As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes, (1877-08/09) - 4

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escolher os aposentos de uma casa, segundo o fim a que cada um d'elles
se destina; de dispor os moveis; de pendurar os quadros; de collocar a
bateria das caçarolas; de montar a despensa e a garrafeira; de fazer os
inventarios e os roes; de dobrar e guardar a roupa branca e a roupa de
mesa em lotes numerados; de pôr a mesa para os grandes e para os
pequenos jantares.
Este curso completar-se-ia com algumas noções accessorias: dos
differentes generos de mobilia e do seu estylo caracteristico nas épocas
mais notaveis da historia da arte ornamental; das principaes louças,
vidros, crystaes, tecidos empregados nos estofos da mobilia e no
vestuario, e historia da fabricação d'esses estofos.
No curso de chimica culinaria, do segundo anno do collegio, a menina
aprenderia, primeiro que tudo, a fazer um caldo.
O caldo é a base do toda a alimentação sabiamente dirigida, não porque o
caldo de per si só constitua um alimento importante, mas porque é o
caldo bem feito que estimula o systema intestinal e o habilita para uma
boa digestão.
Toda a mulher que não sabe fazer um caldo, deveria ser prohibida de
dirigir uma casa. Sobre a ignorancia culinaria da maior parte das
senhoras portuguezas pesa a responsabilidade tremenda da dyspepsia
nacional.
Não temos estomagos sãos porque não temos mulheres instruidas. Esta
affirmação póde parecer uma phantasia do estylo; é uma pura verdade
physiologica e é um facto social. Em Lisboa ignora-se completamente o
que é um caldo, porque esse delicado producto chimico só o sabem
preparar os cozinheiros de 5:000 francos de ordenado. As familias que
não podem aggregar-se funccionarios d'esse preço e que não são dirigidas
por senhoras que saibam o seu officio, tomam, em vez de caldo, um
liquido gorduroso e opaco, mais ou menos condimentado e indigesto. A
condição essencial do caldo bem feito é que elle contenha a maxima
quantidade de materias odoriferas extraídas da carne, (vid. Liebig), que
não tenha o minimo vestigio de gordura, que seja aromatico e
perfeitamente transparente.
Se tivessemos alguma esperança de que a sr.ª D. Jeronyma o ensinasse ás
suas educandas, dir-lhe-iamos como um caldo se faz. Mas a sr.ª D.
Jeronyma acha mais util ensinar o que é o _substantivo_. Como se alguem
no mundo precisasse, para o que quer que fosse, de saber o que o
_substantivo_ é! Como se immensas pessoas (em cujo numero nos contamos),
não estivessem mesmo convencidas de que jámais existiu na natureza o
_substantivo_, e que elle é uma pura chimera menos interessante que o
papão!
Ha todavia no mundo quem não seja inteiramente da opinião da sr.ª D.
Jeronyma. Um dos sabios mais eminentes do mundo actual, o sr. Wirchow,
demonstrava ha pouco tempo em Berlim que a intima correlação que existe
no seio de uma sociedade entre a condição das mulheres e o progresso da
civilisação depende de uma outra correlação não menos intima que existe
entre a mulher e a cozinha. O principal agente do temperamento de um
povo, do seu caracter, da formação das suas idéas, é a sua alimentação.
É principalmente pela sua inflencia na cozinha que a mulher civilisada
governa o mundo e determina o destino das sociedades.
Em Londres os mais importantes jornaes, como a _Quaterly Review_, teem
chamado para este assumpto a attenção dos poderes publicos e da
iniciativa particular por meio de muitos artigos successivos ácerca da
regeneração da cozinha, da arte de jantar, do estudo comparativo das
cozinhas dos differentes póvos, etc.
