As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1878-01) - 2

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Em quanto á emancipação das mulheres, esse sonho dourado das senhoras
inglezas--nós, menos profundas pensadoras, não o queremos.
Entendemos que a naturesa, que nos obriga a soffrer cruciantes dores
physicas para attingirmos o apogeo da nossa gloria--o ser mãe, nos
ensina a todas, que a nossa missão na terra, é saber soffrer e amar, por
isso beijamos com os olhos rasos de lagrimas de alegria o filho que
acaba de nos fazer soffrer as dôres da maternidade, e abençoamos
reconhecidas a mão que prende as nossas algemas de escravas, quando essa
mão é a de um homem, em quem passados os enthusiasmos da paixão,
encontramos as solidas virtudes que apreciamos e respeitamos.
Regenerados os costumes dos homens, a familia portugueza, constituida
como até agora, poderia ser apresentada como modelo ás nações mais
civilizadas da Europa.
Filhos ambos da mesma terra, e quasi da mesma idade, considero-me sua
irmã e como tal deixe-me dar-lhe um conselho. Se eu tivesse a sua
intelligencia, inquestionavelmente uma das mais brilhantes do paiz, essa
sua robustez physica, a sua grande cabeça na qual o chapéo de Thiers ou
de Bismark assentaria perfeitamente, dedicar-me-hia a escrever livros,
que fossem mais uteis do que agradaveis, e deixaria aos palhaços dos
circos o trabalho de fazer rir o publico.
Em paga de todos os favores, que lhe peço, prometto fazer-lhe só um, mas
esse importantissimo.
Não dizer a nenhuma senhora portugueza com que caldo creseu e medrou o
sr. Ramalho, senão julgal-o-hiam tão criminoso como quem maldiz dos
seus.
Sua
_Irmã de Caridade_
* * * * *
Reproduzimos esse importante folhetim porque nos asseguram que
effectivamente é escripto por uma senhora. Sob este ponto de vista elle
é para nós de um valor inestimavel. Este folhetim é a mulher. Não somos
já agora nós que tenhamos de dar-nos ao trabalho delicado e subtil de a
retratar. É ella mesma que vem reproduzir-se n'estas paginas com n'um
espelho. Esta imagem directa do vivo constitue a mais preciosa
acquisição da nossa galeria. Não somos nós que a descrevemos, que a
phantasiamos, deturpando-a talvez na pureza da sua linha por meio de um
lapis suspeito de inhabilidade ou de má fé. Vêem que é ella mesma que
apparece, que faz o favor de mostrar-se viva, a corpo inteiro, na sua
prosa com atravez de um vidro. Queira approximar-se, meus senhores!
queiram approximar-se! espreitem por este buraco e vejam-a!
Ahi a teem! É assim que ella é. Não ha artificio, não ha preparo, não ha
processo nenhum de stylo para a fazer melhor ou peor do que a realidade
mesma. Reparem bem, meus senhores, que não é Proudhon que a descreve,
não é Coubert que a pinta, não é Offenbach que a põe em musica. É ella
mesma, ella em pessoa, que corre uma cortina e apparece.
O que estaes contemplando é a obra da direcção mental que nós mesmos
imprimimos ao nosso tempo, é o fructo legítimo e authentico da
philosophia, da litteratura, da arte, da corrente geral de idéas que
temos produzido e impulsionado: é a nossa mulher tal como nol-a fizeram
os contactos da nossa convivencia--a escola, o jornal, o livro.
Revêde-vos na vossa obra.
Esse curioso ente representa a somma de vinte annos de poesia lyrica e
de pó de arroz, de rhetorica e de _chic_, de doce d'ovos e de cuia, de
recitação ao piano e de tacões Luiz XV, de collegio nacional e de
_cold-cream_, de figurino e d'agua morna. Glorioso conjuncto.
