As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07) - 2

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Cousin; em litteratura são pelos modelos classicos modificados pelo
estro dos grandes mestres pacatos da geração moderna, Mendes Leal,
Thomaz Ribeiro, Possydonio da Silva e Brito Aranha; em _toilette_ são
pelo afamado Keil; em theatro pela grande Emilia das Neves; e em
culinaria pela lampreia d'ovos de fio com cidrão.
Teem ás vezes graça, mas sempre fina, de luva branca, propria de
cavalheiro culto, com uso de sala, dentro do campo da civilidade e nos
limites da carta. Ha no vocabulario innumeras palavras, aliás
perfeitamente boas e honradas, que elles morreriam mil vezes antes que
ousassem escrevel-as. Por exemplo: Com relação ao logar em que a
hypocrisia costuma receber os pontapés que o bom senso lhe applica,
nenhum d'esses escriptores domesticados diria com simplicidade
casta--_o trazeiro_. Porquê? Porque, pela muita pratica de salão que
elles teem, sabem perfeitamente que as «madamas», ao ouvirem um tal
vocabulo, immediatamente se retiram fugazes das assembleias tirando por
conclusão do emprego d'esse substantivo masculino que o cavalheiro é
cynico.
Em compensação ha outros termos--os termos proprios de sociedade, que
elles nunca empregam sem os ampliarem por meio de adminiculos
decorativos. Quando escrevem _natal_, acrescentam sempre--_do
Redemptor_, e para _cabeças_ dizem as _louras cabeças_, sempre que ellas
sejam de creança; sendo de vitella, ainda que egualmente louras,
retiram-lhes o adjectivo para o não sevandijarem com os contactos
incivis do gado vacum.
O publico derrete de justo enthusiasmo por estes escriptores mansos,
que, á similhança dos elephantes ensinados, estendem a tromba para o
regaço das familias, em procura do biscoito caseiro com que a gratidão
humana folga sempre de remunerar os carinhos dos pachidermes doceis.
Os nomes d'elles nunca se imprimem senão enrabichados a um epitheto
obsequioso: o _sympathico_, o _festejado_, o _modesto_, o _cordato_, o
_bom_. Apesar do quê, pouca gente os lê, por que esses bons rapazes de
profissão, modestos por modo de vida, para o fim de evitarem o conflicto
de opiniões contrarias, embiocam-se frequentemente de mais n'um genero
de litteratura abstracta ou de litteratura retrospectiva, que é a mais
anodina, a mais sôrna, a mais bestificante coisa por meio da qual um
escriptor pode actuar sobre o somno dos seus contemporaneos.
Se são profundas e insanaveis as nossas dissidencias religiosas, e as
nossas dissidencias politicas, são ainda mais insanaveis e mais
profundas as nossas dissidencias estheticas.
Estamos tão separados uns dos outros pelas nossas convicções e pelas
nossas crenças como estamos separados pelos nossos gostos. Os mesmos
artistas, os nossos poetas, os nossos musicos, os nossos pintores
detestam-se reciprocamente por odios figadaes, de folhetim e de escola.
Estes odios, mal reprimidos nas conveniencias mutuas da camaradagem,
rebentam de momento a momento, periodicamente, em brigas renhedissimas,
que são um dos mais decisivos symptomas da decadencia e da dissolução do
meio intellectual. Temos d'anno em anno como outras tantas vegetações
do charco a _questão dos poetas_, a _questão aos jornalistas_, a
_questão dos pintores_, a _questão dos musicos._
Quando alguma d'essas questões se faz esperar no tempo dado á sua
periodicidade, o burguez em espectativa exclama;--A canalha d'esta vez
ainda se não pegou; é que está mais cara a vinhaça!
* * * * *
De cima abaixo, como vêem,--na religião, na politica, na moral, na
arte--esphacelamento geral. For qualquer lado que se lhe pegue, a
sociedade portugueza deixa um pedaço na mão que lhe loca. Tudo se
desgruda, tudo se esbandalha no aggregado portuguez a que falta a
cohesão da ideia portugueza.
