As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-10/11) - 3

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* * * * *
Se porém--e perdoe-se-nos esta hypothesese, sob a senhoreal e demievica
palavra «aio», devemos entender a idéa perfeitamente logica, sensata,
popular, de um preceptor pratico, de um mestre experimental, de um
amigo, de um companheiro, n'esse caso notaremos com o mais profundo
respeito a Sua Magestade a Rainha, dedicada mãe e primeira educadora do
joven principe, que foi singularmente illudida a sua perspicacia
elegendo o sr. Martens Ferrão como conselheiro official e privado de seu
filho, como guia experimentado da candida existencia inexperiente do
innocente alumno. E isto por uma razão que de nenhuma maneira desabona
os altos merecimentos de sua excellencia o actual senhor procurador
geral da corôa, antes pelo contrario os confirma e corrobora. Esta razão
é que: o sr. Martens Ferrão, pela sua natureza, pela sua organisação,
pelo seu temperamento, pelo seu caracter, pela sua biologia, é tão
inexperiente, tão candido, tão ingenuo, tão innocente e tão puro como o
proprio alumno que elle é chamado a aconselhar e a dirigir na difficil e
complicada navegação da vida.
Passando em tenros annos do regaço d'aquella que lhe deu o ser para os
braços da austera jurisprudencia, que tinha de amamental-o para a
sciencia e para a gloria, o sr. Martens Ferrão tem até hoje passado a
sua vida _en nourrice_ em casa do Direito Publico.
Os seus dias teem decorrido transcendentemente fora das condições
historicas do tempo e do espaço. A sua existencia tem sido
exclusivamente mystica e symbolica. Quando tem os seus impetos mais
ferozes de extravagancia, de anarchia, de deboche, elle sae a passear
pelas viçosas campinas da philosophia do direito e faz patuscadas
orgiacas e escandalosas com as origens celticas do direito e com as
liberdades municipaes do imperio romano. Depois o remorso apodera-se
d'elle. No dia seguinte acorda pallido, abatido, com a lingua grossa: o
espectro pavoroso e formidavel do sr. Batbie appareceu-lhe em sonhos, e
elle ouviu vozes vingadoras que lhe bradavam das profundidades da noite
e do arrependimento: «João Baptista, para onde deixaste o direito de
punir? que fizeste do direito administrativo, João? que é do direito
internacional, Baptista?!» Taes são os seus dias de mais desdem, de mais
anormalidade, de mais sexo, de mais jogo e de mais champagne! tal é o
seu despertar contricto para a legalidade, para a descentralisação
districtal e para as reformas de administração! Tal, resumidamente, é
elle! E quando dizemos _elle_, commettemos uma incerteza de
concordancia, porque tão pura, tão transcendental, tão scientifica é a
personalidade do sr. Martens Ferrão, que nada obsta a que a historia
referindo-se a sua excellencia, em vez de dizer _elle_, diga--_ella_.
Pela nossa parte, aguardando ácerca da resolução d'esse ponto as
ulteriores disposições definitivas da posteridade, diremos por emquanto
simplesmente _el_, sem a desinencia de genero, sob a respeitosa formula
neutra.
Como diziamos, pois, tal é--el.
* * * * *
Analysando, timidamente como o temos feito, a nomeação do sr. Martens
Ferrão para aio do principe real--note-se bem isto--não é a sorte de sua
alteza o que nos inspira receios sob a guarda de um tal guia ... Ah! não!
É pelo contrario o destino de sua excellencia o que nos inquieta sob a
influencia de um tal companheiro. Por _elle_ podemos estar perfeitamente
socegados. Mas _el_? o que será d'_el, el_ tão puro ou pura, tão
candido ou candida, sob os impulsos da nova existencia que
repentinamente vae no seu temeroso vertice arrebatal-o ou arrebatal-a?!
Na vida da côrte, fina, scintillante, irritavel, cheia de factos, de
commoções, de rasgos de espirito e de valor, de emboscadas, de
surpresas, de malicias, de tentações, quantos perigos, quantos laços,
quantas ratoeiras para a innocencia virginal, para a candida pureza
inexperiente e inerme d'_el!_ ...
