As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07) - 1

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EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO
AS FARPAS
_Chronica Mensal_
DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
QUARTA SERIE N.º 1
JUNHO A JULHO 1882


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição de poder,
da escravidão dos partidos da veneração da rotina, do pedantismo das
grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos
reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de
mim mesmo.
P.J. PROUDHON


SUMMARIO
A patria portuguesa e os quatro milhões d'egoismos de que ella
consta--Presente estado das ideias--A religião--A politica--A moral--A
arte--Sentido historico do centenario de Camões, sua influencia e seus
resultados--Dois annos depois--A celebração do centenario do Marquez de
Pombal considerada como symptoma psychologico--Do estadista em geral e
do Marquez em particular--Addusem-se razões e testemunhos insuspeitos
para o fim de provar que o estadista é um agente secundario entre os
acceleradores do progresso, e que o Marquez de Pombal é um individuo
secundario na classe dos estadistas--Buckle, Guizot, Bastiat, Begehot,
Herbert Spencer, Wechniakoff, Auguste Comte, Michel Chevalier, e
outros--Demonstra-se que o Marquez de Pombal exprime a negação de tudo
aquillo que a liberdade affirma e que a democracia proclama--Coerção da
agricultura, coerção da industria, coerção do commercio, coerção dos
direitos civis, coerção do pensamento--Arruamento geral de todas as
actividades nacionais pelo systema quadrangular da reedificação da
Baixa.--Secularisação do jesuitismo na pessôa do mesmo Marquez--A
estatua de Sebastião e o monumento do Terreiro do Paço--Parallelo do
cavallo e do cavalleiro--Pede-se o esquecimento para um e uma charrua
para o outro.
* * * * *
Asociedade portugueza n'este derradeiro quarteirão do seculo pode em
rigor definir-se do seguinte modo:--Ajuntamento fortuito de quatro
milhões d'egoismos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em commum.
Chamar patria á porção de territorio em que uma tal aggregação se
encontra seria abusar reprehensivelmente do direito que cada um tem de
ser metaphorico. O espaço circumscripto pelo cordão aduaneiro, dentro do
qual sujeitos acompanhados das suas chapelleiras e dos seus embrulhos ou
tomaram já assento ou furam aos cotovelões uns pelo meio dos outros para
arranjar logar nas bancadas, pode-se chamar um _omnibus_--e é
exactamente o que é--mas não se pode chamar uma patria. A patria não é o
sitio em que nos colloca o acaso do nascimento, á mão direita ou á mão
esquerda de um guarda da alfandega, mas sim o conjunto humano a que nos
liga solidariamente a convicção de um pensamento e de um destino commum.
Já um sabio o disse: _Ubi veritas ibi patria._ A patria não é o solo, é
a ideia.
* * * * *
Para que haja uma patria portugueza é preciso que exista uma ideia
portugueza, vinculo da cohesão intellectual e da cohesão moral que
constitue a nacionalidade de um povo.
Sabem dizer-nos se viram para ahi esta ideia?...
Nós temol-a procurado de aventura em aventura, de jornada em jornada,
n'uma peregrinação de vinte annos atravez d'esta sociedade, como
Ulysses, vagabundo atravez da Odyssea, em busca, do fumosinho tenue e
amigo que adeje no horisonte por cima da primeira cabana d'Ithaca.
As manifestações culminantes da mentalidade collectiva de um povo são: a
Religião, a Politica, a Moral, a Arte. Vejamos rapidamente se em alguma
d'estas espheras da nossa elaboração mental se revela a unidade de
pensamento por meio da qual se affirma a existencia de uma nação.
* * * * *
Em religião os cidadãos portuguezes dividem-se, em uma infinidade de
categorias diversas.
Temos em primeiro logar os livres pensadores, que nunca pensaram, coisa
alguma sobre este ponto, apesar da liberdade com que se dotaram para
esse fim.
Temos depois os indifferentes, que se subdividem pelos diversos graus de
medo que têem ao Incognoscivel sempre que ha epidemias ou tremores de
terra.
