As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-10/11) - 4

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orgia das mulheres perdidas? Onde o prostibulo está em frente da
taberna, ao lado o bilhar, e entre o bilhar, o prostibulo e a taberna,
se funde a feria?
A desordem e a immoralidade são contra a natureza. Se esses homens não
fossem pobres seriam melhores. Se não tivessem de trabalhar doze horas
para comer saberiam ler. Se tivessem pão e liberdade seriam paes de
familia. Olhae as mulheres e as creanças. Termo medio a familia tem
quatro pessoas; termo medio o salario é de 400 réis. O trabalhador
recorre ao celibato, á prostituição, ás relações illicitas, d'onde
resultam os infantecidios (tão frequentes em Portugal como na China) e a
roda dos expostos. Quando um homem foi agarrado por esta engrenagem
d'aço morreu. Ha muitos a quem uma certa energia de caracter ou uma
constituição artistica e sentimental levaram ao casamento e á familia: é
então que se encontram quatro pessoas com quatro tostões por dia. A
industria offerece uma tentação diabolica: augmentar o salario
destruindo a familia. N'esse momento a esposa e os filhos entram na
_fabrica_ ...»
* * * * *
A fabrica é para as mulheres e para as creanças o sepulchro do pudor, da
honestidade e da saude. Emquanto as instituições sociaes não assegurarem
á mulher o seu legitimo logar na familia é absolutamente preciso que,
pelo menos a protejam na miseria fatal da fabrica. Porque nas fabricas
portuguezas o que succede com a mulher é que, pela sua fraqueza e pela
sua ignorancia, ella é no trabalho o escravo do homem. Ninguem entre nós
tem lançado os olhos a esses desgraçados destinos obscuros.
* * * * *
Acostura que ainda ha pouco era o grande refugio das raparigas pobres
desappareceu com a machina de cozer. A mulher não póde sustentar essa
concorrencia, porque ella não póde, por maiores que sejam os esforços
dar por suas mãos mais de 30 pontos por minuto: a machina dá 643 pontos
no mesmo espaço de tempo. Para se empregar n'outros serviços precisaria
de uma educação preparatoria pratica, para a qual são indispensaveis as
escolas profissionaes que não existem em Portugal. Em França, na
Inglaterra, na Allemanha e principalmente na Suecia, as mulheres
habilitadas em cursos especiaes teem já muitos empregos uteis na
industria e no commercio. Em 1871 havia na Suecia 4:055 mulheres
empregadas no commercio e na industria. D'estas 2:675 dirigiam os seus
proprios negocios. Quinhentas e quatro mulheres eram proprietarias de
fabricas e de officinas. Além d'isto muitas outras se achavam empregadas
nos bancos, nas caixas de soccorros, nas companhias de seguros, etc. com
emolumentos annuaes variando de 800 a 5:000 rixdalers. No serviço dos
correios, dos caminhos de ferro, dos telegraphos, a mulher alarga de dia
para dia os seus dominios. A America, a Suecia, o Wurtemberg,
offerecem-lhe sob esse ponto de vista as maiores facilidades.
Em Darmstadt muitas mulheres se acham empregadas nas repartições de
estatistica com optimos resultados para o serviço publico. Os cuidados
aos doentes são um bello emprego para o trabalho das mulheres. Na
Hollanda muitas teem sido auctorisadas a tirar diplomas de
pharmaceuticos. A profissão medica tem-lhes sido permittida em diversos
paizes. Na America, em S. Petersburgo, em Zurich, em Upsel e em varias
outras universidades ha um consideravel numero de alumnos do sexo
feminino estudando a medicina. Na Suecia estabeleceu-se pelo estado um
fundo permanente de soccorros para as mulheres que seguem a carreira
medica.
A ultima exposição de Vienna veiu provar ainda quanto as mulheres se
teem ultimamente occupado nas artes industriaes e nas bellas artes. Na
exposição sueca vê-se no pavilhão dos productos da industria o perfeito
exito com que as mulheres teem cultivado n'aquelle paiz a pintura, a
gravura em madeira, a xylographia, a lythographia, a gravura em cobre, a
photographia, a cartographia, a pintura em porcelana, a modelagem. Na
Suecia concedeu-se-lhes accesso, como aos demais empregados, nos
serviços dos telegraphos, dos correios e dos caminhos de ferro.