Os principes por effeito da sua vida reclusa, claustral, vigiada,
monotona, amam naturalmente a escapada, o mysterio, a aventura, a
innocente anormalidade. Apraz-lhes a sortida arriscada, a partida
carnavalesca, o ruido dos festins secretos, a mascara inescrutavel, a
longa capa dramatica e a espada ligeira e subtil dos paladinos;--o que
se lhes deve relevar, porque é esse o unico despique dos principes para
a secca official dos intrigantes, dos bajuladores, dos ambiciosos, dos
sensaborões e dos hypocritas que ordinariamente os rodeiam. Estes porém
não são ainda para _el_ os unicos perigos. Não é licito esconder que ha
outros mais e muito mais temerosos. Pensemos nas influencias
tempestuosas d'esse elemento, terrivel para a mocidade, que se chama--a
mulher. Sentimos magoar com este promenor a pudicicia do sr. procurador
geral da corôa, mas esta é a verdade que não devemos occultar aos olhos
de sua excellencia. Diz Michelet, o casto, o austero Michelet, que em
todo o tempo a mulher attrahiu o homem, assim como a vinha da Italia
chamou os gaulezes, e a laranja da Sicilia chamou os normandos. Ellas
chamam-nos, ó srs. procuradores geraes da corôa, ellas chamam-nos!
Lembremo-nos da bella Helena, sr. Martens Ferrão, lembre-mo-nos de
Semiramis, de Cleopatra, da casta Penelope, das Sabinas!
Os principes não estão mais isemptos que os outros homens d'esta lei
geral da humanidade, e os que vivem com elles--ponderemol-o bem--ficam
sujeitos ás mesmas influencias que envolvem os reis.
Guilherme VII, cuja fé religiosa era tão ardente que elle foi á Terra
Santa com cem mil homens, o proprio Guilherme VII levou tambem na viagem
do Santo Sepulchro a galante legião das suas amantes, e diz d'elle uma
velha chronica que, bom trovador e bom cavalleiro d'armas, por muito
tempo correra o mundo _para enganar as damas_. Tal é a raça de que elles
sáem, ás vezes, quando não sáem peores que o mystico e piedoso
Guilherme! Que a actual procuradoria geral da corôa emquanto é tempo o
medite!
De Francisco I, um dos mais sabios e dos mais uteis reis que tem tido o
mundo, diz-se que ás bellas milanezas se deve a mais importante parte na
perseverança com que elle combateu pela conquista da Italia.
Sem fallarmos na cohorte das peccadoras, tão gentis como funestas, dos
_boudoirs_ de Luiz XIV e da Regencia, recordemos ainda as dissolutas e
ferozes mulheres da côrte de Carlos IX, Catharina de Medicis, Maria
Touchet, e as grosseiras amantes torpes de Luiz XI, a Gigogne e a
Passefilou ... Oh! pudor! oh decoro! oh reforma administrativa!
Suppondes que a educação, os exemplos salutares e os conselhos sabios
possam preservar os principes dos perigos das suas ligações
clandestinas? Mas quando assim pudesse ser, quantos outros riscos na
propria convivencia legal das mulheres legitimas!
Um dia Maria Laczinska, legitima mulher de Luiz XV, recusou um beijo ao
rei com o fundamento de que este cheirava a vinho. Luiz, segundo a
expressão pittoresca de um chronista das galanterias escandalosas do
seculo passado, começava então _a tomar o gosto ao champagne_. O rei
resolveu n'esse dia nefasto separar-se para sempre da rainha, e são
sabidos os desgostos e as desgraças que o rompimento d'essas relações
custou á felicidade da França e á moral da Europa. Que remorso para o
aio de Luiz XV! Foi d'elle a culpa d'esse desastre. Se o aio do joven
rei, em vez de começar _a tomar o gosto ao champagne_ juntamente com o
seu alumno, fosse, como pelo contrario devia ser, um experimentado e
antigo _soupeur_, conhecedor esperto de todas as ciladas armadas ao
homem pela bebida e pelo amor, elle teria evitado o divorcio do rei.
