As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-10/11) - 1

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RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ
AS FARPAS
CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
3.º ANNO
Outubro a Novembro de 1873
VOLUME XX


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. Proudhon.


SUMMARIO
Regresso. Explicações--Historia de uns pés--Modos de morrer. Os
Lovelaces do sepulchro. Os descamisados da cova--Epistola aos catholicos
do Porto. A associação catholica, seus fins, seus meios, sua
organisação, seu programma. O catholicismo. A egreja refugio da
liberdade. As propagandas catholicas em França e na Italia. Manzoni,
Rosmini, Balbo, Chateaubriand, Lamartine, o sr. conde de Samodães. Os
padres portuguezes. O liberal, o reaccionario, o indifferente. O
confissionario. As academias da rua da Picaria. A mulher christã. O
partido liberal portuense e a infallibilidade do papa. O protestantismo
do sr. Bismark. O seculo XVI. Theoria do scepticismo. A duvida na
politica, na sciencia, na religião. A tolerancia--Festa veneziana nas
aguas de Caparica--O aio de sua alteza. O que é o aio? O perfil do sr.
Martens Ferrão. A corte, a mocidade, a aventura, os tações encarnados,
as espadas dos paladinos. Semiramis, Cleopatra, Penelope e outras. A
regencia. O beijo de Maria Laczinska. A bengala de Constancia de
Arbes--As senhoras hispanholas e os faqueiros--O santo padre, o
imperador Guilherme, o martyrio e as pastilhas de Voltaire. O conde de
Chambord e o constitucionalismo. Saul, Pepino, Henrique IV. Historia
philosophica dos pontapés nas monarchias modernas--Perfil do sr. D.
Miguel de Bragança e influencia politica d'este rei, o seu typo
physionomico, o seu temperamento, a sua popularidade. De como se
fabricou o partido liberal portuguez. O João Sedvem, o José da Policia,
o Telles Jordão e a idéa nova. De como o actual principe D. Miguel é
anemico--O jornalismo, as idéas, os aguadeiros da opinião publica--O
drama do Mexilhoeiro--A falta do elemento feminino nos banquetes
patrioticos.
Leitor querido--Depois de uma longa abstenção de tres mezes--os mezes do
verão--_As Farpas_ voltam a apparecer no teu banquete ao mesmo tempo a
que recomeçam a servir-se tambem as ostras.
Á similhança dos mariscos, qu não é bom comerem-se nos mezes que não
teem r, estas paginas condimentosas e estimulantes, se abusasses d'ellas
no tempo quente, amigo, far-te-hian, talvez, furunculos.
* * * * *
Além de que, o verão tem influencias de expansibilidade que
desconcentram a vida da esphera das suas condições normaes. É a epoca
das viagens, dos banhos, das estações do campo. Abandona cada um o
interior da sua casa, os seus habitos, as suas occupações, a sua
hygiene, o seu trabalho. Fórma-se uma existencia interina, transitoria,
supplementar. Está-se em uma casa alugada por dois mezes como hospede de
uma noite n'uma estalagem. Não se reside; pernoita-se apenas, e
passam-se os dias. Com a supensão do trabalho esterilisam-se tambem as
idéas, porque todo o trabalho é uma fecundação da intelligencia. Assim
todo o ser humano temporariamente transplantado da parte de solo, de
atmosphera moral, em que ordinariamente exerce a sua actividade,
emurchece. O portuguez, que sempre lê pouco, no verão então não lê nada.
Achei-me por muitas vezes durante a estação finda a bordo dos pequenos
vapores que fazem o transporte dos banhistas entre Lisboa e as praias.
Os setenta minutos d'estas breves viagens eram o tempo consagrado por
cada um para, por meio da leitura, pôr as suas idéas em relação com os
interesses intellectuaes e moraes do resto do mundo. Fóra do convez dos
vapores de Belem ninguem nas praias lê, ninguem tem comsigo um livro.
