As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes, (1877-08/09) - 3

Total number of words is 4555
Total number of unique words is 1850
32.8 of words are in the 2000 most common words
46.8 of words are in the 5000 most common words
54.8 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
fresco de uma noite de julho no Passeio Publico do Rocio, do qual elles
são os legitimos e directos senhores, a policia invade o alludido
passeio e a pretexto de não estar plenamente liquidada a questão
juridica de quem deve accender os candieiros e fechar as portas, a
policia expulsa violentamente do seu passeio os burguezes e as suas
respectivas mulheres, as suas mães, as suas irmãs e as suas filhas.
Á saida do passeio, uma força de soldados da guarda municipal que
acudira em reforço da policia, encontra-se de frente com os burguezes
que saem do jardim publico e procura recalcal-os para cima dos sabres
policiaes que do lado opposto lhes veem picando os rins. N'esta
conjunctura o publico, sentindo-se tanto á sua vontade como se o
quizessem atarrachar entre as duas laminas de uma prensa, pergunta, por
onde é que se lhe permitte que fuja. A municipal considera indiscreta
essa pergunta, e desembainhando os seus sabres acutila os burguezes e as
suas familias com o ardôr bellicoso de um exercito encarregado da
transformar o paiz n'uma almondega.
Os restos do picado feito pela guarda municipal para alimento da ordem
clamam vingança a altos brados. O acaso fornece-lhes armas, que elles
regeitam. As cadeiras em que estavam sentados no jardim poderiam com
vantagem desarticular alguns dos ossos mais importantes da força
publica. As bengalas a que se apoiavam os chefes de familia, brandidas
com intima convicção, chegariam talvez a introduzir alguma porção de
cana da India e de sentimentos piedosos nos cerebros da soldadesca.
Finalmente alguns bons socos applicados com arte não deixariam de fazer
render as costellas e o espirito das tropas a uma conciliação amigavel.
As sobras da chacina marcial da porta do Passeio acham porem
insufficientes para o seu despique todos esses recursos. Os briosos
canhos, vingadores da bordoada recebida á chucha calada, recolhem-se a
suas casas pedindo ás furias punição para os algozes e arnica para as
victimas.
Ao cabo de uma semana de recolhimento e de agua de vegeto, o desforço
popular rebentou finalmente, inexoravel e tremendo, sob a forma de
polka.
Expulso ás cutiladas e aos cachações de um jardim que é seu, cuja
propriedade e cuja posse elle pagou e repagou muitas vezes com impostos
e contribuições municipaes, o povo de Lisboa vinga-se da carnificina que
o estropia e da violação que o esbulha de uma propriedade que é tão
legitimamente sua como a mesa a que janta ou a cama em que dorme, pondo
o caso em musica e em dansa de roda!
Ó Lisboa! Lisboa! como tu estás demudada do que foste! Nos periodos
ainda os mais vergonhosos da tua velha historia, no tempo d'esse fraco
rei que fez fraca a forte gente, tu tinhas ainda um Fernão Vasques,
simples remendão, que á frente de alguns populares reptava o proprio
soberano a vir á igreja de S. Domingos dar-lhe satisfação dos seus
actos mais intimos, da propria solução de seus amores. Hoje levas
pontapés de um sargento na mesma parte do corpo que nobilitaste no
presente seculo sentando-te nas cadeiras da representação nacional; e
tendo feito um codigo dos teus inviolaveis direitos, tendo promulgado
uma constituição, possuindo uma carta, um parlamento, uma imprensa,
todas as garantias da liberdade, tu, que na idade gothica, chegavas com
o teu braço poderoso á corôa de um rei absoluto, não chegas hoje, na era
nova do direito, ás orelhas de um cabo de esquadra!
Ao pé da mesma igreja para onde ha quinhentos annos tu emprasavas o
chefe augusto do Estado, levas agora tapona do policia Antunes, e a nada
mais o emprasas senão a propinar-te uma segunda sova quando reajas á
primeira!
Misera Lisboa! lastima a tua sorte: os teus remendões acabaram. Chora,
cidade de marmore e de lixo, que os teus remendões morreram!