Seguem-se os deistas, que acceitam Deus como entidade abstracta pela
qual se explica a ordem do cosmos, no qual Deus figura como maquinista,
e egualmente se explicam as justiças da historia, nas quaes o mesmo Deus
se manifesta sob a forma de dedo,--o bem conbecido _dedo de Deus_.
Veem depois os christãos, e por ultimo os catholicos. Estes separam-se
uns dos outros por tantas diferenças de opiniões quantos são os
individuos agremiados na Igreja. Ha os que crêem na infalibidade do papa
e os que não crêem em tal infalibilidade; os que vão á missa e os que
não vão á missa; os que se confessam de tudo, os que se não confessam
senão de certas coisas, e os que de todo em todo se não confessam.
Uns encabeçam a divindade no Senhor dos Passos da Graça e, com as suas
opas roxas e suas cabelleiras anediadas pela bandolina do culto no
bairro oriental, olham com despeito para os devotos afrancesados de
Nossa Senhora de La Salette, divindade de chic suspeito ás devoções da
Baixa.
Os escolhidos do alto clero, que se gargarejam em suas tribulações com
agua de Nossa Senhora de Lourdes, garantida verdardeiro João Maria
Farina, da Gruta, sorriem de desdem pelos que ainda cuidam expurgar-se
do peccado e clarificar-se para a protecção divina com a velha agua
benta de mendigo de porta de Igreja, preparação de Santo Ignacio, hoje
desprestigiada e choca.
Aquelles proprios que são por um mesmo e unico santo lêem entre si
dissidencias acrimoniosas de detalhe.
Nós mesmos vimos ha trez annos, na volta da romagem de Nossa Senhora do
Cabo, dois cirios, que vinham já de muito longe a rosnar,
engalfinharem-se a final um no outro ao chegar a Cacilhas. Foi uma coisa
feroz. Os clerigos cessaram interinamente de tomar pitadas para se
desancarem uns aos outros com as tochas e com os cabos das lanternas,
desalmadamente. A Senhora, do alto do seu andor pousado no chão, as mãos
crusadas no seio, assistia ao debate com uma neutralidade fervorosa e
commovedora. As sobrepellizes e as capas d'asperges, que regressavam do
arraial enodoadas de vinho, de chapadas de melão e de areia vermelha,
desfiavam-se pela fricção das bordoadas; nas cabeças quebradas atavam-se
á pressa lenços eclesiasticos; e no theatro d'esta devoção ficou
bastante sangue e muito rapé derramado pelos sacerdotes.
Devemos mencionar ainda os philosophos espiritualistas, que em religião
cultivam a _duvida_ com o mesmo ardôr de vesania com que alguns
hollandezes maniacos cultivaram em tempo a tulipa.
A duvida d'estes philosophos versa sobre os diferentes feitios que pode
tomar pelo infinito fora a coisa a que elles, á força de não saberem o
que seja, deram o nome de _eterna essência._
Enquanto a gente vae em cada manhã tratar da sua vida, esses individuos
vão duvidar na solidão, ou seja nas trevas de um quarto escuro em seus
domicilios, ou seja á beira do oceano, chupados e amarellos como cidras,
com os olhos esbugalhados para a banda do Bugio. É até onde a ociosidade
pode levar meia duzia de vadios sem mais que faser! Tivessem elles em
que cuidar e não haveria perigo que a _eterna essência,_ o _increado_, o
_absoluto_ e todas as mais queixas de cabeça que os affligem
continuassem a remoel-os. Officio para as costas, uma enxó e um formão
para as mãos, com a obrigação de ganhar oito tostões por dia para
sustentar mulher e filhos, e verão os philosophos como a cruel duvida se
lhes desencasqueta que é um gosto, e lhes sae pela cabeça fora para a
roupa suja com a primeira camisa que suarem a puxar pelo corpo para
ganhar a vida, assim como até aqui teem puxado peio juizo para dar cabo
d'ella.
Em conclusão: ou seja como ponto de controversia, como motivo de briga
ou como assumpto de teima, a religião em Portugal é um elemento de
desunião, que não só perturba as relações sociaes mas destroe tambem
muitas vezes a alliança da familia.