Admittem-as como gravadoras na casa da moeda; muitas são empregadas nas
academias, nas imprensas e n'outros estabelecimentos como xylographas,
impressoras, compositoras, directoras de officina, etc.
Na Suecia ha hoje immensas escolas sustentadas pelo governo, pelas
communas e por associações particulares onde ensinam ás raparigas pobres
todos os trabalhos femininos do «ménage». Ha escolas especiaes
destinadas a formar creadas. Em Stockolmo ha escolas de remendagem onde
as raparigas aprendem a concertar os seus fatos e a sua roupa branca com
um acceio e uma arte inexcedivel. As meninas burguezas teem á sua
disposição a escola industrial de Stockolmo, as escolas normaes reaes, o
instituto central de gymnastica onde se formam mestras de gymnastica, a
academia real de musica, a academia das bellas artes os estabelecimentos
de instrucção das parteiras e a mesma universidade, onde se ministram
subsidios a tres raparigas que estudam por conta do estado. Depois da
Suecia devem-se citar os Paizes Baixos e a Austria. Em Vienna a
municipalidade fundou em alguns bairros escolas industriaes nocturnas.
Sociedades de senhoras estabeleceram escolas profissionaes de
differentes especies. Ha uma sociedade especial encarregada de obter ás
mulheres meios de subsistência (Frauenerwerb-Verein). Além das escolas
preparatorias para a instrucção geral elementar e para a instrucção
superior, estabeleceu a referida sociedade uma escola de costura, uma
escola superior de trabalho com um curso de estudos que dura tres annos,
uma escola de desenho industrial, uma escola de commercio, uma escola de
linguas, um curso especial para as empregadas na telegraphia. Na
Hollanda é na escola industrial de Amsterdam que se instrue a mocidade
feminina não só nos trabalhos manuaes, taes como o bordado, costura á
mão e á machina trabalhos de cartonagem e obras de palha, escripturação
commercial, legislação commercial e pharmacia. Na Alemanha do norte e na
Alemanha central ha egualmente muitas escolas industriaes fundadas por
sociedades especiaes e por outras corporações para a educação das
raparigas e das mulheres. Um fabricante de Munich fundou uma excellente
escola de ensino commercial para as raparigas da classe burgueza e da
classe operaria. As mulheres que sáem d'esta escola encontram
immediatamente emprego nos bancos, ou nas casas de commercio.
A Russia resolveu ultimamente facultar a matricula na escola de medicina
de S. Petrsburgo ás mulheres habilitadas com determinados titulos de
capacidade. Logo depois da promulgação d'esta lei, quatrocentas mulheres
se apresentaram como candidatos á frequencia da alludida faculdade.
* * * * *
Sabem dizer-nos o que é que, sob este ponto de vista, se tem feito em
Portugal? Esperamos que suas excellencias os senhores conservadores se
dignarão responder-nos.
* * * * *
O sr. marquez de Vallada mandou correr este mez os reposteiros
brasonados dos seus salões para inaugurar as soirées elegantes do
presente inverno com um jantar _prié_.
Assistiram todos os membros do gabinete e varios outros personagens
illustres na politica e na burocracia. Sentia-se apenas uma falta n'essa
reunião selecta: a ausência absoluta de senhoras no palacio do nobre
fidalgo. Bem sabemos que um jantar não é precisamente como uma valsa
para a qual a gente não ha de ir convidar a lagosta, nem dançar com o
perú. Mas mesmo para o que é comer não basta apenas a comida. O sr.
marquez sabe a este respeito a opinião de Savarin: o bruto pasta, o
homem come, só o homem de espirito é que sabe comer. Ora uma duzia de
barbatolas postos a mascar trufas uns diante dos outros em volta de uma
mesa não nos parece que deem o espectaculo da espiritualidade mais fina.
É preciso que concorram tambem as senhoras, com a _toilette_, com a fina
pelle, com os perfumes, com as rendas, com as perolas, com as frescas
risadas cristalinas, com os agudos ditos penetrantes, com a elevação
finalmente, com a idealidade, com o espirito.
