Orpheu Nº1 Revista Trimestral de Literatura - 2

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anjo para que nunca mais ninguem olhasse...
*Terceira*.--As vossas phrases lembram-me a minha alma...
*Segunda*.--É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as
digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço que m'as está
segredando... Mas eu devo ter vivido realmente á beira-mar... Sempre
que uma causa ondeia, eu amo-a... Ha ondas na minha alma...
Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o
faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se
quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossivel que
elles sejam tão parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra
que se recusam a saber que teem... Se d'esta janella, debruçando-me,
eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-hia um momento da
minha alma alguem em quem eu me sentisse feliz...
*Primeira*.--Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos
os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora
minha mãe, costumavamos sentarmo-nos á sombra dos tamarindos e
fallar de ir ver outras terras... Tudo alli era longo e feliz como
o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta
não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos
sonhos eram de que as arvores projectassem no chão outra calma
que não as suas sombras... Foi decerto assim que alli vivemos, eu
e não sei se mais alguem... Dizei-me que isto foi verdade para que
eu não tenha de chorar...
*Segunda*.--Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla
da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas...
Eu era pequena e barbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente
parece me que durmo... Fallae-me das fadas. Nunca ouvi fallar
d'ellas a ninguem... O mar era grande demais para fazer pensar
nellas... Na vida aquece ser pequeno... Ereis feliz minha irmã?.
*Primeira*.--Começo neste momento a tel-o sido outr'ora... De
resto, tudo aquilo se passou na sombra... As arvores viveram-o mais
do que eu... Nunca chegou quem eu mal esperava... E vós, irmã,
porque não fallaes?
*Terceira*.--Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que
vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencerão
logo ao passado, ficarão fóra de mim, não sei onde, rigidas e
fataes... Fallo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras
parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto
na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E
toda eu sou um amuleto ou um sacrario que estivesse com consciencia
de si-proprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta
escura, atravez do mysterio de fallar... E, afinal, quem sabe
se eu sou assim e se é isto sem duvida que sinto?...
*Primeira*.--Custa tanto saber o que se sente quando reparamos
em nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso...
Fallae portanto, sem reparardes que existis... Não nos ieis dizer quem
ereis?
*Terceira*.--O que eu era outr'ora já não se lembra de quem sou...
Pobre da feliz que eu fui!... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e
tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a
minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes,
onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquillas
dos meus dedos... Ás vezes, á beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me...
Quando eu sorria, os meus dentes eram mysteriosos na
agua... Tinham um sorriso só d'elles, independente do meu... Era
sempre sem razão que eu sorria... Fallae-me da morte, do fim de
tudo, para que eu sinta uma razão p'ra recordar...
*Primeira*.--Não fallemos de nada, de nada... Está mais frio, mas
porque é que está mais frio? Não ha razão para estar mais frio. Não
é bem mais frio que está... Para que é que havemos de fallar?...
É melhor cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta
de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no
quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção
que cantavamos em casa de meu passado. Porque é que não quereis
que vol-a cante?
*Terceira*.--Não vale a pena, minha irmã... Quando alguem canta,
eu não posso estar commigo. Tenho que não poder recordar-me. E
depois todo o meu passado torna-se outro e eu chóro uma vida morta
que trago commigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais
para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar...

(uma pausa)