Tel-o-hia evitado, porque teria ensinado ao seu alumno, com a
auctoridade da experiencia, que a intemperança nas ceias e o abuso no
champagne produzem as hepatites, as predisposições para a apoplexia e
para a gotta e a manifestação das areias no rim. Se o principe não
obedecesse a estes conselhos e persistisse em ceiar, n'esse caso o seu
aio lhe faria comprehender que depois de ter bebido champagne nenhum
homem vae conversar com senhoras sem ter concluido a sua digestão e sem
haver previamente lavado a bocca com um elixir dentifrico. Um pequeno
passeio ao ar livre, uma gota de laudano ou uma pastilha, qualquer
d'estas tres coisas ministrada opportunamente por um aio intelligente e
dedicado, teria obstado ao rompimento das relações de Luiz XV com sua
mulher e a todas as consequencias que d'ahi se seguiram.
Algumas vezes succede ainda que, além de todos estes desgostos, d'estas
decepções e d'estes remorsos, os aios, os validos, os intimos dos
principes levam ainda por cima pancada das princezas. N'este ponto as
chronicas são prodigas de eloquentes e salutares avisos. Constancia de
Arles, por exemplo, mulher de Roberto Pio, tinha taes accessos furiosos
de mau genio que um dia vasou um olho do seu proprio confessor
batendo-lhe com uma bengala que tinha no castão um bico de passaro. Esta
mesma bengala nem sempre se conteve perante a pessoa inviolavel e
sagrada da real magestade, e por muitas vezes se ergueu sobre as cabeças
dos amigos mais particulares do rei para nem sempre deixar inteiros
esses craneos dedicados e fieis. Foi a mesma sobredita princeza a que de
uma vez mandou matar por occasião de um passeio, aos proprios olhos do
soberano, o ministro De Beauvais, que lhe desagradava, e que, de outra
vez impoz para o outro mundo um cortezão antipathico, estafando-o com
uma corrida que o obrigou a dar n'uma caçada.
* * * * *
Ora se a corôa tem por um lado a obrigação de escudar a infancia e a
innocencia dos principes, não deve por outro lado sacrificar a
inexperiencia inerme das instituições pondo os srs. procuradores geraes
como barreira entre as tentações e as culpas, lançando emfim a alta
magistratura ao pego tenebroso, ao Mexilhoeiro insondavel em que ha o
espumar dos vinhos capitosos, o sussurrar das sedas, o arfar dos leques,
os sorrisos tentadores e as bengalas de castão de bico.
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Algumas das pessoas que tiveram a honra de serem admittidas a jantar com
as senhoras hispanholas que ultimamente se acharam em uso de banhos de
mar, e de emigração, em Lisboa pedem-nos a nossa intervenção para
dirigirem áquellas senhoras, aliás tão distinctas e tão interessantes,
uma pequena observação que os seus amigos mais dedicados se não atrevem
a fazer-lhes directamente.
Suas excellencias teem á mesa o terrivel habito de comerem o peixe com a
faca, o que os admiradores mais enthusiastas do fino sal de espirito de
suas excellencias e do seu poderoso encanto de maneiras, não podem
abster-se de considerar como uma concorrencia temeraria feita por suas
excellencias aos acrobatas dos jogos malabares, unicos entes que
insistem em accumular os seus meritos pessoaes com o talento
supplementar de metterem as facas pela bocca.
... Sendo certo ainda assim que os malabares que temos visto
entregarem-se a este exercicio, servem-se o seu rodovalho á parte, e
comem as facas--sem peixe!
Submettemos estas simples reflexões a suas excellencias, as quaes em
seu delicado criterio decidirão se, attentos os graves cuidados que nos
inspiram, devem ou não continuar a manter--na lista dos seus acepipes
predilectos--os faqueiros.
* * * * *
Durante este mez, tão inquieto, tão palpitante de commoções, em toda a
Europa, os principes com mão nervosa e febril cultivaram a epistola.
O Santo Padre escreveu ao imperador da Alemanha, o imperador da Alemanha
escreveu ao Santo Padre, o conde de Chambord escreveu ao deputado
Rodez-Benavent, o sr.D. Miguel de Bragança escreveu ao sr. conde da
Redinha, e a historia em geral e os redactores da _Nação_ espeialmente,
escutaram com ardor o fremito d'essas pennas riscando a face do universo
com letras um pouco menos correctas que as de Cicero, de Plinio o moço e
de madame de Sevigné.