N'esta superfície sociai, inconsistente, mole, despolida, em que nem um
só traço nitido adhere, só as nodoas se embebem, alastram e aprofundam
como gotas d'oleo n'um papel passento.
No espirito publico, inerte e extagnado como agua apodrecida no fundo de
um poço, cada immoralidade que cae dentro abre circulos concentricos de
vibrações mephiticas que se alargam do ponto ferido até á circumferencía
do repositório.
De cada vez que o Terreiro do Paço annuncia que toma de aluguel mais uma
consciencia, o paiz todo, até á raia, põe escriptos.
* * * * *
Foi em face da situação cujas linhas mais proeminentes acabamos de
esboçar que alguns homens de extranha boa fé se lembraram de promover ha
dois annos a celebração nacional do centenario de Luiz de Camões.--_E'a
prova do espelho posto á bocca do moribundo para o fim de vereficar se
elle ainda respira ou não_--disseram então esses homens ingenuos. E, sem
receio do terrivel sentido ironico que se poderia ligar ás suas palavras
antigas, elles tomaram arrojadamente esta divisa:--_Vereis amor da
patria não movido de premio vil_.
Para se julgar imparcialmente da acção das _Farpas_ nos suceessos que
narramos, é conveniente recordar uma pequena particularidade: O
individuo que propoz, redigiu, explicou e defendeu perante a assembleia
dos escriptores de Lisboa o programma do cortejo civico do jubileu
camoneano, tal como elle se realisou depois de officialmente amputado,
no dia 10 de junho de 1880, foi precisamente o mesmo bohemio que escreve
eslas linhas.
Este simples detalhe absolutamente insignificante e inutil á historia do
centenario, é importante para a historia das _Farpas_. Por isso ellas,
ainda que immodestamente, o registam.
Foi essa a primeira vez--será provavelmente a ultima--que a redacção
d'estes pequenos livros exorbitou da esphera especulativa da critica
para a esphera da acção, levando directamente á rua uma ideia.
Se algum dia a moralidade das _Farpas_ houver de ser julgada na opinião,
este facto será fundamental no processo, por que é pelo accordo ou pelo
desaccordo entre as ideias litterarias e os actos publicos de um
escriptor que este deve ser definido para a absolvição ou para o
desprezo dos seus similhantes.
As _Farpas_ produziam gracejos periodicos desde o mez de maio de 1871.
Nove annos de ironia persistente prostram de tristeza o temperamento
mais solido. Rir de tudo ou de quasi tudo aquillo que todos os outros
respeitam e veneram é fazer da alegria um exilio e da gargalhada um
carcere.
Não ser de nenhuma seita e de nenhum partido, de nenhum club, de nenhum
gremio, de nenhum botequim e de nenhum estanco, não ter escola, nem
irmandade, nem roda, nem correligionarios, nem companheiros, nem
mestres, nem discipulos, nem adherentes, nem sequazes, nem amigos, é
possuir a liberdade, é ter por amante a rude musa _aux fortes mamelles
et aux durs appas_, cujo beijo clandestino e ardente põe no coração a
marca dos fortes mas requeima nos beiços o riso dos engraçados.
Alem da grande e amada tristeza, que já S. Paulo lastimava,--a tristeza
de ser só,--na alma das _Farpas_ havia ainda, a melancolia da descrença
sobre a efficacia dos seus meios artisticos, empregados para pôr
verdades em evidencia.
Onde ha uma corporação que se intitula _União e capricho_, onde ha outra
que se chama a _Incrivel Almadense_, onde ha _Os prussianos do Seixal_ e
a _A'vante incrivel canecense_, onde existe a _Academia dos Fenians_ e a
sociedade de soccorros denominada _Parturiente funebre familiar_, onde
um collegio de educação põe na taboleta _Novo methodo intuitivo_, onde
um jornal de noticias toma o titulo de _Santo Antonio de Lisboa_, onde
uma camara municipal propõe a substituição do nome de _Aldeia Galega_
pelo de _Linda Aurora do Tejo_, onde uma loja de bebidas, alliando á
beberoca barata o mais illustre nome da poesia contemporanea, se
intitula _A Casa Garrett_, onde todas estas coisas se dão, assim como se
dá a um homem o titulo de _Visconde do Marmeleiro,_ sem espanto, sem
estranhesa, sem sobresalto, o povo perdeu a noção do ridiculo, e não ha
já ironia que lhe faça mossa. As agudezas da arte não o penetram. É
preciso uma broca.