*Primeira*.--Breve será dia... Guardemos silencio... A vida assim
o quer... Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá
e assentava-me á beira d'elle, sobre um tronco de arvore que cahira
quasi dentro de agua... Sentava-me na ponta e molhava na agua os
pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente
para as pontas dos pés, mas não era para as ver... Não sei porquê,
mas parece-me d'este lago que elle nunca existiu... Lembrar-me
d'elle é como não me poder lembrar de nada... Quem sabe porque
é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?...
*Segunda*.--Á beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não
podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremol-o
sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a
espuma chia, parece que ha mil vozes minimas a fallar. A espuma
só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não
sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava á beira-mar?
*Primeira*.--Podeis contal-o, minha irmã, mas nada em nós tem necessidade
de que nol-o conteis... Se é bello, tenho já pena de vir a
tel-o ouvido. E se não é bello, esperae..., contae-o só depois de o
alterardes...
*Segunda*.--Vou dizer vol-o. Não é inteiramente falso, porque sem
duvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que
eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha
esquecido que tinha pae e mãe e que houvera em mim infancia
e outros dias--nesse dia vi ao longe, como uma cousa que eu só pensasse
em ver, a passagem vaga de uma vela... Depois ella cessou...
Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não
sei onde elle teve principio... E nunca tornei a ver outra vela...
Nenhuma das velas dos navios que sahem aqui de um porto se parece
com aquella, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
*Primeira*.--Vejo pela janella um navio ao longe. É talvez aquelle
que vistes...
*Segunda*.--Não, minha irmã; esse que vêdes busca sem duvida
um porto qualquér... Não podia ser que aquelle que eu vi buscasse
qualquér porto...
*Primeira*.---Porque é que me respondestes?... Pode ser... Eu
não vi navio nenhum pela janella... Desejava ver um e fallei-vos
d'elle para não ter pena... Contae-nos agora o que foi que sonhastes
á beira mar...
*Segunda*.--Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido
numa ilha longinqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e
aves vagas passavam por ellas... Não vi se alguma vez pousavam...
Desde que, naufragado, se salvára, o marinheiro vivia alli... Como
elle não tinha meio de voltar á patria, e cada vez que se lembrava
d'ella soffria, poz-se a sonhar uma patria que nunca tivesse tido; poz-se
a fazer ter sido sua uma outra patria, uma outra especie de paiz,
com outras especies de paysagens, e outra gente, e outro feitio de passarem
pelas ruas e de se debruçarem das janellas... Cada hora elle
construía em sonho esta falsa patria, e elle nunca deixava de sonhar,
de dia á sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada
de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia,
de costas, e não reparando nas estrellas.
*Primeira*.--Não ter havido uma arvore que mosqueasse sobre as
minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...
*Terceira*.--Deixae-a fallar... Não a interrompaes... Ella conhece
palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar...
Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração doe-me de não ter
sido vós quando sonhaveis á beira mar...
*Segunda*.--Durante annos e annos, dia a dia o marinheiro erguia
num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha
uma pedra de sonho nesse edificio impossivel... Breve elle ia tendo
um paiz que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se
já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que côr
soiam ser os crepusculos numa bahia do norte, e como era suave
entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmurio da agua que
o navio abria, num grande porto do sul onde elle passára outr'ora,
feliz talvez, das suas mocidades a supposta...

(uma pausa)