* * * * *
O Santo Padre pede ao imperador Guilherme que obste a que o governo da
Alemanha persista na perseguição do clero catholico. O imperador
Guilherme roga a Sua Santidade que impeça o clero catholico de proseguir
na rebelião contra o governo da Alemanha.
D'este modo o Papa deseja que se retire da scena o martyrio, a grande e
bella apotheose da egreja triumphante, e lembra ao verdugo que sirva aos
martyres o antigo fel das legendas gloriosas com o moderno assucar dos
confortos policiaes.
O imperador opina que amargo de mais é o proprio calix que o obrigam a
tragar, e tirando da cabeça o seu ponderoso capacete bellico de ponta de
pára-raios, e humilhando-se dentro das suas botas de couraceiro,
elle--abatido, beato, lacrimoso--pede egualmente para as suas
tribulações de christão as correspondentes e proporcionaes doçuras.
E taes são os dois maximos guardas da fé, os dois summos representantes
na Europa moderna dos dois grandes ramos em que se acha dividida a
christandade!
Oh! Voltaire compungir-se-hia, e, franzindo n'um sorriso bom os feixes
malignos das suas sarcasticas rugas, elle, o caustico philosopho, o
livre espirito, tirando benevolo dos bolsos da sua houppelande de
veludo e martas a caixa das suas pastilhas, offereceria ás potestades
chorosas os bombons sacrilegos dos salões de Mesdames du Deffant e de de
Lambert.
* * * * *
A carta do conde de Chambord é o velho golpe astuto de Jarnac jogado ao
constitucionalismo monarchico.
O principe a quem a França offerecera a corôa burgueza de Luiz Filippe,
pergunta-lhe o que exige d'elle a França, que papel lhe destina, para
que missão o invoca.
Vós, que estaes na liberdade, na democracia, na republica, cedeis ao
invencivel appetite de acclamar um rei. Comprehendestes que é superior
aos vossos meios repressivos e reorganisadores a perturbação corrompida
da sociedade em que viveis. Duvidaes da vontade, da intelligencia, da
força do vosso accordo collectivo. Quereis uma iniciativa individual,
culminante, prestigiosa, predestinada para o mando, para o triumpho,
para a gloria; quereis o monarcha eleito como Saul «para livrar o seu
povo das mãos dos seus inimigos», segundo a formula primitiva do
propheta Samuel.
N'esse caso armae a vossa cathedral de Reims, convidae os vossos
principes do seculo e da egreja, trazei a corôa real, a espada, as
esporas, a dalmatica azul, as botinas de seda estrellada de lizes de
oiro, entregae-nos o sceptro de Carlos Magno, e dae-nos as sete uncções
de Pepino o Breve. Depois do que, nós haveremos por bem deliberar por
quaes secretos caminhos nos apraz mandar-vos, segundo as vossas
gerarchias, para a victoria, para a bemaventurança ou para a força.
Emquanto vós, tranquillos, repousados, deixareis definitivamente de
occupar-vos da coisa publica, e, sem ambições, sem principios, sem
idéas, tereis a felicidade absoluta da besta no seu aprisco; _hoc erit
jus regis qui vobis imperaturus est_.
Se, em vez d'isto porém, o que desejaes ter é, não uma força omnipotente
que vos governe, mas sim um instrumento politico que manejeis; se para
me outorgardes a corôa, precisaes de me tirar a iniciativa, a
personalidade, a dignidade de homem; se para que me julgueis inoffensivo
é preciso que eu vos mostre ser pôdre; se as garantias que me pedis para
que vos não domine são uma fraqueza, uma corrupção, uma inepcia que vos
assegurem a facilidade de me dominardes a mim, então não: não vos
convenho eu, o derradeiro dos Bourbons fundadores da monarchia absoluta
nascida dos terrores da Liga e da Saint-Barthelemy, descendente e
herdeiro de Henrique IV, o que teve a dupla coragem da força e da
miseria, o que na tomada de Cahors se bateu nas ruas durante cinco dias
consecutivos, ôlho a ôlho, dente a dente, braço a braço, o que de Dieppe
escrevia alegremente a Sully que tinha todas as camisas despedaçadas e
um gibão roto nos cotovellos!