A Inglaterra comprehendeu finalmente que a circumstancia de não saberem
as suas mulheres fazer bom caldo constituia uma inferioridade nacional e
compromettia o destino do povo inglez. Para remediar este mal, que
obstava ao desenvolvimento e ao aperfeiçoamento physico e moral dos seus
habitantes, a Inglaterra fundou, em 1876, um notavel estabelecimento
publico de educação feminina intitulado _Escola nacional de cozinha_. O
numero das alumnas matriculadas na nova escola subiu rapidamente a cerca
de duas mil. Para satisfazer as necessidades do ensino foi preciso
estabelecer não menos de vinte e nove succursaes da escola de
cozinheiras. Entre as alumnas que frequentam essas escolas figuram
meninas das mais aristocraticas familias da Inglaterra. Algumas estão
inscriptas como simples ouvintes e assistem aos trabalhos tomando as
competentes notas nos seus cadernos; muitas outras atam o avental e
descem aos processos indo trabalhar alegremente á banca das operações,
ou junto do fogão, vigiando a cassarola e o espeto.
Um só facto basta para evidenciar a vantagem d'esta especie de ensino na
economia domestica: As classes de cosinha da instituição britanica estão
divididas em varias secções dependentes do orçamento a que as familias
teem de cingir as suas despezas; ha uma secção destinada a ensinar os
meios de alimentar do modo mais hygienico e mais agradavel uma familia
que não possa applicar á cozinha mais que uma verba de 1$600 réis por
semana! Em Portugal tão descurado está este importante assumpto que, não
obstante a fertilidade do nosso solo e a benignidade do nosso clima, é
inteiramente impossivel estabelecer com 1$600 réis por semana um
conveniente regimen alimenticio para uma familia de quatro pessoas.
O curso de cozinha nos collegios portuguezes deveria ser organisado
praticamente como na Inglaterra, ensinando-se ás alumnas o valor chimico
das principaes substancias empregadas na alimentação, o seu preço
ordinario no mercado, a sua acção physiologica sobre o nosso organismo,
o modo de variar os jantares segundo as occupações de cada dia, segundo
o temperamento de quem tem de os assimilar, e segundo as estações do
anno em que elles houverem de ser feitos.
* * * * *
No curso de contabilidade do terceiro anno dos collegios, as alumnas
deveriam aprender a escripturar methodicamente a receita e a despeza da
familia, suppostos dados rendimentos, desde os mais estreitos até os
mais avultados, calculando desde o principio do anno o modo de manter o
balanço entre as posses e os gastos, lançando em conta de receita todos
os proventos e fixando-se nas verbas de despeza proporcional nos
differentes capitulos orçamentaes: a renda da casa, a acquisição e os
reparos da mobilia, o vestuario, o serviço, a illuminação, a lavagem, as
despezas imprevistas, e o _fundo de reserva_--verba essencial,
indispensavel em todo o orçamento, grande ou pequeno, de toda a casa
sabiamente dirigida.
* * * * *
Fortalecida com a educação feita n'estas bases, esboçadamente expostas,
a mulher terá dado o primeiro passo, mas o passo definitivo para a sua
verdadeira emancipação. Porque emancipar-nos não é em ultimo resultado
mais do que isto: habilitamo-nos a prestar na sociedade serviços
equivalentes ou superiores áquelles que recebemos. Com a mulher
invencivelmente armada com as aptidões que requisitamos para que ella
seja a alma do governo domestico, o casamento deixa de ser a ruina com
que nos ameaça o proloquio vulgar: _uma casa é uma loba._ Não; a casa,
dirigida como a mulher deveria aprender a dirigil-a, é a ordem, é o
methodo, é a economia, é a estabilidade, é a fixação do destino, é o
baluarte do homem. A funcção da mulher bem educada é essencialmente
protectora. Na lucta da vida por meio da alliança conjugal e da ligação
domestica, o homem é a espada, a mulher é o escudo. O fim da educação
feminina é compenetrar a mulher da responsabilidade da sua missão e
fortificar-lhe o braço que tem de ser o nosso amparo querido, o nosso
doce refugio.
