As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes, (1877-08/09) - 2

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obsequio que te fez Jesus andando pelo mundo a pregar a igualdade e a
fraternidade de todos os homens, feitos, segundo o mesmo Jesus, á imagem
e similhança de Deus, a tua obrigação é lavar a cara e as orelhas,
conquistar pelo trabalho uns sapatos para esses pés e trazer-me essa
cabeça levantada e firme como quem tem a convicção de ser tanto como
qualquer outro. Foi para isso que te ensinaram que Deus andou pelo mundo
a pedir, percebeste, grande mariola? Deus pediu para se parecer comtigo,
dando-te por esse modo a aspiração de te pareceres egualmente com elle
fazendo-te uma pessoa limpa e honesta. Deus consentiu em pedir pela
mesma razão que consentiu em ser crucificado, não para dar o exemplo da
mendicidade e do homicidio, mas sim ao contrario para que a sociedade se
reconstituisse no sentido de não tornar a haver quem enforcasse nem quem
pedisse. O pão nosso de cada dia ganha-se com essas duas pernas que Deus
te deu para trabalhares e não para te pôres de joelhos nos caminhos a
pedir esmola a quem passa. Jesus nunca se ajoelhou senão debaixo do
trabalho representado pela sua cruz ou diante do amor representado por
sua mãe. De joelhos perante a minha força ou perante o meu dinheiro tu
és indigno da tua gerarchia d'homem e não passas de uma besta sordida e
immunda.
Depois de praticas da natureza d'esta, que nunca deixamos de fazer aos
rapazes que nos appareceram ajoelhados pelos caminhos, e as quaes
praticas sempre acompanhamos de temerosos gestos mostrando o punho
cerrado e os bicos dos nossos sapatos--de tres solas repregados de
terriveis tachas vingadoras, de duas azas, do tamanho de
moscardos--concluiamos por uma eloquente peroração perguntando aos
rapazes onde era a escola.
Temos a honra de informar sua magestade el-rei que os rapazes que
apparecem de joelhos pelas estradas não sabem nunca onde fica a escola.
Os paes não os ensinam a ler. Creados na abjecção da mendicidade,
habituados a fingir, a choramigar, a carpir, costumados desde pequenos a
serem maltratados, repellidos, injuriados, tornam-se homens servis,
rasteiros, malevolos, vingativos, mandriões e covardes.
São elles os que em maior numero contribuem para o consumo das facas de
ponta, para o exercicio das policias correccionaes, para o repovoamento
successivo das cadeias e dos hospitaes.
Sua magestade esqueceu que, em quanto esses rebentos da preguiça, esses
embriões do vicio e da miseria se ajoelhavam aos seus pés, outros
pequenos cidadãos uteis estavam na escola ou nos casaes circumvisinhos,
uns aprendendo a ler, outros ajudando as suas mães a metter o pão ao
forno, a deitar o feno ás vacas, a acarretar a lenha, a enfeichar as
medas ou a debulhar o milho.
Sua magestade, agasalhando os vadios e expondo-os em triumpho aos olhos
dos laboriosos, deu um exemplo que influirá nos costumes e a que podémos
chamar:--o premio Monthyon da malandrice.

* * * * *

Um attentado unico sem precedentes nos fastos do arbitrio executivo
acaba de ser impunemente perpetrado contra a ordem moral por um ministro
da corôa, o sr. Barros e Cunha.
Quando os erros dos ministros versam sobre os negocios das suas
respectivas secretarias a critica pode consideral-os sem protesto, como
phenomenos normaes em um regimen em dissolução destinado a acabar um
pouco mais tarde ou um pouco mais cedo.
Quando porém a acção do poder exorbita da mancommunação ministerial, da
intriga parlamentar e da ficção administrativa, para invadir a esphera
do trabalho individual e para violar accintosamente os direitos
inalienaveis dos cidadãos, a critica deixa então de proceder pelo
desdem, e embora continue a sorrir, tem o dever de pegar no mesmo tição
com que Renaldo de Montauban chamusca no poema gaulez as barbas de
Carlos Magno, e de barbear s. ex.ª o alto funccionario delinquente.
* * * * *
Precisamos de esboçar um pouco de mais alto a physionomia do personagem
antes de nos occuparmos da natureza dos seus ultimos actos.