Isto não é uma simples hypothese, é uma observação positiva. Em
Pedroiços, por exemplo, a vida--toda de porta da rua--é transparente:
vê-se o que cada um faz, quasi que tambem se vê todo quanto cada um
sente e quanto cada um pensa. Pois bem, nas viagens dos vapores de
Belem, unico lapso de tempo destinado pelos banhistas ao estudo,
observámos durante o periodo de tres mezes consecutivos que ninguem lia
senão almanachs, collecções de cantigas ou de charadas, e os periodicos
de noticias. Que elementos para, a educação intellectual de alguns
milhares de cabeças: darem mergulhos no Tejo, aprenderem nos livros que
nasceu o dente do sizo ao sr. Alexandre Herculano, e saberem pelos
jornaes que o sr. commendador Santos foi á Outra Banda em partida da
recreio, com os seus amigos, comer um safio!
* * * * *
Não foram essas porém as rasões porque _As Farpas_ se callaram durante a
estação calmosa. Os nossos motivos são inteiramente pessoaes. Nós
adoecemos ... Perdôa, leitor benevolo, estas perigosas tendencias de um
convalescente para a autobiographia. Não, não foi um dente novo que nos
esteve crescendo. Nós não temos, como o immortal historiador a que acima
nos referimos, a honra de abrir estas linhas offerecendo á patria e á
sr.ª D. Guiomar Torrezão mais um novo instrumento gloriosamente
recemnascido para a trincadeira nacional.
O nosso mal, foi simplesmente uma affecção na larynge. Apanhámos isto
no Chiado. Tivemos na mucose da garganta as mesmas granulações que
padecem os beduinos na mucose das palpebras por effeito do pó nas
peregrinações do deserto. O Chiado pagou-nos o pessimo gosto burguez,
especieiro, indigno, abominavel, de o frequentar, dando-nos esta doença
climaterica e local. Os hospitaes de S. José e do Desterro dão as
desyntherias e as gangrenas; os tanques do Passeio do Rocio dão as
febres paludosas e intermittentes; o Limoeiro e a Casa de detenção das
Monicas dão as viciações do sangue e as escrophulas; o Chiado e o
deserto da Arabia dão as affecções granulosas da larynge e dos olhos.
Cada um dá o que tem.
A poeira do Chiado é uma especialidade curiosa, interessante, tão
romanesca como a sombra da mancenilha. Esta poeira é fina, miuda, subtil
como a _veloutine_ de Lubin. Ligeiramente tocada pela aza morna do vento
leste, ensinua-se, entranha-se, penetra docemente, consoladoramente,
profundamente--como a calumnia. Depois, uma vez inoculada, produz as
ophtalmias e as esquinencias--as duas maiores enfermidades de Lisboa.
Não é simplesmente formada pelas triturações da terra esta poeira. Não,
porque o solo em Lisboa não é de terra. Aqui a terra tem sido de tal
maneira misturada, falsificada, fingida, que, hoje, aquillo que
primitivamente era a terra já não tem terra nenhuma. O solo de Lisboa é
formado de sobreposições de estercos, de amalgamas de lixo, de restos
pulverisados de fructas podres, de cães mortos e de papeis sujos.
De todas estas misturas requeimadas pelo verão, carbonisadas pelo sol
canicular, moidas sob as rodas dos trens e sob os pés pressurosos do sr.
conselheiro Arrobas, resulta o pó envenenado da capital. Os papeis
velhos de Lisboa, dejecções burocraticas ou litterarias dos bancos, dos
cartorios, dos tribunaes, dos escriptorios dos negociantes, dos
jornalistas, dos advogados, dos tabelliães e do sr. Melicio, são de tal
maneira abundantes que todos os esgotos da cidade não bastam para os
engulir. A brisa espalha esses papeis dilacerados pelas povoações
suburbanas. A praia de Belem é uberrima de papeis sujos, e Pedrouços, a
mansão burgueza das villegiaturas officiaes, parece-se no aspecto
especial das suas immundicies com um corredor da secretaria das Obras
Publicas destinado a projecto de nitreira modelo pelos disvellos
agronomicos do sr. Rodrigo de Moraes Soares.
De modo que a antiga expressão «_terra da patria_», com referencia a
Lisboa e seus suburbios, é figura de rhetorica em demasia arrojada. A
patria do lisboeta não tem terra, tem os agglomerados residuos das
podridões e dos papeis velhos. O nauta vigilante, que do alto mar
descobre no azul o ponto escuro e indeciso d'estas praias, procederá com
louvavel exactidão e amor da verdade se em vez do grito poetico de
«_terra! terra!_» começar a exclamar á vista de Lisboa: «Supedaneo de
Melicio!»--ou--«Nitreira de Soares!»