Se a mulher imagina que o casamento, seu natural destino, é um facto
dependente dos encantos da sua belleza e do seu agrado, a mulher
engana-se deploravalmente. Os modernos trabalhos estatisticos provam com
factos n'um periodo do cem annos que o numero dos casamentos está sempre
em relação constante com o preço dos trigos. Se o pão encarece os
casamentos diminuem. A' baixa no preço do pão corresponde pelo contrario
uma elevação proporcional no numero dos casamentos. O casamento,
portanto é um facto moral estreitamente ligado não a um phenomeno
esthetico mas a um phenomeno economico. A base do casamento é a
economia. A economia domestica é a primeira das aptidões com que deve
dotar-se a mulher.
* * * * *
Em todos os paizes civilisados, por toda a parte do mundo, a educação da
mulher está passando por uma revolução profunda suscitada pelos esforços
de todos os pensadores. A educação vulgar da mulher moderna
reconheceu-se que constituia um elemento dissolvente da dignidade e da
aspiração das sociedades contemporaneas. Na antiga Roma a doçura, a
graça, a ternura, todos os attractivos sentimentaes que ainda hoje vemos
cultivados na educação das mulheres honestas eram attributos exclusivos
das cortezãs. Um critico notou como nas comedias de Plauto as matronas
não conhecem as effusões e os arrebatamentos da paixão; não são timidas
nem scismadoras; têem o ar decidido, fallam em tom firme e viril. As
meninas ricas eram educadas em casa com seus irmãos por escravos
instruidos e letrados; recebiam as mesmas lições e estudavam nos mesmos
livros. As pobres iam ás escolas publicas, no Forum, juntamente com os
rapazes, como actualmente acontece nos Estados Unidos.
Na idade média, quando os bomens, dedicando-se inteiramente ao officio
das armas, não tinham tempo de cultivar o espirito pelo estudo, as
senhoras da alta sociedade, como vemos nas condessas de Champagne, na
mãe de Godofredo de Bulhões, na amante de Abeilard, recebiam a mais
esmerada educação litteraria. Sabiam o latim, conheciam os antigos
poetas e os moralistas e estudavam os elementos da physiologia e da
meteorologia nas obras dos arabes.
Em todas as civilisações a mulher bem educada se habilita para
desempenhar o papel que lhe cabe na harmonia social.
Na nossa época de fria analyse, de implacavel utilitarismo, a primeira
das obrigações da mulher consiste em tornar-se util. Ser util é para
ella o grande segredo de ser querida, de ser forte, de ser dominadora.
Toda a educação feminina tem de partir d'este principio.
* * * * *
A alta cultura do espirito, tão necessaria á mulher para que ella assuma
na sociedade a parte do poder a que tem direito, não se ministra nas
escolas, adquire-se pelo esforço e pela applicação individual dirigida
por um criterio, por um methodo, por uma disciplina, que a mulher só
póde adquirir na grande escola pratica da vida domestica. Todas as
noções que nos possa ministrar o estudo das sciencias mais superiores
estão subordinadas para a sua assimilação no nosso espirito a esta noção
previa: a noção da responsabilidade e do dever. Ora essa noção
primordial só a adquire a mulher nas praticas da vida domestica.
O aperfeiçoamento intellectual das mulheres não só não é incompativel,
como algumas julgam, com a perfeita direcção do _ménage_, mas antes
depende essencialmonte do grave estado de espirito que essa direcção
impõe.
Em Portugal, onde a sciencia do governo da casa é tão lastimosamente
ignorada, vejamos quaes são as producções do espirito feminino, quaes
são os fructos da educação litteraria desalliada da educação domestica.
Os almanachs da sr.ª D. Guiomar Torrezão têem o grande valor historico
de serem o repositorio d'esses fructos. É por esses almanachs que a
posteridade tem de julgar do valor intellectual das nossas
contemporaneas.