Antigo poeta lyrico de inspiração canalisada pelos jornaes poeticos e
pelos albuns das meninas provincianas, o sr. Barros e Cunha, abandonando
a carreira poetica, foi enviado na idade madura á camara dos deputados
na qualidade de leitor do _Times_ por um circulo do reino em que se não
sabia inglez.
Classificado desde logo na familia zoologica dos mediocraceos, foi
declarado inoffensivo pela unanimidade dos votos de ambos os lados da
camara. O uso quotidiano de uma palavra irresponsavel, que elle debalde
tentava sublinhar malignamente sem conseguir que ninguem se occupasse em
a controverter, deu-lhe a facilidade de emittir intermitentemente um
determinado numero de sons articulados sem connexão logica, sem forma
litteraria, sem criterio philosophico, sem intuito politico, os quaes
sons reunidos constituem a collecção dos discursos parlamentares de s.
ex.ª.
Todos se lembram de o ter visto em cada uma das sessões das ultimas
legislaturas levantar-se do seu logar no meio da indifferença bocejante
da camara e da galeria, folhear os numeros do _Times_ collocados sobre a
sua carteira, e abrir o dique da incontinencia oratoria, despejando as
palavras n'um tom de melopêa com a sua voz ao mesmo tempo doce e nazal,
como a de quem falla por um nariz de assucar.
No discurso proferido viam-se desfilar processionalmente as diversas
partes da oração, cadenceadas, graves, acertando o passo, olhando para
acenar, esperando umas, correndo outras para alinhar o prestito, fazendo
roda entre parentheses para entoar um moteto, detendo-se para fazer
signaes orthograficos a um adjectivo retardatario, continuando em
seguida, para tornarem a parar d'ahi a pouco em torno de um verbo
irregular, e proseguirem outra vez atraz de uma interjeição de duvida ou
incerteza. Até que, sentindo-se cahir a tarde, principiando a esfalfar
os membros do discurso, começando os adjectivos a sentarem-se pelos
passeios, os substantivos a tirarem as botas a os adverbios a pedirem de
beber, via-se finalmente, ao longe, por entre as tochas, envolto no pó
do caminho, apontar o andôr com um simulacro de uma idéa velha,
carcomida, safada, sacudida á rua de todas as casas, impellida adeante
das vassouras por todos os varredores, apanhada successivamente por
todas as carroças, e por ultimo arrancada do monturo ou do esgoto,
lavada, grudada, repintada, retingida, posta em pé, especada entre duas
ripes e produzida em publico por s. ex.ª, n'uma exposição solemne, ao
fundo de seis columnas de prosa alambicada e caturra.
Estas fallas eram acompanhadas por s. ex.ª com variados gestos
carinhosos e piegas: já de quem amamenta as methaphoras que tem ao
colo, já de quem acaricia e afaga buliçosos tropos adjacentes, já de
quem com o bico do lapis seguro nas pontas dos dedos se compraz em picar
no ambiente argumentos hypotheticos voejantes entre o orador e a mesa
adormecida.
Elle no entanto sorria de quando em quando, ironico e triumphal,
circumgirando pela sala no fim de cada periodo um olhar destinado a
indicar ao auditorio que dentro do seu pequenino craneo a malicia de
Bertholdinho se achava alliada á finura de Polycarpo Banana.
Uma vez pelo menos em cada um d'esses discursos, quando o orador
parando, tirava da algibeira da sobrecasaca o seu lenço branco e batia
com os nós dos dedos na carteira para que lhe renovassem o copo d'agua,
vozes de deputados repentinamente extremunhados applaudiam-o. O que não
consta é que ninguem se lembrasse nunca de o contrariar.
* * * * *
Cahido o dente do sr. Fontes e chamado o sr. marquez d'Avila para formar
novo ministerio, o sr. Barros e Cunha entrou no gabinete a titulo de
«caracter conciliador.» Deputado ás cortes em successivas legislaturas,
tendo a palavra em quasi todas as sessões, tão vigorosamente havia
servido a causa ecletica da banalidade que não conseguira crear um unico
adversario. Taes foram os titulos que levaram s. ex. aos conselhos da
corôa.