Vede que lucidez de razão! que firmeza de criterio! que contensão de
raciocinio! Como se adivinha bem no poder d'essas faculdades
intellectuaes a circulação facil e viva atravez da rede dos nervos
encephalicos de um sangue opulento e forte! A mente sã que tão
vigorosamente se affirma no curioso trecho litterario que acabaes de ler
presume o organismo mais perfeito, o corpo mais denso, o musculo mais
racionalmente exercitado por uma sabia hygiene. Pela sua forte maneira
de pensar podeis ajuizar com segurança da sua forte maneira de viver.
Vede e applaude! Aplaudi-a a ella pelo que aprendeu; applaudi-vos a vós
mesmo pelo que lhe ensinastes.
* * * * *
Esta senhora, em nome de todas as outras senhoras, das quaes ella se diz
interprete, dirigi-se ás _Farpas_ na pessoa do seu auctor.
O que são as _Farpas_ com relação ás mulheres?
As _Farpas_ são a publicação periodica--unica em Portugal--que em
artigos consecutivos desde a sua apparição até hoje se tem
constantemente consagrado por meio dos seus processos de critica á
reconstituição dos costumes e á reorganisação da familia segundo o
criterio porque se dirigem as sociedades modernas; ellas teem combatido
violentamente o divorcio; teem despojado o adulterio da clamyde
dramatica em que tantas vezes o envolve a poesia doentia, para o
flagellarem pelo ridiculo na sua torpeza nua; teem honrado o casamento
indissoluvel como sendo a mais sagrada das instituições perante a
dignidade humana; teem fulminado o celibato como um aleijão physiologico
e social; teem dado como base á emancipação da mulher a instrucção
pratica, tão defficiente, e a alta cultura do espirito, tão
negligentemente descurada na antiga educação; teem-lhe ensinado que é
aprendendo desveladamente a ser util que ella descobrirá o segredo de
ser verdadeiramente e eternamente amada; teem sollicitado a sua
collaboração no estudo dos modernos problemas sociaes como factor
indispensavel á fixação do nosso destino; teem pedido instantemente para
ella a fundação de novas escolas de ensino especial e de ensino
superior; teem-lhe dirigido constantemente durante cinco ou seis annos
palavras graves, affectuosas, sinceras; teem-lhe fallado, como velhas
amigas dedicadas, dos seus interesses mais caros: das bonecas das suas
filhas, dos jantares de seu marido, dos arranjos da sua casa, da
cosinha, do jardim, da adega, do armario das roupas brancas, do valor
dos alimentos, da ordem, da economia domestica, etc.; teem-lhe feito
presente de uma infinidade de theorias, de noções, de projectos, de
systemas, de programmas completos, imperfeitamente concebidos--é
claro--mas demonstrando uma dedicação excepcional, por isso que nenhuma
das publicações periodicas que precederam esta se dirigiu jámais ás
mulheres a não ser para lhes consagrar romances de uma moralidade
suspeita ou versos de uma honestidade duvidosa.
Depois de publicados cerca de quarenta volumes da colleção das _Farpas_
uma senhora tem finalmente alguma cousa que dizer ao auctor, e manda-lhe
o seguinte conselho como resumo da opinião collectiva de todas as damas
portuguezas:
«Que elle trate d'outro officio e deixe aos _palhaços dos circos_ o
trabalho a que até aqui se tem dado de fazer rir os outros!»
Este simples conselho é como um relampago, nas trevas do nosso espirito.