* * * * *
Atravessar a gente por entre duas filas de criados gordos e graves como
embaixadores, indo por baixo dos lustres, pizando um tapete espesso,
dando o braço a alguem, ou seguindo mesmo, atraz, sosinho, na turba dos
obscuros, com a claque debaixo do braço; entrar na sala de jantar,
tepida, fulgurante de luz; contemplar a mesa de um aspecto tropical pela
natureza das fructas e pela fórma das flôres trasvasadas do plateau,
procurarmos o nosso nome nos bilhetes que estão em cima dos guardanapos;
sentarmo-nos ao dôce murmurio dos vestidos que se enfôfam ao nosso lado
e dos talheres que telintam; desdobrar nos joelhos um amplo guardanapo,
frio, lustroso e pesado, de linho de Irlanda; aconchegarmo-nos, unirmos
os cotovellos ao corpo e inclinarmo-nos sobre o prato; metter na bocca a
primeira colher do sopa, sentir estalar e derreter-se no dente o
primeiro rabiolo, escorrendo no paladar o acre succo dos espinafres, em
quanto a nossa visinha da esquerda mette a sua luva enrolada no copo do
Madeira, e a nossa visinha da direita morde atrevidamente no pão
deixando-nos vêr de lado todos os seus pequeninos dentes mais lindos que
as suas perolas ... isto é realmente acharmo-nos n'um dos momentos mais
augustos que a civilisação e a elegencia concedem ao homem em paga dos
sacrificios que elle lhes tem feito nos esmeros da educação e na alta
cultura do espirito. É então que as mulheres, sómente as mulheres--ellas
que vivem na graça e no mimo como os solitarios vivem no egoismo e no
tedio--desenvolvem o talento especial de fazer romper os alados
assumptos ligeiros e subtis, em torno dos quaes adejam as conversações,
as phantasias, as replicas, os repentes, como doiradas abelhas famintas
sobre um ramo de rosas.
Se n'esses momentos os homens se acham sós, ou caem na bestialidade
indolente e calada dos deuses de Epicuro, ou discutem, questionam,
fallam alto, gritam, põem os cotovellos na mesa, fazem gestos, fazem
bolas de pão, dão estalos com a lingua, limpam as unhas, e quebram
palitos nos dedos--o que ha mais implicativo dos nervos e mais offensivo
do gosto.
* * * * *
Consta-nos que pelas razões referidas o jantar do sr. marquez tocou um
pouco no tetrico. O silencio era a principio tão solemne que apenas se
ouvia confusamente o ruido da maioria parlamentar engolindo pelo
esophago do ministerio e a ordem e a guarda municipal mastigando pela
bocca do sr. barão do Zezere. Tinha-se ar de se estar n'uma sessão
deliberativa e não n'uma festa; parece até que o sr. marquez de Avila, o
illustre parlamentar, dirigindo-se a um criado, se mostrára gravemente
preoccupado ao ponto de que, sendo a sua intenção pedir-lhe Sauterne,
lhe pedira a palavra.
Por fim parece que o dono da casa usara da fala para expôr o objecto
d'aquella reunião, o qual, segundo referem os jornaes, foi:
_Affirmar a adhesão do sr. marques de Vallada á monarchia_.
* * * * *
Achamos extremamente louvavel e digno de ser imitado por todos os
fidalgos portuguezes o exemplo dado pelo sr. marquez de se sacrificarem
pelo throno ao ponto de não hesitarem um momento, para o salvar, em
irem ... para a mesa!
Os vossos avós, quando queriam dedicar-se ao esplendor da corôa iam
bater-se em Arzilla, em Ormuz, em Ceuta, em Tanger, descobriam terras,
venciam batalhas, conquistavam reinos.
Quereis provar-nos que ainda guardaes nos vossos archivos as antigas
cartas do roteiro dos mares? Que ainda tendes nas vossas panoplias as
duras armaduras e as famosas lanças dos vossos maiores? Muito bem! Visto
que não podeis refazer o que está já feito por elles, começae pelo menos
a realisar o que elles tantas vezes omittiram: jantae!
E a corôa verá, pela maneira como vos mostrardes aptos para comer,
quanto sois capazes de amar.
Assim como o Castro forte dizia que por cada pedra da fortaleza de Diu
elle daria um filho, mostrae vós que por cada perna de perú trufado
sereis capazes de dar um avô. E o soberano, jubiloso e grato,
contemplando por cima da gloriosa terrina da historia contemporanea, os
feitos valorosos dos vossos garfos invenciveis, apreciará os vossos
titulos de immortalidade, discriminando, no ardor e na confusão das
refregas, os que se lhe dedicam até ao pato com arroz, os que o
estremecem até ao frango com hervilhas, os que o idolatram até ás
salchichas com couve lombarda!
