm vinganças terriveis!
Semeiam cousas horriveis,
Que nascem logo no chão...
Linguas de fogo que estalam!
Sapos com azas, que falam!
Um anão preto! um dragão!
Ou deitam sortes na gente...
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer...
É-se morcego ou veado...
E anda-se assim encantado,
Emquanto a fada quizer!
Por isso quem por estradas
Fôr, de noite, e vir as fadas
Nos altos mirando o céo,
Deve com geito falar-lhes
Muito cortez e tirar-lhes
Até ao chão o chapéo.
Porque a fortuna da gente
Está ás vezes sómente
N'uma palavra que diz;
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa,
E torna-o logo feliz.
Quantas vezes, já deitado,
Mas sem somno, inda acordado,
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um bello dia,
Me quizesse a mim fadar...
O que seria? um thesouro?
Um reino? um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palacio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?
Ou podia, se eu quizesse,
Pedir tambem que me désse
Um condão, para falar
A lingua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos...
Ou então, saber voar!
Oh, se esta noite, sonhando,
Alguma fada, engraçando
Commigo (podia ser!)
Me tocasse da varinha,
E fosse minha madrinha
Mesmo a dormir, sem a vêr...
E que ámanhã acordasse
E me achasse... eu sei? me achasse
Feito um principe, um emir!...
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando...
Deixa-me já, já dormir!


XXVIII
O SOL DO BELLO


O SOL DO BELLO
RECITADA NA NOITE DE 13 DE MAIO DE 1862, NO THEATRO ACADEMICO, POR A.
FIALHO MACHADO

O sol do bello a todos alumia!
Sua auréola cinge cada fronte
Bem como o rei do dia, mal desponte,
Dá luz egual a todo o sêr creado!
Este baptismo santo envolve e lava
Todos na mesma onda inspiradora!
Queima com a mesma chamma abrasadora!
Orvalha em egual pranto derramado!
Juntas as almas, que o sentir enlaça,
Commungam, como irmãs, na mesma taça!
Vê-os, agora, artista.--Elles estendem-te
Os seus braços e o affecto é que os impele!
Esse braço, que vezes mil repele
O laço, que em vão, tenta escravisal-o...
A corrupção hypocrita de tantos...
Que sabe resistir a quem o opprime...
É esse que, n'um impeto sublime,
Se ergue a ti, se ergue ao irmão para estreital-o.
É que a alma, que não verga á tyrannia,
Curva-se, livre, ao bello que a alumia!
Sim! aquelles que do alto de um _vão throno_
--Mal firme throno que estremece ao vento--
Pedem, como tributo de um momento,
Respeito, amor, affecto á mocidade,
(Mas pedem como quem ordena a escravos)
Não são esses aqui os respeitados!
Não são esses que são aqui amados!
Não escuta voz de imperio a liberdade!
Mas quem de amor nos labios traz doçura
Esse é que leva a flor de uma alma pura!
Pura e nobre! Embora, despeitados,
Lhe chamem louco e frio a esse peito...
Não se acreditam vozes de despeito.
Frio! quem diz que é frio o peito moço?
Que o sentimento é extincto n'estas almas?
Dil-o a _velhice_ que não tem no seio
Nem uma voz de amor, nem um anceio,
A dar ao bello, que arrebata o nosso:--
Dil-o quem a deseja corrompida...
Porém na mocidade habita a vida!
A vida! sim! Bem como em cofre de ouro
Se guarda o que ha melhor, o que ha mais puro,
Deu-lhe o Senhor a guarda do futuro,
Confiou-lhe em deposito essas gemas
--O amor, a fé, o bello, a liberdade!
O amor! o que nos dá sentir profundo!
A fé! a que nos mostra melhor mundo!
A liberdade! a que espedaça algemas!
O bello! a nossa flammula brilhante!
E sobre tudo, a voz que brada--avante!


XXIX
IBERIA


(_Do_ Seculo XIX, _de Penafiel, n.^o 20, 1864_).


IBERIA

I

Flor dos povos! oh tu que inda te embalas,
E inda em botão, aos ventos do futuro!
Que tens por vazos e jardins e salas
Toda a vasta extensão do tempo escuro!
E frontes gloriosas a adornal-as,
A fronte da historia, o grande auguro!
Lirio que saes do seio á humanidade
Como filha melhor--Fraternidade!
Deixa que escreva aqui teu nome todo,
E já d'aqui aspire teu perfume!
E, arredando co'as mãos o frio lodo
Do presente, me aqueça a esse teu lume!
Deixa beijar-te em sonho, e d'este modo
Trazer-te unida ao seio, que consumme
Esta ancia ardente de destino novo,
E este fogo roubado ao seio do povo!
Porque te vemos só quando sonhamos...
E, irmã! só nos sorris em nosso somno...
E, a dormir, doce amiga, te beijamos!
Tu--só em nossas almas--tens teu throno
Ainda! mas, sem ver-te, te adoramos,
E, como um cão fiel segue o seu dono,
Trazemos ante o olhar tua lembrança,
E caminhamos cheios de confiança!
Fraternidade! esta palavra é suave,
Como antegosto de melhor destino!
Como a onda de um Ganges que nos lave!
E como a pósse de um penhor divino!
Como o vôo sereno de uma ave
Que, sendo apenas ponto pequenino,
Emtanto faz, transpondo ao longe um monte,
Sonhar com melhor céo e outro horisonte!
O grande céo! o céo da humanidade!
Onde os povos serão constellações,
E, destillando a luz da liberdade,
Serão astros e estrellas as nações!
Onde hade o grande laço da egualdade
Reunir a vontade e os corações!
Cobrindo-os, a dormir, os mesmos céos,
Terão todos tambem o mesmo Deus.
Não vejo outro Evangelho de ouro escripto
Dentro no homem,--nem sei que outro areal,
Outro cabo, outro monte de granito,
Do grande navegar surja a final!
Guiados pelo instincto do infinito
É para lá que os povos--náo real!--
Hão a prôa virar lá quando um dia
Marearem pela bussula harmonia!