Elle de per si só basta para nos convencer de que a educação das
senhoras portuguezas não só é igual--como a auctora modestamente
formula--á das primeiras mulheres extrangeiras, mas que póde mesmo
considerar-se-lhe superior. Effectivamente madame Sand, madame de
Girardin, Lady Morgan não tiveram nunca para dirigir a um escriptor
qualquer--amigo ou adversario--uma palavra tão lucida, tão conceituosa,
tão profunda e ao mesmo tempo tão finamente aristocratica, tão
nobremente distincta como aquella com que somos honrados pelo criterio
da nossa illustre compatriota. Sua excellencia entende que não somos
mais que _um palhaço de circo_, opinião profundamente philosophica. É
talvez isso mesmo o que todas as mulheres extrangeiras pensariam se nos
lessem. É natural porem que ellas tivessem achado entre as suas perolas,
entre as suas rendas, por baixo das suas luvas, no fundo de algum velho
cofre perfumado, de alguma doce gaveta esquecida, entre as mimozas
recordações perdidas da sua carteira ou do seu coração, um pequeno meio
qualquer de não chamarem completamente palhaço com todas as suas cinco
lettras e a sua respectiva cedilha, _p-a-l-h-a-ç-o_ a um homem a quem os
seus maridos lhes houvessem permittido dirigir uma carta pela imprensa.
Sua excellencia a illustre escriptora portuense tem da dignidade alheia
e da sua propria dignidade uma comprehensão diversa, que não podemos
deixar de attribuir com orgulho patriotico á influencia local da rua de
Cedofeita sobre os requintes da delicadeza feminina.
Não é menos original nem menos profundo o modo como a nossa distincta
compatriota contesta a conveniencia de ensinar physiologia humana e
chimica culinaria ás menínas portuguezas. Se sua excellencia tivesse
effectivamente a instrução que nós pretendemos que se lhe deve dar; se
sua excellencia houvesse comprehendido que a mais nobre missão da mulher
é, como diz Michelet, a de alimentar o homem; se para nos provar que
estava apta para cumprir no seio da sua familia essa missão, sua
excellencia nos convencesse de que conhecia a synthese chimica da
nutrição, a evolução cellular, a relação existente entre os phenomenos
da nutrição e do desenvolvimento, do movimento e da combustão; se nos
mostrasse que estava habilitada a distinguir os principios alimentares
pelas suas classificações mais genericas, os que fornecem o calor e a
força e os que ministram os alimentos reparadores; se nos revelasse que
sabia dirigir technicamente um jantar, ou fazer pelo menos um simples
caldo, por lhe terem passado pelos olhos, uma vez pelo menos, alguns dos
eminentes trabalhos consagrados a este assumpto essencialmente vital
pelo sr. Gautier, que fez um tratado de chimica applicada á hygiene,
pelos srs. Moleschott e Geoffrey Saint-Hilaire nas suas cartas sobre as
substancias alimentícias, pelo sr. Champouillon na sua _Hygiene
alimentar_, pelo sr. Claude Bernard nas suas lições e conferencias, pelo
sr. Bouchardat na sua memoria sobre a alimentação insuficiente, pelos
srs. Liebig, Payen, Foussagrives, Gustave le Bon, Letheby, Marvaud,
Michel Levy, Coulier, Lacassagne, Fleury, Motard, Wurtz, etc.; se sua
excellencia possuisse finalmente--ainda que no estado da mais ligeira
tintura--alguma das noções em que se basea a theoria da cosinha, que é
um dos mais importantes factos da hygiene ou da physiologia applicada, o
seu voto n'esse caso poderia ter discussão.
A brilhante ausencia de ideias que sua excellencia manifesta sobre este
assumpto dá ao seu voto um caracter irrevogavel, que não pode infundir
nos adversarios senão admiração e respeito.