* * * * *
Passemos á politica.
N'este campo não ha, ideia propriamente nacional,--é evidente.
Perdendo a pouco e pouco a consciencia da sua tradição historica,
Portugal, politicamente, não tem hoje papel na civilisação. Está
desempregado. Figura no congresso das nações europeias como um paiz sem
modo de vida. Perante o progresso não tem profissão. A missão que elle
desempenhou na Renascença pela obra magnifica dos seus sabios, dos seus
navegadores, dos seus commerciantes e dos seus artistas, as excellenles
condições da sua situação geographica e a paz interior de que tem gosado
emquanto a Hispanha se dilacera a si mesma nas eternas lutas
intermitentes de desaggregação e de unificação das suas provincias,
davam a Portugal o direito e o dever de assumir n'este seculo a
preponderancia hegemonica dos estados peninsulares, a direcção
espiritual da civilisação iberica. Em vez d'isso Portugal descansa
desde o seculo XVI sobre os monumentos immortaes da sua passada energia
e acha-se no movimento moderno da raça latina como uma nacionalidade com
licença illimitada para tomar ares. Os seus filhos mais intelligenles e
mais fortes, uns perseguidos, outros despresados, abandonaram-o aos
reis, aos estadistas, aos padres, aos persevejos, ás moscas, e foram uns
para os Paizes Baixos fundar e enriquecer a Hollanda e botar á luz
Spinosa; outros foram para a America Austral fundar, agricultar e
enriquecer o Brazil. O resto é o que ahi está ha dusentos annos sentado
ao sol n'uma ponta de banco do mappa-mundi, a cabecear, a coçar os
joelhos e a ouvir ranger o calabre á nora da coisa publica, puxada pelo
governo, velho boi, d'olhos tapados, afeito ao cerco peguinhado do poço
sem bica, tornando a deitar para baixo a agua que traz para cima, e não
sabendo o proprio governo, nem sabendo ninguem por que ninguem se
importa com isso, se é já o pau da nora que empurra de traz o animal ou
se é ainda o animal que tira para deante o pau da nora.
Os differentes partidos que ha muitos annos se succedcm no exercicio do
poder teem por chefes dois ou tres individuos, cujas personalidades,
absolutamente destituidas de ideias correlativas ou concomitantes,
representam as duas ou trez phases por que successivamente vae passando
e repassando em circulo sobre o mesmo carreiro a rotação governativa.
Os personagens alludidos teem as intenções mais puras e mais honestas
d'este mundo. Ter outras, deshonestas e impuras, dar-lhes-hia massada, e
para ahi é que elles não vão.
Diz-se tambem que são todos mais ou menos fortes n'essa arte, velha e
atrasada, que se chama a eloquencia e que tem por objecto desfaser pela
exageração artificial das palavras a justa proporção das coisas.
São ainda--affirma-se geralmente--habeis parlamentares, o que quer dizer
que possuem o talento de dominar as assembleias por meio de
transigencias reciprocas e de concessões mutuas, rasoirando os
parlamentos pelo nivel de uma mediocridade discreta, tão ôcca como
estéril.
Por baixo d'essas virtudes, que reconhecemos e veneramos, os homens que
ha vinte annos se revezam no governo carecem das ideias geraes de que
procede na sciencia o ponto de vista governativo. As assembleias das
duas camaras, revezando-se ora para a direita ora para a esquerda, dão
ou retiram a maioria dos votos a cada um d'aquelles senhores,
consagrando-se exclusivamente a defendel-os ou a impugnal-os, sem
portanto sahirem nunca da orbita dos principios que elles representam,
principios a que não correspondem systemas diversos c que se distinguem
apenas uns dos outros pelos signaes physionomicos dos estadistas que os
teem no ventre, podendo-se dividir assim: principios governativos
calvos, principios governativos d'olhos tortos e principios governativos
de cabellos tingidos.