Repentinamente investido no cargo de ministro das obras publicas, do
commercio e da industria, s. ex.ª para quem a industria, o commercio, as
obras, eram outros tantos porticos inaccessiveis, envoltos nas trevas
mais augustas, resolveu seguir uma linha de proceder que o levasse á
popularidade sem o intrometter na gerencia e na direcção dos negocios.
Para esse fim s. ex.ª começou a passear as ruas de Lisboa montado na
imagem rhetorica em que Napoleão nos apparece nos discursos do sr.
Manuel da Assumpção. Aos sabbados s. ex.ª tomava o caminho de ferro e
dirigia-se em carruagem salão a todos os pontos da provincia em que
houvesse uma fabrica, uma officina, um monumento publico para que olhar,
e uma phylarmonica para o ir esperar á _gare_.
No desempenho d'esta primeira parte do seu programma s. ex.ª foi de uma
actividade e de uma energia sem exemplo. Amanhecia a cavallo, anoitecia
a cavallo, e deitava-se na cama, altas horas, para dormir um
momento--tambem a cavallo. Estes exercicios de gineta amestraram o
cavallo de s. ex.ª até o ponto de poder elle proprio ser ministro--em
liberdade.
Nas suas digressões pelos centros fabris das redondezas da Extremadura o
zelo de s. ex.ª pelos principios do seu programma administrativo não
conhecia limites. Eis uma amostra do caracter d'essas viagens
hebdomadarias:
S. ex.ª chega a Thomar pelo trem do correio ás 12 horas 45 m. da tarde.
Uma phylarmonica espera-o na estação de Payalvo e acompanha-o ao som do
hymno da carta até casa do sr. conde de Thomar. Ás duas horas da
madrugada s. ex.ª ceia e levanta tres brindes a Thomar, á real familia e
á carta. A' 4 horas 25 minutos encerramento de s. ex.ª nos aposentos que
lhe estavam reservados e leitura do _Times_ até ás 5 horas 30 minutos.
A's 5 horas 31 minutos s. ex.ª descalça metade das botas e repousa um
momento deitando-se sobre uma orelha e escutando com a outra os eccos do
hymno da carta. A's 6 horas, convergencia das forças musculares de s.
ex.ª sobre os puchadores das suas botas e pedido d'agua morna para a
barba de s. ex.ª A's 7 horas, sabida de s. ex.ª dos aposentos que lhe
estavam reservados, presença de s. ex.ª no terraço da casa e aspersão
dos raios visuaes de s. ex.ª sobre a paisagem circumjacente. A's 8 horas
recepção da camara municipal e dos tres ou quatro maiores contribuintes.
A's 9 horas almoço com brindes de s. ex.ª á carta, a Thomar e á real
familia. A's 10 horas ida para a fabrica de fiação. As' 12 horas lunch
na fabrica e brindes de s. ex.ª á real familia, a Thomar e á carta. A' 1
hora da tarde volta para Thomar, jantar e brindes de s. ex.ª á carta, á
real familia e a Thomar. A's 3 horas 36 minutos partida, cortejo, hymno
pela phylarmonica na estação de Payalvo e regresso de s. ex.ª á capital.
* * * * *
Uma vez por semana, ás quintas feiras, s. ex.ª acompanhava os seus
collegas ao Paço. Tendo mostrado sobre o chouto da allegoria do sr.
Manuel da Assumpção que possuia uns rins de bronze; tendo provado nas
digestões accumuladas das mayonaises do sr. conde de Thomar e dos
pudings da fabrica de fiação que era dotado de um estomago d'aço, s.
ex.ª aproveita os seus encontros com o soberano para convencer a côrte,
de que reune a esses dotes anathomicos a feliz particularidade de uma
espinha de cebo.
Submettido ao olhar de suas magestades constatou-se que a posição
vertical de s. ex.ª dobrava como uma vela ao sol, sob a temperatura de
35 graus Reaumur. Contemplado pela rainha s. ex.ª deprimia-se
progressivamente, acachapando-se. O seu uniforme fazia as pregas de uma
concertina que se fecha. A rainha, caridosa, olhava então para outra
parte a fim de que os tecidos democraticos do seu secretario de estado
não acabassem de derreter, deixando nos degraus do throno, como despojo
de quanto representara no Paço o departamento das obras publicas, um
fardamento, uma calva e uma nodoa.
