As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-10/11) - 2

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um exemplo que se tornou escola de muitos escriptores e poetas
italianos, Manzoni, em primeiro logar, escrevia para esse fim livros
adoraveis,--e que vós, meus queridos senhores não resolvestes ainda
começar a fazer na vossa officina religiosa da rua da Picaria. Em
segundo logar Manzoni considerava a idéa religiosa como um elemento de
emancipação e de regeneração para a Italia então opprimida e
escravisada. Finalmente Manzoni não tinha por fim especial glorificar os
padres, arregimental-os, armal-os, pôl-os em pé de guerra, como o está
fazendo a associação catholica portuense. Pelo contrario, Manzoni sabia
que os padres italianos do seu tempo eram, como Cantú os descreve tomado
do mais santo horror: «glutões, avaros, estupidos e bandidos». O perfil
ideal do padre Borromeu nos _Promessi Sposi_ não tinha pois a intenção
de um retrato, era o estabelecimento de um novo nivel para a opinião,
era um exemplo, era uma lição dada pelo modo delicado e brando com que o
desgosto profundo inspirára a alma candida e honesta do piedoso
escriptor.
Feita assim, n'estas circumstancias, n'estas condições, por estes meios,
eu comprehendo a propaganda catholica, e inclino-me respeitosamente
diante dos que a servirem e a promoverem. Não me parece todavia que seja
esse o caso da Associação catholica portuense, nem no que diz respeito
aos fins que ella se propõe, nem no que toca aos meios que emprega para
conseguir o seu fim.
* * * * *
Que pretende a associação catholica?
Libertar a patria, chamal-a á independencia, fortificando com o
sentimento religioso a fé patriotica, como fizeram Manzoni, Rosmini,
Gioberti, Balbo e outros na Italia invadida pela dominação? Não, porque
Portugal, é por emquanto independente e livre.
Estabelecer a cathechese? Diffundir a moral? Regenerar os costumes? Não,
porque, não sendo publicas as sessões da associação e não tomando parte
n'ellas senão os mesmos associados, pessoas cujos costumes e cujas
crenças religiosas foram d'antemão affiançados, estes acham-se
satisfatoriamente moralisados e instruidos.
Educar o clero, aprestando-o para uma influencia mais directa e mais
proficua nos interesses da cidade ou nos interesses do ceu? Tambem não,
pelas razões seguintes:
Os padres portuguezes acham-se todos incluidos em uma d'estas tres
classes:--os indifferentes, os liberaes e os reaccionarios.
O padre indifferente vive obscuro e tranquillo no fundo de uma aldeia
entre a sua lavoira e o seu campanario. Baptisa as creanças, confessa
os adultos e absolve os que morrem. Se não forem todos para o ceu, a
culpa não é d'elle. Cartilha e bons conselhos propina-lh'os todos os
domingos depois da missa conventual; se os não tomarem para seu bem, lá
se avirão com o demonio no outro mundo e cá na terra com o regedor. De
resto elle cava a sua horta, é grande madrugador, deita-se com as
gallinhas, diz a missa ao romper d'alva, caça a perdiz no inverno e
pesca os barbos no verão. Além de um bocado de breviario, não lê senão
um repertorio para estar ao facto das luas e saber quando convém
alporcar as pereiras e semear os pepinos. Bom homem, rijo, satisfeito,
sanguineo, infatigavel companheiro na caça e na mesa, se tentardes
esgrimir com elle algumas idéas politicas ou religiosas, algumas
subtilezas de critica, de controversia, terá tonturas, arregalará os
olhos, ouvír-se-lhe-hão rugidos interiores e não sentirá senão um
desejo: o de vos açular ás pernas os seus cães e cascar-vos pela cabeça
com o seu grosso marmeleiro argolado.
O padre liberal habita as cidades, lê os periodicos, intervém em
eleições, frequenta os botequins e as casas de jogo, fuma cigarros, e
protesta vigorosamente contra a reacção e contra o jesuitismo, trazendo
os dedos amarellos e tomando medicamentos secretos.
