Orpheu Nº1 Revista Trimestral de Literatura - 1

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*"ORPHEU"*
REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA

PORTUGAL E BRAZIL
Propriedade de: ORPHEU, L.^da Editor: ANTONIO FERRO

_DIRECÇÃO_
PORTUGAL
Luiz de Montalvôr--17, Caminho do Forno do Tijolo--LISBOA
BRAZIL
Ronald de Carvalho--104, Rua Humaytá--RIO DE JANEIRO

*ANO I--1915* *N.^o 1* *Janeiro-Fevereiro-Março*

*SUMARIO*
LUIZ DE MONTALVÔR _Introducção_
MARIO DE SÁ-CARNEIRO _Para os "Indicios de Oiro"_ (poemas)
RONALD DE CARVALHO _Poemas_
FERNANDO PESSOA _O Marinheiro_ (drama estático)
ALFREDO PEDRO GUISADO _Treze sonetos_
JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS _Frizos_ (prosas)
CÔRTES-RODRIGUES _Poemas_
ALVARO DE CAMPOS _Opiário_ e _Ode Triunfal_

*Capa desenhada por José Pacheco*

Oficinas: Tipografia do Comércio--10, Rua da Oliveira, ao Carmo
LISBOA


*CONDIÇÕES*

Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores.

Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta
Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta
devolveremos os originais.

São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria
Brazileira--190 e 192, Rua Aurea, Lisboa.

*Orpheu* publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72,
ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e
1$500 réis fracos no Brazil.

*ASSINATURAS*
(AO ANO--SÉRIE DE 4 NUMEROS)
Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo
Brazil 5$000 réis (moeda fraca)
União Postal 6 francos


*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^a--Editores*
190 e 192, RUA AUREA--LISBOA

Á venda no fim de abril:

*CÉU EM FOGO*
NOVELAS POR
MARIO DE SÁ-CARNEIRO

A GRANDE SOMBRA--MISTÉRIO
O HOMEM DOS SONHOS--ASAS--EU-PRÓPRIO O OUTRO
A ESTRANHA MORTE DO PROF. ANTENA
O FIXADOR DE INSTANTES--RESURREIÇÃO

1 VOLUME DE 350 PAGINAS

CAPA DESENHADA POR
JOSÉ PACHECO

Preço 70 centavos


*Obras dos colaboradores dêste numero*

LUIZ DE MONTALVÔR
_A Caminho_, uma plaquette de versos
Edição da Livraria Brazileira
Preço: 20 centavos

MARIO DE SÁ-CARNEIRO
_Amizade_, peça em 3 actos (com colaboração de Tomás Cabreira J.^or)
Edição da Livraria Bordalo
Preço: 30 centavos
_Principio_, novelas
Edição da Livraria Ferreira
Preço: 70 centavos
_Dispersão_, 12 poesias
Edição do autor
Exgotada
_A Confissão de Lucio_, narrativa
Edição do autor
Preço: 60 centavos

RONALD DE CARVALHO
_Luz Gloriosa_, poemas
Paris 1913. Edição do autor

FERNANDO PESSOA
_As sete salas do palacio abandonado_, poemas
Em preparação

ALFREDO PEDRO GUISADO
_Rimas da Noite e da Tristeza_, versos
Edição da Livraria Classica Editora
Preço: 40 centavos
_Distância_, poemas
Edição da Livraria Ferreira
Preço: 30 centavos

JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS
_Frizos_, prosas ilustradas pelo autor
A saír este ano

ALVARO DE CAMPOS
_Arco do Triunfo_
Em preparação

Qualquer destas obras pode ser requisitada directamente ao administrador
de ORPHEU--Alfredo Pedro Guisado: 112, Rocio, Lisboa.

No nosso segundo numero (a sair em junho) contamos publicar, entre
outras obras, as seguintes: _Poemas_ de Fernando Pessoa, _Mundo
Interior_, novela de Mario de Sá-Carneiro e _Narcisso_, poema de Luiz
de Montalvôr.