Impedido de fundir, s. ex.ª procura manifestar por outros actos o ardor
do seu zelo como novo aulico.
Para esse fim atropela as disposições legislativas que regulavam o
arrendamento das casas do Bussaco entregues á administração geral das
mattas, rescinde os contractos legalmente feitos com os arrendatarios,
expulsa as familias que habitavam o convento, e offerece este a sua
magestade a rainha para ella passar a estação calmosa--nas casas dos
outros.
Desde o tempo dos antigos aposentadores móres, que precediam os reis
absolutos nas suas viagens e faziam despejar as casas occupadas por seus
donos para n'ellas se instalar a corte, nunca o servilismo ousara fazer
reviver para lisongear os reis um dos mais oppressivos privilegios
monarchicos, o privilegio das aposentadorias, abolido desde 1820. Os
mais atrevidos e insolentes mandões não ousaram jámais ultrajar por tal
modo o direito e a liberdade. Era preciso para isso ter como o sr.
Barros e Cunha a natureza chineza de um mandarim; pousar no paço tão
passivamente e tão irresponsavelmente como pousa um boneco de porcelana,
acocorado a um canto n'uma prostração burlesca, bolindo automaticamente
com a cabeça e deitando a lingua de fora ou mettendo-a para dentro,
segundo leva ou não leva da real mão um piparote na nuca.
Para bajular el-rei como bajulára a rainha o mandarim sr. João Gualberto
determina que obras extraordinarias se façam na estrada de Vidago e
manda abonar por conta do ministerio das obras publicas salarios na
importancia exorbitante de 1$200 réis por dia aos operarios empregados
em um dos lanços da estrada alludida.
* * * * *
Estes factos porém, definindo cabalmente o mandarim pela sua face de
cortezão, não o definiam sufficientemente pelo seu lado de ministro. Os
conselheiros de s. ex.ª tangeram-o na nuca para o fazer deitar de fora
algumas portarias. Aproveitou-se o pretexto das obras da Penitenciaria,
e s. ex.ª principiou a verter portarias sobre essas obras. Foi então que
no _Diario do Governo_ appareceu o documento que nos propomos analysar e
começamos por transcrever:
«Sua magestade el-rei, a quem foi presente o processo relativo ao
contrato celebrado em 18 e 19 de setembro de 1876 pelo director das
obras da penitenciaria central de Lisboa com João Burnay, para
fornecimento de ferros para as obras d'aquelle estabelecimento,
considerando:
«1.° Que esse contrato se encontra viciado;
«2.° Que n'elle se não observou o que dispõe o artigo 10.° do
regulamento de 14 de abril de 1856 e circular de 15 de maio de 1862;
«3.° Que não se abriu praça nem se fez deposito algum, conforme dispõe
a circular de 15 de maio de 1857, e as clausulas e condições geraes de
empreitadas das obras publicas de 8 de março de 1861;
«4.° Que ao contrato, por conta do qual o empreiteiro recebeu
adiantadamente na importancia de 88.889$312 réis, falta a approvação do
governo, segundo o disposto no artigo 2.° das mesmas clausulas e
condições geraes e da circular de 15 de maio de 1862:
«Ha por bem ordenar que se dê por findo e terminado o dito contrato,
procedendo-se á liquidação dos artigos já fornecidos ou em deposito,
observando-se de futuro todas as prescripções em vigor n'este ministerio
para quaesquer contratos em que elle tenha de interferir.
«O que, pela secretaria de estado dos negocios das obras publicas,
commercio e industria, se communica ao director das obras publicas do
districto de Lisboa, para os devidos effeitos, em referencia ao seu
officio datado de 26 de junho ultimo.
«Paço, em 3 de julho de 1877.--_João Gualberto de Barros e Cunha._
«Para o director das obras publicas do districto de Lisboa».
* * * * *
Por esta portaria rescinde-se sem mais appellação nem aggravo um
contrato bilateral feito entre um industrial, o sr. J. Burnay, e o
governo. Ora o governo não é um poder pessoal, de caracter intermitente
ou caduco, que acabe com o sr. Avelino e que recomece com o sr. Barros e
Cunha. O governo é uma entidade impessoal e constante.