Aquelles que no vão de uma escada cosiam calças ou talhavam gibões, que
não queriam ser vereadores, nem deputados, nem funccionarios publicos,
que eram simplesmente o povo, bruto mas digno, não sabendo intrigar mas
sabendo bater, não tendo a imprensa nem a policia correccional, mas
tendo ao canto da porta um cacete ou um chuço, esses taes, que eram a
arraia miuda, umas vezes soffredora e mansa, outras vezes vingadora e
terrivel, esses desappareceram. Já não tens rudes filhos da plebe, tens
delicados filhos de Minerva e de Thalia. A cultura moderna fez-te
philarmonica. Substituiste a força da união pela _União e Capricho_.
Quando te não chegam ao pello tocas o hymno. A phrase _levar para o
tabaco_ ha de modificar-se para teu uso na nova fórmula--_levar para a
musica_.
Agora, como te abriram a cabeça um pouco mais profundamente que o
costume, despicaste-te com uma polka especial.
As trombetas das tuas quarenta philarmonicas populares, que trombeteiam
indistinctamente por tudo, que trombeteiam pelas instituições e pelos
santos, pela carta e pelo Senhor dos Passos da Graça, pela restauração
de 1640 e pelo enterro do bacalhau, pela real familia e pelo cyrio da
Atalaia, por Garibaldi e por Santo Antonio de Padua, essas trombetas
que expressavam alegremente o prurido dos teus jubilos principiam a
expressar de um modo egualmente alegre o prurido das tuas confusões.
Violam desaforadamente a tua propriedade e a tua pessoa e tu collocas
essa questão de direito e de dignidade no terreno patusco dos bailes
campestres! Expulsam-te do teu jardim adiante dos bicos das botas do
habil Antunes ou do habil Castello Branco; trincham-te a cabeça com a
semceremonia com que se trincham os melões; e tu danças a polka, a tua
polka brilhante, _As cutiladas do Passeio Publico!_
O que receamos por ti, ó querida Lisboa, é que na proxima tosa que te
appliquem, além de te quebrarem os ossos, te quebrem tambem os
instrumentos musicaes, privando-te assim dos meios de flauteares a
vingança monumental e tremenda. Occorre-nos lembrar aos grandes centros
democraticos da capital a conveniencia de fundar uma reserva de
clarinetes para que nunca se encontre desarmada perante a prepotencia da
tyrannia a vindicta dos povos.
Emquanto á dignidade humana... lalarilolé... e emquanto á liberdade,
ao direito e á civilisação... lariléliló... que nos importa isso?...
Com as cabeças retalhadas pelos sabres policiaes o que nós queremos é
panno adesivado...lólaró... e fios... trolarilolé!
Como o philpsopho Diogenes a unica coisa que pedimos aos grandes da
terra, além de unguentos, é que nos não interceptem o _sol... e dó!_
* * * * *
O sr. Padre Conceição Borges fez cantar no theatro da Trindade uma
operetta de que o dito clerigo compoz ao mesmo tempo o libretto e a
partitura. O publico, pateando enthusiasticamente ambas as coisas, poz a
peça fóra da scena á primeira recita, privando-nos do prazer de assistir
ao notavel espectaculo, de que hoje nos resta apenas o titulo--_Vamos a
ellas_!
Quem são _ellas? Ellas_, na bocca, no pensamento, na intenção do sr.
Padre Conceição Borges, cremos que não podem ser senão as missas.
Mergulhamos como Curcio até o fundo de todas as hypotheses que esse
perigoso problema nos suggere e não vemos que, sem offensa do grave
caracter sacerdotal do sr. Padre Borges, se possa admittir que _ellas_
não sejam as missas para serem qualquer outra coisa.
Ora sendo para as missas quo o sr. Padre Conceição quer ir e sendo para
as missas que nós somos convocados a acompanhal-o, segundo a unica
interpretação que pode ter o seu titulo, parece-nos que Sua
Reverendissima torceu bastante caminho e que iria muito mais direito ao
seu fito se, em vez de ter mettido pelo palco da Trindade com o seu
spartito em punho, fosse directamente com a sua batina--para a sacristia
das Mercês.