A fotogravura da capa foi executada nos ateliers da ILUSTRADORA


*ORPHEU*
VOL. I--1915


*ORPHEU*
REVISTA TRIMESTRAL DE LITERATURA
VOLUME I

LISBOA
TYPOGRAPHIA Do COMMERCIO
10, RUA DA OLIVEIRA (AO CARMO), 10
1915


_INTRODUCÇÃO_

_O que é propriamente revista em sua essencia de vida e quotidiano,
deixa-o de ser_ ORPHEU_, para melhor se engalanar do seu titulo e
propôr-se.
E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar
de outros meios, maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel
nosso volume de Beleza não ser incaracteristico ou fragmentado, como
literarias que são essas duas formas de fazer revista ou jornal.
Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do:--Exilio!
Bem propriamente,_ ORPHEU_, é um exilio de temperamentos de arte que
a querem como a um segrêdo ou tormento...
Nossa pretenção é formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de
revelações em pensamento ou arte, que sobre este principio aristocratico
tenham em_ ORPHEU _o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos
e conhecermo-nos.
A photographia de geração, raça ou meio, com o seu mundo immediato de
exhibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para
ahi se intitula revista, com a variedade a inferiorisar pela egualdade
de assumptos (artigo, secção ou momentos) qualquer tentativa de
arte--deixa de existir no texto preocupado de_ ORPHEU_.
Isto explica nossa ansiedade e nossa essencia!
Esta linha de que se quer acercar em_ Beleza_,_ ORPHEU_, necessita de
vida e palpitação, e não é justo que se esterilise individual e
isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes
der orgulho, temperamento e esplendor--mas pelo contrario se unam em
selecção e a dêem aos outros que, da mesma especie, como raros e
interiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes
falta,--do que resulta uma procura esthética de permutas: os que nos
procuram e os que nós esperamos...
Bem representativos da sua estructura, os que a formam em_ ORPHEU_,
concorrerão a dentro do mesmo nivel de competencias
para o mesmo rithmo, em elevação, unidade e discreção, de onde
dependerá a harmonia esthética que será o typo da sua especialidade.
E assim, esperançados seremos em ir a direito de alguns desejos de bom
gosto e refinados propositos em arte que isoladamente vivem para ahi,
certos que assignalamos como os primeiros que somos em nosso meio,
alguma cousa de louvavel e tentamos por esta forma, já revelar um
signal de vida, esperando dos que formam o publico leitor de selecção,
os esforços do seu contentamento e carinho para com a realisação da
obra literaria de_ ORPHEU_._

LUIS DE MONTALVÔR.


*PARA OS "INDICIOS DE OIRO"*
POEMAS DE
MARIO DE SÁ-CARNEIRO


*TACITURNO*

Ha Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais--
Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.
No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras
Em mim se despojou dos seus brazões e presas.
Heraldicas-luar sobre ímpetos de rubro,
Humilhações a liz, desforços de brocado;
Bazilicas de tédio, arnezes de crispado,
Insignias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro...
A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido
Enferrujou--embalde a tentarão descer...
Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer--
Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido...
Percorro-me em salões sem janelas nem portas,
Longas salas de trôno a espessas densidades,
Onde os pânos de Arrás são esgarçadas saudades,
E os divans, em redór, ansias lassas, absortas...
Ha rôxos fins de Imperio em meu renunciar--
Caprichos de setim do meu desdem Astral...
Ha exéquias de herois na minha dôr feudal--
E os meus remorsos são terraços sobre o Mar...

_Paris--Agosto de 1914_


*SALOMÉ*

Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...
Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo...
Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas...
O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou...
Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou...
E o seu corpo resvala a projectar estátuas...
Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:
Mordoura-se a chorar--ha sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bôca imperial que humanisou um Santo...