Victima nós mesmo em todo o nosso apparelho respiratorio d'essas
influencias deleterias da geologia e da civilisação lisbonense, achamos
prudente substituir--como fizemos--a convivencia do publico pela do
gargarejo.
* * * * *
No theatro de D. Maria, o drama--_Idiota_.
Suppoz-se pelos annuncios que _Idiota_ seria uma peça sem nome do
auctor. Equivoco. Era um nome do auctor sem peça.
No theatro de S. Carlos exhibição extraordinaria dos pés do sr.
Barberat. A primeira vez que este cantor appareceu em scena os
violinistas da orchestra suppozeram que elle se lhes tinha calçado--nas
caixas das rebecas.
Quando no dia da chegada elle poz á porta as suas botinas para engraxar,
os creados do hotel cuidaram que elle rescindira a escriptura e se
retirava, por se lhes figurar que o sr. Barberat tinha já no corredor as
malas.
Em algumas alfandegas os guardas do fisco, desconfiados d'elle, teem-lhe
pedido as chaves dos pés!
Nunca até hoje poderam dormir juntos os pés e elle. Emquanto elle está
deitado de costas, os seus pés estão erguidos, ao fundo do leito,
embuçados em capas, contemplando-o, firmes e silenciosos. Pela manhã os
pés estão mortos de somno e de fadiga, e para que elles se deitem um
momento, elle então, compadecido--levanta-se.
Ou por que elle os não queira desasocegar de dia, lembrando-se de que
teem de estar a pé de noite, ou porque elles mesmos se recusem
obstinadamente a uma evolução a que debalde os teem querido algumas
vezes violentar, o artista desistiu absolutamente de vestir as calças
pelos pés e começou a vestil-as, como a camisa,--pela cabeça. Antes de
chegar a esta prudente solução, o cantor, para conseguir vestir-se, era
obrigado todas as manhãs ou a descoser as calças, ou a desmanchar os
pés.
Uma das coisas que mais vivamente picou a curiosidade do publico nas
primeiras vezes em que este artista se mostrou em S. Carlos foi saber
como elle poderia cantar n'um theatro pequeno para que podesse estar
mais alguma coisa em scena além d'elle com os pés. O empresario acaba de
confiar-nos a explicação d'esse segredo, que elle nos permitte enviar
d'aqui como uma dadiva sua á justa anciedade das platéas. Mesmo porque o
empresario attribue, com bastantes probabilidades de acerto, a esta
preocupação do publico perante os pés phenomenaes do baixo a frieza
desdenhosa com que nas primeiras noites se escutou o canto tão vivamente
sentido, tão profundo e tão genial da Galetti.
Pois bem, meus senhores, não pensem mais n'isso. Querem saber como elle
cantava nos pequenos palcos?...
Do mesmo modo que cantam os gallos--n'um pé só.
* * * * *
Á praia da Torre em Belem foi hontem arrojado pela maré o cadaver de um
homem afogado Era ainda novo, robusto e forte. Estava vestido de panno
azul. A jaqueta e o collete que vestia tinham botões de metal doirado
com uma ancora em relevo. Na manga estava presa uma corôa tambem de
metal. Tinha na algibeira um relogio e algumas moedas de prata
portuguezas e brazileiras. As auctoridades da policia e da saude vieram
á praia e olharam para o cadaver, como a lei manda. Depois do que,
officialmente averiguado que estava ali effectivamente o cadaver de um
afogado, pegaram nelle, atiraram-o ao fundo de uma cova aberta á pressa
na praia, e cobriram-o com alguns metros de areia.
Bem feita coisa!
* * * * *
Nem toda a gente vae para a sepultura com esta simplicidade de
apparatos, a que podemos chamar o _enterro incivil_. Mas todos os cães
se enterram por este modo, e não é por isso menos repousado o seu eterno
somno. Além de que, é preciso que cada um se apresente na eternidade em
condições que não desdigam da gerarchia em que viveu e do conceito em
que o teve a sociedade e a opinião publica. Pretender o contrario é
querer lograr a divina justiça sujeitando-a a illudir-se com o aspecto
exterior dos mortos e a acolher com os mesmos cumprimentos na côrte do
ceu o primeiro aguadeiro que chegue assim como o mais digno e
respeitavel ministro de estado ou general de divisão que se
apresente,--o que seria certamente para Deus um desgosto profundo. Logo:
que cada qual morra como o que é e vá para o outro mundo como o que foi,
para não pôr em equívocos a celestial etiqueta!