O padre reaccionario anda quasi sempre de loba; tem os olhos baixos, o
passo miudo e commedido, o sorriso contrafeito como uma coisa azeda
misturada com assucar; gordura fria e pallida, um tanto sinistra; mãos
brancas, suadas, viscosas; pés moles, de pato, arrastando. O
confissionario é para elle uma vocação, um destino, um prazer: é a sua
arte. Algumas vezes mobila-o com certo luxo, introduz-lhe um sophá e
abastece-o de viveres: uma lata de pão de ló e copos com geléa. É ahi
que elle escuta, de olhos meio cerrados e mãos crusadas no peito, as
confidencias secretas das mulheres, os casos encobertos ás mães e aos
maridos, os inveterados vicios escondidos e os grandes crimes occultos,
as obras e os pensamentos, os alvoroços da carne no meio da penitencia e
da oração, as tentações do inimigo, os ardentes desejos diabolicos, os
pungentes escrupulos de alcova, a grande tragedia intima dos mysticos e
dos solitarios. Elle escuta, manda repetir, inquire, investiga, indaga,
minucia por minucia, as circumstancias que aggravam e as circumstancias
que attenuam; disseca o peccado, desfibra-o musculo por musculo, nervo
por nervo, arteria por arteria; depois reconstitue-o, recompõe-o,
inteira-o, evoca-o, fal-o resurgir nos olhos da penitente--para a
moralisar com a enormidade do erro. A culpa, assim rediviva pelos
retoques finos, dialecticos, incisivos do stylo theologico e casuistico
dos commentadores do Decalogo, a culpa repintada com essa arte mais
sabia, mais poderosamente minuciosa que a de todos os modernos
romancistas psychologos dos vicios torpes e vergonhosos, cinge outra vez
a peccadora, collêa-se estreitamente com ella como a serpente do Eden,
envolve-a nas suas espiraes, penetra-a da sua essencia magnetica,
communica-lhe a electricidade dos seus filtros. É então, n'esse momento
terrivel de crise, nevralgico, histerico, allucinado, que elle critica
friamente, com uma analyse perpendicular, dominadora, arbitra da
commoção; e consola, aconselha, admoesta, subjuga, domina, e absolve ou
condemna, elle, elle em nome do Creador, a fragil creatura desmaiada aos
seus pés. O padre reaccionario faz parte da grande centralisação
catholica, é uma das rodas do grande machinismo, vive no systema de
partido como na obediencia e na regra de um instituto. Não pensa nem
discute. O seu rumo está tomado; segue-o apezar de tudo, atravez de
tudo, como um boi abre um rego, com os olhos tapados. Tem heranças de
velhas devotas, avultadas esmolas de missa, frequentes presentes de
confessadas. Vende agua de Nossa Senhora de Lourdes ou de La Salette.
Cobra os dinheiros de S. Pedro e remette-os para Roma, assigna a
_Nação_, e quasi sempre é rico.
Dos padres d'estas tres categorias quaes são aquelles que a associação
Catholica influe, aconselha ou dirige?
O padre obscuro nem mesmo sabe que tal associação existe. O padre
liberal é seu inimigo e adversario intransigente. Resta-lhe o padre
ultramontano.
Ora este ultimo padre é o ôvo de que a associação Catholica é a ave.
Ella não o modifica, não o educa, não o adverte, não o illustra. Faz-lhe
simplesmente isto: choca-o. Depois, quebrada a casca do sr. padre Couto,
o sr. conde de Samodães apparece.
* * * * *
A associação Catholica celebra periodicamente reuniões, a que chama
academias. Que se faz n'estas reuniões frequentadas por muitas senhoras
da primeira sociedade portuense, o que ha de mais digno, de mais
inviolavel e de mais sagrado?
Relevem-nos este ponto de interrogação, que não tem de nenhum modo a
impertinencia de uma pergunta e deve apenas ser considerado da nossa
parte como um simples ponto de perturbação e de pasmo.
Se os homens estivessem sós comprehendemos que as reuniões da associação
Catholica fossem para elles um meio do repousarem suavemente das fadigas
temporaes, dos enganos do mundo, das illusões e das vaidades do seculo.