* * * * *
_A Roma! a Roma!_ é o titulo de uma valsa annunciada ao publico pelo
periodico religioso _A Nação_, e destinada a servir os mesmos designios
piedosos que levaram o sr. Conceição Borges _a ellas! a ellas!_
Nada mais commodo do que esta intervenção da valsa nas praticas da
penitencia e no regimen depurativo das almas para a mais elevada
comprehensão dos interesses espirituaes e dos destinos eternos! Ir para
Deus não pelas escabrosidades do martyrio mas pelas cadencias do
cotillon é um dos mais notaveis serviços que a arte podia prestar á
alliança da religião e do _chic_.
Affirmar o dogma dansando é uma ideia que vae revolucionar
completamente os usos das salas. Nos bailes do proximo inverno
inclinar-nos-hemos deante das meninas religiosas e diremos:
--Quererá v. ex.ª, minha senhora, ajudar esta alma a sahir do abysmo da
impiedade conferindo-lhe a honra da proxima valsa?
E a menina a quem um homem se dirigir n'esses termos responderá erguendo
os olhos ao céu.
--Sim pelas sete dôres da Virgem Immaculada.
E iremos em seguida para a verdade sacrosanta e eterna, aos pares
deslisando em gyros ondulantes sobre os _parquets_ polidos, cingindo com
o braço direito os espartilhos palpitantes e electricos, segurando na
mão esquerda um pulso delicado e macio, calçado em luvas perfumadas que
chegam ao cotovello. Respiraremos o aroma penetrante do Iris de Florença
exhalado das rendas aquecidas no seio do nosso par, sentiremos nas
pontas agudas do bigode o contacto dos seus cabellos seccos e frisados,
e no hombro o leve peso tepido e carinhoso do seu corpo d'ave. E
conversaremos:
--Como a religião é boa! como é ineffavel!... Eu sinto a voz do meu
coração contricto e humilhado exclamar como esta valsa: a Roma! a Roma!
--E começa a ter crenças?
--Oh! sim!... com impaciência! com frenesi! com delirio!...
Esqueçamo-nos do mundo vil! Bem hajas tu que me chamaste para a fé!...
Tu, minha candida pomba da arca!... Tu, minha estrella dos Magos!... Tu,
meu anjo da guarda!...
--Bemdito e louvado seja Nosso Senhor, que me permittiu a mim, sua
indigna serva, o encaminhar para o gremio da nossa Santa Madre Igreja
uma alma que ia perder-se! Acredita na infallibilidade do nosso Summo
Pontifice, não acredita?
--Acredito com furia, com raiva, com epilepsia! Não sente como o meu
coração bate?... É pelos dogmas, é pelos concilios, que elle assim bate!
Oh! maldito seja o seculo com os seus erros! maldito seja o mundo com os
seus enganos! Amanhã precisamente tinha eu que fazer na secretaria dos
Extrangeiros: não vou! não estou para isso! Para onde eu vou é para o
mez de Maria. Que me demittam, se quizerem! que me ponham na
disponibilidade! Que me importam a mim os bens terrenos? Prefiro
perdel-os a encontrar-me no ministerio com o addido italiano que
blasfema, que bebe a sua agua de Nossa Senhora de Lourdes...
--Oh! se é um sacrilegio, cale-se por Deus! Podem ouvir-nos os pares que
nos seguem... Dariamos escandalo no meio da sacratissima valsa!
--Que eu lh'o diga ao ouvido, na sua pequenina orelha que parece uma
joia de marfim cinzelada por Benvenuto Cellini para ornamento da
cabecinha de uma Notre Dame de Lorette!... Elle bebe-a ao almoço...
--Deus do céu!
--Entre a costelleta e a omelette...
--Virgem Maria!
--Misturada com vinho de Pauillac...
--Santos e Santas da côrte celeste!
--Em partes eguaes, metade vinho, metade agua...
--Mas vae para o inferno essa alma!
--Está claro que sim. E é bem feito!
--Se não houvesse o inferno e o purgatorio elles ficavam-se a rir.
--Mas lá está o castigo, olá! O fogo eterno e o ranger dos dentes por
todos os seculos dos seculos sem fim não é uma chimera. Hão-de
amargal-as, que ha de ser um consolo--para nós!
--Amen! Amen, Jesus Maria José!
Assim conversarão elles e ellas durante a piedosa valsa _A Roma! a
Roma_! Pela escada de Jacob d'essa musica sagrada as almas alar-se-hão
ao empyreo, e irão pela via lactea fóra, sempre valsando, a demandarem a
entrada para os salões de baile de Jehovah, prolongação logica das
nossas soirées ao divino.