* * * * *
É um senhor conselheiro a pessoa que morre, na sua cama, victima da sua
gotta? Vestem-se-lhe as suas calças de presilhas e galão de oiro, e a
sua farda bordada; prega-se-lhe no peito a constellação das suas placas
de diamantes, faz-se-lhe a barba, retinge-se-lhe o cabello, põe-se-lhe
ao lado o espadim e as luvas brancas, o chapeu armado sobre o ventre e
um pouco de carmim nas faces. E eil-o ahi está em toda a plenitude e em
toda a magestade dos seus meios physicos e da sua importancia social. As
pallidas Julietas dos sepulchros e as immodestas Rigolboches da tabida
podridão e dos gulosos vermes do _chic_, que se acautelem d'esse maganão
de bom gosto!
Elle é poderoso: deixou na terra muitos necrologios e muitas missas, e
vae optimamente recommendado pelo alto clero á especial protecção do
Padre Eterno.
* * * * *
O que morre é pelo contrario um destes infimos e asquerosos animaes, de
jaqueta de panno azul com botões de ancora, que andam a bordo dos navios
sobre a agua do mar? Uma onda envolve-o no tombadilho e arroja-o ao
abysmo inclemente? Suspende-se então por dois ou tres minutos a marcha
da embarcação--um sólido paquete talvez, luxuoso, commodo, de uma forte
companhia, em que tudo está seguro para os riscos da navegação, tudo
menos a gente,--lança-se uma boia de salvação, arreia-se uma lancha com
quatro homens, e alguns _gentlemen_ que sobem á tolda, tiram dos estojos
de couro de Varsovia que trazem ao tiracollo os seus binoculos e
assestam-os sobre o elemento. Apesar porém d'estas delicadas attenções,
o bruto desagradecido desapparece. Dois ou tres dias depois, a maré, com
nojo, cospe-o á praia da Torre juntamente com outras immundicies.
Que queres tu d'aqui, meu estupido? Isto não é nenhuma selvagem ilha
deserta e encantada, querida dos luares transcendentes de que fallam á
phantasia as musicas de Bethowen e os versos do Ileine, e em que se
figuram, sob uma luz de esmeralda, os bailados da opera.
Aqui não ha os profundos paraizos aquaticos habitados pelas ondinas e
pelas sereias de beijos deliciosos e gelados. Não ha os duendes das
phantasticas florestas que te suspendam, sob o luar impregnado de
calidos aromas e de nocturnas harmonias, nos berços aereos das magnolias
e dos lilazes em flor, nem beneficas deidades transparentes que te
cinjam nos seus doces braços e te levem n'uma festa nupcial para os seus
leitos de algas, de coral e de perolas, no fundo dos dormentes lagos,
sob as folhas dos nenufares.
Não, isto aqui é uma praia decente e grave onde os senhores oficiaes de
secretaria o os senhores desembargadores veem durante a villegiatura
sentar-se pela fresquidão das tardes, com suas mulheres, contemplando
austeros e recolhidos as babugens da vasante e o fronteiro panorama, tão
magestoso e solemne, da Fonte da Pipa. É d'esta praia que o senhor
commendador Santos e o senhor commendador Firmo e o senhor commendador
Eloy teem partido em fina companhia de virtuosas damas, com honestas
guitarras e casto peixe frito, a bordejar no Tejo. É aqui que a illustre
e veneravel burguesia de Lisboa faz as suas estações balneatorias. É
n'estas aguas que ella annualmente refresca e desemporcalha a sua gorda
carne. É aqui que o mesmo poder moderador tem vindo, por vezes, com sua
augusta e elegante consorte demolhar no argento o excelso e inviolavel
systema nervoso da monarchia e da constituição.
Portanto, ó immundo, tu que morreste afogado no oceano e te deixaste
rolar para a praia da Torre, impertinente como o esqueleto de um goso
morto de fome na Trafaria, tu, imbecil, se querias mais alguma
consideração, mais algum respeito com os teus restos, fosses cahir a
outra parte.