Concebemos perfeitamente que depois de terminados os seus negocios,
assignada a sua correspondencia, pagas as suas lettras, despachadas as
suas mercadorias, fechada a sua caixa, comido amplamente o seu jantar,
saboreado o seu café e o seu _kumel_, elles encerrassem o seu dia
juntando-se todos fradescamente, sem etiqueta, sem cerimonias de
elegancia nem de _toilette_, e que, em seguida, descalçassem as botas e
dissessem: «Ora dissertemos lá um bocado sobre a immortalidade da alma!»

Mas, com senhoras, com senhoras elegantes e bellas, que hão de apear-se
das suas carruagens, depôr os seus burnous no _vestiaire_ e penetrar no
salão, sob o gaz, n'uma onda scintillante de setim e de renda, que farão
os homens?
Hão de se ter espalhado na athmosphera os perfumes da _toilette_, os
murmurios dos vestidos, os reflexos das joias e as confusas palavras
finas, magneticas, que susurram sob a palpitação dos leques. Suppomos
que não ha orchestra nem piano, de modo que as pessoas devotas não
poderão dirigir-se immediatamente ao sr. padre Couto para que as faça
valsar; não estarão patentes os ultimos telegrammas dos successos de
Hispanha; não haverá um serviço de gelados trazido em bandejas de prata
por criados de calção curto: não se terá á mão um numero da
_Illustração_ nem um album que se folheie ...
Estranha perplexidade!
Tem um simples associado de abotoar as suas luvas, de adiantar um
_fauteuil_, de se aproximar de um grupo e de lançar um assumpto pela
seguinte fórmula: «Minha senhora, será vossencia assaz boa para querer
fazer-me a honra de me dizer se já tem interlocutor para uma breve
dissertação sobre os novissimos do homem?»
Ou talvez que haja uma organisação parlamentar para a distribuição dos
assumptos e para a ordem das discussões. E n'esse caso, reunido o
claustro pleno, será o sr. conde de Samodães quem abrirá as sessões,
persignando-se, tocando a sua campainha e dizendo:
--«Dou a palavra ao relator da commissão encarregada de dar o seu
parecer ácerca das Divinas Pessoas da Santissima Trindade. Meus senhores
e minhas senhoras, está em discussão o Espirito Santo.»
* * * * *
Porque emfim, meus senhores, celebrando como catholicos as vossas
academias religiosas, das duas coisas uma: ou vós estabeleceis a
controversia e discutis os canones e os dogmas, ou não a estabeleceis e
não os discutis.
No primeiro caso usurpaes os poderes que só competem aos concilios,
entregaes aos debates da razão as materias de obediencia e de fé e cahis
no racionalismo heretico.
No segundo caso, reunidos em nome de Deus, vós não tendes o direito de
fazer senão uma coisa: elevar humildemente ao ceu os vossos espiritos e
prostrar-vos na penitencia e na oração.
Mas para os exercicios da oração e da penitencia vós tendes a egreja
para rezar e a solidão no interior das vossas casas para meditar o
arrependimento. Para similhantes effeitos congregar os fieis nos salões
da rua da Picaria é desviar dos templos a corrente natural da devoção e
arrancar do interior da familia o saudavel recolhimento dos propositos
bons.
Eu creio profundamente que entre vós existem homens dignos, honrados, de
uma piedade limpida, com as mais rectas intenções de espirito e de
consciencia. Acredito mesmo que essas almas, timoratas mas boas,
constituem a grossa maioria dos vossos consocios. Por isso vos consagro,
passando, esta palavra séria:
Nada mais funesto para os costumes do que ensinar ás mulheres que ha
instituições especiaes para o serviço de Deus, para a conquista do ceu,
para a remissão da culpa. O posto digno da mulher christã é em sua casa
ao pé dos seus filhos. Os exercicios espirituaes e as contemplações
mysticas escurecem a alegria domestica, alvoroçam a virtude, perturbam a
consciencia. Na sociedade actual a mulher pertence, integralmente, com
toda a responsabilidade do seu destino, á missão sublime da regeneração
do homem pela attracção do lar. Desviar sob qualquer pretexto que seja
a attenção da mulher dos interesses da familia é commetter para com a
moral um sacrilegio. A casa conjugal tambem é um templo, e a maternidade
é uma religião.
* * * * *
Meus senhores, tenho procurado tanto quanto me tem sido possivel ser
amavel comvosco, tomando para vos observar todos os pontos de vista.