Camille Desmoulins conta que em 1790 o poder monarchico era representado
em Londres por meio de um bailado expressivo como uma parabola. N'este
baile a primeira figura era um rei que terminava a execução de um
_entrechat_ cheio de garbo e de pompa alongando um pontapé ao fundo das
costas do seu primeiro ministro; este transmittia o pontapé real ao
segundo ministro, o qual o traspassava ao terceiro, seguindo-se a mais
viva e espirituosa corrente de pontapés que se tem visto n'uma côrte,
até que o personagem que apanhava em cheio no seu volumoso e amplo
hemispherio posterior o ultimo pontapé era o paiz--que ficava com elle.

Nas monarchias constitucionaes imaginou-se reconstituir, por meio da
carta, essa graciosa dança, alterando porém a collocação do soberano ou
a ordem dos pontapés, de maneira que ou o principe está em baixo e os
pontapés vem de cima, ou o tyranno está em cima e os pontapés vão de
baixo.
Os povos monarchicos julgam-se felizes tendo cada pessoa ao lado de si
alguem a quem transmittir o pontapé em giro atravez das instituições e
da politica. A carta do conde de Chambord não é em resumo senão o
testemunho de uma divergencia com a assembléa nacional sobre este ponto
importante do bailado em ensaios: quem é que recebe o pontapé?
A um paiz corrompido e a uma assembléa senil não occorre esta
consideração tão simples: que quando se trata de um stygma de servilismo
e de baixeza a questão não é poder transmittil-o, é não dever
acceital-o. Organisar pela monarchia a responsabilidade dos que se
corrompem é abdicar a faculdade de demittir a corrupção. Os reis quando
não enodoam os povos, tambem não lhes tiram as nodoas que elles tenham.
N'esses casos o que limpa um paiz não é a realesa. Quereis saber o que
é? Pois bem! É a benzina!
* * * * *
A carta do sr. D. Miguel de Bragança ao sr. conde da Redinha é ao mesmo
tempo o tocante documento da estima inviolavel de um amigo ausente, e o
authentico manifesto politico de um principe proscripto.
Sua alteza declara ao _seu paiz_ que quer ser o protector e o amigo de
todos os portuguezes e que considera como sua mais elevada ambição e sua
maior gloria--restaurar o throno pontificio. N'este simples traço
encarna sua alteza a expressão politica da sua indole,--o que nos parece
de uma moderação de intuitos demasiadamente modesta.
Diriamos que sua alteza folga em confundir-se na obscura legião invalida
dos tyranos burguezes, dos cezares bonacheirões, Neros de barrete de
dormir, Caligulas dyspepticos, Eliogabalos em uso do pronto alivio e da
revalenta arabica. A politica affirmada por sua alteza accusa uma
visivel pobresa de sangue. Sua alteza é um anemico. Tal é o infortunio
da nossa raça! Que degeneração!
O pae do joven principe D. Miguel era sanguineo, esse. A sua
extraordinaria força muscular era a admiração respeitosa, a maravilha
profundamente inclinada do _sport_ lusitano de 1827. Nas redondezas do
paço de Queluz, nas terras do Infantado, via-se ás vezes atravessar os
campos, a pé, caçando acompanhado do seu falcoeiro, um homem de mais de
meia estatura, de solidos hombros, faces morenas, barba rapada, mãos
enormes, beiços sensuaes, grandes olhos negros, rasgados, peninsulares;
vestia um casaco de baetão verde, calção preto, botas altas, de cava,
com tações de prateleira e esporas de prata; usava um bonet azul, do
prato largo, com vizeira. Este homem, que amava a convivencia dos
plebeus, a quem dava largas esmolas de dinheiro e de conversação,
comprazia-se em ensinar a lavrar os moços do campo: tomava na mão
esquerda a rabiça de um arado, azorragava com a direita uma parelha de
mulas, e abria no solo mais empedrado e mais endurecido, sob a poderosa
pressão do seu pulso, um rego profundo, extenso de um kilometro, e recto
como um risco passado a regoa por um tira-linhas. Suffocava um forte
cavallo de Alter puchando-lhe a ponta da cilha com os dentes. Segurava
pela bocca, que juntava e cerrava no punho, um sacco de sete alqueires
do trigo, e lançava-o ao hombro, com uma só mão, erguendo o braço por
cima da cabeça e conservando o corpo immovel, erecto e firme. Quando
vinha de Queluz a Lisboa, galopando á desfilada, com uma vara debaixo da
perna, entre os seus companheiros mais assiduos, João Sedvem, o picador,
o José Verissimo, o da policia, a força de soldados de cavallaria que o
acompanhava, ficava aos poucos pela estrada destroçada pela fadiga: elle
nunca chegou senão só. No dia em que recebeu ao pé da mata, na Quinta
Velha, onde estava caçando ao falção, por volta das duas horas da tarde,
a noticia de ter entrado a barra de Lisboa a flotilha que apresou e
levou para França todos os nossos vasos de guerra surtos no Tejo, elle
veiu de Queluz a Belem, em menos de tres quartos de hora. Esse homem que
tinha a grande popularidade que trazem comsigo as legendas da força e da
destreza physica, era sua magestade el-rei o sr. D. Miguel I.