* * * * *

Aos srs. advogados
Meus caros senhores.--Escrevo-lhes estas linhas de cima de um boi, para
onde resolvi vir habitar durante o mez corrente e o mez seguinte.
Separa-me do amavel e discreto ruminante um tenue sobrado. Eu oiço-o
mastigar pausadamente com a regularidade do tic-tac do meu cuco, elle
ouve-me o ranger da penna, e raramente batemos para cima ou para baixo a
pedir qualquer coisa um ao outro. A respiração d'elle é perfumada com o
aroma do feno. Nunca cheira a caçarola suja nem a cano, como os predios
da baixa. Não escreve obscenidades na parede da escada, e--coisa que lhe
perguntei antes de o vir habitar--não toca piano.
De quando em quando, pela sesta, calço os sapatos ferrados, pégo no
cajado que nos está ouvindo áquelle canto, accendo um charuto e saio de
cima do boi para percorrer as montanhas circumvisinhas.
Em alguns casaes amigos permittem-me a troco do preço de meio alqueire
de farinha o prazer de amassar eu mesmo o meu pão, de o enrolar, de o
metter ao forno e de o trazer ás costas para casa, d'ahi a dez minutos,
embrulhado n'um guardanapo, que ato pelas quatro pontas e que enfio no
meu varapau.
Nas eiras collaboro na debulha, tomando as redeas de esparto das duas
velhas eguas intonsas e ossudas e pondo-nos a trotar todos tres, ellas
adiante de mim e eu atraz d'ellas, por cima da palha.
Tenho tambem relações nos moinhos, e cultivo a convivencia de moleiros
obsequiosos que, quando lhes assobio, veem em mangas de camisa ao
postiguinho, e conversam para baixo comigo ácerca do vento provavel
para o outro dia.
É n'estas excursões em torno do boi sobre que resido que eu tenho ouvido
os casos que me levam a dirigir aos srs. advogados estas humildes
regras.
* * * * *
Em toda a circumferencia rustica a que serve de centro o meu boi, no
mais extenso raio a que teem chegado os pregos dos meus sapatos, não ha
familia que não tenha contribuído com algumas libras para o cofre dos
srs. advogados. Sempre que algum dente das multiplas engrenagens do
machinismo administrativo roça pelo ser de um pobre homem do campo,
elle, aterrado com a ameaça da coisa odiosa que o obrigaram a reconhecer
como a prepotencia mais implacavel sob o nome de justiça, vae ao
advogado para que este o illucide.
Os principios geraes da organisação social que nenhum cidadão devia
ignorar n'um paiz representativo são para a maioria dos portuguezes o
mysterio mais profundo e mais insondavel. O homem do campo,
especialmenie, não tem idéa alguma das attribuições dos poderes a que
elle se acha subordinado como um dos membros do corpo collectivo que se
chama o paiz. Não sabe senão de um modo deploravelmente vago e ambiguo o
que é a camara municipal, a juiz de paz, o juiz de direito, o escrivão
da fazenda, o administrador do concelho, a junta de parochia, o conselho
do districto, a commissão do recenseamento, o delegado de saude, a
policia, etc. De sorte que, em cada acto da vida civil em que o
desgraçado se acha sob a acção de uma d'essas formas porque lhe apparece
o principio da auctoridade, recorre ao letrado.
--Cá está comnosco a justiça! diz elle á mulher ao receber qualquer
papel official.
--Seja pelas cinco chagas de Christo! suspira a mulher com as lagrimas
nos olhos, atando as mãos na cabeça.
--Má raios partam a justiça e mais aquelle que a inventou, que se o
apanhasse a geito, rachava-o de meio a meio com o sacho ceboleiro! e
tinha alma de lhe beber o sangue!
