As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07) - 3

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acção do estado sobre os actos dos individuos, reivindicando sobre os
restos das velhas tyrannias auctoritarias todas as liberdades
proclamadas pela Revolução, a liberdade de imprensa, a liberdade de
cultos, a liberdade de ensino, a liberdade de associação, a liberdade de
reunião, a liberdade de commercio, a liberdade de industria, a liberdade
de trabalho.
A personalidade de um estadista da escola do marquez de Pombal
representa a negação expressa de todas essas liberdades, representa a
revivescencia do antigo despotismo monarchico, a coerção do homem sobre
o homem, quando o que todos nós pedimos desde Danton para cá, em nome da
dignidade da especie, rehabilitada pela sciencia na posse de si mesma, é
o livre exercicio da acção do homem sobre a natureza.
Os unicos povos do globo que ainda hoje acceitam, não diremos com os
regosijos de um triumpho, mas simplesmente sem discussão, sem protesto
ou sem revolta, o principio da auctoridade representada pelo arbitrio de
um individuo, são os selvagens; são os aschantis, cujo rei, herdeiro
unico e forçado de todos os seus subditos, tem 3:333 mulheres e um
numero proporcionado de filhos, com o direito de saque sobre toda a
communidade; são os kafungas do Valle do Niger, onde ninguem se
approxima do soberano senão com as mãos no chão e a cabeça arrastada na
lama; são os abyssinios, que nascem todos escravos do rei seu dono: são
os malanesios, cujo chefe tem o tratamento de _Deus_; são finalmente os
cafres, os botocudos, os topinambas, os patangonios e os esquimaus.
Na Europa já não ha d'isso.
Com a emancipação intelectual dos governados acabou o prestigio dos
governantes.
A Hispanha, a Italia, a França, a Inglaterra, a Allemanha celebram com
religiosa piedade filial os centenarios dos seus poetas, dos seus
artistas, dos seus philosophos, dos seus paes espirituaes, dos seus
bemfeitores. Em região nenhuma do mundo arroteada pela civilisação se
celebra o culto do estadista, agente ephemero de estados sociaes
transitorios, especie sempre brutal se triumpha das resistencias, sempre
impura se se concilia com ellas, engenho destinado a condensar poder e a
segregar leis, tão passageiras como o apparelho de que procedem, e todas
más sempre que não teem por objecto a revogação d'outras que as
precederam.
A sciencia anthropologica confirma inteiramente o instincto popular no
seu desdem pelas faculdades dos chamados homens d'estado. O snr
Wechniakoff, emprehendendo recentemente n'uma obra de anthropologia
psychologica a historia natural dos _grandes homens_, divide estes em
tres grupos: os monotypicos, os polytipicos e os philosophos. No
primeiro grupo entram as altas intelligencias monocordes como as dos
poetas, dos pintores, dos musicos, dos engenheiros, dos astronomos, etc.
O segundo grupo compõe-se dos espiritos de natureza multipla cuja
actividade se exerce nos trabalhos mais variados, cujos resultados elles
são todavia impotentes para coordenar em conjuncto. Pertencem a esta
familia Haller, poeta, naturalista, physiologista, auctor de 576 obras e
de 12:000 artigos bibliographicos; Humboldt, que aprendeu philologia
aos setenta annos e publicou a ultima parte do _Cosmos_ dos oitenta e um
aos oitenta e oito annos de idade; Bernardo Palissy, Plater, Alberti. O
terceiro grupo, subdividido em grupo philosophico permanente e grupo
philosophico transitorio, consta na primeira parte de individuos como
Auguste Comte, Leibnitz, Lagrange, e na segunda de Newton, Grove, Daniel
Bernouilli, etc.
Em nenhuma d'essas categorias se comprehendem os estadistas, porque a
anthropologia psychologica não acceita como grandes homens senão os
creadôres da arte, da sciencia ou da philosophia.
* * * * *
Determinada a especie, passemos agora a examinar o individuo.