_Lisboa 1913--Novembro 3_


*CERTA VOZ NA NOITE, RUIVAMENTE...*

Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
Em sons côr de amaranto, ás noites de incerteza,
Que eu lembro não sei d'Onde--a voz duma Princesa
Bailando meia nua entre clarões de espada.
Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
E bêbada de Si, arfante de Beleza,
Acera os seios nus, descobre o sexo... Reza
O espasmo que a estrebucha em Alma copulada...
Entanto nunca a vi, mesmo em visão. Sómente
A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim
Não lhe desejo a carne--a carne inexistente...
É só de voz-em-cio a bailadeira astral--
E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz-total,
É que eu sonho esvaír-me em vicios de marfim...

_Lisboa 1914--Janeiro 31_


*NOSSA SENHORA DE PARIS*

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo tambem ao luar...
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longinqua melodia
Toda saudosa a Mar...
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos...
Mas o Oiro não perdura,
E a noite cresce agora a desabar catedrais...
Fico sepulto sob círios--
Escureço-me em delirios,
Mas ressurjo de Ideais...
--Os meus sentidos a escoarem-se...
Altares e vélas...
Orgulho... Estrelas...
Vitrais! Vitrais!
Flores de liz...
Manchas de côr a ogivarem-se...
As grandes naves a sagrarem-se...
--Nossa Senhora de Paris!...

_Paris 1913--Junho 15_


*16*

Esta inconstancia de mim próprio em vibração
É que me ha de transpôr ás zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular... Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A tôrre d'ouro que era o carro da minh'Alma,
Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar--
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma...
Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,
A atmosfera ha de ser outra, noutros planos:
As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes...
* * * * *
Ha sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos...
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de côres...
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo...
Já não é o meu rastro o rastro d'oiro que ainda sigo...
Resvalo em pontes de gelatina e de bolôres...
Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
As mesas do Café endoideceram feitas ar...
Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar
Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...
(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...).

_Lisboa--Maio de 1914_


*DISTANTE MELODIA...*

Num sonho d'Iris, morto a ouro e brasa,
Vem-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule--
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.
Então os meus sentidos eram côres,
Nasciam num jardim as minhas ansias,
Havia na minh'alma Outras distancias--
Distancias que o segui-las era flôres...
Caía Ouro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me...
Noites-lagôas, como éreis belas
Sob terraços-liz de recordar-me!...
Idade acorde d'Inter sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz--anseios de Princesa nua...
Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume...
Dominio inexprimivel d'Ópio e lume
Que nunca mais, em côr, hei de habitar...
Tapêtes doutras Persias mais Oriente...
Cortinados de Chinas mais marfim...
Aureos Templos de ritos de setim...
Fontes correndo sombra, mansamente...
Zimbórios-panthéons de nostalgias...
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
Escadas de honra, escadas só, ao ar...
Novas Byzancios-alma, outras Turquias...
Lembranças fluidas... cinza de brocado...
Irrealidade anil que em mim ondeia...
--Ao meu redór eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia...

_Paris 1914--Junho 30_


*VISLUMBRE*

A horas flébeis, outonais--
Por magoados fins de dia--
A minha Alma é água fria
Em ânforas d'Ouro... entre cristais...

_Camarate--Quinta da Vitória.
Outubro de 1914._


*SUGESTÃO*

As companheiras que não tive,
Sinto-as chorar por mim, veladas,
Ao pôr do sol, pelos jardins...
Na sua mágoa azul revive
A minha dôr de mãos finadas
Sobre setins...

_Paris--Agosto de 1914_


*7*

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

_Lisboa--Fevereiro de 1914_


*ANGULO*

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar ôco de certezas mortas?--
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construido...
--Barcaças dos meus impetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segrêdo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...
--Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ansia ia,
Quebraste-vos tambem ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Chegaram á baía os galeões
Com as séte Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa--e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira...
--Por sôbre o que Eu não sou ha grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes--
Um outro que eu não posso acorrentar...