Olho-vos como christão, olho-vos como catholico romano, olho-vos como
cidadão, olho-vos como simples espectador, como _dilettante_. De todos
os modos vós me pareceis ou incongruentes, ou ridiculos, ou absurdos.
Todavia, meus senhores, depois de tão exactas observações, eu não
concluo que dissolvaes o vosso synodo e que vos retireis para vossas
casas. Os senhores liberaes, que vos combatem, são egualmente
incongruentes, egualmente absurdos e um pouco mais comicos do que vós, e
os senhores liberaes tambem se não retiram.
Elles dão morras ao papa, chefe supremo da religião catholica e todavia
continuam a dizer-se catholicos. Odeiam e guerreiam os padres e no
emtanto continuam a entregar as suas mulheres aos confissionarios e as
suas filhas á cathechese. Insultam a theologia do vosso jornal a
_Palavra_ mas não acceitam com elle a controversia porque não sabem
theologia. Não lhes importa o irem para o inferno, mas não querem ir
para o Carmo. O seu atheismo leva-os a quererem «esmagar o infame» como
elles mesmos dizem, mas com a clausula de não molestarem com essa
operação os calos do sr. Bento de Freitas, governador civil, ou do sr.
Pinto Bessa, presidente da camara. Ultimamente vós festejaveis com um
_Te Deum_ na egreja da Sé o anniversario de Pio IX: estaveis
inteiramente no vosso direito e na logica dos vossos principios. Elles,
em vez de combaterem com uma affirmação de sciencia a vossa protestação
de fé, esperaram-vos á porta da egreja, deram vivas á liberdade, a
Victor Manuel e a Garibaldi e alguns morras ao Papa infallivel. Foi com
esta elevação de critica que analysaram o Concilio do Vaticano, consti.
4.ª cap. IV _De infallibilitate romani pontificis magni_, a qual
constituição nunca leram. A policia interveio, espancou varias pessoas,
prendeu varias outras, e eis em resumo o que os periodicos liberaes
chamam os conflictos da liberdade e da reacção religiosa na cidade do
Porto!
Profundas graças ao Altissimo, que não são inteiramente estas as
circumstancias que determinaram as antigas crises do poder entre os
burguezes do senado do Porto e os poderosos barões feudaes da Sé
portuense ou do balio de Leça! Os srs. padre Rademaker e padre Couto não
afivelaram os arnezes de aço dos antigos bispos e dos freires
hospitalarios, não reuniram os seus sergentes e homens d'armas, não
mandaram erguer as levadiças dos seus paços acastellados nem
desembainharam as suas espadas famosas ... Não, elles apenas entoaram a
ladainha de todos os santos, e prometteram, não excursões armadas sobre
os rebeldes dos seus feudos, mas sim jubileus e bençãos telegraphicas
aos seus adeptos.
Ora não vemos realmente em que estas coisas possam atterrar a liberdade
e sobresaltar o paiz.
É singular esta coincidencia:
O clero catholico tem hoje em toda a Europa o papel sympathico. Os
unicos paizes do mundo em que ainda se gosa a liberdade religiosa são os
paizes catholicos. Na Russia, na Allemanha, temos o despotismo e a
perseguição protestante. O sr. de Bismark prende, processa e desterra
os sacerdotes catholicos. No novo imperio do rei Guilherme, o
patriotismo reforça-se na religião do estado; a recente legislação
allemã submette todos os casos de disciplina ecclesiastica e todas as
deliberações episcopaes ao poder civil, e prohibe o clero sob as mais
severas penas de cumprir preceitos que dimanem de qualquer auctoridade
ecclesiastica estranha á nacionalidade allemã.
Ferida violentamente na sua liberdade, perseguida pela força, a egreja
catholica--quem o diria!--appella para as garantias espirituaes e quer a
distincção dos poderes como salvaguarda da liberdade. Na Allemanha os
ultramontanos mais ardentes fortificam-se nos seus ultimos
entrincheiramentos pedindo como Cavour a egreja livre no estado livre. A
tal estado chegou desprestigiado e abatido o antigo poder clerical!...
Elle já não quer exercer a sua velha tyrannia, contenta-se em não
supportar a perseguição; e, como todos os martyres, pede a liberdade
como o extremo refugio das consciencias apavoradas.