Trazias algum dinheiro na algibeira, o sufficiente para te pagares o
luxo de um padre e de uma cova, mas, realmente tu não tinhas aspecto de
mereceres a pena de que alguem se occupasse por um minuto comtigo.
Animal! se querias ser enterrado com respeito e commoção, se querias ter
artigos nos jornaes e padres a cantarem-te o _De profundis_, porque foi
que em vez de te afogares de jaqueta, te não afogaste com uma farda de
almirante, ou de casaca preta e grã cruz dentro de um _coupé_ da
companhia?!
Deixaste por acaso na terra uma velha mãe desamparada, uma esposa
lacrimosa, uma filha orphã, uma familia, a que seria doce ajoelhar sobre
a tua sepultara ou plantar algumas flores sobre a terra que te cobrisse?
Querias permittir-lhes essa extrema consolação? Deixasses-te ficar no
Chiado ou no Terreiro do Paço, tornasses-te um dos elementos
constituitivos da civilisação lisbonense, fizesses-te moço de recados,
agiota ou empregado publico. Vive-se assim na corrupção, na usura, na
humilhação ou na miseria, mas enfim morre-se bem, barato--e muito!
* * * * *
O _Jornal da Noite_ publica uma conta de despeza feita pelo presidente
da republica dos Estados Unidos, Abrahão Lincoln, em um hotel de Albany.
O illustre democrata e as pessoas do seu sequito pagaram a somma de um
conto e alguns mil réis por uma hospedagem de menos de vinte e quatro
horas.
Este facto argumenta vivamente contra a opinião dos que acham as
republicas mais baratas para os povos do que as monarchias.
Effectivamente vemos que, ao passo que o presidente da republica da
America do Norte faz um conto de réis de despeza em algumas horas em
Albany e paga essa despeza, sua magestade o imperador da America do Sul
dispende no Porto mil libras em quatro dias, e não as paga.
É indubitavel pois que as monarchias são incomparavelmente mais baratas
do que as republicas.
Deve-se porém observar que, sob este ponto de vista, o descredito das
democracias prodigas procede principalmente das estalagens exigentes.
Porque está provado que sempre que um republicano em viagem pretende
gastar tão pouco como um rei economico, os estalajadeiros fazem ao
republicano o seguinte: sequestram-lhe a bagagem.
* * * * *
Parece-nos arriscado estabelecer entre os principes e os povos esta
perigosa competencia de quem ha de pagar menos em viagem. Pois que,
realmente, desde que as testas coroadas chegaram ao ideal de se
apoderarem das contas e não pagarem nada, os povos só poderão desbancar
os reis se, não pagando egualmente nada, começarem a estabelecer este
uso: depois de se apoderarem das contas, apoderarem-se egualmente--das
pratas.
* * * * *
_Primeira aos membros da Associação Catholica no Porto_
Meus senhores e minhas senhoras.--Em nome da Nosso Senhor Jesus Christo
e da Santa Madre Egreja Catholica Apostolica Romana, eu vos saúdo e vos
desejo a divina graça. Como tenho obrigação de vos suppôr--taes como o
dizeis--sinceros e dedicados servos de Deus, devotados a cumprir a sua
lei e a divulgar a sua doutrina, mais vos desejo que nunca vos persigam
os bens e as riquezas temporaes de que certamente vos despojastes para
seguir a Jesus. Eu sei que o divino mestre, antes de mandar aos
apostolos que o acompanhassem, lhes ordenou que deixassem as redes,
fazendo-nos sentir por esta fórma que ninguem póde estar com Deus
estando ao mesmo tempo com o mundo, e que para ter os bens do céo é a
condição essencial--abandonar os da terra. Primeiro: _deixae as redes_;
depois: _vinde commigo_.
Amados irmãos, presumindo-vos pobres, desvalidos, tendo previamente dado
o vosso pão aos que tinham fome e os vossos vestidos aos que tinham
frio, eu desejo ainda sobre a vossa nudez a mortificação da vossa carne,
a santa mortificação que raspa a vaidade e o orgulho e limpa o
entendimento e a alma das lepras mundanaes.