Nestes esforços successivos das grandes massas intelligentes da nação
vemos dessorarem-se gerações e gerações consecutivas de deputados,
fortes temperamentos alguns, solidos provincianos de boa fé, que de trez
em trez annos o parlamento recebe vivos e honrados do interior das
provincias para trez annos depois lh'os devolver aniquilados para toda a
especie d'iniciativa, corrompidos pelo habito de serem mandados,
castrados na dignidade pela disciplina imposta pelos seus chefes, podres
no caracter pela fermentação da intriga, indelevelmente marcados para
toda a vida, pelo ferrete official, com uma pelintrice austera e
miseravel, na figura, com uma côdea veneranda de solemnidade
prudhommesca, estupida e impenetravel, no cerebro.
É pela mais justa e pela mais completa comprehensão do seu destino
social que tanto os individuos como os povos se disciplinam, se
fortalecem e se aperfeiçoam. Em Portugal a incapacidade governativa
produsiu, primeiro que tudo, este resultado funesto: fez perder ao paiz
a noção historica do seu destino, cortou o fio da tradição nacional,
lançando o espirito publico n'uma existencia d'accaso como a das tribus
bohemias. Depois o predominio da incompetencia scientifica na direcção
dos negocios dissolveu a pouco e pouco a liga que deveria estreitar a
convergencia de todas as actividades para um fim commum, e pela
separação dos interesses operou a separação das energias.
É assim que em pleno seculo XIX, quando está exhuberantemente
demonstrado que todos os factos do universo, assim na ordem physica como
na ordem social, se encadeiam uns nos outros por leis imprescriptiveis
de contiguidade e de correlação, nós vemos em Portugal exercer-se a
acção do poder no estudo dos phenomenos tratando-os isoladamente, n'um
ponto de vista fetichista, de preto botocudo, como se cada um d'esses
phenomenos, regido por uma lei especial e divina, fosse a causa e o
effeito de si proprio.
Com mil exemplos se podia comprovar a affirmação que fazemos. Mas
basta-nos um qualquer, tirado ao accaso do monte, para pôr essa
affirmação em evidencia de facto.
Veja-se como em cada legislatura se propõe e se discute uma das poucas
questões graves de que o parlamento ainda se ocupa. Referimo-nos á coisa
a que, no calão official em que tem degenerado a lingua patria, se
chama--_a questão da fazenda_.
Reunidas as camaras e aberto perante ellas o orçamento do Estado,
começa-se invariavelmente por constatar, n'um tremolo elegiaco de
symphonia funebre, que continua a existir o deficit. Cada um dos tres
governos a quem a corôa alternadamente adjudica a mamadeira do systema
encarrega-se de explicar aos tachigraphos essa occorrencia--aliás
desagradavel, cumpre dizel-o--mas de que elle, governo em exercicio, não
tem a culpa. A responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido
pelos seus esbanjamentos e pela sua incuria.
Para cada um d'esses tres governos sucessivamente encarregados de
trazerem o deficit ao regaço da representação nacional, o governo que
immediatamente o precedeu n'esse mesmo encargo é o ultimo dos imbecis.
Tal é o conceito formidavel em que cada um dos referidos tres governos
tem os outros dois!
A corôa pela sua parte--e é este o mais augusto do todos os seus
privilegios--é successivamente da opinião de todos os tres ministerios;
e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos
imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a corôa torna a restituir a
citada confiança, com uma effusão de jubilo tão sincero como o nojo
anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas collocados
chronologicamente em sentido inverso d'aquelle em que estavam, ou sejam,
por sua ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.
Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda,
decide-se que é indispensavel, _ainda mais uma vez_, recorrer ao
credito, e faz-se um novo emprestimo. No anno seguinte averigua-se por
calculos cheios de engenho arithmetico que para pagar os encargos do
emprestimo do anno anterior não ha outro remedio senão recorrer _ainda
mais uma vez_ ao paiz, e cria-se um novo imposto.