As _Farpas_ necessitavam de descançar movendo-se, vindo á praça publica,
indagando se havia para ellas um logar entre a multidão, mostrando-se
uma vez participantes no movimento do seu tempo.
Quando a commissão dos escriptores reunida para celebrar o centenario,
publicou o programma que nos encarregou de fazer, a cidade inteira riu
durante trez dias com trez noites.
--É a cerração da velha ou é o enterro do bacalhau?--perguntava-se aos
chás de familia, nas casas particulares, nos botequins, nos paços dos
nossos reis e nas estalagens.
A nação inteira, congrassada no preito de uma ideia commum, representada
n'uma enorme procissão civica, com os andores dos santos substituidos
pelos symbolos e pelos tropheus do trabalho e da intelligencia do homem;
reunidas pelo abraço da solidariedade patriotica todas as classes
sociaes, que nunca até esse dia se haviam encontrado juntas em torno do
mesmo interesse commum e da mesma sympathia reciproca; os estandartes de
todas as profissões e os pendões de todos os partidos, os mais
radicalmente oppostos e adversos, baixando-se juntos pelo mesmo impulso
perante a honra e a gloria da patria; o rei á frente entre os
socialistas mais intransigentes e entre os republicanos mais vermelhos,
os cortezões e os officiaes d'officio, os sabios e os cavadores
d'enchada, os juizes com as suas becas, os generaes com os seus
uniformes, os doutores com os seus capellos, os campinos com os seus
cavallos á redea, os pescadores, de pernas nuas e pés descalsos com uma
vela em triumpho, os pastores, de tamancos com calções de pelle de
cabra, abordoados aos cajados, os soldados com as bandeiras e as
espingardas coroadas d'oliveira, os cidadãos, todos emfim, fraternisando
n'um sentimento e n'uma ideia, era effectivamente o espectaculo mais
proprio para fazer cocegas debaixo dos braças á nação e para desengonsar
pela gargalhada as mandibulas do publico.
Apesar d'isso porem o programma, depois de devidamente modificado pelo
governo, como o pedia o decoro da corôa e a dignidade do exercito,
cumpriu-se, e a procissão civica não foi inteiramente o _enterro do
bacalhau_, como se predizia: foi apenas o _enterro da monarchia_.
Nenhum outro facto a não ser a apotheose de Luiz de Camões, seria
possivel invocar como tregoa das divergencias que nos desunem, para
cohesão social do espirito portuguez.
Em nenhuma outra, litteratura existe um poeta cuja personalidade se ache
como a de Camões tão profundamente e tão indissoluvelmente ligada ao
genio, á historia e ao destino do seu paiz. Os Luziadas são a patria
portugueza affirmada na forma indestructivel e sagrada da arte, são a
nacionalidade de um povo manifesta e comprovada por todos os seus
direitos á vida historica, direitos immortalisados pela uncção de uma
poesia eterna.
A celebração solemne do centenario de um tal artista podia ser para a
sociedade portugueza o que a leitura dos Luziadas foi para os grandes
cidadãos nas crises de decadencia nacional,--um estimulo supremo de
energia e de revivescencia patriotica.
Repellindo com uma bossalidade grosseira, por meio de uma estupidez
verdadeiramente cornea, esta occasião unica de revincular a tradição
historica da alliança do rei com o povo, o governo monarchico lavrou o
documento mais formal da sua incompetencia organica para continuar a
dirigir os destinos do paiz. Este simples facto demonstra do modo mais
evidente que as fontes do systema representativo que presentemente nos
rege estão profundamente viciadas e insanavelmente corrompidas.
Um ministerio que procede de tal forma, em opposição radical com o
espirito da nação, e que depois disso continua a manter-se no poder com
o beneplacito da camara, constitue a prova irrefutavel de que a
soberania nacional é uma pura farça dentro de tal regimen, que a
delegação dos poderes é uma mentira e que o chamado governo
constitucional é uma fraude torpe, uma desfarçada usurpação hypocrita e
cobarde.