Durante o seculo XVIII--diz Michel Chevalier--vemos successivamente
passar na direcção dos negocios na maior parte dos Estados, ou seja como
rei ou como primeiro ministro, um reformador applicado a destruir a
supremacia da nobresa e do clero, com o fundamento de que a nobresa
tendia a attribuir-se uma parte das prerogativas do governo em
detrimento da realesa e por vantagem propria, emquanto o clero aspirava
a dirigir a sociedade ficando elle, unicamente sujeito a um soberano
extrangeiro que com uma triplice corôa na cabeça se considerava o rei
dos reis. N'este presupposto era como senha dada e geralmente obedecida
suscitar por meios mais ou menos artificiaes, á falta d'outros mais
convenientemente entendidos e mais efficazes, o desenvolvimento da
agricultura, do commercio e das manufacturas, afim de augmentar a
riqueza dos povos e os recursos do Estado, de que o principe dispunha
arbitrariamente. Parecia util espalhar a instrucção, porque ella
contribue para formar uma opinião publica que pode contrabalançar a
auctoridade do clero sobre os espiritos. Quanto ao mechanismo do governo
punha-se completamente de parte a liberdade. A divisa era: O estado é o
principe. Todos o pensavam com quanto o não proclamassem como Luiz XIV.
Esta feição geral encontra-se em graus diversos, sob formas differentes
e com accessorios appropriados aos logares e ás circumstancias em varios
estados durante uma ou outra parte do seculo XVIII. No norte essa
expressão é brilhante na côrte do grande Frederico e da grande
Catharina; no centro da Europa na côrte de José II. No sul apparece em
Pombal, e, em grau menor, nos dois hispanhoes rivaes um do outro
Campomanes e Florida Blanca.
D'esta exposição tão clara do systema geral de reformas governativas na
Europa durante a primeira metade do seculo passado, exposição devida a
uma auctoridade tão insuspeita como a do economista Michel Chevelier,
deduz-se immediatamente que o talento politico do marquez de Pombal
carece de originalidade.
Esta circunstancia destroe em grande parte o intuito patriotico que
geralmente se lhe alttribue de pretender, n'um ponto de vista nacional,
reformar e reconstituir a sociedade portugueza dissolvida por duzentos
annos de despotismo monarchico e catholico. O arrojado ministro do rei
D. José era apenas um reformador de segunda mão. Como revolucionario a
sua carreira é de pé posto no circulo feito em torno das realezas
estremecidas por todos os dictadores que se haviam seguido a Richelieu
no governo das monarchias modernas.
As reformas de Pombal não são o producto puro de um talento pessoal mas
sim os ultimos effeitos de uma corrente contagiosa de ideias, ao tempo
d'elle quasi todas já envelhecidas e refutadas.
O que elle representa na civilisação não é a personificação de um genio
mas sim o advento de um novo poder, que o enfraquecimento das raças
reinantes tornava necessario, que então apparecia pela primeira vez e
que Auguste Comte denominou o _poder ministerial._
Este facto exprime um consideravel progresso politico, de que Pombal é a
funcção. O estabelecimento do poder ministerial é a reversão, ao valor,
da auctoridade até ahi adstricta ao nascimento.
Antes de assumir a dictadura em que o investiu o rei D. José, Pombal
viajara, residira como embaixador na Inglaterra e na Austria, convivera
com homens de espirito iniciados nas ideias da philosophia franceza, mas
nem da revolução intellectual da França nem da revolução economica da
Inglaterra elle comprehendeu o mechanismo. Unicamente os processos da
politica austriaca, de uma meticulosidade italiana e de um rigor allemão
o penetraram inteiramente.
A imperatriz Maria Thereza, que envolvida nos mais altos negocios da
politica internacional europeia funda _commissões de_ _castidade_ para
salvaguardar as esposas das infidelidades maritaes, sem que todavia isso
a empeça de escrever epistolas ternas a Madame de Pompadour, amante de
Luiz XV, dá bem o modelo da politica pombalina, policiando tudo no reino
desde os primeiros segredos da diplomacia até aos ultimos mysterios das
alcovas.
Na côrte de Vienna encontrou o marquez de Pombal, em elaboração, as
ideias que pouco depois deviam constituir o programma politico do
imperador José II, cuja impetuosidade de caracter Maria Thereza
procurara conter em quanto viva e cujos projectos de reforma eram tão
similhantes áquelles que o marquez realisou em parte como primeiro
ministro na côrte de Lisboa.