* * * * *
Mas por Deus, meus senhores, consenti que vol-o repitamos: Não excluaes
dos agapes patrioticos com que preparaes a entranha para a communhão
monarchica, o doce elemento feminino, o melhor encanto do triumpho, o
mais alto premio do heroismo, o mais precioso complemento da gloria! Se
a prosmicuidade dos sexos insuperavelmente vos repugna, que alguns de
vós pelo menos se sacrifiquem ás conveniencias da arte, ás prescripções
do bello, e salvem sequer as apparencias--vestindo-se de mulheres!
Animo, senhores commandantes dos corpos! animo, senhores officiaes
maiores! animo, senhores ministros de estado! É por ellas, que vos
pedimos isto, pelas que tiveram sempre o seu logar nas nossas gloriosas
tradicções dymnasticas! Lembrae-vos d'ellas, e ide lançar-vos aos pés da
Aline! Lembrae-vos d'ellas, e consenti em decotardes os vossos hombros!
Elanguescei, meus senhores, reclinae meigamente as frontes, cerrae
levemente as palpebras, agitae um pouco os vossos leques, dae suspiros,
ponde tações de setim escarlate, vinde de cuia! e, sobretudo--não o
esqueçaes--trazei _tournure_ ... Que vos custa trazer _tournure_? Uma
coisa tão facil, que se traz como as patronas!
É pelo throno, pelo mesmo throno de que vos declaraes adeptos, que vos
supplicamos isto! é pelas vossas excelsas e augustas soberanas, não
representadas no vosso banquete ... Em nome de Mecia Lopes, meus
senhores! Em nome de D. Urraca!
* * * * *
A imprensa de Lisboa não tem opinião. Aquelles dos seus membros que por
excepção presentem as idéas proprias, vivas, originaes zumbindo-lhes
importunamente no cerebro, enxotam-as como vespas venenosas. É que a
missão do jornalismo portuguez não é ter idéas suas, é transmittir as
idéas dos outros. Por tal razão em Lisboa o homem que pensa não é nunca
o homem que escreve. O jornalista nunca se concentra, nunca se recolhe
com o seu problema para o meditar, para o estudar, para o resolver.
Nunca procura a verdade. Procura apenas a solução achada pelo publico,
pelo publico d'elle, pelo seu partido politico, pelos consocios do seu
club, pelos seus amigos, pelos seus protectores, pelos seus assignantes.
Portanto trabalha na rua, debaixo da arcada do Terreiro do Paço, nos
corredores ou nas tribunas de S. Bento, no Chiado, no Martinho, no
Gremio. Como trabalha? Trabalha d'este modo: _informando-se_;--é o termo
technico. Uma vez informado, o jornalista considera-se instruido. Desde
que tem a informação recebida tem o jornal feito. O que elle vos escreve
hoje--notae-o bem--é o que vós lhes dissestes hontem. O jornal não é uma
fonte de critica, de analyse, de investigação. O jornal é o barril de
transporte das idéas em circulação, das soluções previamente recebidas e
approvadas pelo consenso publico. O jornalista é o aguadeiro submisso e
fiel da opinião. Não a dirige, não a corrige, não a modifica, não a
tempera. O unico serviço que lhe faz é este: transporta-a dos centros
publicos aos domicilios particulares. O publico é a nascente, é o veio,
é o manancial; a imprensa periodica é simplesmente--o cano.
* * * * *
Essa é a lei geral da conducta da publicidade em Portugal. Toda a
transgressão d'essa lei é um eminente perigo para o que a commette. O
leitor portuguez não quer que o seu livro ou o seu periodico o obriguem
ás fadigas da discussão e da controversia com o seu proprio espirito. A
conquista desinteressada e pura da verdade não tem attractivo algum para
as suas faculdades. As curiosidades e os interesses especiaes da alma
portugueza repastam-se no sentimento: a reflexão molesta-a. Entre tantos
escriptores nacionaes nunca houve um pensador. Descartes, Spinosa, Kant
seriam inteiramente impossiveis no seio d'esta sociedade, a que falta a
respiração logo que a tirem da rotina. Não se lhes dá, aos leitores
portuguezes, de verem a verdade, mas querem a verdade atravez da
opinião. Ninguem pensa fóra das materias da ordem do dia. «Que ha de
novo?» é a nossa pergunta de todas as manhãs. Esta phrase profundamente
caracteristica quer dizer: «Dêem-me a senha e a contrasenha; digam-me em
que pensam para eu saber o que hei do pensar.» O meu jornal vem bom ou
vem mau segundo é ou não é em cada dia a expressão das minhas convicções
baseadas em idéas preconcebidas na convivencia do publico. O criterio é
substituido pelo _mot d'ordre_.