Ha poucos dias ainda um deputado proferiu em pleno parlamento a seguinte
pbrase:
_A camara aguarda as determinações do governo_. Este eloquente e
arrojado tribuno do povo fallou bem. _Multa in paucis_. Toda a
philosophia da representação nacional portugueza no presente momento
historico se encerra n'essa synthese sublime e immorredoura:--«A camara
aguarda as determinações do governo.»
A subserviencia do soberano ao dominio de espiritos tão garantidamente
nulos e tão perfeitamente chatos como os que o aconselharam no
centenario de Camões prova-nos que o cerebro da dynastia se acha tocado
pelas fatalidades atavicas inherentes a um organismo em torno de cuja
massa encephalica gira sangue do snr D. João VI.
* * * * *
Das manifestações publicas a que deu origem o centenario de Camões
parecia poder-se deduzir:
_Primeiro_--Que o systema monarchico representativo vigente, corrompido
pela viciação do suffragio, deixando de representar a soberania da
nação, perdera por esse facto a rasão de ser,--o que de resto elle
proprio mostrava comprehender, principiando a brilhar pela ausência além
do muito que já brilhava pela inanidade.
_Segundo_--Que o espirito do publico em Portugal estava adeante das
instituições e que tinha portanto de as substituir ou de as despresar.
_Terceiro_--Que o principio de associação, pelo desenvolvimento enorme
que attingira no decurso dos ultimos annos, teria de ser tomado por base
de toda a reforma por que houvesse de passar no paiz a ordem politica
assim como a ordem social e a ordem economica.
* * * * *
Admittidas essas hypotheses, o progresso consistiria:
_Primeiro_--Em minar systematicamente as instituições, approximando
d'ellas subtilmente todos os reagentes que pudessem contribuir para as
dissolver mais depressa: ideias, argumentos, logica, sabão e verdade.
_Segundo_---Em educar o espirito publico por meio de bons livros e de
bons jornaes, systematisando as ideias, coordenando as aspirações,
elevando o gosto, e transformando assim a pouco e pouco a concorrencia
de actividades desunidas em convergencia de forças combinadas.
_Terceiro_--Em confederar as corporações de todos os trabalhadores
associados---duzentos mil homens, mandando em cada anno os seus
deputados a um congresso livre em que se defendessem os deveres das
classes trabalhadoras, os seus direitos, os seus interesses, a sua
situação perante a continuidade historica e perante a solidariedade
social, o estado das suas relações economicas e moraes com a politica
interior e com a politica exterior do paiz, fundamentando assim os
alicerces de um novo regimen de liberdade efficiente, contraposto ao
velho regimen de auctoridade inutil,--especie de iniciação pacifica e
fecunda para o advento de uma verdadeira democracia, para um systema de
_self-governement_ ou de federalismo economico á Proudhon.
* * * * *
Que é que se tem feito no espaço de dois annos decorridos desde o
centenario até hoje para o fim de encaminhar as ideias no sentido
d'essas soluções?
* * * * *
Fundou-se a associação dos escriptores com trezentos e cincoenta
associados, dos quaes trezentos e quarenta, pelo menos, não são
escriptores, porque se não póde com precisão technica dar esse nome aos
individuos que por meio das letras não cultivam uma sciencia, uma
philosophia ou uma arte. As letras só de per si são puramente um meio.
Todo o pretendido escriptor que não tem dentro um sabio, um philosopho
ou um artista, não é bem um escriptor, é um escrevente, e isto ainda na
hypothese de que tenha orthographia e boa lettra. Faltando-lhe esses
dois predicados nem escrevente é, é um esvasiador de tinteiros em prelos
e de prelos em papel de impressão, o que verdadeiramente se deve chamar
um _troca-tintas,_ apenas.
N'esta associação dos escriptores começou um socio, professor de
instrucção primaria, por annunciar um _curso de leitura para
analphabetos._ Como epigramma a si mesmos devemos confessar que é este o
mais espirituoso que os litteratos reunidos teem botado aos quatro
ventos do seculo.