Acabamos de folhear do principio ao fim um numero do _Almanach das
Senhoras_, que temos presente. Temos tambem presente a _Gazeta das
Salas_, egualmente redigida por senhoras. Deus nos defenda de que
qualquer estrangeiro procure julgar sobre estas producções litterarias
do estado do espirito feminino na sociedade portugueza! Em todas estas
collecções dos trabalhos intellectuaes das nossas mulheres--sentimos
dizel-o--não ha um só artigo grave, serio, meditado, revelando
conhecimentos praticos, aspirações elevadas, pensamentos nobres. De
tantos problemas sociaes que affectam a condição da mulher na sociedade
contemporanea e que sollicitam a attenção d'ella, para serem resolvidos
pela parte mais interessada e mais compentente da humanidade, nem um só
foi julgado digno do estudo d'alguma das senhoras que fazem imprimir e
publicar os seus escriptos em Portugal! Estas senhoras produzem
versos--não como os de madame Hackerman, cujos poemas recentemente
publicados constituem uma revolução na poesia moderna e são o grito mais
profundo e mais lancinante que ainda expediu no mundo a alma mais
sedenta de verdade e de justiça,--mas sim trovas d'uma sentimentalidade
de segunda mão, sem ideal, sem paixão, d'uma pieguice grotesca.
Escrevem tambem pequenos contos ou novellas d'amores infelizes, cujos
personagens se tratam por excellencia e se requebram em artificios d'um
dandysmo, cuja legitimidade está longe de poder ser absolutamente
garantida, não dizemos já n'um congresso de _gentlemen_, mas n'um
simples tribunal de cabelleireiros. E é para nos dar estes lamentaveis
fructos da sua educação exclusivamente litteraria, que tanta menina
honesta sacrifica o tempo que devia consagrar aos nobres trabalhos do
_ménage_, tornando-se, em vez d'uma digna mulher util, apta para
acompanhar, para comprehender e para ajudar o homem, uma pobre e misera
creatura neutra, desorientada da vida real, incapaz de qualquer emprego
na vida pratica, cheia de falsas aspirações, de desenganos e de tedios
permanentes.
Compare-se o _Almanach das Senhoras_, com as collecções estrangeiras
collaboradas por mulheres. É esse o melhor modo de reconhecer como a
educação pratica da _ménagère_, eleva o espirito, como a educação
litteraria do collegio portuguez o deprime e avilta.
O _Jornal das donas de casa da Allemanha_, tem aperfeiçoado
profundamente os costumes e os habitos da vida domestica.
Na Inglaterra o texto da grande _Revista das mulheres inglezas_ consta
de artigos de critica litteraria ou de costumes, de philosophia, de
physiologia, de economia politica e de economia domestica, de narrativas
de viagens, relatorios, estatisticas, receitas culinarias, noções
praticas. Não ha um romance sentimental, nem uma poesia lyrica, nem uma
réclame de modas.
Taine cita no seu livro ácerca da Inglaterra varios artigos de mulheres
publicados nas _Transactions of international association for the
promotion of social sciences_. Os artigos intitulam-se:
_Escolas districtaes para os pobres na Inglaterra_, por Barbara Collett;
_Applicação dos principios de educação ás escolas das classes
inferiores_, por Mary Carpenter;
_Estado actual da colonia de Mettray_, por Florence Hill;
_Estatistica dos hospitaes_, por Florence Nightingale;
_A condição das mulheres operarias em Inglaterra e em França_, por
Bessie Parkes;
_A escravatura na America e sua influencia na Grã-Bretanha,_ por Sarah
Remand;
_Melhoramento das «nurses» nos districtos agricolas,_ por mistress
Wigins; _Relatorio da sociedade fundada para fornecer trabalho ás
mulheres,_ por Jone Crowe, etc..
Todas estas auctoras, de quem Taine obteve informações pelos muitos
amigos que tinha na sociedade ingleza, eram mulheres de casa, passando
uma vida extremamente simples e retirada.
Assim temos que na Inglaterra e na Allemanha a escola das _ménagères_
produz as mais graves e mais importantes escriptoras. Em Portugal a
educação literaria, segundo os programma dos lyceus, nem dá _ménagères_
nem dá literatas.
Se o ensino das mulheres se reformasse de modo que désse alguma coisa?...
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