Orpheu Nº1 Revista Trimestral de Literatura - 3

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Flautas ao longe foram teus sentidos.
E as tuas mãos ao desfiar vestidos
Dormiram franjas em doiradas saias.
A tua Sombra o seu olhar perdeu...
Não sei se não serás um gesto meu,
Um gesto de meus dedos longos, frios...
Não sei quem és... Meus olhos esquecidos
Sentem-te em mim, dormir nos meus sentidos...
Meus sentidos, arcadas sôbre rios...


_SALOMÉ_

I
Dançava Salomé sôbre mistérios idos.
--Tarde bronze a morrer. Poente em véus vermelhos--
Os seus sentidos, longe, eram bailados velhos,
E o seu Corpo, a bailar, é que era os seus sentidos.
Dançava Salomé nas suas mãos morenas
Que eram salões de seda, a descerrar o hábito.
E Ela quando se via era o seu próprio hálito,
E o Corpo no bailado era uma curva apenas.
Dançava Salomé.--E os seus olhos ao vê-la,
Cerravam-se leões com mêdo de perdê-la,
Leões bebendo luz na luz dos olhos seus...
Não vejo Salomé.--Talvez adormecida...
Talvez no meu olhar Ausência dolorida...
Talvez boca pagã beijando as mãos de Deus...

II
Deus, longo cais em mim, donde outras naus singrando
Conduzem para o Longe o meu não existir.
Morena, Salomé, entre vitrais bailando.
Arcadas-sensações transpondo o seu Sentir.
Fita paisagens-Ansia em suas mãos cansadas,
Paisagens a sonhar castelos nunca erguidos.
E os lábios percorrendo em lume os seus sentidos,
Scismam príncipes-Côr descendo das arcadas.
Há entre Ela e Deus o corpo de João.
E em seu olhar, dormindo um bronze de oração,
É sombra do bailado um inclinar de palma.
Baila seu Corpo ainda. E Deus nos seus bailados.
Bailados-asas, longe, em capiteis bordados,
Gestos de Deus caindo entre molduras-Alma!


_MORTE DE SALOMÉ_

Apagaram-se bronze os círios que sonhara.
Erguidos no seu Ser, sentidos-mausoléus.
O palácio, no parque, era um olhar de Deus
E as salas do palácio, os bailes que bailara.
Ela, taça caída em uma orgia infinda,
Taça vencida de Alma em pálios afastados.
Seu Corpo tinha sido algum dos seus bailados,
E a sua própria Morte era um bailado ainda.
Eram as suas mãos rainhas em impérios
Onde passavam reis com séquitos mistérios,
Adagas de marfim erguidas noutras mãos.
Seu Corpo, cinto de oiro ao seu redor, dormindo,
Um hálito de Deus sôbre missais caindo,
Cinza de Alma rezando outros Jesus, pagãos.


_RECORDANDO_

Sinto as cores, de noite, terem mêdo
E acolherem-se à sombra do teu luto.
Eu fui um rei dos godos, que em Toledo
O Tejo adormeceu e ainda escuto.
Cercam-se de oiro as salas que habitei,
Oiro-cinza esquecido, oiro dormente.
E em minha Alma, na qual inda sou rei
Scismo tronos caindo lentamente.
Buscam-me pagens tristes nos caminhos.
E a minha lenda em sonhos pergaminhos
Vai escrevendo em silêncio o meu scismar.
São outros os domínios que vivi
Todas as coisas que eu outrora vi
Regressaram mistério ao meu olhar.


_ANTE DEUS_

Quando te vi eu fui o teu voar
E desci Deus p'ra me encontrar em mim.
Voei-me sôbre pontes de marfim--
E uma das pontes, Deus, em meu olhar!
Aureolei-me de oiro em sombra fria
E meus vôos cairam destruídos.
Foram dedos de Deus os meus sentidos.
Meu Corpo andou ao colo de Maria.
Agora durmo Cristo em véus pagãos.
São tapetes de Deus as minhas mãos.
Regresso Ansia p'ra alcançar os céus.
Ergo-me mais. Sou o perfil da Dôr.
Sôbre os ombros de Deus olho em redor
E Deus não sabe qual de nós é Deus!

ALFREDO PEDRO GUISADO.