Os snrs Consiglieri Pedroso, Adolpho Coelho e Joaquim de Vasconcellos
teem feito na sociedade dos escriptores prelecções importantes sobre
historia universal, sobre linguistica e sobre critica d'arte. Cremos
porém que estes bellos e desinteressados serviços á sciencia tanto
poderiam ser prestados por aquelles cavalheiros na sala da associção dos
escriptores como na sociedade _Luz e Caridade_ ou na de _Maria Pia,
Protectora dos Portuguezes,_--nova coisa que os do Porto abriram agora á
gargalhada do mundo e á necessidade que os protegidos sentiam n'aquella
cidade de jogar a bisca juntos sob a egide d'uma mesma princeza.
Como corpo collectivo a associação dos escriptores tem evitado toda a
especie de contacto com o movimento social ou com os interesses
intellectuaes da classe por meio de um melindre de sensitiva e de uma
pudicicia de vestal velha.
Na qualidade de corporação registrada no governo civil e com estatutos
approvados pelo governo, os escriptores teem apenas produzido
luminarias, dois jantares, um passeio fluvial e algumas assembleias
geraes.
Em vista de tal esterilidade, os dramaturgos, bem avisados, separaram-se
ultimamente da corporação e fizeram panella á parte.
Estreitados por este novo vinculo e aguilhoados em suas imaginações pela
paixão ardente das artes scenicas, os escriptores dramaticos não
principiaram ainda a primeira peça feita em collaboração ou
separadamente, mas vão já no quarto ou quinto jantar mensal comido de
sucia. Bom appetite para o resto de carreira tão briosamente encetada é
o que do fundo d'alma desejamos a estes espirituosos filhos de
Melpomone.
* * * * *
Emquanto a livros destinados a lançar alguma luz sobre o atoleiro tem
havido pouco tempo para os fazer. O snr Antonio de Serpa foi o que
projectou mais clarão. Este notavel estadista fez o favor de nos revelar
na sua ultima obra que um ministro em Portugal não tem tempo para tratar
das questões. Todo o dia de um ministro é pequeno para parlamentar e
para ouvir requerentes. Ainda bem que por este lado ao menos está o
negocio liquidado. O livro do snr Antonio de Serpa, que foi ministro por
muitos annos não deixa o menor vislumbre de incerteza sobre esse ponto.
Ahi temos o portico da publica governação com os seus ministros
dentro.--Truz truz truz!
--Quem é?
--Está em casa o governo?
--Que lhe hade querer? Se é peditorio, pode entrar; se traz broblema, s.
ex.ª sahiu n'este mesmissimo instante para palacio.
Ficamos sabendo, em summa, e de uma bôa vez para sempre, que o governo
se não ocupa das questões. E' inutil suggerir-lh'as, propôr-lh'as,
explicar-lh'as, amenisar-lh'as, desfarçar-lh'as, impôr-lh'as,
estender-lh'as na ponta de um cajado, ou mandar-lh'as a casa n'uma
travessa com ramos de salsa á roda e com limão em cima. O governo o que
não tem é tempo. Bem! não se lhe falla mais n'isso. O tudo é haver quem
explique as coisas!
Varios jornaes com tendencias mais ou menos revolucionarias appareceram,
desappareceram ou permaneceram depois que o centenario de Camões se
celebrou, mas em todos esses periodicos tem feito reconhecida falta
alguem que serenamente nos dê dos phenomenos do tempo presente
explicações tão cabaes como aquellas em que timbra o snr Antonio de
Serpa.
* * * * *
Resta-nos do movimento emmergente da celebração do jubileu camoneano o
congresso das associações confederadas.
Para julgarmos do estado das ideias que vão ser debatidas n'esse
parlamento, cuja realisação cumpre confessar que se deve principalmente
á iniciativa e á tenacidade de um unico homem, o snr Theophilo Braga,
para apreciarmos d'antemão a orientação mental e a systematisação de
principios que as diferentes classes sociaes terão de revelar na
reunião da dieta cooperativa a que nos referimos, a festa do centenario
do marquez de Pombal, ultimamente celebrada, figura-se-nos ser um
symptoma culminante e preciossimo.