Abolição da escravidão, do direito de primogenitura, dos dizimos, da
caça privilegiada; reconhecimento dos judeus e dos protestantes como
cidadãos; todo o cidadão considerado capaz de alcançar qualquer emprego;
suppressão dos conventos inuteis transformados em hospitaes e em
estabelecimentos de instrucção; desenvolvimento das universidades e das
academias; protecção das pautas á industria nacional: tal é a parte do
programma de José II que o ministro portuguez procurou pôr em execução
no seu paiz.
Mas José II ia um pouco mais longe, e a declaração completa da sua
politica ao subir ao throno, pouco mais ou menos pelo mesmo tempo em que
Pombal cahia, mostra-nos que este não aprendera inteiramente a lição que
as suas convivencias e os suas ligações austriacas lhe haviam
ministrado.
O imperador José II declarou que _reinar sobre homens livres era a sua
unica paixão como rei_. Pombal, preoccupara-se pouco, com a liberdade
conferida aos cidadãos que governara. Esta differença fundamental entre
o reformador austriaco e o reformador portuguez reflecte-se na obra de
cada um por meio dos effeitos mais expressivos.
Assim, emquanto o marqucz de Pombal confere o tratamento de magestade ao
_tribunal da Inquisição_ e funda o famoso e terrivel _tribunal da
Inconfidencia_, José II substitue a todas as jurisdições, ecclesiasticas
e feudaes, tribunaes civis de varias instancias emmergentes d'um unico
tribunal supremo. Emquanto Pombal funda a Real Mesa Censoria, José II
transfere para os membros das academias e das universidades a censura
até então exercida pelo clero. Emquanto Pombal reserva para a corôa o
direito de nomear e de demitir sem mais fórma de processo todos os
funccionarios da nação, José II funda a lei dos concursos. Emquanto,
finalmente, Pombal manda suppliciar n'um aulo de fé, com cincoenta e
tres condemnados, o pobre cretino Malagrida na idade de setenta e tres
annos, José II estabelece o principio da tolerancia, conferindo a toda a
aggregação religiosa de tres mil almas, de qualquer seita que sejam, o
direito de edificar um templo e de subsidiar um pastor.
Nas praticas administrativas Pombal é da escola de Colbert, refutada em
Inglaterra desde o meiado do seculo. O systema protector pombalino e o
systema colbertista, de que elle é copia, dão em Portugal e em França
resultados similhanies. Pombal que recebera da administração de D. João
V um cofre em que nem havia com que pagar o enterro do rei, entrega a D.
Maria I o erario com uns poucos de milhões, um exercito numeroso e uma
boa esquadra. Colbert escrevia ao soberano em 1662: «Os rendimentos
estavam redusidos a 21 milhões e ainda esses comidos por dois annos;
hoje estão em 50 milhões. Então o rei pagava 20 milhões de juros; hoje
não paga um _sou_.
Então o rei, dependente dos financeiros, não podia fazer despesa alguma
extraordinaria; hoje, depois da compra de Dunkerque, a Europa vê-o
bastante rico para comprar o que quizer. Então não havia marinha; hoje
vinte e quatro naus acabam de ser construidas, etc.»
A prosperidade de um povo não póde porém ser aquilatada pelo dinheiro
que o principe possue no erario á sua disposição, nem pelo numero das
baionetas dos soldados ou das boccas de fogo dos navios que elle tenha á
mão para fazer guerras. O Estado é um apparelho, não é uma
individualidade. O Estado tem funcções e não tem mais coisa nenhuma, nem
bens, nem crenças, nem opiniões.
O Estado tem obrigação restricta de ser pobre, exactamente como tem
obrigação de ser atheu. Onde o Estado enriquece, a communidadc está
roubada, porque se lhe extorquiu mais em imposto do que se lhe deu em
serviços, e as relações dos individuos com o Estado, tendo por base a
troca, não podem ter por fim o lucro do mesmo Estado, representado pelo
principe, pela côrte, pela nobreza ou por qualquer outra classe
privilegiada.