*FRIZOS*
DO DESENHADOR
JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS


*CIUMES*

Pierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto d'elle
passam sêde, não n'o acordem ao beber.
Uma andorinha travêssa, linda como todas, avôa brincando rente
á relva e beija ao passar o nariz de Pierrot. Elle accorda e a andorinha,
fugindo a muito, olha de medo atraz, não venha o Pierrot de
zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdia-se nos montes,
mas, porque elle se queda, de nôvo volta em zig-zags travêssos
e chilreios de troça. E chilreia de troça, muito alto, por cima d'elle.
Pierrot já se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios
pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de nôvo.
De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braços erguidos,
seus olhos foram tão longe, tão longe como a andorinha fugida nos
montes.
De repente viu-se cego--os dedos finissimos da Colombina brincavam
com elle. Desceu-lhe os dedos aos labios e trocou com beijos
o arôma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada
orelha uma ginja, á laia de brincos com joias de carmim. Rolaram-se
na relva e uniram as boccas, e já se esqueciam de que as tinham
juntas...
--Sabes? Uma andorinha...
E foram de enfiada as graças da ave toda paixão. Pierrot contava
enthusiasmado, olhando os montes ainda em busca da andorinha,
e Colombina torceu o corpo numa dôr calada e tomou-lhe as mãos.
Havia na relva uma máscara branca de dôr, e a lua tinha nos
olhos claros um olhar triste que dizia: Morreu Colombina!


*O ECHO*

Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça
branca lá da floresta.
Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem,
tambem chamou Adão.
Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E
uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
--Outra que não Ella chamára tambem por Elle.


*SÈVRES PARTIDO*

A amazona negra era bella como o sol e triste como o luar, e
ninguem acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia,
cypreste procurando vaga na margem do caminho.
Nas manhãs de Outomno, frias como os degraus do tanque, era
Ella quem largava ás galgas a lebre cinzenta, e a que a filásse já
sabia com quem dormia a sésta. E as galgas já nem dormiam bem
noutra almofada.
Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarellecidas
dos plátanos onde os repuxos do tanque cuspiam lagryrnas de vidro,
a Amazona negra sonhava o seu Principe encantado e a galga do dia
dormia quieta, estendido o focinho no ventre d'Ella.
Uma manhã mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos
pendidos--e nenhuma para dormir a sésta!
Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida
imensas canções de choros e tinha acompanhamentos funéreos
de guisalhádas surdas.
Callou-se a flauta, um cypreste distante gemia baixinho as dôres
da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o
nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda
torcida.
As galgas como settas deixaram nú o caminho. E as guisalhadas...


*MIMA FATAXA*

Ella marcára-lhe na vespera aquelle rendez-vous no muro do
cemiterio. De feito Elle tornara escrava de uma cigana a sua alma
apaixonada de uma rainha loira senhora de todas as ciganas. Fôra
d'Ella desde o dia em que, seguindo o ritmo acanalhado das ancas
desconjuntadas, ficou enfeitiçado por aquelles dentes brancos ferindo
lume no colar de pederneiras. Sentiu desejos de morder aquelles labios
ardendo vermêlhos incendios de beijos e as faces fumadas do
lume d'aquella bocca. E estranhava o seu coração vencido pela monotonia
dos berros das cantorias com acompanhamentos de urros de
pandeiro. Enfeitiçara-o aquella vagabunda de olhos ardidos compondo
as tranças nos fundos dos caldeirões de cobre onde durante o sol um
tisnado cigano consumia as horas em maçadôras marteladas. Encantára-o
aquella feiticeira afiando as tranças nos labios molhados da
saliva. E nas danças o tic-tac metalico das sandálias, matrácas tagarélas
a cantar nas lágens, tinha um telintar jovial; e os pulsos cingidos
de guizos eram um concerto de amarellos canarios contentes da
gaiola.
E mais bella do que nunca no chafariz real, de saias arregaçadas,
a lavar as pernas da poeira das estradas e bellamente descomposta a
enfiar as meias muito grossas, vermêlhas da côr das papoulas, e a dár
um nó-cego num retorcido nastro branco muito negro á laia de liga
muito acima do joelho... E tem graça que a sua morenez não era
por via do sol, pois toda ella era queimada. Quem a visse trepar nas
amoreiras e despi-las das amóras que lhe ensanguentavam os labios
e as faces e os dedos sem cuidar no vento que lhe levanta as saias,
teria tido como Elle um sorriso de desejos, iria como Elle fingir a
sésta por debaixo da linda amoreira.
E na descida, co'a saia erguida á laia de cabaz, meio tonta, meio
embriagada p'las amóras em demasia, vê-la-hia tão bella como em
sonhos se desenha uma mulher para nós. E escarranchada no tronco
deixava-se escorregar lentamente, mas teve subida forçada por via da
haste que ficava em riba. Depois dependurou-se de um galho rijo,
abriu as mãos e foi de vez chapar-se na relva. E de bruços, como uma
cabra a espojar-se, começou de juntar os fructos espalhados. E os
seus olhos de gata, de gata que brinca nos telhados vermêlhos com
a lua branca, mais do que amóras colhiam.