Fazem-se emprestimos para supprir o imposto, criam-se impostos para
pagar os juros dos emprestimos, tornam-se a fazer emprestimos para
atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e n'este
interessante circulo vicioso, mas ingenuo, o deficit--por uma extranha
birra, admissivel n'um ser teimoso, mas inexplicavel n'um mero saldo
negativo, em uma não existencia,--augmenta sempre atravez das
contribuições intermittentes com que se destinam a extinguil-o já o
emprestimo contrahido, já o imposto cobrado.
Assim como os alforges dos antigos pobres das feiras e das extinctas
ordens mendicantes, o deficit tem dois sacos, um para deante outro para
traz, ambos destinados a receber o vacuo. N'um dos sacos mette-se a
divida fluctuante, no outro mette-se a divida consolidada. De quando em
quando ha um relampago de jubilo, porque parece por um momento que o
alforge do deficit está vasio, isto é, que está sem vacuo dentro: é a
divida, que se achava em estado de fluctuação no saco da frente, que
passou no estado de consolidação para o saco de traz.
A alegria fugaz mas intensa que provem da illusão d'esta gigajoga vale o
dinheiro que custa, mas custa sempre alguma coisa, porque de todas as
vezes que elles mexem na divida, seja para o que fôr, mesmo para a mudar
de saco, ella cresce.
Pela parte que lhe respeita o paiz espera. O quê? O momento em que pela
boa razão de não haver mais coisa que se collecte, porque estará,
collectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais quem
pague.
No emtanto o problema de augmentar a riqueza--unico meio de prover aos
encargos--é considerado como absolutamente extranho á _questão da
fazenda_. E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não augmenta
senão pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha
ligado aos progressos da industria.
Ora emquanto á industria ... Mas este novo ponto pode ficar para outra
vez. O feliz encyclopedismo das inaptidões do estado proporciona-nos a
facilidade de poder comprovar a sua incapacidade com um só facto
qualquer, demonstrando que no paiz coliocado sob o patrocinio de um tal
governo, não pode dar-se senão uma especie de cohesão politica:--a liga
dos governados para o despreso convicto dos que governam.
* * * * *
Na moral estamos como na religião. Cada um tem a sua, feita á fórma do
seu pé como as botas por medida, com a concavidade de uma cupola moldada
á protuberancia de cada calo.
Ha em primeiro logar as duas grandes circumscripçõcs--da moral publica e
da moral privada, inteiramente diversas uma da outra. D'ahi a distincção
casuistica entre a honestidade politica e a honestidade pessoal. Em
virtude d'essa distincção o mesmo individuo pode, ser cumulativamente o
mais honrado dos cavalheiros e o mais abalisado dos velhacos. Na
politica ha carta branca para tudo: para mentir, para intrigar, para
caluniar, para trahir, para furtar. No terreno politico o sujeito pode
ser refalsado, impostor, venal, infiel, servil, covarde. Todos os
vicios e todas as abjecções se acobertam com esta virtude absolutamente
latitudinaria--a _fidelidade ao partido_. Está assentado e decidido para
todos os effeitos que as nodoas da vida publica não distingem sobre o
caracter pessoal. O cavalheiro que pela manhã leu nos jornaes, ou ouviu
nas camaras, sem as combater e sem as refutar, as ultimas injurias que
podem ferir o homem no que elle deve ter de mais caro no seu caracter ou
no seu coração, na sua familia, na sua honra, na sua probidade, no seu
pudor, no seu brio, vae á noite jantar regosijado e tranquillo na mais
santa paz da consciencia no aconchego immaculado da familia, na estima
inalteravel da amisade; e com a gravidade austera, convicta e bondosa,
de um patriarcha, estende a mão suja das suspeitas mais torpes aos seus
amigos, que lh'a apertam, e dá a beijar á sua filha, risonho e calmo, a
face esbofeteada pelas accusações mais vergonhosas.
Um dos principaes caracteriscos da integridade moral de uma pessoa está
no accordo das ideias com as palavras e das palavras com as obras. Na
intriga constitucional cujo vicio congenito é a pusilanimidade e a
hypocrisia, esse accordo é uma chimera. No parlamento portuguez ninguem
diz inteiramente, o que pensa, qualquer que seja a questão de que se
trate. Os negocios om discussão são debatidos por dois aspectos
radicalmente diversos, na sala e nos corredores da camara. Cá fóra
diz-se a verdade. Lá dentro faz-se o discurso, o que é uma coisa
inteiramente differente e ás vezes opposta. A eloquencia parlamentar é a
instituição official da ficção sob a fórma litteraria de nenia, de
cantata, de sermão, de estopada ou de descompostura.