O soberano tinha os defeitos do homem e as qualidades dos seus defeitos.
A sua politica era apopletica simplesmente porque elle era plethorico.
Esse principe, com o seu temperamento, o qual constituia, politicamente
assim como physiologicamente, toda a sua personalidade, fez á liberdade
e ás idéas modernas o mais relevante serviço: foi elle o que fabricou o
partido liberal portuguez.
Os constitucionaes foram uma invenção da policia do sr.D. Miguel. Elles
não combatiam o direito divino, nem os privilegios da nobreza e do
clero, nem o regime absoluto, nem a servidão popular; o que elles
combatiam principalmente era o José Verissimo. Affirmavam-se os direitos
do homem porque se tinha percebido que esses direitos prejudicavam os do
João Sedvem. Os revolucionarios portuguezes não vieram da sciencia, não
vieram do amor da justiça, das impaciencias da liberdade, dos contagios
da Convenção, da revolta da dignidade humana. Não. Elles vieram
simplesmente dos carceres, dos carceres em que o regime despotico
recalcou de mais a força viva da nação. Os principios eram o pretexto
sob o qual se vingavam as offensas feitas não ás idéas vigentes, mas aos
interesses estabelecidos. As denuncias partiam dos lesados. A idéa
exposta na organisação da Companhia dos vinhos preoccupava mais os
espiritos em Portugal do que o principio representado em França pela
existencia da Bastilha. Havia martyres da liberdade que nunca tinham
amado a liberdade com devoção mais intensa que a do Sedvem e que não
teriam posto duvidas irremissiveis em continuar a «dobrar a cerviz, ao
jugo da tyrannia» como se dizia no stylo do tempo; sómente o que elles
tinham recusado era emprestar algumas moedas ao José da Policia. Para a
maior parte da gente a victoria da idéa liberal foi simplesmente a morte
do Telles Jordão. Finalmente o sr. D. Miguel de Bragança, _primeiro_,
foi o principe cuja força fez na monarchia portugueza o rombo por onde a
liberdade appareceu. O sr.D. Miguel de Bragança, _segundo_,
figura-se-nos pela sua expressiva carta ao sr. conde da Redinha, uma
pessoa extremamente debilitada. Ser o protector e o amigo de todos os
portugueses é enfraquecer-se diffundindo-se. Os antigos fortes
concentravam-se.
Pobres de nós! Como somos diversos de nossos paes! Os plethoricos,
sangrados, legaram á geração que lhes succedeu a impotente anemia!
* * * * *
Acabamos de lêr um livro que foi publicado era Lisboa ha cerca de tres
mezes e a respeito do qual ainda não ouvimos á critica uma palavra de
menção. Foi abafado pelo silencio. Se lhe não dessem esse destino teria
sido um livro escandaloso porque foi inteiramente concebido fóra da
rotina, fóra da convenção, fóra do compadrio, por um espirito
justo, esclarecido, honrado, fatalmente inclinado ao bem.
Intitula-se--_Portugal e o socialismo_, e é escripto pelo sr. Oliveira
Martins.
A litteratura portugueza actual apresenta este notavel caracter:--o
bysantinismo. Ella não é um documento historico, nem um documento moral
do tempo em que vivemos. Não tem importancia na direcção dos espiritos,
não tem influencia na formação dos caracteres, não tem validade no
estabelecimento dos principios. Não dá nenhuma theoria á razão, não dá
nenhuma lei á consciencia, não dá nenhuma norma á dignidade.