Que a graça de Nosso Senhor vos assista e que nada mais do que é
temporal se vos pegue, porque n'este mundo tudo é esterco: _Omnia ut
stercora_, como muito bem disse S. Paulo!
Se vos não poderdes furtar aos contactos impuros do seculo, permitta o
ceo que em todas as vossas relações com a sociedade todas as invectivas
e todas as malquerenças pharisaicas vos punjam e vos espicassem o
coração, assim como os chacaes famintos furam e rasgam no deserto as
tendas dos piedosos peregrinos. Porque--bem o sabeis--só com as
inimisades do mundo podereis merecer e lograr a amisade de
Deus:_amicitia hujus mundi inimica est Dei_.
Finalmente, meus senhores e minhas senhoras, resumindo os meus votos
pelo molde mais consentaneo com as vossas aspirações, que o Senhor vos
veja eternamente no ceu e vos aplane o caminho da promissão, tendo-vos
tanto de sua mão que nunca sobre vós deixem de chover as dores e as
ruinas, por isso que, como diz o psalmista, será pela somma das vossas
penas contingentes, transitorias e mundanaes, que serão medidas as
vossas alegrías celestiaes e eternas!--_Secundum multitudinem dolorum
meorum in corde meo, consolationes tuae laectificaverunt animam meam._
* * * * *
Permittí-me agora que, antes de entrar em algumas breves considerações
que a natureza do vosso instituto me suggere, eu me detenha um momento
na simples contemplação do nome que lhe puzestes.
Que razões poderiam levar-vos, beatissimos senhores, a denominardes
_catholica_ a associação que fundastes, ahi no Porto, em certa casa da
rua da Picaria? Que significa uma associação chamada _catholica_ no meio
de uma sociedade egualmente catholica? Quem é que não é _catholico_ em
Portugal? Não temos nós todos a mesma religião, que não é uma religião
especial da rua da Picaria, mas sim a bem conhecida religião do paiz, a
religião do estado, a religião famosa da carta? Ignoraes por acaso que
nenhuma associação póde ser em Portugal senão isso--_catholica_?
Ignoraes que não temos a liberdade dos cultos, a divergencia de
religiões?...
Ora, não havendo o mosaismo aqui no Chiado, não existindo o pantheismo
no Rocio, nem o lutheranismo no Terreiro do Paço, nem o fetichismo no
Arco do Bandeira, o que vem a ser um catholicismo da rua da Picaria na
cidade do Porto? Terá cahido o Porto porventura no paganismo idolatra?
Estará elle sacrificando a Jupiter a sua rica vacca cosida? Tel-o-hiam
levado os seus representantes, os seus philosophos, os srs. Faria
Guimarães e Pinto Bessa, ás vertiginosas regiões do livre exame, onde o
espirito humano, abatido, fatigado, morde na solidão o fructo amargo da
sciencia?...
Não. Eu visitei o Porto ha pouco tempo. Cheguei ahi no dia 24 de junho.
A cidade tinha o aspecto mais jubiloso e festival. Erguiam-se arcos
triumphaes nas embocaduras das ruas, palpitavam á viração matutina
bandeiras desfraldadas nas janellas das casas. Na rua de S. João os
habitantes, de camisa lavada e barba feita, passavam com bandejas cheias
de lanternas para luminarias, outros espetavam no chão mastros
embandeirados; iam, vinham, fallavam alto, tinham gestos abundantes e
felizes. As egrejas por onde passei estavam cheias até á porta de fieis
que ouviam as primeiras missas. Os sinos repicavam em todas as torres, e
os foguetes furavam o limpido azul da manhã.
O Porto, onde n'esse dia devia celebrar-se um grande _meeting_ liberal,
começava no emtanto--por festejar o S. João!
Portanto, meus senhores, se vós vos denominaes catholicos, não é porque
supponhaes que os outros o não são; é porque vos parece que o sabeis ser
melhor do que os outros, e pretendeis que vos considerem como unicos
catholicos perfeitos, catholicos affiançados, catholicos garantidos.
Se é isto o que quereis dizer-nos com o titulo escolhido para a
vossa associação, e não podeis querer dizer outra coisa,
então--meditae-o--achaes-vos em peccado mortal de soberba, de jactancia,
de presumpção de merecimentos.