Antes porem de examinarmos como foi comprehendida pelo publico a
importancia historica do marquez de Pombal sobre a civilisação
portugueza, temos de indicar a traços largos a physionomia do heroe
canonisado pelo enthusiasmo popular.
* * * * *
O marquez de Pombal é um estadista, um governante,--o que quer dizer--a
mais pequena das coisas que um homem grande pode ser.
Buckle...--pois que é bom citar auctordades extranbas sempre
que se deseja adduzir opiniões desinteressadas e argumentos
insuspeitos--Buckle, um dos primeiros escriptores modernos que fundou em
bases positivas as leis da civilisação e do progresso, affirma, perante
os factos evidentes superiores a toda a controversia, que todos os
interesses da sociedade foram sempre na Inglaterra gravemente
compromettidos por todas as tentativas que os legisladores fizeram para
os auxiliar. Nenhuma grande reforma, quer legislativa quer executiva,
foi jamais em paiz algum a obra d'aquelles que governam. Os governos
constituidos não podem fazer em bem do progresso senão uma coisa:
dar-lhe possibilidade. Os unicos serviços que um governo pode prestar á
civilisação reduzem-se a manter a ordem, a impedir os fortes de opprimir
os fracos e a tomar algumas precauções para o fim de assegurar a saude
geral. Todo o governo que traspõe estes limites ultrapassa o mandato e é
criminoso perante a historia.--Não somos nós que o dizemos é Bukle na
sua _Introducção á historia da civilisaçâo em Inglaterra_.
Guizot, apesar de todo o seu doutrinarismo, confessa que é
effectivamente um erro grosseiro o acreditar no poder soberano da
maquina politica.
Bastiat diz: O Estado não é mais que uma grande ficção atravez da qual
toda a gente se exforça por viver á custa de toda a gente.
Bagehot, o illustre critico que mais exactamente soube adaptar as leis
scientificas da evolução biologica aos estudos sociaes, pensa que a
liberdade «é o poder que fortifica e desenvolve, é a luz e o calor do
mundo politico. Se algum cesarismo conseguiu jamais patentear alguma
originalidade de espirito, proveio isso de que soube appropriar-se dos
resultados obtidos pela liberdade ou em tempos passados ou em paizes
visinhos. Mas ainda em taes casos essa originalidade é frágil e pouco
duradoura, e desaparece sempre dentro de um breve espaço de tempo,
depois de experimentada por uma ou duas gerações, exactamente no momento
em que principiaria a ser necessaria.»
Herbert Spencer explica pela acção physica das martelladas sobre a bossa
de uma chapa de ferro os effeitos produzidos sobre o complexo aggregado
social por essa força accidental que se chama o governo. Para achatar a
empola na chapa de ferro o empyrismo bate-lhe em cima com um martello: o
resultado correspondente a este esforço é que a bolha recalcada para
baixo cada vez incha mais para cima, e a lamina não somente se torna
mais barriguda do que estava no ponto defeituoso mas contrae ainda
defeitos novos e imprevistos começando a arrebitar pelas extremidades.
E' como a d'este martello a acção dos governos sobre a reformação das
sociedades.
Referindo-se á inutilidade dos homens que governam com relação aos
destinos dos que são governados, o mesmo Herbert Spencer escreve:
«Adão Smith ao canto do seu fogão impoz ao mundo muito mais
consideraveis mudanças do que qualquer primeiro ministro. Um general
Thompson, que forja as armas necessarias para a guerra contra a lei dos
cereaes, um Cobden e um Bright, que as aperfeiçoam e que se servem
d'ellas, contribuem mais para a civilisaçãn do que qualquer
porta-sceptro. O facto pode desagradar aos estadistas, mas é
indiscutivel. Calculem-se todos os resultados adquiridos já pelo livre
cambio, juntem-se-lhes os resultados muito maiores ainda que elle nos
promette, não somente a nos, mas a todas as nações que adoptarem o nosso
principio, e ver-se-ha que a revolução emprehendida por esses homens
excede em grandeza tudo o que jamais fez um potentado. O snr Carlyle
sabe-o bem: aquelles que preparam verdades novas e que as ensinam aos
seus similhantes são em nossos dias os verdadeiros poderes, os
_legisladores não reconhecidos_, os unicos reis. Os que se sentam nos
thronos e os que compõem os gabinetes--toda a gente o sabe--são
simplesmente os servos d'aquelles homens.»