A imitação, a convenção, o servilismo, o estreito espirito de seita, de
partido, de escola, a ignorancia, a indolencia, a bajulação, a
orthodoxia official puzeram a pouco e pouco as lettras portuguezas
inteiramente fóra do seu objecto--a simples e pura verdade humana.
O que actualmente se escreve não é absolutamente nada o que actualmente
se pensa. Todas as grandes questões capitaes que preoccupam a sociedade,
a litteratura ou as evita ou as falsea. Ou as evita porque as não sabe
tratar, ou as falsea porque as trata com um espirito particular de
interesse, hostil á sciencia e rebelde á arte.
Entre tantos escriptores portuguezes que quotidianamente enegrecem em
Portugal o innocente papel sobre o qual se orça a medida das nossas
faculdades, onde está o homem cuja obra represente o precurso das idéas
predominantes d'este seculo atravez d'esta sociedade? Onde está o
artista, onde está o philosopho, onde está o poeta que tenha atacado de
frente a solução desinteressada, independente, firme, clara, nitida, dos
multiplos problemas que agitam o espirito, a consciencia, o coração do
homem moderno no meio do sentimento, do temperamento, da religião e da
politica da sociedade moderna?
Será tal escriptor o sr. Alexandre Herculano, philosopho collaborador da
sr.ª D. Guiomar Torresão no _Almanack das Senhoras_?
Será o poeta sr. Nunes, deputado conservador, o mais arrojado dos vates
que conhecemos dentro dos limites da carta constitucional e do systema
representativo?
Não nos parece.
O sr. Oliveira Martins faz parte de um pequeno grupo de alguns
trabalhadores obscuros, inteiramente penetrados da corrente scientifica
do tempo actual, que teem procurado introduzir na litteratura as idéas
correspondentes ás preoccupações, ás necessidades e aos interesses mais
altos, mais legitimos e mais vitaes da sociedade em que vivem, fixando
assim scientificamente algumas das bases do programma geral da revolução
por meio da qual se vae transformando o mundo europeu.
Esses humildes obreiros, aos quaes cabe a gloria de terem iniciado em
Portugal quasi todos os grandes principios das civilisações modernas,
não teem encontrado, como galardão dos seus estudos, da sua
independencia e da sua andácia de pensadores, senão a surda guerra das
maledicências, das calumnias e dos desdens, evantada pelo obscurantismo,
pelo fanatismo, pela ignorancia. Accusam-os de attentarem contra a
moral, contra a religião, contra a ordem, contra o patriotismo, e
expulsaram-os vilmente e infamemente do respeito publico e da
consideração social como jacobinos, como communistas, como incendiarios.
* * * * *
É do livro acima citado que extrahimos a seguinte pagina tão sensata,
tão viva, tão humana:
«Portugal não tem pauperismo. É por isso que entre nós se não levantaram
ainda, nem se levantarão já, Nelsons ou Sydney Smiths para dizerem como
em Inglaterra: «A pobreza é infame.» É por isso que a definição ingleza
da fabrica--_manufactura de algodão e de pobres_--não pode servir-nos. O
não attingirmos porém um termo tão elevado de preversão social não quer
dizer que as classes trabalhadoras de todas as industrias vivas do paiz,
extractivas e transformadoras, encontrem para cá das nossas fronteiras
um modo de vida essencialmente differente. Não, a nossa organisação
politica, semi-monarchica, semi-liberal, dá em resultado ser duplamente
absurda, immoral, pauperisadora. Porque, como liberal, permitte a livre
concorrencia do capital e do trabalho, aliena as funcções e
propriedades collectivas, e, para corrigir as consequencias de
distribuição viciosa que d'ahi resultam, mantem uma protecção
anachronica, com as alfandegas, com a divida e com o imposto, protecção
que recaindo afinal toda no consumo, vem ainda aggravar as condições do
trabalhador pela elevação no preço das coisas. Acima da preversão
economica devemos pôr a preversão moral. No pequeno mundo industrial de
Lisboa, não contaste nunca, leitor, aos sabados o numero de ebrios que
povôa as vielas escuras e nauseabundas, onde á crapula vem juntar-se a
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