*Primeira*.--Minha irmã, porque é que vos calaes?
*Segunda*.--Não se deve fallar demasiado... A vida espreita-nos
sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não
o saber... Quando fallo de mais começo a separar-me de mim e a
ouvir-me fallar. Isso faz com que me compadeça de mim-propria e
sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa
de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vêde:
o horizonte empallideceu... O dia não póde já tardar... Será preciso
que eu vos falle ainda mais do meu sonho?
*Primeira*.--Contae sempre, minha irmã, contae sempre... Não
pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca
raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não
torçaes as mãos. Isso faz um ruido como o de uma serpente furtiva...
Fallae-nos muito mais do vosso sonho. Elle é tão verdadeiro que não
tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca musica na
alma...
*Segunda*.--Sim, fallar-vos-hei mais d'elle. Mesmo eu preciso de
vol-o contar. À medida que o vou contando, é a mim tambem que o
conto... São trez a escutar... _(De repente, olhando para o caixão,
e estremecendo.)_ Trez não... Não sei... Não sei quantas...
*Terceira*.--Não falleis assim... Contae depressa, contae outra
vez... Não falleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos
quantas cousas realmente vivem e vêem e escutam... Voltae ao vosso
sonho... O marinheiro... O que sonhava o marinheiro?...
*Segunda* _(mais baixo, numa voz muito lenta)_.--Ao principio elle
creou as paysagens; depois creou as cidades; creou depois as ruas
e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na materia da sua alma--
uma a uma as ruas, bairro a bairro, até ás muralhas dos caes d'onde
elle creou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as
percorria e que olhava sobre ellas das janellas... Passou a conhecer
certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as
vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas
paysagens e as vae vendo... Depois viajava, recordado, atravez
do paiz que creara... E assim foi construindo o seu passado... Breve
tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova patria, um
logar onde nascera, os logares onde passara a juventude, os portos
onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infancia e depois
os amigos e inimigos da sua edade viril... Tudo era differente de
como elle o tivera--nem o paiz, nem a gente, nem o seu passado
proprio se pareciam com o que haviam sido... Exigís que eu continue?...
Causa-me tanta pena fallar d'isto!... Agora, porque vos fallo
d'isto, aprazia-me mais estar-vos fallando de outros sonhos...
*Terceira*.--Continuae, ainda que não saibaes porquê... Quanto
mais vos ouço, mais me não pertenço...
*Primeira*.--Será bom realmente que continueis? Deve qualquer
historia ter fim? Em todo o caso fallae... Importa tão pouco o que
dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso
mister é inutil como a Vida...
*Segunda*.--Um dia, que chovêra muito, e o horizonte estava mais
incerto, o marinheiro cançou-se de sonhar... Quiz então recordar a
sua patria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que
ella não existia para elle... Meninice de que se lembrasse, era a na
sua patria de sonho; adolescencia que recordasse, era aquella que se
creara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E
elle viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se elle
nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se
lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e
tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que
tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas
irmãs, minhas irmãs... Ha qualquer cousa, que não sei o que é, que
vos não disse..., qualquer cousa que explicaria isto tudo... A minha
alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a fallar... Fallae-me, gritae-me,
para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante
vós e que ha cousas que são apenas sonhos...
*Primeira* _(numa voz muito baixa)_.--Não sei que vos diga... Não
ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continúa?...
*Segunda*.--Não sei como era o resto... Mal sei como era o
resto... Porque é que haverá mais?...
*Primeira*.--E o que aconteceu depois?
*Segunda*.--Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?...
Veiu um dia um barco... Veiu um dia um barco...--Sim, sim...
só podia ter sido assim...--Veiu um dia um barco, e passou por
essa ilha, e não estava lá o marinheiro...
*Terceira*.--Talvez tivesse regressado á patria... Mas a qual?
*Primeira*.--Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabel-o-hia
alguem?
*Segunda*.--Porque é que m'o perguntaes? Ha resposta para
alguma cousa?

(uma pausa)

*Terceira*.--Será absolutamente necessario, mesmo dentro do vosso
sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
*Segunda*.--Não, minha irmã; nada é absolutamente necessario.
*Primeira*.--Ao menos, como acabou o sonho?
*Segunda*.--Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba...
Sei eu ao certo se o não continúo sonhando, se o não sonho sem o
saber, se o sonhal-o não é esta cousa vaga a que eu chamo a minha
vida?... Não me falleis mais... Principío a estar certa de qualquer
cousa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que
não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu
ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo
disforme de que Deus tivesse prohibido o meu sonho... Elle é sem
duvida mais real do que Deus permitte... Não estejaes silenciosas...
Dizei-me ao menos que a noite vae passando, embora eu o saiba...
Vêde, começa a ir ser dia... Vêde: vae haver o dia real... Paremos...
Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura
interior... Quem sabe o que está no fim d'ella?... Tudo isto, minhas
irmãs, passou-se na noite... Não fallemos mais d'isto, nem a nós-proprias...
É humano e conveniente que tomemos, cada qual a sua
attitude de tristeza.
*Terceira*.--Foi-me tão bello escutar-vos... Não digaes que não...
Bem sei que não valeu a pena... É porisso que o achei bello... Não
foi porisso, mas deixae que eu o diga... De resto, a musica da vossa
voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez
só por ser musica, descontente...
*Segunda*.--Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens
que pensam cançam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que
passam provam-o, porque mudam com tudo... De eterno e bello ha
apenas o sonho... Porque estamos nós fallando ainda?...
*Primeira*.--Não sei... _(olhando para o caixão, em voz mais baixa)_
Porque é que se morre?
*Segunda*.--Talvez por não se sonhar bastante...
*Primeira*.--É possivel... Não valeria então a pena fecharmo-nos
no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...
*Segunda*.--Não, minha irmã: nada vale a pena...
*Terceira*.--Minhas irmãs, é já dia... Vêde, a linha dos montes
maravilha-se... Porque não choramos nós?... Aquella que finge estar
alli era bella, e nova como nós, e sonhava tambem... Estou certa
que o sonho d'ella era o mais bello de todos... Ella de que sonharia?...
*Primeira*.--Fallae mais baixo. Ella escuta-nos talvez, e já sabe
para que servem os sonhos...