O sr. Barros e Cunha é obrigado como ministro a manter todos os
contractos feitos pelo seu ministerio, porque em quanto ministro o sr.
Barros e Cunha não é um individuo, é o governo. O governo fez um
contracto com o sr. Burnay, esse contracto acha-se em execução, o
governo porem resolve por sua propria auctoridade rescindir o mesmo
contracto, e manda passear o sr. Burnay. Vejamos com que fundamentos
juridicos se annulla, sem mais formalidade que a publicação de uma
portaria, um contracto de similhante natureza:
O sr. Barros e Cunha allega em primeiro logar:
_Que o contracto se acha viciado_. A isto responde o engenheiro
constructor da Penitenciaria e signatario do contracto por parte do
governo que a viciação allegada consiste em se haver alterado a data em
que o sr. Burnay se compromette a concluir os seus trabalhos, mudando-se
os numeros 1877 em 1876. O resultado d'esta viciação era collocar o sr.
Burnay sob a acção de uma multa por não ter concluido a sua obra no
praso prefixo. É evidente que não podia ser o sr. Burnay que viciasse o
contracto raspando um algarismo que o interessa e substituindo-o por
outro que o prejudica.
A viciação do contracto é por tanto um facto necessariamente alheio á
intervenção do sr. Burnay.
A legislação invocada nos considerandos 2.° e 3.°, não tem cabimento,
porque todos os regulamentos das empreitadas das obras publicas previnem
os casos em que _a concorrencia possa prejudicar a rapidez ou a
perfeição do trabalho_ e em que o _deposito póde ser substituido por
fiança ou por outras garantias prestadas pelo empreiteiro_. E ambos
estes principios são reconhecidos pelo sr. Barros e Cunha, o qual
contractou elle mesmo novas obras com o sr. Burnay depois da publicação
d'esta portaria, sem abrir concurso e sem fazer deposito.
As affirmações contidas no considerando n.° 4, são puramente falsas,
como já declararam publicamente os engenheiros Ferraz e Burnay. A falta
da approvação do governo é uma mentira e o adiantamento de 88:886$312
réis é uma calumnia.
Suppondo porem que as obras devessem ser feitas por concurso e mediante
deposito, perguntamos: que responsabilidade pelo facto de não haverem
sido satisfeitas essas clausulas póde caber ao fabricante, ao fornecedor
ou ao empreiteiro com quem o governo contractou? Queriam por acaso que
fosse o sr. Burnay quem abrisse o concurso? que fosse elle quem a si
mesmo se obrigasse ao deposito? Se não se cumpriram as formalidades a
que a portaria se refere, a culpa é unicamente do governo. Como é pois
que o governo rescinde um contracto por um facto cuja culpa é d'elle e
não do individuo com quem elle contractou?
Podem aquelles que tem negocios com o governo ficar sujeitos a
similhante arbitrio?
Póde o governo annullar assim um contracto em que se acham envolvidos
interesses avultados d'aquelle com quem é feito unicamente porque o
governo diz reconhecer que não contractou nos termos em que devia ter
contractado?
Foi approximadamente isso mesmo o que fez a camara municipal com relação
ao contracto do Passeio Publico. A camara rescindiu o contracto, mas o
governo dissolveu a camara. Quem é que ha de dissolver o governo reu de
delicto egual ao da camara?
Em vista de um tão flagrante attentado contra os seus interesses
industriaes, contra o seu credito e contra a sua honra, porque a
portaria alludida é cheia de vagas insinuações insultantes e injuriosas
apesar de cobardemente rebuçadas, o sr. João Burnay representou ao
governo requerendo que se lhe dê vista do processo em que é ao mesmo
tempo accusado e punido, e que sobre o mesmo processo sejam ouvidos os
fiscaes da corôa e da fazenda. O sr. Barros e Cunha não despachou esta
petição e manteve os effeitos da sua portaria absurda, falsa,
calumniosa, e infamante.
É a isto que nós chamamos o mais violento dos attentados perpetrado pelo
arbitrio executivo contra a ordem moral e contra os direitos dos
cidadãos.
* * * * *
O sr. Barros e Cunha é um criminoso diante do codigo e diante da carta.