A influencia do regimen politico sobre a moralisação geral dos
caracteres é profunda e fatal. A escola evolucionista tem demonstrado
por meio de razões experimentaes que a faculdade a que geralmente se dá
o nome de _consciencia_ se fórma pelo desenvolvimento de duas tendencias
combinadas posto que apparentemente oppostas: a tendencia egoista e a
tendencia sympathica. Depois da applicação da fecunda theoria biologica
de Darwin ao estudo e á renovação das sciencias sociaes ficou
perfeitamente estabelecido que a moral, cujo objecto é o equilibrio
entre o instincto pessoal da conservação e o instincto social da
sympathia, tem por base, mais ou menos remota, mais ou menos disfarçada,
o interesse.
Nota Spencer que aquelles que sempre tiveram saude são pouco
compadecidos com as doenças dos outros. A piedade é a lembrança ou a
imagem antecipada de um soffrimento, imagem que, produzida em nós pelo
aspecto d'um soffrimento alheio, nos causa uma dôr analoga.
O interesse assim definido é effectivamente a base de todas as moraes. A
propria moral do Evangelho o que é senão a mais lucrativa das
transacções entre o homem e o infinito?
Em uma sociedade constituida as tendencias sympathicas estão portanto
naturalmente em proporção e em harmonia com as tendencias egoistas
determinadas pela constituição do meio.
Um governo ignorante, vivendo na trapaça, no favoritismo eleitoral, no
compadrio, nas dependencias aviltantes do dinheiro, fazendo carreira aos
mediocres humilhados, empecendo o exito no mundo official ás
inflexibilidades energicas e fecundas, dissolve a moral publica porque,
corrompendo os interesses legitimos da communidade, abastarda
correlativamente as sympathias dos individuos.
Um momento depois, como os trez pedagogos comparecessem á real presença,
enrolados á pressa nas togas do professorado, de barretes de dormir, com
as competentes pennas de pato aparadas da vespera e mettidas atraz das
orelhas, o rei disse-lhes:
--Esse jumento que ahi está, (e estendendo o seu dedo magnimo, com um
largo gesto antigo indicava o principe, vestido de general, de esporas e
chapeu armado, que bocejava encostado ao sabre de seus antepassados)
esse real jumento ignora completamente os deveres mais rudimentares de
um principe para com a sua princesa. E é para isto que eu tenho tido
aqui á engorda durante quinze annos tres burros de tres mestres!... Ora
muito bem: vou deixar-vos a sós por espaço de cinco minutos com tão
repulsivo idiota. Se ao cabo de cinco minutos, contados pelo relogio,
elle não estiver ao facto d'aquillo que todo o homem de barbas na cara
deve saber para não vir para aqui a estas horas _nanar_ n'uma cadeira,
decapito-vos a todos trez esta noite como cação appropriada para
fecundar os germens originaes da nossa inspiração artistica, trabalho de
que apenas se encontram vestigios na obra de Garrett.
Depois do terramoto, que subverteu muitos monumentos d'arte preciosos
para a educação esthetica do povo, a dictadura grosseiramente utilitaria
do marquez de Pombal, primeiramente, e o burguezismo liró do regimen
constitucional, depois, deram á producção artistica da moderna epoca
liberal o caracter pelintra, ao mesmo tempo pretencioso e chato, de
padre catita, de jesuita amanuensado, de sargento victorioso, caracter
que distingue a arte portugueza de 1830 para cá, e que deu o stylo de
banbolina de paninho, de balaustre azul e branco, de festão de murta e
d'areia encarnada, a que podemos chamar na historia da decoração--o
_stylo furriel dos batalhões da carta_.