(uma pausa)

*Segunda*.--Talvez nada d'isto seja verdade... Todo este silencio,
e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho...
Olhae bem para tudo isto... Parece-vos que pertence á vida?...
*Primeira*.--Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós
estaes parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...
*Segunda*.--Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não
desejaes que nos calemos? É tão extranho estar a viver... Tudo o
que acontece é inacreditavel, tanto na ilha do marinheiro como neste
mundo... Vêde, o céu é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto
que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...
*Primeira*.--Chorastes, com effeito, minha irmã.
*Segunda*.--Talvez... Não importa... Que frio é este?... O que
é isto?... Ah, é agora... é agora... Dizei-me isto... Dizei-me uma
cousa ainda... Porque não será a unica cousa real nisto tudo o marinheiro,
e nós e tudo isto aqui apenas um sonho d'elle?...
*Primeira*.--Não falleis mais, não falleis mais... Isso é tão extranho
que deve ser verdade... Não continueis... O que ieis dizer não
sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir...
Tenho medo do que não chegastes a dizer... Vêde, vêde, é dia já...
Vêde o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, alli
fóra... Vêde-o, vêde-o... Elle consola... Não penseis, não olheis
para o que pensaes... Vêde-o a vir, o dia... Elle brilha como ouro
numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se á medida que
se coloram... Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, de
qualquer modo, absolutamente cousa nenhuma?... Porque olhastes
assim?...

(Não lhe respondem. E ninguem olhara de nenhuma maneira.)