A carta torna-o responsavel no artigo 103 por tres delictos que
commetteu publicando a portaria de 3 de julho de 1877: por abuso do
poder, por falta de observancia da lei, e pelo que obrou contra a
liberdade e contra a propriedade de um cidadão.
Perante o codigo attentou contra dois dos direitos que a lei civil
reconhece e protege como fonte e origem de todos os outros,--contra o
direito de apropriação e contra o direito de defesa (artigo 359).
A insinuação feita ao sr. Burnay de ter viciado um contracto que elle
não viciou e de haver recebido a titulo de adiantamento uma quantia que
elle não recebeu, colloca o signatario da portaria que encerra essa
calumnia sob a acção do artigo 2364 do codigo civil, que diz o seguinte:
«A responsabilidade criminal consiste na obrigação, em que se constitue
o auctor do facto ou da omissão (na portaria ha a omissão e o facto) de
submetter-se a certas penas decretadas na lei, as quaes são a reparação
do damno causado á sociedade na ordem moral. A responsabilidade civil
consiste na obrigação, em que se constitue o auctor do facto ou da
omissão, de restituir o lesado ao estado anterior á lesão, e de
satisfazer as perdas e damnos que lhe haja causado.»
Um só caso previsto no codigo pode relevar o sr. Barros e Cunha da
responsabilidade civil e da responsabilidade criminal da portaria que
perpetrou. Esse caso é o de completa embriaguez ou de provada demencia.
* * * * *
Cumpre notar que o cidadão João Burnay sobre quem pesa uma tal offensa
não é um empreiteiro vulgar, um especulador de concursos ficticios
simulados para apadrinhar intrigantes. João Burnay é um engenheiro de
primeira classe, um mathematico distincto, uma intelligencia largamente
cultivada, um caracter de uma honestidade inviolavel. Como trabalhador
elle é o mais elevado exemplo que se pode propor á mocidade portugueza.
Nenhum outro homem da geração moderna espalhou como elle em volta de si
pelo puro exercicio das suas faculdades creadoras uma tão grande e tão
preciosa actividade. É o proprietario e o chefe de uma grande officina
modelo do seu genero. Pelo exforço do seu talento extrae da natureza os
elementos que fazem subsistir honradamente na sociedade de Lisboa alguns
centenares de familias. Todo o paiz em movimento de civilisação se
lisongearia de o poder contar entre os seus filhos mais prestanles e
mais benemeritos, porque é por meio da iniciativa de homens como elle
que os estados se moralisam e se enriquecem.
Na nossa sociedade estagnada pela indolencia e pela corrupção elle é
impunemente estorvado, calumniado, atraiçoado na mais legitima das suas
aspirações--a aspiração do trabalho, por um ministro filho da intriga
constitucional, sahido do parlamentarismo mais banal e mais chato, não
exercendo nunca o trabalho nem sendo capaz de o respeitar em quem o
exerce, tendo vivido sempre no parasitismo da politica, não produzindo
coisa alguma, não tendo finalmente servido aos seus similhantes para
outra cousa que não seja empobrocel-os quando come e corrompel-os quando
governa.
* * * * *
Todavia não queremos mal ao sr. Barros e Cunha. Elle é simplesmente o
producto fatal do seu meio. Inspira-nos um interesse sympathico a triste
maneira de acabar que o está esperando. Os seus erros successivos
offerecerão á critica e ao ataque uma vasta superficie exploravel. As
suas faculdades não lhe permittirão defender-se.
D'aqui lhe fazemos uma prophecia: será medonhamente batido e
deploravelmente derrotado, não porque offendeu o direito na pessoa de um
trabalhador obscuro, o engenheiro João Burnay, não porque foi injusto,
mas sim porque é inhabil e porque é fraco. É isto, e não aquillo, o que
nunca lhe perdoarão os partidos politicos com os quaes irá dentro em
pouco achar-se em hostilidade. Será o alvo das retaliações mais
violentas, dos discursos mais acerbos na camara, dos artigos mais
explosivos na imprensa. Hão de cercal-o como cercam os cães um javardo
condemnado á morte. O improperio ha de se lhe aferrar ás espaduas e ha
de mordel-o na nuca. A ironia ha de rir-lhe no nariz com uma gargalhada
feroz, mostrando-lhe os dentes anavalhados e agudos,--de jacaré. A
logica ha de lançar-lhe ao pescoço a sua golilha forrada de puas de
ferro e hade leval-o de rastos por um grilhão atraz d'ella. A pilheria
ha-de pôr-lhe rabos. A chalaça ha-de pegal-o com breu á cadeira de
ministro. A chufa ha de coser-lhe as abas da casaca a um trambolho. A
pulha ha-de deitar-lhe pós de sapatos. A laracha ha-de esguichal-o com
tinta de campeche. A chacota ha-de fazer-lhe sair do nariz bandeirolas e
baralhos de cartas. A troça ha-de dar-lhe no ventre estrondosas palmadas
de zabumba em theatro de feira.