Onde está ahi o artista em cuja obra se ache reflectida a influencia do
antigo genio portuguez? Onde está o escriptor que se possa considerar o
interprete legitimo do gosto, das ideias, das convicções dos sentimentos
do publico?
Os escriptores contemporaneos podem-se dividir em quatro grupos. O
grupo academico official, o grupo dos convulsionarios, o grupo dos
insubmissos e o grupo dos domesticados.
Os escriptores do primeiro grupo são os velhos caturras coroados pelo
laurel das commissões retribuidas, semsaborões emeritos acommodados pelo
governo em confortaveis cadeiras de caixa, destinadas a receber para o
Estado os fluxos da litteratura classica. Nunca ninguem no vasto publico
pôde jamais apreciar a obra d'esses sabios, porque tudo quanto elles
desassimilam em fórma de prosa passa em padiolas, circumdadas de
respeito, dos prelos das typographias para o gorgulho dos archivos e só
depois de se ter gorgulho compenetrado por espaço de muitos annos do
teor d'essas producções é que ellas chegam ás casas particulares sob a
fórma de involucro de generos alimenticios, como as salchichas, ou de
simples aromas culinarios, como o cravo da India e o colorau picante.
Os convulsionarios, que são os mais numerosos, denominam-se
republicanos, e julgam-se auctorisados, sob esse estandarte de revolta,
para se collocarem em berrata furibunda e em dessidencia enthusiasmada
com tudo: com a monarchia, com a religião, com a grammatica, com os
mesarios da freguezia das Chagas, com os verbos, com as hostias, com as
luvas, com os breviarios, com a syntaxe, com o imposto, com o Senhor dos
Passos, com o diccionario, com o codigo e com o senso commum. Nada
escapa á dissencia fundamental d'estes escriptores terriveis. Estão em
combate acerrimo com tudo. E com o resto estão em contradicção. São o
_cliché_ negativo do mesmo estado mental de que o governo é a estampa
vista em sentido inverso. São o estado posto de cabeça para baixo a
andar nas mãos em vez de andar nos pés. São o conselheiro Arrobas virado
pelo avesso, e invertido, com uma concavidade concernente a cada bossa,
e com uma protuberancia relativa a cada buraco da sua natureza.
Os insubmissos, desagremiados da massa, são dez ou doze solitarios
apenas, que reagem ás correntes do movimento geral por meio d'algumas
razões experimentaes postas em verso ou em prosa, e reduzidas a algumas
paginas de poema, de romance ou d'historia.
A honesta sinceridade d'estes escriptores, geralmente confundida com um
cynismo de _pose_, com um charlatanismo de originalidade, é antipathica
ao publico, que todavia os lê com uma certa avidez, impellido pela
curiosidade que atrae a multidão gulosa do anormal para os livros
d'elles, assim como para as barracas de feira em que se mostram vitellas
com duas cabeças, das quaes uma de papelão; e meninas gordas com seis
barrigas, todas postiças.
Os domesticados representam o elemento inoffensivo e ameno das lettras a
que chamaremos simplesmente _burguezas_ para as distinguirmos por uma
_nuance_ das lettras consagradas, a que chamamos já _officiaes_.
Os escriptores d'esta classe acceitam docilmente tudo quanto se acha em
vigor no regimen vigente para não terem o incommodo de inventar nem o
desgosto de se comprometterem com as familias particulares ou com os
poderes publicos por meio de novas exhibições, aliás inuteis para a
marcha regular do intellecto lusitano atravez dos meandros macadamisados
da Baixa.
Elles vão para as glorias da posteridade, assim como os gatos para as
aventuras de telhado,--pelo cheiro uns dos outros. Quando lhes não
fareja outro que tivesse passado primeiro, hesitam em sua marcha,
tremem-lhes as pernas, e acocoram.
Teem convicções profundas ácerca de tudo aquillo de que estavam
profundamente convencidos os seus maiores, e a sua vocação, irresistivel
e indomavel, é para fazer tudo o que já está feito.
Em religião são catholicos apostolicos romanos; em politica são
monarchicos liberaes; em philosophia são ecleticos da escola do grande
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