Violentamente ferida no coração, perseguida pela força, a egreja
apresenta esse symptoma infallivel da sua suprema dôr--o grito das
garantias espirituaes, o appello em ultima instancia para a distincção
dos poderes.
Pio IX, fortificado no Vaticano, como n'uma cidadella gloriosa,
desmoronada e vencida, posto que respeitada, soffre as ultimas
consequencias fataes da sua politica, e, indomavelmente pertinaz e
corajoso, esse velho batalhador veneravel, despojado da sua corôa
temporal, arroja aos vencedores o derradeiro desafio do seu despreso,
arvorando impavidamente o dogma e metralhando com as excommunhões a
opinião liberal em ultimo sacrificio a uma causa perdida.
É curioso até o ponto de se tornar ligeiramente comico que seja este o
momento escolhido pela burguezia portuense para começar a apontar-nos a
egreja catholica como um perigo para a liberdade!
No Porto os livres pensadores da calçada dos Clerigos principiam agora a
receiar que os catholicos da rua da Picaria assoberbem e esmaguem sob a
desmaiada e quasi esvahida legenda pontificia o poderoso mundo
scientifico moderno.
Pela sua parte vós, catholicos da Picaria, reunis as vossas mulheres e
as vossas filhas, entoaes ladainhas e procuraes com preces e com
penitencias desaggravar a divindade offendida com as invectivas dos
periodicos liberaes--no que nos parece que confundis tambem um pouco a
religião com a sacristia, e tomaes frequentemente o sr. padre Couto pelo
Padre Eterno. É o vosso erro. No entanto ficae no vosso posto. A
civilisação precisa de vós, não como elemento reconstituinte, mas como
producto lachante. A sciencia estima-vos ... como droga. O velho mundo
invoca a vossa assistencia para o ajudar a morrer, para o enterrar. Para
mim, que acabo de vos discutir como fazendo eu mesmo parte do meio
burguez em que existis, vós sois certamente um absurdo. Perante a
philosophia vós sois porém uma necessidade historica. Nos annaes do
progresso transcendente do espirito humano o vosso nome ha de ficar como
o curioso epitaphio de uma geração que se extinguiu ha tresentos annos.
Porque a verdade é que vós representaes as idéas do seculo XVI.
A associação catholica do Porto instituiu-se para quê? Vós mesmos o
estaes dizendo todos os dias: Para salvaguardar a fé religiosa da
corrente invasora do scepticismo moderno.
Pois bem, meus senhores, foi esse mesmo scepticismo, cuja corrente vós
pretendeis hoje reprimir ou recuar, o que produziu a grande revolução
scientifica do seculo XVII e toda a civilisação subsequente até os
nossos dias.
O scepticismo é o estado de espirito que medeia entre a superstição e a
tolerancia. Ha mais de um seculo que nenhum pensador grave se intromette
na vossa controversia theologica. Ninguem vos combate, ninguem mesmo vos
discute. O mundo novo está já na tolerancia, quando vós combateis ainda
o scepticismo de que a tolerancia é o fructo!
Duvidar, meus bons amigos, é exercer uma das mais poderosas e mais
fecundas faculdades da razão humana. Para chegar á verdade não ha senão
esse caminho: a duvida. Para chegar a Deus, que não é outra coisa senão
a expressão theologica da verdade, o unico meio é tambem esse: a duvida.
Primeiro que tudo duvida-se, depois aprende-se, por fim descobre-se. Tal
é a marcha invariavel dos espiritos na sua grande ascensão do imperfeito
para o absoluto.
O mesmo christianismo não poderia nunca ter principiado a existir se não
o tivesse precedido a duvida nas consciencias da antiguidade pagã.
Antes de acreditar em Jesus Nazareno o homem teve que duvidar de Jupiter
Capitolino. A tradicção christã é uma conquista do scepticismo antigo. A
duvida foi a primeira e a mais augusta expressão da revelação divina.
A duvida tem sido em todos os tempos a luz immortal e a guia suprema do
entendimento humano. Foi a duvida quem levou Colombo ao novo mundo,
Copernico e Newton á astronomia, Boyle e Pascal á hydrostatica, Galyleu
á mecanica e Lavoisier á chimica.