E nós apiedar-nos-hemos, por que nos magoam os espectaculos em que se
destroe para sempre a dignidade de um homem. É por isso que damos ao sr.
Barros e Cunha um conselho amigavel. S. ex.ª póde ser ainda um cidadão
util e respeitavel. O que não póde é alliar esses titulos com o de
ministro e secretario de estado dos negocios das obras publicas,
commercio e industria.
Ha uma cousa mil vezes mais meritoria do que ser um mau ministro, é ser
modestamente um bom homem. S. ex.ª póde ser bom homem. Seja-o. Seja-o
para honra sua e dos seus similhantes. Demitta-se. Vá para sua casa.
Ser um ministro do genero de s. ex.ª é facil. Não o ser, porém não é
mais difficil. Vá para casa. Dizem-nos que é rico. É além d'isso
anglomano. Vá para casa cultivar esmeradamente a sua anglomania, sem
desdouro para si nem para a especie de que faz parte. A exiguidade do
seu craneo, cuja circumferencia mede uma quantidade de centimetros
extremamente inferior á que a sciencia anthropologica exige para a
elaboração das grandes e fortes idéas, não o impede ainda assim de ser,
por exemplo, um cultivador modesto e prestante. Os chapeus do fallecido
sr. Thiers, do sr. Disraelli, do sr. de Bismark cahem até o pescoço de
s. ex.ª e deixam a sua pobre cabecinha tanto á larga dentro d'elles como
um ovo dentro d'um sino. Mas ninguem tem obrigação de possuir
precisamente o cerebro d'um reorganisador e d'um estadista.
A massa cephalica de que s. ex.ª dispõe habilita-o perfeitamente para
ser muito util, dirigindo a cultura da celebre batata-rim, tão rara, tão
preciosa, tão procurada no mercado de Londres. S. ex.ª poderia ainda
tentar nas suas vastas propriedades a creação em grande escala dos
coelhos, á moda ingleza, o fabrico da manteiga, a queijaria, a
piscicultura, o aperfeiçoamento das raças lanigeras, o estabelecimento
das pateiras e das capoeiras-modelos, etc. Se s. ex.ª applicasse as
forças do seu nervosismo a prestar á humanidade esses serviços modestos
mas valiosos, s. ex.ª teria as grandes alegrias, as profundas
satisfações tranquillas das naturezas harmonicas, e o seu nome seria
querido e abençoado como o d'um cidadão prestadio e d'um homem de bem.
Persistindo em ser um politico, s. ex.ª deixará apenas na terra o
desprezo com que a humanidade castiga aquelles que, imaginando servil-a,
não fizeram senão prejudical-a.
Assim como a ferocidade, a incompetencia tem tambem os seus Attilas. A
differença é, que uns requeimam a herva, os outros comem-a. O estrago é
o mesmo.

* * * * *

O registo das producções musicaes portuguezas foi enriquecido durante o
periodo a que se refere este volume com tres novas obras, qual d'ellas
mais caracteristica e mais monumental. Passamos a consagrar a cada uma a
attenção que lhe é devida.
* * * * *
_As Cutiladas do Passeio Publico_ é o titulo de uma polka refutativa dos
principios estheticos por onde os doutos costumavam até hoje determinar
as fontes da inspiração artística.
Aos elementos que concorrem para a gestação de uma obra d'arte, a
orientação ethnologica, a tradição nacional, o solo, o clima, os
aspectos da paizagem, temos de accrescentar uma nova força geradora:--a
força da pancadaria.
Na occasião em que os bons e pacificos burguezes de Lisboa tomavam o
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