II

Hãode então, como irmãos, reconhecer-se
Os amigos--ha tanto tempo ausentes!
Hão então (caso novo e estranho!) ver-se
Face a face as nações, sem que dementes
As entranhas se rasguem! e hade lêr-se
Um protocolo, em letras de ouro, ingentes,
Escripto, sem emenda e sem errata,
Por mãos do amor--o grande diplomata!

III

Elle é quem concilia as differenças,
Quem nos concilios hade erguer a voz,
Tirando nova ideia e novas crenças
Das esfriadas cinzas dos avós!
E, sem trabalhos, e sem dôres immensas,
E sem rios de sangue e pranto após,
Rasgando o ventre á velha liberdade
Sairá á luz a joven Egualdade!
É doce vêr assim, á luz da esperança,
Pelo futuro dentro, as cousas bellas...
Prevêr do céo humano essa mudança,
Que em sóes converte as minimas estrellas!
Do passado infeliz eis a vingança!
E dos _mortos_ as faces amarellas,
Córando de ventura e de alegria,
Hãode surgir, emfim, á luz do dia!

IV

E nós tambem, tambem commungaremos
Na grande communhão das novas gentes:
Tambem os nossos braços ergueremos
--Braços livres de jovens impacientes--
E o cinto d'este _Velho_ quebraremos,
De aonde a espada e o sceptro estão pendentes,
(Já tão gastos!) lançando-os á ribeira...
Para o coroar de palmas e oliveira!
Hespanha--irmã! que boda alegre a nossa!
Como hãode então teus seios palpitar!
Que ribeira de lagrimas tão grossa
Teu branco véo de noiva hade estancar!
Como hade parecer pequena poça
Para os _banhos_, então, o grande mar!
E entornar-nos volupia nos desejos
O mixto de odio antigo e novos beijos!
........................................
Mas tu 'stás presa!... e nós... 'stamos dementes!
Separa-nos o abysmo! os teus algozes...
A _cruz de Ignacio_... e as garras inclementes
Dos _leões_ orgulhosos e ferozes...
E a estupidez do _povo dos valentes_,
D'estes pardaes de atroadoras vozes...
Entre nós nos cavaram oceanos...
Sejam-lhe ponte os corpos dos tyrannos!
Porque beijas teus ferros, pobre louca,
E cuidas 'star beijando cousa santa?
E, tendo em tuas mãos cousa tão pouca,
Tão tenue como a capa de uma santa,
Pensas avassalar a terra amouca,
E te ergues com vaidade e _gloria_ tanta?
Oh! tu, cuidando os orbes abraçar,
Só ruinas abraças--Throno e Altar!
Lembre-te a voz do Cid! a atroadora
Voz que se ouvia ao longe nos combates!
Porque tu estás feita psalmeadora
No côro das egrejas--porque bates
No peito, em vez de erguer dominadora
A tua mão em meio de combates,
E livre e bella, oh Hespanha, olhar os céos
Procurando por lá teu novo Deus!

V

Como nos amaremos, doce amiga!
Como então amaremos! que noivado
O nosso não será!... Não tem a espiga
No campo côr melhor, nem mais doirado
Esplendor, do que tu, bella _inimiga_.
Hasde vêr a ventura... quando o estrado
Do leito nupcial fôr Liberdade,
E fôr docel o céo--Fraternidade.


XXX
VERSÕES E IMITAÇÕES


EXCERPTOS DE UMA TRADUCÇÃO DO FAUSTO


I
*DEDICATORIA*

Ainda uma outra vez, imagens fluctuantes,
Vos ergueis ante mim, como outr'ora radiantes
Ante mim, que vos fito em vago enleio incerto!
Voaes... mas eu hesito em vos retêr agora...
Assusta o meu olhar a luz da vossa aurora,
E teme as illusões, meu coração desperto!
Que aérea multidão! que virginaes choreas!
Meu velho coração, pois que inda te incendeias
Não é melhor ceder? sim, sim, rejuvenesce!
D'entre as nevoas surgi, visões do tempo antigo!
Sim, levae-me tambem no vosso bando amigo,
Levae-me aonde ha luz e cantos, e alvorece!
Reconheço entre vós as sombras fugidías
De outro tempo melhor, de mais alegres dias:
Meu coração evoca imagens adoradas...
Susurra em torno a mim voz de saudoso encanto:
É o primeiro amor, que passa como um canto
De antigas tradições vagamente escutadas...
E as lagrimas, tambem, correm silenciosas!
O lamento dorido, as magoas saudosas,
Renovam-se; desperta a dor que dormitava...
Sim, a dor, ante mim, mostra-me os dias idos,
E nomeia-me os bens, sob meus pés fundidos,
Quando em minha illusão julguei que os abraçava!
Almas a quem cantei, não me ouvireis agora!
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