*A mesma*.--Que foi isso que dissestes e que me apavorou?... Senti-o
tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu,
ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto mêdo como d'antes... Não,
não... Não digaes nada... Não vos pergunto isto para que me respondaes,
mas para fallar apenas, para me não deixar pensar... Tenho
medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer cousa
de grande e pavoroso como o haver Deus... Deviamos já ter acabado
de fallar... Ha tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido...
O que ha entre nós que nos faz fallar prolonga-se demasiadamente...
Ha mais presenças aqui do que as nossas almas... O dia devia ter
já raiado... Deviam já ter acordado... Tarda qualquer cousa...
Tarda tudo... O que é que se está dando nas cousas de accordo com
o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Fallae commigo, fallae
commigo... Fallae ao mesmo tempo do que eu para não deixardes
sosinha a minha voz... Tenho menos medo á minha voz do que
á idéa da minha voz, dentro de mim, se fôr reparar que estou fallando...
*Terceira*.--Que voz é essa com que fallaes?... É de outra...
Vem de uma especie de longe...
*Primeira*.--Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar
fallando com a voz aguda e tremida do mêdo... Mas já não sei como
é que se falla... Entre mim e a minha voz abriu-se um abysmo...
Tudo isto, toda esta conversa, e esta noite, e este mêdo--tudo isto
devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que
nos dissestes... Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes,
e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para
exprimir um horror de aquelles...
*Terceira* _(para a Segunda)_.--Minha irmã, não nos devieis ter
contado essa historia. Agora extranho-me viva com mais horror. Contaveis
e eu tanto me distrahia que ouvia o sentido das vossas palavras
e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e
o sentido do que dizieis eram trez entes differentes, como trez creaturas
que fallam e andam.
*Segunda*.--São realmente trez entes differentes, com vida propria
e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas porque é que fallamos?
Quem é que nos faz continuar fallando? Porque fallo eu sem querer
fallar? Porque é que á não reparamos que é dia?...
*Primeira*.--Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me
a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha
vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter
mêdo de que alguem possa agora bater àquella porta. Porque não bate
alguem á porta? Seria impossivel e eu tenho necessidade de ter mêdo
d'isso, de saber de que é que tenho mêdo... Que extranha que me sinto!...
Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou
a vêr... O meu pavôr cresceu mas eu já não sei sentil-o... Já
não sei em que parte da alma é que se sente... Puzeram ao meu sentimento
do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que
que nos contastes a vossa historia?
*Segunda*.--Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei...
Parece ter sido já ha tanto tempo!... Que somno, que somno absorve
o meu modo de olhar para as cousas!... O que é que nós queremos
fazer? o que é que nós temos idéa de fazer?--já não sei se é fallar
ou não fallar...
*Primeira*.--Não fallemos mais. Por mim, cança-me o esforço que
fazeis para fallar... Dóe-me o intervallo que ha entre o que pensaes
e o que dizeis... A minha consciencia boia á tona da somnolencia
apavorada dos meus sentidos pela minha pelle... Não sei o que é isto,
mas é o que sinto... Preciso dizer phrases confusas, um pouco longas,
que custem a dizer... Não sentis tudo isto como uma aranha
enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?
*Segunda*.--Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma
cousa que se não sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é
que está fallando com a minha voz?... Ah, escutae...
*Primeira e Terceira*.--Quem foi?
*Segunda*.--Nada. Não ouvi nada... Quiz fingir que ouvia para que
vós suppozesseis que ouvieis e eu pudesse crêr que havia alguma cousa
a ouvir... Oh, que horror, que horror intimo nos desata a voz da alma,
e as sensações dos pensamentos, e nos faz fallar e sentir e pensar
quando tudo em nós pede o silencio e o dia e a inconsciencia da vida...
Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe
sempre que vamos a sentir?...
*Primeira*.--Para quê tentar apavorar-me?... Não cabe mais terror
dentro de mim... Peso excessivamente ao collo de me sentir.
Afundei-me toda no lodo morno do que supponho que sinto. Entra-me
por todos os sentidos qualquer cousa que m'os pega e m'os vela. Pesam
as palpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a lingua a
todos os meus sentimentos. Um somno fundo colla uma ás outras as
idéas de todos os meus gestos... Porque foi que olhastes assim?...
*Terceira* _(numa voz muito lenta e apagada)_.--Ah, é agora, é
agora... Sim, acordou alguem... Ha gente que acorda... Quando
entrar alguem tudo isto acabará... Até lá façamos por crêr que todo
este horror foi um longo somno que fomos dormindo... É dia já...
Vae acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois
feliz, porque acreditaes no sonho...
*Segunda*.--Porque é que m'o perguntaes? Porque eu o disse? Não,
não acredito...

Um gallo canta. A luz, como que subitamente,
augmenta. As trez veladoras quedam-se silenciosas
e sem olharem umas para as outras.
Não muito longe, por uma estrada, um vago
carro geme e chia.

_11/12 Outubro, 1913._

FERNANDO PESSÔA.


*TREZE SONETOS*
DE
ALFREDO PEDRO GUISADO


_ADORMECIDA_

As tuas mãos dormiam na lagôa incenso.
E pelas alamedas destruídas, loucas,
Desceu-se em mim minha alma a procurar as bocas
Que me rezaram Ser sôbre o teu manto extenso.
Vagamente desceu sôbre o silêncio, a arfar,
Combatendo de luz, a esvoaçar no ataque...
E de noite caiu Egipto em meu olhar,
Nos teus braços em cruz, sepulcros em Karnak.
Bocas de Faraós rezam múmias cansadas...
Tebas em mim fenece em bronze de toadas,
Apagando-se em cinza em lâmpadas sombrias.
E tu adormecida há tanto tempo, em pranto.
Os cisnes na lagôa embranqueceram tanto,
Que se esqueceram Côr nas tuas mãos esguías.


_SONHO EGÍPCIO_

No palácio, os pavões são apenas dizê-los...
As asas côr do longe erguidas sôbre mim.
Existem os pavões... O meu sentir-me é vê-los...
E o meu sonhar-te, alêm, são lagos no jardim.
Quando passei no parque, eu encontrei Nitokris.
Vi-a. Fitei-lhe as mãos para poder senti-las...
Meus olhos foram naus em águas intranquilas,
Meus sentidos, aneis nos dedos de Nitokris.
Labirinto de sons. Adormeço-me oiro.
Ansia apagada. Deus desce minha alma em oiro.
Meus olhos p'ra te ver, arcadas nos espelhos.
Rezas que nunca ouvi. Hálitos de saudades.
E as tuas mãos, ao largo, ungindo divindades
Scismam Ibis, pagãos, sôbre tapetes velhos.