_Barcelona--Setembro de 1914_


*A INEGUALAVEL*

Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de setim...
Teus dedos longos, de marfim,
Que os sombreassem joias pretas...
E tão febril e delicada
Que não podesses dar um passo--
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de côr no regaço...
Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas--
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas...
Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata--
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim--
Os teus espasmos, de sêda...
--Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim...

_Lisboa 1915--Fevereiro 16_


*APOTEOSE*

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
Dormindo fôgo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só móro...
São tristezas de bronze as que inda chóro--
Pilastras mortas, marmores ao Poente...
Lagearam-se-me as ansias brancamente
Por claustros falsos onde nunca óro...
Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...
Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ansia... Luz-perdão... Orquideas pranto...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
--Ó pantanos de Mim--jardim estagnado...

_Paris 1914--Junho 28_

MARIO DE SÁ-CARNEIRO.


*POEMAS*
DE
RONALD DE CARVALHO


*A ALMA QUE PASSA*

*I--Sentido*
Fujo de mim como um perfume antigo
foge ondulante e vago de um missal
e julgo uma alma estranha andar commigo,
dizendo adeus a uma aventura irreal.
Sou transparencia, chamma pallida, ansia,
ultima nau que abandonou o caes.
No alvôr das minhas mãos chora a distancia
prôas rachadas, longes de ouro, ideaes...
Sonho meu corpo como de um ausente,
naufrágo e exsurjo dentro da memoria,
accórdo num jardim convalescente,
vago perdido em outros num jardim,
e sinto no clarão da ultima gloria
a sombra do que sou morrer em mim...

*II--Legenda*
A Vida é uma princeza dolorosa
no seu castelo de rubis e opalas,
tanjendo ao poente em harpa silenciosa
uma agonia de almas e de falas...
Colho de tuas mãos a triste rosa,
Vida que és sombra e sobre mim resvalas.
Passas, e em tua sombra a ondear saudosa
vagam fantasmas de desertas salas...
(Vozes perdidas, juramentos a esmo,
passos que morrem sobre passos, sinos
accórdam madrugadas em mim mesmo.
E entre trompas, tambores e metralha,
claveharpas, orgãos, tubas e violinos
a Vida e a Dôr começam a batalha...)

*III--Genese*
Antes a alma que tenho andou perdida,
foi pedrouço a rolar pelo caminho,
topazio, opala, perola esquecida
num bracelete real; foi caule e espinho,
bronze que a mão tocou, aurea jazida
por entre as ruinas de um paiz maninho,
e reflectiu, fatal, o olhar da Vida
no corpo em sangue de um estranho vinho...
Foi casco medieval, foi lança e escudo,
foi luz lunar e errante de lanterna,
e depois de exsurgir, triste, de tudo
veio para chorar dentro em meu ser
a amarga maldição de ser eterna
e a dôr de renascer quando eu morrer...


*LAMPADA NOCTURNA*

Tonta de somno e de doçura
no alto das garras de marfim
perdida em sombra a luz procura.
Alguem morreu dentro de mim...
Pela janela triste e escura
que abre os balcões para o jardim
sóbe um perfume de amargura.
Alguem morreu dentro de mím...
E vaes rompendo silenciosa
com o fino teu punhal de luxo
no ultimo vaso a ultima rosa...
E o caule nú reflecte agora
no teu olhar como um repuxo
que implora o azul e não demora...


*TORRE IGNOTA*

Da sombra se ergue e não demóra
nas mãos que a cingem desejosas
o ar a fascina sempre e agora
e as linhas lava luminosas
O talhe inquieta a luz por fóra
sonham chimeras dolorosas
e não floresce na haste da hóra
nem a volupia de outras rosas
Só de ser unica levanta
como um sorriso a pedraria
que o som dos bronzes acalanta
Da sombra se ergue para a gloria
e a mão que a esflóra é argila fria
num vôo branco de memoria