Quando o Estado se constitue protector torna-se objecto de uma
superstição grosseira e perigosa. A fé posta na protecção do governo é
uma derivação da fé no milagre. Essa fé dissolve todas as aptidões,
todas as iniciativas, todas as forças de uma sociedade. Os que acreditam
na acção providencial dos estadistas sobre os desenvolvimentos da
riqueza, e da prosperidade dos povos perturbam tudo pela confusão dos
poderes de que abdicam, delegando-os no governo. Os proletarios pedem a
abolição dos direitos de importação dos cereaes e dos tecidos para terem
o pão e o vestido mais barato; os cultivadores e os industriaes requerem
direitos prohibitivos de concorrencia para venderem mais caro os
productos da terra e os das fabricas; os operarios requerem augmento de
salario; os patrões solicitam augmento de trabalho; e todo o accordo,
desde que o Estado intervem, se torna impossivel entre aquelles que
produzem e aquelles que consommem.
Nenhuma das industrias que o marquez de Pombal fundou pela protecção lhe
pôde sobreviver na liberdade. Todas as grandes companhias de industria
ou de commercio fundadas por elle desappareceram sem o menor vestigio na
prosperidade ou na riqueza, publica,--a companhia do Maranhão, a de
Pernambuco, a dos Vinhos do Douro, a da pesca da baleia, a da pesca do
atum. Todas as fabricas que elle montou cahiram successivamente umas
depois das outras. A razão é que a industria não é um artigo de
importação mas sim um ramo da sciencia applicada. O unico meio de
suscitar industrias e de crear commercio é introduzir sciencia e dar
liberdade.
O vasto plano do marquez de Pombal tendente a uma completa e total
reconstrucção social é, pela sua mesma natureza absoluta, a negação do
seu talento politico. Tendo por fim condensar os esforços da progressão
social, toda a politica efficaz tem necessariamente de ser tão lenta
como essa progressão. O snr Oliveira Martins chama ao governo do marquez
de Pombal um terramoto. Effectivamente o enorme conjuncto d'essas
disposições legislativas e policiaes destinadas a refazer de um jacto
uma civilisação, representam uma força tão poderosa e ao mesmo tempo tão
irracional como o abalo de terra que em alguns minutos destroe uma
cidade.
O snr Dubost, apreciando na _Revue de Philosophie Positive_ as altas
qualidades de Danton como homem de estado, diz que o caracter principal
da sua politica consiste na necessidade que elle comprehendeu de
renunciar deliberadamente a intentar a reconstrucção total da sociedade
franceza, mantendo-sc energicamente em uma obra relativa, que deve
consistir em permittir a elaboração dos elementos que por si mesmos hão
de gradualmente produzir a reconstituição. Pombal desconhecia
completamente essas leis fundamentaes da politica, que subordinam as
funcções governativas á independencia do meio social, não permittindo
medida alguma que a opinião não solicite, que a vontade publica não
reclame.
Condorcet na sua biographia de Turgot, de quem elle foi o amigo e o
collaborador, diz: «Deve-se evitar na reforma das leis: 1.º tudo quanto
possa perturbar a tranquillidade publica; 2.º tudo quanto produza
grandes abalos no estado de um grande numero de cidadãos; 3.º tudo
quanto encontre de frente preconceitos ou usos geralmente recebidos.
Algumas vezes succede que uma lei não pode produzir todo o bem que
promette ou não se pode pôr em execução porque a opinião lhe é adversa;
n'esses casos _cumpre começar por mudar a opinião_.»
Para o ministro do rei D. José não havia senão uma opinião--a d'lle, e o
publico não era mais que uma grande massa passiva e bruta, que elle se
julgava destinado a modelar sob vários aspectos mettendo-a em formas,
como se faz aos pudins.
Derivando todas as liberdades da pessoa do rei, elle recalcou sempre
pelo terror todas as revindicações de independencia collectiva ou
pessoal. Nunca nos estados modernos da Europa o despotismo assumia um
caracter mais cruel, mais sanguinario mais implacavel que o do regimen
pombalino em Portugal. Proudhon diz que a tyrania está sempre na rasão
directa da grandeza da massa dominada. A administração do reinado de D.
José é uma excepção a esta regra. Em tão pequena familia tão grande
oppressão como aquella de que a sociedade portugueza deu o espectaculo
durante o ultimo quarteirão do seculo XVIII foi o espanto e o horror do
mundo civilisado.