Se n'um tal meio intellectual apparece um miseravel solitario, que não
tem um partido, que não tem um centro, que não tem um _club_, que não
tem sequer um botequim, mas que, não obstante, segue os successos do seu
tempo e exprime a respeito d'elles uma opinião absolutamente individual,
isto é--livre, sobre esse homem cáem todas as suspeitas, todas as
presumpções malevolas que acompanham atravez de uma multidão apalavrada
um intruso mysterioso e sinistro. Tal é a especie de acolhimento que por
differentes vezes nos tem sido feito e que mais particularmente nos foi
manifestado depois da publicação do nosso ultimo numero a proposito de
dois artigos, um consagrado ao sr. Alexandre Herculano, outro destinado
á casa de correcção installada no convento das Monicas.
* * * * *
Lemos alguns dos artigos que nos foram consagrados, e achamo-nos
inteiramente edificados ácerca do nosso desacato ás instituições
publicas e da nossa irreverencia com as glorias nacionaes.
Sómente, meus senhores, uma coisa nos parece ter-vos esquecido, e é:
demonstrar-nos que a reverencia das instituições e o respeito das
celebridades gloriosas seja um instrumento de critica ou um meio de
analyse. Porque nós--talvez o não tenhaes comprehendido bem--nós não
somos propriamente os mestres de ceremonias da geração a que
pertencemos. Não estamos aqui a leccionar mesuras nem a praticar
experiencias sobre a variedade das curvas mais ou menos inclinadas a que
se nos presta o espinhaço. Nós somos apenas uns simples chronistas do
tempo que vamos atravessando. Somos os contribuintes especiaes do mez
para a historia geral do seculo. Ora não será pondo-nos humildemente de
cocoras no chão que nós veremos de mais alto as coisas e os homens. No
exame e na apreciação dos factos o minimo vislumbre do respeito é um
perigo da verdade. Michelet, demolindo no seu ultimo livro a legenda
napoleonica filha da reverencia da historia pelo falso heroismo de
Bonaparte, mostra-nos que a fascinação grosseira produzida pelo «heroe
de Marengo e de Austerlitz» teria cahido perante o bom senso e perante a
gargalhada, se a França não tivesse perdido, depois do Terror, o riso, a
sua grande arma contra os tyrannos.
O primeiro dever da critica diante dos grandes acontecimentos e dos
grandes personagens é simplesmente o despreso ou a zombaria ... Michelet
diz mesmo «o sacrilegio» como instrumento da verdade! e aconselha-nos
que imitemos como historiadores o exemplo de Renaud de Montauband
pegando n'um tição para barbear Carlos Magno.
* * * * *
De resto, meus senhores, para que se mantenham na decencia do culto as
tradições patrioticas, parece-nos inutil que nós nos occupemos d'isso.
Lá estaes vós, diligentes e sollitos, para espanardes as teias da aranha
aos velhos principios, para varrerdes as instituições veneraveis, e para
conservardes em bom estado os heroes e os sabios, limpando-lhes as golas
das sobrecasacas, engraxando-lhes os sapatos e pondo-lhes rapé novo no
nariz.
* * * * *
Chegámos tarde para fallar da grande tragedia monumentosa do
Mexilhoeiro. O paiz inteiro se pronunciou já sobre este caso, o maior da
historia contemporanea. O facto tem sido largamente tratado em artigos
de jornaes, em folhetins, em trechos de romance, em pias legendas, em
dramas, em _te-deuns_ cantados em todas as cathedraes, em polkas
expressivas, em missas rezadas em todas as egrejas, em felicitações de
todos os municipios, em sentimentaes mazurkas.
Uma só coisa nos parece que falta, e é a que propomos: um monumento que
eternise tão alto successo, levando ás gerações vindouras esta lapide:
AOS MOLHADOS
POR UMA FRIA TARDE
NO PEGO DO MEXILHOEIRO
A GLORIA
RECONHECE N'ESTE MONUMENTO
OS IRREFRAGAVEIS DIREITOS
DE TÃO ILLUSTRES VICTIMAS
Á
CONSTIPAÇÃO
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