*O ELOGIO DOS REPUXOS*

Dôr dos repuxos ao Sol-Pôr agonisando
em plumas e marfins, em rosas de ouro e luz...
Canto da água que desce em poeira, leve e brando,
canto da água que sobe e onde o jardim transluz.
Dormem sinos na bruma--a cinza tem affagos...
Sombras de antigas náos, velas altas a arfar,
passam em turbilhões pelo fundo dos lagos,
(a aventura, a conquista, a ansia eterna do mar!)
Repuxos a morrer sobre si mesmos, lentos--
curvos leques a abrir e a fechar num adejo,
--mão vencida que vem de vãos incitamentos,
mão nervosa que vai mais cheia de desejo...
Volupia de fugir--ser longe e ser distancia,
e tornar logo ao cais e de novo partir!
Volupia--desejar e não possuir, ser ansia...
Repuxos a descer, repuxos a subir...
Não fixar emoções, volupia de esquecê-las,
andar dentro de si perdido na memória...
(Caçadores ideais de mundos e de estrelas--
repuxos ao Sol-Pôr cheios de magoa e glória...)
Dôr dos repuxos ao crepusculo cantando!
desespero, alegria--o labio, a mão... e um beijo.
Dôr dos repuxos, dôr sangrando, dôr sonhando--
ir tocar a ilusão e morrer em desejo...


*REFLEXOS*
_(Poema da Alma enferma)_

Minha alma treme como um lirio
dentro da água dos teus olhos--
minha alma treme como um lirio,
com as mãos varadas por abrolhos.
Toda de linho de noivado,
á tua porta a tremer,
toda de linho de noivado
minha alma vai amanhecer.
Anda um perfume de alêm-morte
na sua voz dolorida,
anda um perfume de alêm-morte
nas vestes pálidas da vida...
A hora lilaz desabotôa
em flôres de cinza e braza,
a hora lilaz desabotôa
com um rumor sonambulo de asa.
Pelo canal resam os barcos
cheios de graça e de glória...
pelo canal resam os barcos
a triste história da memória...
Minha alma accorda o caes deserto,
florida em rosas de magoa--
minha alma accorda o caes deserto,
e a sua sombra é um cysne na água...
E sobre as lampadas extintas
tombam funebres antenas,
e sobre as lampadas extintas
morrem as ultimas falenas.
As torres scismam pelo espaço.
No silencio erram violinos--
as torres scismam pelo espaço...
na penumbra cogitam sinos...
Minha alma toda se enclausura
no jardim que entardeceu...
minha alma toda se enclausura
num beijo irreal que não nasceu...
Dentro da água dos teus olhos
minha alma treme como um lirio...

RONALD DE CARVALHO.


_FERNANDO PESSOA_

*O MARINHEIRO*
DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO

a Carlos Franco.


Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que é
circular. Ao centro ergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma
donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. Á direita, quasi em
frente a quem imagina o quarto, ha uma unica janella, alta e estreita,
dando para onde só se vê, entre dois montes longinquos, um pequeno
espaço de mar.
Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada em
frente á janella, de costas contra a tocha de cima da direita. As
outras duas estão sentadas uma de cada lado da janella.
É noite e ha como que um resto vago de luar.

*Primeira veladora*.--Ainda não deu hora nenhuma.
*Segunda*.--Não se podia ouvir. Não ha relogio aqui perto. Dentro
em pouco deve ser dia.
*Terceira*.--Não: o horizonte é negro.
*Primeira*.--Não desejaes, minha irmã, que nos entretenhamos contando
o que fômos? É bello e é sempre falso...
*Segunda*.--Não, não fallemos d'isso. De resto, fômos nós alguma
cousa?
*Primeira*.--Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é bello
fallar do passado... As horas teem cahido e nós temos guardado
silencio. Por mim, tenho estado a olhar para a chamma d'aquella vela.
Ás vezes treme, outras torna-se mais amarella, outras vezes empallidece.
Eu não sei porque é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas
irmãs, porque se dá qualquer cousa?...