_PAGÃO_

... Lembro-me então de mim. Rezo-me longe. Scismo.
E o lembrar-me de mim são os meus passos idos.
Arqueia-se em azul meu próprio misticismo
E eu fico apenas Côr sôbre vitrais vencidos.
O teu hálito é luz em candelabros velhos
Aos cantos dos salões onde me vejo a orar,
E os teus passos de Dôr são um quebrar de espelhos.
Quando te quero ver, morres no meu olhar.
Abraço-me chorando. O teu morrer é vêr-me,
Oiro de asas em Tule, ardendo antiguidade--
E o ter-te visto morta, o mêdo de perder-me.
Procuro-me em silêncio e oiço-me em teus passos.
Sôbre altares pagãos ergo-me divindade
E Isis dorme meu Ser em cortinados lassos!


_VER-TE_

Estendi os meus braços p'ra abraçar-te
E entre nós uma porta se cerrou.
Um sôpro de rubins em mim voou,
Sôpro que permitiu poder sonhar-te.
Saía a tua sombra p'las janelas
E perdia-se, ao largo, em arvoredos...
Os meus dedos scismando caravelas,
Eram prolongamentos dos teus dedos.
Num parque de oliveiras te sonhei
Erguendo-te do oiro que queimei
Nas ânforas do templo do meu Ser.
Parece que te vejo e tu estás longe...
Afastei-me de mim para ser monge...
Meus olhos são a sombra de te ver!


_PRINCESA LOUCA_

Vejo passar na curva da alameda
Uma princesa há muitos anos louca,
Princesa cujo Corpo é uma roca
Em principados de faisões de seda.
A sua sombra, uma lagôa azul.
As suas mãos tecendo pinheirais,
Lembram-me naus sempre chegando ao cais,
Águias sem asas num palácio, em Tule.
Seus dedos, pregos que pregaram Cristo.
Olha-me longe. Em seu olhar existo...
Passo nas rezas duma antiga boca...
Arqueio-me a sonhar sôbre marfim.
Sou arco com que brinca no jardim
Essa princesa há tantos anos louca.


_MÃOS DE CEGA_

I
Sinto que as tuas mãos são teus olhos vencidos,
Teus olhos que esquecendo as orações da luz
São claustros apagando os passos esquecidos
De Deus ao regressar de amortalhar Jesus.
Sinto-as tanger ainda os violinos velhos,
Onde os dedos saltando em cordas de oiro, à tarde,
Te cegaram de som. E em candelabros arde
O teu antigo olhar emoldurando espelhos.
Teus dedos ao bater nas tuas mãos são remos.
Inda vejo nas salas do palácio, arfando,
As tuas mãos de Dôr entreabrindo as portas.
Buscamo-nos em Côr e quando nos perdemos
Passam as tuas mãos em meus dedos, scismando
Estátuas de marfim sôbre as arcadas, mortas...

II
Morreram os leões que guardavam perdidos
A branca escadaria. Velhos leões sombrios...
Dêles apenas resta o eco dos rugidos
Que os arcos dos salões tornaram mais esguios.
As rendas que fiaste adormeciam bocas
E as rugas no teu rosto iam caindo, fundas...
No fim do parque, à noite, as águias moribundas
Guardavam em silêncio as destroçadas rocas.
Fiavas noutro tempo os teus olhos dormentes.
Deixaste de os fiar e os teus olhos arderam
Na côr das tuas mãos, na cruz de outros poentes...
Cega de mim, partiste. E quando regressaste
Manchada de Distância, os meus sentidos eram
Palmeiras ladeando a estrada onde passaste!


_ESQUECENDO_

Os lagos dormem cisnes na alameda
E as portas do palácio estão fechadas.
As folhas a caír, rezando seda,
Sonham paisagens mortas, afastadas...
Essas paisagens foram tuas aias.
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