Que o aviso recebido seja uma intimação para limpar o poço, para remover
a estrumeira, para pagar um relaxe, para ser jurado, para mandar um
filho á inspecção, para comparecer na camara, no tribunal, na
administração ou na recebedoria, os lamentos são os mesmos, as mesmas
pragas, a mesma deliberação final de perder o trabalho de um dia, de
fazer a barba de vespera, de vestir o fato novo, de metter o pé de meia
com os fundos de reserva na algibeira da japona e de ir de manhã cedo
para a cidade a consultar um doutor. Como os mais pobres são tambem os
mais ignorantes, são os pobres os que mais consultam e os que mais
pagam. O procurador ou dá um simples conselho e custa isso cinco
tostões, ou faz um requerimento e custa mil réis, ou redige um recurso e
custa uma libra, ou toma conta da questão e pede dinheiro adiantado para
as primeiras despesas, e custa vinte mil réis.
Acontece muitas vezes que o consultante não tem dinheiro e pediu
emprestado o fundo do pé de meia. A necessidade porém de consultar o
letrado é para elle uma fatalidade como a necessidade de consultar o
medico. Com uma differença: Todos os medicos teem uma hora por dia em
que dão consultas gratuitas aos pobres doentes. Os advogados não teem
egual caridade com os ignorantes pobres. Além do soccorro
desinteressado de todos os medicos, os doentes têem ainda o banco dos
hospitaes. Para os ignorantes não ha recurso nenhum. A escola é
inteiramente inutil para lhes acudir, porque a escola portugueza não
ensina aos cidadãos quaes são os seus direitos nem quaes os meios de
defesa perante a violação d'elles. E no emtanto a sociedade tem muito
maior responsabilidade no facto da ignorancia do que no facto da doença.
O Estado, que tem consultorios gratuitos para a saude, deveria com
dobrada rasão ter consultorios egualmente gratuitos para a justiça. Os
advogados pela sua parte, não contribuindo como contribuem os medicos
para prestar á sociedade na maxima amplitude os serviço desinteressados
que a sciencia Ihe deve, dão-nos dos sentimenaltruistas da sua classe,
por tantos outros titulos respeitavel, uma idéa bem triste.
Os srs. advogadosa dizem-se os protectores do orphão e da viuva, o que
nãos os impede de protegerem pelo mesmo preço os que opprimem a viuva e
os que tyrannisam o orphão.
Os srs. advogados são com o ardor mais convicto e mais eloquente os
defensores da causa da justiça e do direito e bem assim da causa
contraria.
Os raptos de eloquencia por meio dos quaes os srs. advogados fulminam
com heroica imparcialidade tanto o crime como a innocencia, são
conscienciosamente tarifados para que o publico escolha segundo o preço
que deseja pagar.
Entre os movimentos oratorios mais caros ha o grito estridente, a
punhada cava no peito, as lagrimas bailando nos olhos, a _commoção que
se apodera do proprio orador_, o desfallecimento, a syncope, etc.
O tempo preciso para expôr a questão e para levar a evidencia ao
espirito do auditorio depende tambem do accordo previo, segundo a
tabella dos preços. Como tempo é dinheiro, quem quer mais tempo paga
mais caro. Quando o réu é abastado ou opulento a questão não se
esclarece senão á noite, e o jury tem de jantar no tribunal. Quando o
réu é pobre bastam quinze ou vinte minutos para elle ir socegado para a
cadeia. O que escreve estas linhas já ouviu esta concisa oração de
defesa: «Srs. jurados eu não tenho que dizer senão duas palavras: Esse
selvagem (apontando para o réu) estava bebado.» Assim se justificava o
crime de um homem que não tinha pago as circumstancias attenuantes ao
defensor.
* * * * *
Não será util que, assim como fazem os medicos, os srs. advogados
restrinjam o campo, que offereccem ás correrias do epigramma,
introduzindo alguma caridade nas suas relações com os pobres? Não
poderia cada um de s. ex.'as, destinar algumas horas d'um dia ou dois
por semana, para dar consellhos gratuitos? Eis o que se nos offerece
lembrar aos srs. advogados para que, no interesse da sua classe, s.
ex.'as se dignem de o considarar em algum dos seus momentos d'ocio.