Se nas profundidades da nossa alma o scepticismo não tivesse existido
sempre como uma indomavel força inextinguivel de perfectibilidade
indefinida, a sciencia astronomica não viria occupar o logar da
astrologia, a physica e a chimica não substituiriam a alchimia, e a
imagem de Christo crucificado não succederia nos altares do Vaticano ás
estatuas dos dois mil deuses da Roma antiga.
Quereis a definição precisamente scientifica do scepticismo? Ouvi
Buckle, o historiador da civilisação: scepticismo é a difficuldade de
crer; de sorte que o scepticismo que se augmenta é a percepção
augmentada da difficuldade de provar asserções, ou, n'outros termos, é
a applicação augmentada e a diffusão augmentada das regras do raciocinio
e das leis da evidencia. Esse sentimento de hesitação é em todo o campo
do pensamento o preliminar invariavel de todas as revoluções
intellectuaes por que tem passado o espirito humano; sem o scepticismo,
progresso, mudança, civilisação, tudo seria impossivel. Na physica é
elle o precursor necessario da sciencia; na politica o precursor da
liberdade; na religião o precursor da tolerancia.
Ora defendendo a integridade da fé, vós fazeis á philosophia este
serviço relevante: suggeris a duvida, procuraes accordar a razão
individual, a qual nunca em nenhum outro meio social se desenvolveu tão
larga e tão arrojadamente, como no seio da egreja christã, a qual apezar
de todos os seus erros e dos seus mesmos crimes, tem sido sempre o mais
forte nucleo da vida moral e o mais alto objecto de todos os grandes
desenvolvimentos da intelligencia e da vontade.
De resto entendo que o Porto, esse feliz e arrojado industrial, vos deve
ser especialmente grato e reconhecido, porque vós o dotastes com um
estabelecimento que Lisboa ainda não possue--A associação catholica da
rua da Picaria,--a qual, á similhança dos antigos moinhos do Tibet e das
cabaças rotatorias dos Kalmuks, assegura á commodidade dos habitantes um
systema permanente, uma especie de moagem mechanica, com motuo continuo,
de adorações e de preces.
* * * * *
Algumas das familias que durante a estação finda se achavam a banhos de
mar em Pedrouços, resolveram de uma vez fazer uma festa nocturna,
mysteriosa, venesiana. Tomaram um vapor da carreira de Belem,
illuminaram-o com balões de papel como as gondolas do canal da Zueca que
deslisam em frente dos terrassos do palacio Barbarigo no primeiro acto
da _Lucrecia_. Para que a commoção de todas as pessoas que tomaram parte
n'esta scena fosse profunda e illimitada, os homens tinham-se
apresentado todos vestidos como os tenores nas scenas de _barcarola_. O
jubilo era indescriptivel.
Reunida a bordo toda a sociedade, o vapor levantou ferro, e penetrou na
treva, vibrante de aventura, saturado de drama, na direcção de
Caparica.
O Tejo porém estava grosso e picado, de modo que começou a dar ao vapor
uns balanços intermittentes para um lado e para o outro como de quem
escabacea com somno. Com isto principiaram a manifestar-se com uma
insistencia progressiva os symptomas spasmodicos nos esophagos da
assembléa. Os Mazaniellos, verdes como azebre, tristes como condemnados
á morte, procurando sorrir á catastrophe com sorrisos dilacerados como
os que apresentam os cotovellos rotos, enrolavam-se nas suas capas e
prostravam-se como trôchos inuteis nos bancos da tolda. As senhoras
punham os seus lenços na bocca, corriam a mão pela testa, cuspiam
desconsoladamente no mar, e tinham ligeiros movimentos extaticos e
doloridos como de quem está escutando no ar o rumor de uma angustia que
chega.
Então o sr. Mathias Ferrari, segundo lemos no _Diario de Noticias,_ «fez
correr um abundante serviço de neve». Todos se serviram.
Os effeitos foram taes que quando os criados repassaram com a segunda
roda de sorvetes, todos os convivas, com as boccas ainda abertas,
estremeceram de horror, porque cuidaram que esses segundos gelados eram
outra vez--os primeiros.