*A SOMBRA*
(TRADUCÇÃO DE UM POEMA DE UMA LINGUA DESCONHECIDA)

Foi ali que um dia sentiu desejos de partir tambem. Que ficava
fazendo sósinha? Quem leva uma lança, leva a mulher tambem.

O seu châle negro tem um segredo, e o seu mal de morte vem
do mesmo dia.

Os annos correram sem nóvas algumas, e as môças finaram-se
velhas, velhas de tanto esperar.

E todas as noites, na margem sombria, uma silhueta franzina de
tragica sonambula vae seguindo, como um braço murcho de cypreste
a boiar ao de cima da corrente que o vae levando-mansamente.


*A SÉSTA*

Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em
cautela o somno d'ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella
não dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sôno, as
vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo
dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente
ainda mais o sôno a mal-resonar.
Junto d'Ella, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo
na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos
e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o
ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sôno fingir.
E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos.
E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte
num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse
outra vez.


*CANÇÃO DA SAUDADE*

Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu
amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la
viva na minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde
móras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé
que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por
entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram
a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios--as lágens são espessas vidraças transparentes,
e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres
bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das
mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em
meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.


*RUINAS*

Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em
bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias
e de cabelleiras embranquecidas.
Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda
guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha
todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo
um castello de nobres naquelle lugar... E a lua, a contar, pára um
instante--tem mêdo do frio dos subterraneos.
Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos
de sêdas.
Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido--
cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e
lizes.
Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre
a rezar...
Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao
palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos
e Amazonas negras. Cavalleiros vermêlhos e trombêtas de oiro
no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.
Uma gondola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida
dizendo pela briza o aviso da noite.
O sapato d'Ella desatou-se nas areias, e fôram calça-lo nas furnas
onde ninguem vê. Nas areias ficaram as pègadas de um par que
se beija.
Noticias da guerra--choros lá dentro, e crépes no brazão. Ardem
cirios, serpentinas. Ha mãos postas entre as flôres.
E a torre morêna canta, molenga, dôze vezes a mesma dôr.


*PRIMAVERA*

O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro.
A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do
chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p'la fonte.
Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença
para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois
foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se
ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados
comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor
Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou
os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do
proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a
fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a
deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa... porque
Deus é bom e perdôa tudo... e depois as faces e depois a bocca e
depois... fugiu... Não devia ter fugido... E agora o moleiro, lá no
arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho
ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda--sentada na grande arca,
e mãos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpête, emquanto
ouve a historia triste do moinho com cincoenta malfeitores... Quer
lembrar-se mais, que seja peccado! quer mais recordações do moinho,
mas não encontra mais.
Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ella e lhe
perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito,
uma borboleta muito bonita! Que não, que não tinha visto; mas o
boieiro desconfiado foi procurando sempre, e até mesmo por debaixo
dos vestidos.
Como desejava poder ir com todos!

Não sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar.
Teria a borbolêta branca fugido para dentro d'ella?


*TREVAS*

De dia não se via nada, mas p'la tardinha já se apercebia gente
que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo
dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes não brilhavam: eram
luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros
franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes
de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores.
E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam.
E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça
com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p'ra
não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a
lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao
vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.
A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas
desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados
na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos
ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.
Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos,
havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos
distantes--e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros
gigantes.
A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em
danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar.
Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se
nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda
rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges
e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro
anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm
do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão.
Veiu a manha e foi como de dia: não se via nada.