A tremenda catastrophe do terramoto lançara o panico, o horror, a
confusão, o desequilibrio em todos os espiritos, em todas as relações
sociaes, em todos os interesses economicos. A catastrophe nacional
derivada d'essa revolução geologica prepara o advento da dominação
pombalina, assim como o terror na revolução franceza prepara o advento
da dominação napoleonica. Em França como em Portugal a sociedade havia
perdido sob o golpe de uma desgraça esmagadora a faculdade de resistir.
No meio do desfallecimento geral que por algum tempo se succedeu á
violencia da crise, Pombal pretendeu reconstruir a sociedade perturbada
exactamente pelo mesmo processo por que reconstruiu a cidade em ruinas:
ao esquadro e á regua, como um pedreiro cabeçudo e valente, tomando a
symetria pela ordem; sem respeito algum pela dignidade das ideias e dos
sentimentos; sem a menor noção da elevação e da belleza moral; sem arte,
sem graça, sem elegancia, sem gosto; n'uma feroz teimosia de omnipotente
sapador, alinhando, razoirando, espalmando, achatando, estupidificando
tudo. São os brutaes arruamentos quadrangulares da Baixa prolongados a
toda a área da ordem social.
De cima a baixo, de norte a sul, de este a oeste, tudo arruado! Para ali
os algibebes, para ali os professores, os bacalhoeiros, os poetas e os
capellistas; para acolá os retrozeiros, os latoeiros, os artistas e os
philosophos. Para os sapateiros aqui estão as formas; para os
philosophos aqui estão as ideias, para os retrozeiros aqui estão as
linhas; para os artistas aqui está a natureza, a sensibilidade, o
temperamento e a paixão.
Elle só gisa, mede, talha, corta, almotaça, esposteja, aquartilha,
taberneia, baldroca, amesinha e a apilula tudo,--o arroz, o vinho, a
manteiga, o bacalhau, o briche, o oleo de ricino, o ensino publico e
particular, as missas, a poesia, a architectura, a musica, a esculptura,
a philosophia, a historia, a moral e a canella.
A cada um o seu regulamento e o seu arruamento, com quatro forcas e com
duas mas, direitas, parallelas rectilineas, vindo todas dar á grande
praça central com a besta de bronze ao meio, sustentando em cima,
vestido á romana com um sceptro na mão, um pulha inepto, de bronze para
pensar, de cebo para resistir.
Nos patibulos, que servem de signos geodesicos á triangulação do
systema, nunca durante dez annos deixou de pernear alguem para recreio
do principe e escarmento dos subditos.
Toda a reclamação, ainda a mais moderada, contra medida promulgada pelo
omnipotente ministro era considerada crime de lesa-magestade e d'alta
traição.
O supplicio dos Tavoras e do duque de Aveiro e o auto de fé do padre
Malagrida são monstruosos de mais para que façamos d'elles argumentos de
historia. A ferocidade levada a um tal requinte deixa de pertencer á
critica; está fora da historia assim como está fora da humanidade: é uma
reversão ao canibalismo, cujo estudo compete á psychologica pathologica.
Explica-se geralmente pela necessidade politica de abater e de humilhar
a nobreza esse processo caviloso e infame, em que o ministro de D. José
é ao mesmo tempo juiz e parte, e em que os réus são julgados sem defeza
e sem exame de provas sob a accusação de uma tentativa de regicidio, em
que hoje se sabe achar-se completamente innocente a familia Tavora;
assim como estava innocente o marquez de Gouveia, exhautorado do seu
titulo, officialmente infamado e encarcerado nos carceres sem ar e sem
luz do forte da Junqueira desde os dezoito annos de idade até os trinta
e sete; assim como estavam innocentes o marquez d'Alorna, encarcerado
no mesmo forte: a marqueza d'Alorna e as suas duas filhas, presas no
convento de Chellas; D. Manoel de Sousa Calhariz, avô do duque de
Palmella, encarcerado na Torre do Bugio, onde morreu; e a infeliz
duqueza d'Aveiro, a qual, depois de sequestrados todos os seus bens,
perseguida até o seu ulliino suspiro pelo ódio do marquez de Pombal,
morreu no convento do Rato, servindo a cosinha das freiras como creada
de pé descalço.