Então um homem forte, que tinha ido para bordo armado de um violão,
tentando arrancar a companhia a uma consternação abatida e geral,
começou, a dedilhar o instrumento e a entoar uma chacara. Mas, de
repente, suspende-se, torce-se, arripiam-se-lhe os cabellos,
encurva-se-lhe a espinha dorsal, cae-lhe o violão desfallecido nos
braços das senhoras, e o resto da chacara destinada aos eccos nocturnos
do oceano e recolhida pelos circumstantes n'uma bacia.
Era immenso a bordo o desalento.
Mathias Ferrari, descorçoado, abatido, já «não fazia correr os
serviços.» Este grande confeiteiro, dominando inteiramente a situação
com a profundidade da sua critica, comprehendera--e muito bem!--que a
questão ali já não era de _fazer correr_, mas de _fazer parar_.
Era alta noite quando o vapor abicou outra vez á praia de Belem,
recolhendo-se todos perfeitissimamente satisfeitos pelo modo como se
passara tão bello tempo. Apenas, para que desembarcassem, houve o
pequeno trabalho de virar os que tinham assistido a esta festa, a mais
brilhante talvez que se tem dado no Tejo, por que os convivas em virtude
dos reiterados exforços que tinham feito no mar para puxar para fora o
interior, succedera-lhes terem-o effectivamente conseguido, e haverem
chegado todos a terra--pelo avesso.
* * * * *
Com a mais extranha commoção lemos ultimamente que fôra nomeado aio de
sua alteza o principe real sua ex.ª o sr. Martens Ferrão, abalisado
jurisconsulto e procurador geral da corôa.
* * * * *
É talvez uma bem perigosa temeridade da parte de prosaicos e obscuros
burgueses como nós somos o atrevermo-nos a meditar um momento no que
possam ser perante a educação e perante a sciencia as attribuições
especiaes de um aio junto de um principe. Todavia--debalde procurariamos
escondel-o--em presença de similhante assumpto, profunda e illimitada é
a confusão do nosso espirito. Por isso que, por mais assignaladas que se
nos representem as differenças que devem distinguir o alto e poderoso
filho de um monarcha do mero filho de um fabricante de velas de cebo,
nunca, por maiores que sejam na direcção do infinito os arrojos da nossa
phantasia curiosa, nunca podemos chegar a alcançar, nem pelas
presumpções mais vagas nem pelas mais remotas suspeitas nem pelas mais
affastadas conjecturas, qual o emprego pratico e effectivo que possa dar
um principe aos prestimos de um aio. Para satisfação de que
necessidades, de que conveniencias ou de que simples formalidades, em
que condições, em que circumstancias, em que especial momento da
preciosa e augusta vida do real infante vae sua excellencia o aio á
presença de sua alteza o principe?!... Nós o ignoramos.
Porque, quando as ordens de sua alteza procedam das necessidades do seu
espirito, das curiosidades da sua intelligencia, dos interesses da sua
instrucção, sua alteza pedirá naturalmente algum dos seus mestres ou
algum dos seus livros, e a sua alteza será então applicado um professor
de linguas, um compendio do sr. João Felix ou um numero do _Diario de
Noticias_. Quando os desejos manifestados por sua alteza dimanem das
urgencias physicas da sua naturesa, das fatalidades animaes do seu
organismo ou do seu temperamento, sua alteza pedirá o seu banho, o seu
jantar, as suas pastilhas ou o seu escarrador; e então os camaristas de
sua alteza, as suas aias e os seus escudeiros cumprirão os desejos de
sua alteza.
E não vemos, nem na ordem physica, nem na ordem moral, nem na ordem
inlellectual das relações de sua alteza com o mundo externo, a
necessidade, a conveniencia ou a plausibilidade da intervenção do aio.
A não ser que a concorrencia d'esta legendaria entidade methaphysica se
deva considerar nos reaes paços como um acepipe _hors d'oeuvre_ ou como
um objecto supplementar de recreio, porque então comprehendemos de certo
modo que ao serviço particular de sua alteza um camareiro exclame:
«Está o _lunch_ na mesa: ha _galantine_, rabanetes e o sr. Martens
Ferrão com salsa picada e manteiga fresca.» ou então: «Eis os brinquedos
de sua alteza: aqui está a bola de guttapercha e a caixa com o sr.
Martens Ferrão de engonsos.»
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