*CANÇÃO*

A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguem a conhecia
e todos estão a chorar.

A pastorinha morreu, morreu de seus amôres. Á beira do rio
nasceu uma arvore e os braços da arvore abriram-se em cruz.

As suas mãos compridas já não acenam de alêm. Morreu a pastorinha
e levou as mãos compridas.

Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguem. Morreu a pastorinha
e os seus olhos a rirem.

Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho. E o rebanho sem
guia é o enterro da pastorinha.

Onde estão os seus amôres? Ha prendas para Lhe dar. Ninguem
sabe se é Elle e ha prendas para Lhe dar.

Na outra margem do rio deu á praia uma santa que vinha das
bandas do mar. Vestida de pastora p'ra se não fazer notar. De dia
era uma santa, á noite era o luar.

A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha
mórta é a Senhora dos Milagres.


*A TAÇA DE CHÁ*

O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras
bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthemos nos jardins e as
garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda
tombávam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados.
E a gueisha, procelana transparente como a casca de um ovo da Ibis,
enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias
de lagrymas. E os seus olhos rasgados, perolas de Nankim a desmaiar-se
em agua, confundiam-se scintillantes no luzidio das procelanas.
Elle, num gesto ultimo, fechou-lhe os labios co'as pontas dos dedos,
e disse a finar-se:--Chorar não é remedio; só te peço que não
me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas
esteiras e ficou. E Ella, num grito de garça, ergueu alto os braços a
pedir o Ceu para Elle, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos,
que todos os que passavam olharam para Ella.
Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por
entre os bambús, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto
com um leque de marfim.

A estampa do pires é igual.

JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS.


*POEMAS*
DE
CÔRTES-RODRIGUES


_ABERTURA DO "LIVRO DA VIDA"_

Transcendencias nubloticas, metaphysicas raras,
Modelei a minha Obra com minhas mãos avaras.
Litanias liturgicas de febre de paixão,
Crepusculos de fogo ardendo em sentimento,
Columnas de Além-Sonho, arcos de commoção,
Claustros de Archi-Tristeza aonde o Pensamento
Vive longe do mundo, em funda adoração...
Castello esguio
Sobre o rio
Do Amôr.
Armei-me cavalleiro,
Quebrou-se minha lança de guerreiro
No combate da Dôr.
Architectonicas theorias de Belleza,
Transfigurações, resurreições, e a Natureza
No fundo longo, sensitivo da emoção,
Bysantinos jardins onde a Tarde agonisa,
Fluidicos aromas em mystica ascenção,
Emanações d'Amor que a alma divinisa
Em Alma de outra Alma--eterna communhão...
Praia tão desconhecida
Do mar da vida vivida
Onde o luar nunca vem,
De onde a nau da minha Alma
Parte pela noite calma
A caminho do Alêm.
E eis a grande rota seguida em Mim sómente,
P'ra que parta do mundo e chegue até aos céus,
E onde Tu e Eu iremos lentamente
Da Vida para Deus.

_Lisboa--1914._


_POENTE_

As minhas sensações--barcos sem velas--
Erram de mim. Occaso rôxo. Scismo.
Meus olhos de Não-ver-me são janellas
Dando sobre o abysmo.
Abysmo d'Outro Ser. E a Hora chora
Nostalgica de Si, mas eu de vê-las
Erro de Ser-me, e a noite sem estrellas
Apavora.
Delirio rôxo d'agonia. Prece.
Poente feito noite. Escuridão.
Perturbo-me de mim em sensação
E dentro em mim desfallece
E anoitece
A sombra do meu Ser na solidão
Do dia que morreu
E se perdeu
E jámais amanhece.

_Lisboa--1914._


_AGONIA_

Ergo meus olhos vagos na distancia
Da sombra do meu Ser...
Pairam de mim Além, e a minha Ansia
Cança de me viver.
Meus olhos espectraes de comoção,
Olhos de Alma olhando-se a Si,
Nimbam de luz a longa escuridão
Da Vida que vivi.
Auréola de Dôr que finalisa
Na noite do abysmo do meu nada,
Silencio, prece, communhão sagrada,
Sonho de luz que em Ti me divinisa,
Tortura do meu fim,
Alma ungida
E perdida
Na grandeza de Si. E já sem ver-me,
Maceração crepuscular de Mim,
Agoniso de Ser-me.