Localisando por esse modo a religião na rua da Picaria, vós lançaes
tacitamente a suspeita de impiedade nas demais ruas da cidade da Virgem.
Pois bem, que a Picaria o saiba: a viella do Ferraz tambem vae á missa,
e Deus sabe se jejua ou não, ás sextas-feiras, a Ferraria de Cima!
* * * * *
Advirtamos agora como a associação catholica tem correspondido pela
importancia dos seus actos á audaciosa escolha do seu titulo.
Até o momento em que vós vos apoderastes do catholicismo para vos
fechardes com elle na rua da Picaria, cabia ao catholicismo a gloria de
ter inspirado as maiores obras produzidas pelo espirito humano.
Foi esse pobre catholicismo, ainda então desprotegido do valioso
patrocinio que n'este seculo lhe devia conceder a vossa associação, meus
illustres senhores e minhas preclaras senhoras, foi elle, ainda
desalbergado da rua da Picaria, o que na edade media fez brotar da
imaginação dos povos o que ha mais bello nas artes, os maravilhosos
poemas, as ternas legendas melancolicas, as portentosas cathedraes. Foi
elle que levou Pedro Eremita e Godofredo de Bulhões a descerem o valle
do Danubio e a seguirem o caminho de Attila. Foi elle que inspirou Tasso
e Dante. Foi elle que produziu S. Thomaz, o _boi mudo de Sicilia_, o
Aristoteles do christianismo--como lhe chamou Michelet--, o mais
poderoso cerebro da egreja. Foi elle que creou em Hispanha desde o
seculo XVI até o seculo XVII no meio da maior escravidão e do maior
fanatismo, o mais brilhante grupo de artistas que tem visto o mundo:
Velasquez, Murillo, Herrera, Zurbaran, Lope de Vega, Calderon,
Cervantes, Tirso de Molina, Luiz de Leon. O profundo mysticismo de
«Quixote» é um reflexo do poder da fé em todos esses espiritos. Calderon
era official do santo officio e Lope de Vega desmaiava em extase ao
dizer missa. O catholicismo inaugurou ainda a sociedade mais popular,
mais accessivel, mais equalitaria. No meio da barreira levantada diante
da plebe pelos privilegios do sangue, a egreja era o portico de todos
os grandes talentos e de todas as elevadas ambições: o papa Urbano IV,
filho de um sapateiro, edificava a egreja de Santo Urbano e expunha
n'ella, bordado em uma rica tapessaria, o retrato de seu pae fazendo
sapatos.
Por outro lado o catholicismo deu-nos ainda a Saint-Barthelemy, a
carnificina nacional dos christãos novos, a Inquisição, a guerra dos
trinta annos, os monges bretões que envenenaram o calix de Abeilard e os
dominicanos de Buon Convento que assassinaram Henrique VII, fazendo-lhe
commungar o veneno na hostia consagrada.
Protegido por vós, meus senhores, tutelado pela vossa sociedade
propagandista da rua da Picaria, o catholicismo portuense tem-nos dado
apenas:--como carnificina, quatro pranchadas nas espaduas de quatro
patriotas á porta da Sé; como arte, a _Palavra_, um pobre jornal piegas,
lacrimoso e beato, com pouca elevação, com pouco enthusiasmo, com pouca
fé, e com alguns erros de grammatica.
Ora realmente, meus senhores, para resultados tão mediocres não valia a
pena de vos dardes o apparato de quem funda uma agencia para a
Bemaventurança e nos fecha o ceu--n'um armazem de commissões.
Em 1849 havia na Italia uma propaganda catholica, cujos membros todavia
não chegaram nunca a aggremiar-se e a constituir-se em sociedade como os
cavalheiros e as damas da rua da Picaria.
O chefe da propaganda italiana era um dos espiritos mais rectos e mais
benignos, era o doce e pacifico poeta Manzoni, recentemente fallecido.
_I promessi Sposi_, o celebre romance tão conhecido, foi como o _Genio
do Christianismo_, de Chateaubriand e como as odes religiosas de
Lamartine, inspirado por essa reacção catholico-litteraria com que os
romanticos de 1830 bateram as idéas philosophicas do seculo XVIII.
Manzoni porém, servindo a causa catholica como propagandista, e abrindo
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