* * * * *

Os jornaes do mez passado trasbordaram de annuncios e de noticias pouco
mais ou menos do teor seguinte:
* * * * *
«Mais um florão acaba de ser acrescentado á corôa da sr.ª D. Jeronyma,
directora do bem conhecido e acreditado collegio de _Nossa Senhora da
Santíssima Purificação,_ rua de tal, numero tal, quarto andar, lado
esquerdo. Foi hontem examinada em instrucção primaria e approvada com
dez valores, no lyceu nacional, a menina Elvira Fernandes, alumna do
referido collegio. O nosso amigo Polycarpo Fernandes, extremoso pae da
jovem examinanda, profundamente grato ao zelo da sr.ª D. Jeronyma e aos
carinhos dos examinadores de sua debil e tímida menina, a todos
consagra, por este meio, seus indeleveis agradecimentos.»
* * * * *
A inundação dos artigos d'este genero prova que o exame publico no lyceu
nacional começa a tornar-se um fim na educação ministrada ás meninas nos
collegios de Lisboa.
A pedagoga sr.ª D. Jeronyma envida toda a honra da sua taboleta, todas
as idéas da sua cuia e toda a actividade dos seus chinelos de trazer nas
classes para dotar com o maior numero de exames as alumnas confiadas ás
_réclames_ das suas distribuições de premios.
Este anno a menina Fernandes foi approvada em instrucção primaria. Para
o anno proximo será approvada em francez. D'aqui a tres annos obterá
egual exito com relação á lingua ingleza.
O sr. Fernandes, cada vez mais reconhecido, terá publicado a esse tempo
dez ou doze agradecimentos ao esclarecido zelo da sr.ª D. Jeronyma, e
recobrará completamente educada a sua filha. A infatigavel e benemerita
professora _dá-a por prompta_ para entrar na sociedade mais escolhida.
Ella sabe as linguas, toca o piano e tem, segundo o programma da sr.ª D.
Jeronyma, _as prendas de mãos proprias do seu sexo_. Estas prendas
consistem em fabricar palmitos de papel e em bordar entes fabulosos, de
uma monstruosidade mythologica, feitos a lãs, a matis, ou a missanga,
com olhos de vidro, beiços de vidro, e lagrimas tambem de vidro, sobre
um retalho de panno que se encaixilha e que tem por baixo, a oiro, a
data da confecção do monstro feita em cruz, e em formosas letras de
bastardinho, egualmente a canotilho de ouro:
_Elvira Fernandez me fecit._
* * * * *
Ao fim de um anno de vida domestica D. Elvira esqueceu as linguas, das
quaes aprendeu precisamente o indispensavel para _escapar_, caindo-lhe
um thema facil e um examinador _carinhoso_, como muito bem dizia
Polycarpo nos seus annuncios de agradecimento. Esqueceu as linguas
porque as não pratica na conversação ou no estudo, e não sabe uma
palavra das leis da linguistica, que fixam e systematisam os
conhecimentos theoricos da formação das palavras.
Resta-lhe a faculdade de patinhar no piano a _Prière d'une vierge_ ou
_Les cloches du village_, e de continuar a bordar em seda ou em casimira
os abortos que derramam compungidamente o seu choro de vidrilhos nas
almofadas do salão, aos cantos do sofá, e sobre os assentos das
poltronas.
Polycarpo reconhecerá então--demasiado tarde, ai de mim! ou antes «ai
d'elle!» ou melhor ainda «ai de nós todos!»--que D. Elvira possue, no
estado mais exemplarmente encyclopedico, a ignorancia cabal de tudo
quanto precisa de saber a mulher para ser na casa uma das rodas em que
versa a familia sensata e dignamente constituida, na qual Elvira tem a
sua difficil funcção que exercer como filha, como irmã, mais tarde como
esposa, e finalmente como mãe.
* * * * *
De tal modo os exames das meninas no lyceu nacional, compromettem
absolutamente os fins da educação, desviam-a do verdadeiro ponto de
vista pedagogico, são uma ostentação ridicula, offendem o bom gosto,
desprimoram a delicadeza e a dignidade senhoril, assopram o pedantismo,
incham a frivolidade e incapacitam a mulher para a missão a que ella é
chamada na familia.
* * * * *
Entendemos portanto que--desde o momento em que Fernandes é bastante
obtuso para não prever os perigos da falsa educação ministrada a sua
filha, e não só não protesta contra o programma absurdo de D. Jeronyma,
mas antes lhe enderessa applausos de um enthusiasmo inexcedivel,--ao
Estado cumpre intervir; não se tornar solidario das illusões de
Fernandes; e proteger Elvira. Como? Retirando a Fernandes e a D.