Muitos outros exemplos se poderiam acrescentar aos que são referidos por
Spencer.
Os mais complicados problemas sociaes, como o do augmento da riqueza, e
o do augmento dos braços, são resolvidos no fundo de uma officina por
simples trabalhadores.
O metallurgista Bessemer por meio da fabricação do aço dota as nações
civilisadas com uma economia de dinheiro que o _Scientific American_
calcula sobre bases precisas, somente com relação á producção do aço
bruto, na quantia de noventa mil contos por anno. Tomando em conta o
excesso de duração, adquirido nos artefactos pela substituição do ferro
pelo aço, e devido á invenção de Bessemer, a economia realisada pela Grã
Bretanha unicamente, na duração dos rails dos caminhos de ferro,
eleva-se a um rendimento de quinhentos e sessenta e cinco mil contos.
Qual é a medida governativa que jamais produziu um tal resultado?
Em 1781, no mesmo anno em que o marquez de Pombal exclamava: _Agora é
que Portugal vae á vela_, Watt descobria a applicação do vapor. Decorreu
apenas um seculo depois da invenção do vapor applicado ao movimento de
uma arvore de rotação, e as ultimas estatiscas do snr Bresca mostramnos
que, somente em França, a força productiva inventada por Watt se acha
representada por um milhão e cem mil cavallos de vapor. Calculada em
doze homens e meio a paridade de força de cada cavallo de vapor, temos
quatorze milhões d'homens correspondentes ao milhão e cem mil cavallos.
Esses vintes e oito milhões de braços d'aço, trabalhando mais do que
outros tantos milhões de braços humanos, auguentam a força muscular da
França, pela dadiva de um simples e modesto operario, em quantidade
muito maior do que a força destruida nas guerras pelo imperador
Napoleão.
O problema scientifico, n'este momento em resolução, da transmissão da
força pelos conductos pneumaticos e pelos fios electricos; põe a
catarata do Niagara ao serviço do trabalho universal, e segundo uma
memoria do snr Siemens apresentada recentemente ao _Iron and Steele
Institute_, só a força do Niagara é superior á de todo o carvão que hoje
se queima no globo, se todo elle fosse exclusivamente empregado em
produzir trabalho.
Os homens que mais reconhecida e decisiva influencia teem tido nas
reformas economicas e sociaes do nosso tempo não são nunca os homens
d'estado, mas sim os homens d'estudo, simples jornalistas como João
Baptista Say e Carlos Dunoyer, um obscuro cirurgião como Quesnay, um
modesto professor como Adão Smith.
Aquillo que se chama propriamente um _governante_ não é mais que o resto
anachronico de uma velha liturgia hoje extincta. O vulto grosseiro
d'esse dictador que se chamou Sebastião José de Carvalho, levantado em
triumpho como um symbolo de progresso e de liberdade, com a sua
cabelleira de rabicho, com os seus autos do Tribunal da Inconfidencia e
os seus cadernos da Intendencia da Policia debaixo dos braços, faz-nos o
effeito de um velho monstro paleontologico, desenterrado das florestas
carboniferas e reposto, com palha dentro, no meio do espanto da flora e
da fauna do mundo moderno.
Que significa uma similhante festa dos filhos da liberdade ao
representante do despotismo? Que sentido absurdo se pode ligar no fim do
seculo XIX a esta nova e inesperada _Declaração dos direitos do
governo_, depois que a Revolução Franceza nos fez presente a todos nós
da _Declaração dos direitos do homem_?
Desde 1789 até hoje todos os esforços dos povos cultos teem tendido
precisamente a enterrar o principio que nós resuscitamos com a apotheose
solemne de um estadista. Todo o immenso trabalho da reconstituição
social durante este seculo tem consistido para todos os homens livres em
negar aquillo que a memoria do marquez de Pombal affirma, em eliminar a
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