Singular modo de aviltar uma classe, sagrando-a assim pelo martyrio!
Decorreram mais de cem annos sobre a carnificina canibalesca de 13 de
janeiro de 1757. Povoam ainda as nossas imaginações e vivem eternamente
immortalisadas pelas nossas lagrimas as doces e legendarias figuras
d'esses fidalgos: a marqueza de Tavora, de uma physionomia tão elevada e
tão elegiaca, alta, magra, severa, envolta na sua longa capa alvadia,
assistindo no patibulo á descripção do suplicio por que vae passar a sua
familia, comprimindo no silencio da dignidade toda a explosão da dôr e
dobrando, sem um grito, sobre o cepo, a cabeça coroada de cabellos
brancos que o carrasco fere de um golpe de machado pela nuca, fazendo-a
pender por um instante segura ao busto pela pelle da garganta. O altivo
e marcial marquez de Tavora, macerado e encanecido, contemplando os
cadaveres da sua mulher degolada, do seu filho com os ossos esmigalhados
pelo masso de ferro que um momento depois lhe ha de bater no peito, em
que elle crusa os braços, deixando rolar nas faces duas grossas lagrimas
mudas e tragicas, unico protesto contra o holocausto necessario para
desatranvacar dos empeços de familia o caminho que conduz á alcôca da
amante do seu rei. O joven José Maria de Tavora, finalmente, com vinte e
um annos de idade, bello, gentil e amado, vestido de veludo preto e
meias de seda côr de perola, os cabellos annellados e louros presos por
um laço de fita.
E na saudade dolorosa que nos desperta esse quadro do pretendido
aviltamento da aristocracia portugueza ninguem comprehende os tres
plebeus creados do duque d'Aveiro, egualmente suppliciados por terem
acompanhado seu amo na emboscada da Ajuda sem todavia haverem
participado na aggressão ao principe.
Esses tres innocentes, João Miguel, Braz José Romeiro e Manoel Alvares
Ferreira, comparecem no patibulo por ordem do juiz supremo Sebastião
José de Carvalho, em camisa e calções, de pernas nuas e pés descalsos,
despresiveis e grotescos, despoetisados para a legenda sentimental da
morte pelo julgador egualmente plebeu que, para se extrahir d'esta
miséria truanesca da simples canalha, se condecora a si mesmo com o
direito de morrer com meias de seda, encorporando-se alguns dias depois
com o titulo de conde d'Oeiras na mesma nobreza que pretendia aviltar e
destruir.
É a isto que os apologistas de Sebastião chamam o nobre intuito
democratico de elevar a plebe e de constituir a burguezia.
Mais expressivo e mais concludente que este extranho methodo de
egualisar as condições sociaes, é na historia da administração pombalina
o systema geral de perseguição sanguinaria a toda a manifestação de
liberdade affirmada, de castigo tremendo a toda a transgressão da lei
escripta. Chega a não ser preciso desobedecer, basta não gostar
completamente do regimen em vigor para ser immediatamente punido por
isso. Em 1756 o marquez de Pombal decreta uma gratificação de 400 mil
cruzados a todo o delator d'aquelles que disserem mal do seu governo.
No mesmo anno como lhe desagrade não se sabe porque, o seu collega no
ministerio Diogo de Mendonça Corte Real, manda-o sahir de Lisboa dentro
de tres horas e prende-o na praça de Masagão até que, cedida essa praça
aos marroquinos, é transportado para as Berlengas, onde morreu esquecido
e abandonado. Similhante sorte teve o successor de Diogo de Mendonça,
Thomé Joaquim da Costa, que o marquez enfastiado mandou, sem culpa
formada como o outro, para o castello de Leiria, onde morreu. Em 1753,
como a Mesa do Bem Commum representasse humildemente em nome dos
commerciantes de Lisboa contra o privilegio exclusivo do commercio do
Maranhão e do Grão Pará conferido a uma companhia, encarcera no
Limoeiro, sem outra forma de processo, todos os commerciantes
peticionarios e o advogado João Thomaz de Negreiro, redactor da petição.