Jeronyma o direito de a levarem a exame.
* * * * *
_Levar a exame_! Só a palavra é um ultrage
da dignidade feminil. Submetter pelo despotismo
do direito paterno tudo quanto ha mais delicado,
mais melindroso, mais susceptivel de corromper-se--o
espirito virginal de uma menina,--ao
interrogatorio official de um mestre que durante
vinte minutos vae exercer sobre aquella
alma a tyrannia espiritual de um confessor! Um
tal inquerito, um tal julgamento, póde ser desculpavel
na educação de um rapaz, para quem
o exame é uma habilitação legal para a sua carreira
civil; na educação de uma menina portugueza
similhante prova é inadmissivel e equivale
a uma amputação do decoro.
Ora se nenhuma mestra e se nenhum pae tem o direito de cortar as orelhas
a uma creança para a tornar mais bonita, assim nenhum pae e nenhuma
mestra podem ter a auctoridade de fazer examinar uma menina para a
tornar mais educada.
Pelo que, a obrigação do Estado seria prohibir os exames da instrucção
primaria e de instrucção secundaria para todas as pessoas do sexo
feminino que não juntem ao requerimento de matricula attestado de
maioridade e de emancipação legal.
* * * * *
Em um exame de instrucção primaria n'um dos nossos lyceus deu-se este
dialogo:
_O examinador_--Que faz a menina quando se vae deitar?
_A examinanda_--Quando me vou deitar...
_O examinador_--Sim! Quando se vae deitar o que faz? Diga.
_A examinanda_(córando até á raiz do cabello e baixando os
olhos)--Quando me vou deitar... dispo-me.
_O examinador_--E depois de se despir?... Responda! Depois de se despir
o que faz?... A menina não ouve?... Ou finge que não ouve?... O que faz
depois de se despir?
_A examinanda_--Tenho vergonha...
_O examinador_--Não tenha vergonha. Responda para diante!
_A examinanda_--Depois de me despir o que eu faço é...
E n'este ponto a examinanda, com a face afogueada pelo rubor do pejo,
com os olhos cheios das lagrimas do terror, na lingua adoravel dos cinco
annos, n'essa lingua que os homens só fallam ás suas mães na pureza da
innocencia primitiva, n'esse dialecto infantil ainda mais casto do que
as linguas mortas, traduziu a locução de Plinio: _urinam ex se
emittere_.
O professor a que nos referimos foi intimado a não proseguir pelo
presidente da mesa, o sr. Augusto Soromenho, cujo testemunho invocamos.
É assim que nos exames de instrucção primaria se averigua se as alumnas
sabem ou não «civilidade».
* * * * *
Se a sr.ª D. Jeronyma carece das noções precisas para dirigir a educação
de uma menina, é preciso dar-lhe essas noções, ou prohibil-a de educar,
restringindo-lhe o direito de corromper a intelligencia da infancia.
A reforma da instrucção das mulheres é em Portugal ainda mais urgente
que a da instrucção dos homens.
As linguas não constituem instrucção, porque não ministram
conhecimentos, são apenas meios de os adquirir.
Esses conhecimentos indispensaveis á mulher deveriam constar, na
educação elementar, dos seguintes ramos de ensino:
1.° Curso de aceio e de arranjo;
2.° Curso de cozinha (chimica culinaria).
3.° Contabilidade, escripturação e economia domestica.
* * * * *
No curso do primeiro anno dos collegios toda a menina aprenderia,
juntamente com as necessarias habilitações litterarias para adquirir
idéas, as seguintes noções praticas:
Os processos scientificos mais perfeitos de lavar e de enxugar a roupa
branca, o fato, as rendas finas, os tulles, as sedas, os tapetes, as
esponjas, as escovas; de conservar e concertar todos os objectos do uso
domestico; de regular o uso do banho, de lavar o cabello, de fazer os
melhores pós de dentes, a melhor pomada, a melhor agua de _toilette_; de
arejar e de desinfectar os aposentos; de polir os metaes e as madeiras;
de encerar os soalhos; de limpar os vidros e as laminass dos espelhos;
de envernisar os quadros; de concertar os livros e as estampas.
Aprenderia ainda os methodos mais hygienicos ou mais racionais: de
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes, (1877-08/09) - 4