(uma pausa)

*A mesma*.--Fallar do passado--isso deve ser bello, porque é inútil
e faz tanta pena...
*Segunda*.--Fallemos, se quizerdes, de um passado que não tivessemos
tido.
*Terceira*.--Não. Talvez o tivessemos tido...
*Primeira*.--Não dizeis senão palavras. É tão triste fallar! É um
modo tão falso de nos esquecermos!... Se passeassemos?...
*Terceira*.--Onde?
*Primeira*.--Aqui, de um lado para o outro. Ás vezes isso vai buscar
sonhos.
*Terceira*.--De quê?
*Primeira*.--Não sei. Porque o havia eu de saber?

(uma pausa)

*Segunda*.--Todo este paiz é muito triste... Aquelle onde eu vivi
outr'ora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada á minha
janella. A janella dava para o mar e ás vezes havia uma ilha ao longe...
Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de
viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquillo que talvez
eu nunca fôsse...
*Primeira*.--Fóra de aqui, nunca vi o mar. Alli, d'aquella janella,
que é a unica de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de
outras terras é bello?
*Segunda*.--Só o mar das outras terras é que é bello. Aquelle
que nós vemos dá-nos sempre saudades d'aquelle que não veremos
nunca...

(uma pausa)

*Primeira*.--Não diziamos nós que iamos contar o nosso passado?
*Segunda*.--Não, não diziamos.
*Terceira*.--Porque não haverá relogio neste quarto?
*Segunda*.--Não sei... Mas assim, sem o relogio, tudo é mais
afastado e mysterioso. A noite pertence mais a si-propria... Quem
sabe se nós poderiamos fallar assim se soubessemos a hora que é?
*Primeira*.--Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros
na alma... Estou procurando não olhar para a janella... Sei que de
lá se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes,
outr'ora... Eu era pequenina. Colhia flôres todo o dia e antes de
adormecer pedia que não m'as tirassem... Não sei o que isto tem de
irreparavel que me dá vontade de chorar... Foi longe d'aqui que
isto pôde ser... Quando virá o dia?...
*Terceira*.--Que importa? Elle vem sempre da mesma maneira...
sempre, sempre, sempre...

(uma pausa)

*Segunda*.--Contemos contos umas ás outras... Eu não sei contos
nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não
rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos
levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho...
Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar
que o podia estar tendo... Mas o passado--porque não fallâmos nós
d'elle?
*Primeira*.--Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-hemos...
Com a luz os sonhos adormecem... O passado
não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho... Se
ólho para o presente com muita attenção, parece-me que elle já passou...
O que é qualquer cousa? Como é que ella passa? Como é
por dentro o modo como ella passa?... Ah, fallemos, minhas irmãs,
fallemos alto, fallemos todas juntas... O silencio começa a tomar
corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma nevoa...
Ah, fallae, fallae!...
*Segunda*.--Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo...
Parece-me que entre nós se augmentaram abysmos... Tenho que
cançar a idéa de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos...
Este ar quente é frio por dentro, naquella parte que toca na alma...
Eu devia agora sentir mãos impossiveis passarem-me pelos cabellos...
As mãos pelos cabellos--é o gesto com que fallam das
sereias... _(Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa.)_ Ainda ha pouco,
quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado...
*Primeira*.---Eu tambem devia ter estado a pensar no meu...
*Terceira*.--Eu já não sei em que pensava... No passado dos
outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu...
Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Porque é
que correria, e porque é que não correria mais longe, ou mais
perto?... Ha alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Ha
para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?...
*Segunda*.--As mãos não são verdadeiras nem reaes... São mysterios
que habitam na nossa vida... Ás vezes, quando fito as minhas
mãos, tenho medo de Deus... Não ha vento que mova as chammas
das velas, e olhae, ellas movem-se... Para onde se inclinam ellas?...
Que pena se alguem pudesse responder!... Sinto-me desejosa de
ouvir musicas barbaras que devem agora estar tocando em palacios
de outros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque,
quando creança, corri atraz das ondas á beira-mar. Levei a vida
pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado
as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estatua de
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