_Lisboa--1914._


_SÓ_

O mar da minha vida não tem longes.
É tudo água só! E o horisonte
Funde-se no céu. Por sobre a ponte
Marcha sinistra a procissão dos monges.
Velas accêsas, opas, ladainha,
E o rio deslisando para o mar,
E e as raparigas veem á tardinha
Buscar á fonte a água sem cantar.
Ermida branca sobre o monte.
Nossa Senhora da Paz...
Peregrino voltei sem ser ouvido.
Rasguei os meus pés pelo caminho ido.
Ai, a calma de tudo quanto jaz
No frio esquecimento! Sobre a ponte
A procissão caminha. Sob o arco
Singrou sereno um barco
A caminho do mar.
Ó perdida visão da minha Ansia!
Vejo-me só na lugubre distancia,
Cadaver dos meus sonhos a boiar.

_Lisboa--1914._


_OUTRO_

Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E, mystico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh'Alma do profundo
Abysmo do meu Ser.
Vivo de Mim em Mim e para Mim
E para Deus em Mím resuscitado.
Sou Saudade do Longe d'onde vim,
E sou Ansia do Longe em que por fim
Serei transfigurado.
Vivo de Deus, em Deus e para Deus,
E minh'Alma, somnambula esquecida,
N'Elle fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sósinha olhando os céus
No caminho da Vida.
Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei,
Outro vivendo a mystica belleza
Por esta humana fórma que encarnei,
Por lagrimas de sangue que chorei
Na terra de tristeza.
Espirito na Dôr purificado,
Ser que passa no mundo sem o ver,
Em esta pobre terra de peccado
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.

_Lisboa--1914._

CÔRTES-RODRIGUES.


*OPIÁRIO*
E
*ODE TRIUNFAL*
DUAS COMPOSIÇÕES DE
ALVARO DE CAMPOS
PUBLICADAS POR
FERNANDO PESSOA


_OPIÁRIO_
AO SENHOR MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estióla
E eu vou buscar ao ópio que consóla
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bórdo ha-de matar-me.
São dias só de febre na cabêça
E, por mais que procure até que adoêça,
Já não encontro a móla pra adaptar-me.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos d'ouro a minha vida,
Onda onde o pundonôr é uma descida
E os próprios gosos ganglios do meu mal.
É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde ha flores no ar, sem hastes.
Vou cambaleando através do lavôr
Duma vida-interior de renda e láca.
Tenho a impressão de ter em casa a fáca
Com que foi degolado o Precursôr.
Ando expiando um crime numa mála,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na fôrca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vála.
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, camfora na aurora.
Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma especie de braço
Que ao meu pescôço me sufoca e ampara.
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa provincia portuguêsa
E tenho conhecido gente inglêsa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Gostava de ter poêmas e novélas
Publicados por Plon e no _Mercure_,
Mas é impossivel que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procélas!
A vida a bórdo é uma coisa triste
Embora a gente se divirta ás vezes.
Falo com alemães, suecos e inglêses
E a minha mágoa de viver persiste.
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a India e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E ha só uma maneira de viver.
Porisso eu tomo ópio. É um remedio.
Sou um convalescente do Momento.
Móro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tedio.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, emfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a India que ha
Se não ha India senão a alma em mim?
Sou desgraçado por meu morgadío.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.
Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escóssia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmóla ás portas da Alegria.
Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta á direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde--
Um escroc francês, conde de fim de enterro.
Volto á Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monarquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser varia gente insipida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.
Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu êsse criado
De bórdo que tem um belo modo alçado
De _laird_ escossez ha dias em jejum.
Não posso estar em parte alguma. A minha
Patria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bórdo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto êle adivinha.
Um dia faço escândalo cá a bórdo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que ás vezes me debórdo.
Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Déssem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.
Escrevo estas linhas. Parece impossivel
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensivel.
Os inglêses são feitos pra existir.
Não ha gente como esta pra estar feita
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