Este foi degradado por oito annos para Masagão. Todos os negociantes
foram deportados por mais ou menos annos. Em 1757, em consequencia da
assuada popular a que deram motivo os monstruosos vexames da Companhia
dos Vinhos do Alto Douro, manda ao Porto a famosa alçada que enforca
vinte e um homens e cinco mulheres e condemna a degredo, a confiscação e
a multa 211 pessoas de ambos os sexos. Em 1776, para o fim de castigar
alguns refractarios ao serviço militar refugiados na Trafaria, manda
incendiar de noite as cabanas d'essa pobre aldeia de pescadores e espera
n'um cinto de bayonetas caladas os desgraçados que fogem ás chammas
espavoridos e cegos.
Ninguém podia contar com a vida, nenhuma cabeça se considerava segura
nos respectivos hombros. As cartas eram abertas e lidas n'uma repartição
especial montada para esse fim. O tribunal da Inconfidencia e a
Intendencia Geral da Policia devassavam todos os segredos. Era-se
perseguido, preso, condemnado rapidamente, summariamente, sem appellação
nem aggravo, por uma carta a um parente, por alguns versos, por uma
palavra, por um sorriso, por uma simples suspeita. As prisões estavam
cheias. No forte da Junqueira, a que verdadeiramente se pode chamar a
Bastilha portugueza, morre o conde d'Obidos e o conde da Ribeira. O
coronel Thomaz Luiz, accusado de haver recebido em sua casa, na
provincia de Minas Geraes no Brazil, um jesuita secularisado, morre na
força em Lisboa, provando-se mais tarde que nem o supposto crime de que
o accusavam era verdadeiro. O diplomata Antonio Freire d'Andrade
Encerrabodes, accusado de haver escripto em uma carta particular a um
amigo uma phrase desagradavel para o marquez, é desterrado para a Costa
d'Africa. O conde de S. Lourenço e o visconde de Villa Nova da Cerveira,
unicamente por terem sido os familiares do Santo Officio encarregados
por esse regio tribunal, reconhecido e auctorisado, de prenderem o
intendente da policia, são sepultados o primeiro no forte da Junqueira,
o segundo no castello de S. João da Foz, onde morreu. Na Junqueira
estiveram ainda os tres filhos do conde d'Alvor, o letrado Francisco
Xavier, mais tarde degredado para Angola; o desembargador Antonio da
Costa Freire, que morreu no forte; e muitos outros.
A disciplina militar do conde de Lippe lembra as arias do general Boum,
em que a cada phrase corresponde um tiro. Os famosos artigos de guerra,
em que os fusilamentos apparecem com tanta frequencia, como as virgulas,
seriam dignos da musica de Offenbach, se não tivessem sido na realidade
um opprobrio da dignidade humana. Pelas culpas mais leves o soldado era
mettido ao tornilho, carregado d'armas, amarrado nu a uma espingarda e
zurzído ás varadas ou moido ás pranchadas d'espadão.
Na vida civil o mando fazia lei indiscutivel e absoluta, como na vida
militar. Por occasião das famosas festas da inauguração da estatua
equestre _ordenou-se_ aos ourives e aos particulares que cedessem as
suas alfaias para servir á ceia dada á custa do povo pelo senado de
Lisboa, cujos amigos comeram tresentas arrobas de doce em tres dias.
Da historia geral das reformas emprehendidas pelo marquez de Pombal
cumpre separar dois factos culminantes de especial importancia no
progresso: a expulsão dos jesuitas e a reforma da instrucção publica.
A extincção da Companhia de Jesus foi no marquez de Pombal, assim como
nos demais reformadores regalistas da sua escola e do seu tempo, o
resultado de um equivoco.
Toda a gente sabe que a obediencia absoluta e cega é o fundamento da
ordem instituida por Santo Ignacio de Loyola, assim como é o fundamento
de todo o despotismo monarchico. O fim da Companhia de Jesus foi sempre
desde a sua fundação até hoje oppôr ás ideias de livre exame, de
discussão e de governo livre, a monarchia absoluta e o direito divino. O
immenso e insubstituivel poder espiritual sobre o qual se fundamentava
principalmente o poder temporal dos reis era o poder dos jesuitas. Sem
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