É inutil que Smith por um lado e o doutor Byasson por outro se tenham
dado ao trabalho de reconhecer por meio de experiencias feitas sobre o
seu proprio organismo qual o dispendio de carbone e de azote em cada
hora, já dormindo, já caminhando, já executando um trabalho mental ou
muscular, para regular sobre este dispendio a ração alimentar de cada
individuo. É inutil que o doutor Franckland e Payen tenham feito as
analyses mais escrupulosas para nos darem um quadro do valor nutritivo
dos diversos alimentos e da quantidade de força e de calor desenvolvida
pela oxydação d'elles. É inutil que o doutor Chenu e o doutor Shimpton
nos tenham mostrado pela comparação das estatísticas da salubridade nas
campanhas da Criméa e da Italia o extraordinario poder da qualidade da
alimentação sobre a saude e sobre a energia dos soldados. É inutil que
pelo estudo de iguaes estatísticas com relação á alimentação de
operarios empregados nas grandes industrias se tenha provado que da
qualidade da alimentação resulta o augmento ou a diminuição de 20 a 30
por cento no trabalho de cada homem. É inutil que Geoffrey Saint-Hilaire
nos tenha dito: «Quantos factos na vida das nações attribuidos pelos
historiadores a diversas causas complexas e cujo segredo reside
simplesmente na cosinha das familias!». É inutil que toda a sciencia
tenha provado que a maioria dos crimes e dos vicios se deve attribuir em
cada sociedade ao seu regimen alimenticio; que o uso dos alimentos
nervinos é uma necessidade inviolavel na rude concorrencia vital do
nosso tempo; que é indispensavel perante a moral e perante a justiça
melhorar a alimentação dos trabalhadores facilitando-lhes a acquisição
dos alimentos plasticos e reparadores geralmente insufficientes na sua
economia. É inutil que em todos os paizes civilisados os sabios, os
philosophos, os estadistas procurem por todos os meios de vulgarisação e
de associação chamar a attenção das mulheres para o estudo e para a
resolução d'esse grave problema cuja sede é a cosinha. É inutil tudo
quanto se tenha allegado e quanto possa allegar-se para convencer esta
illustre senhora portuense da vantagem que resultaria para os seus
similhantes do facto de ella aprender a fazer caldo um pouco menos
empyricamente do que por tel-o visto fazer á cozinheira da sua avó.
Sua excellencia tem para manter a inalteravel tradição sobre os methodos
de deitar a carne á panella nas cosinhas da sua rua este argumento
supremo: Foi com essa panella á frente que os portuguezes contiveram em
respeito o poder de Castella e praticaram prodigios de valor Da Asia, na
Africa e na Epopea da Liberdade. Segundo sua excellencia foi abraçados à
travessa do cosido que nossos avós descobriram a India e que os paes de
uns de nós resistiram aos paes dos outros durante o cerco do Porto. Os
vencidos jantavam no _Bignon_ ou no _Café Anglais_.
Em presença d'essa logica de ferro submettemo-nos humilhados e
reverentes. Uma vez que as coisas se passaram como sua excellencia
affirma, nada se nos offerece retorquir. Mantenha-se o _statu quo_ na
perfeita educação da mulher portugueza. Continue sua excellencia
imaginar que sabe cosinhar, que sabe lavar a roupa, que sabe talhar um
vestido e que sabe tambem--ó legítimo orgulho!--_fazer doce_.--De mais a
mais--notem--sua excellencia faz doce! Não! positivamente nada se nos
offerece retorquir-lhe. Faz doce? Bem. Não precisa de saber mais nada.
Ahi tem sua excellencia uma opinião que lhe garantirá «as solidas
virtudes que seu marido desenvolver no lar domestico passados os
enthusiasmos da paixão»:--sua excellencia gosta de assucar!
Quem sabe se não será por um effeito do atavismo sobre a gula qae os
meninos de quinze annos de quem sua excellencia nos falla vão beber
licores para os botequins?
As mães dos que amam os jogos athleticos e as proezas musculares teem
ellas mesmas não a opinião do assucar mas sim a do _roast-beef_ e da
agua fria; não fazem doce, fazem gymnastica, e não ensinam os filhos
unicamente a comer marmelada, a ir á novena e a não metter os pés nas
poças; ensinam-lhes o cricket, a natação e o _box_, dão-lhes desde a
idade mais tenra os habitos mais viris, e, como sabem impedir que elles
vão para os botequins, não costumam encarregar os criticos de lh'os ir
lá buscar.
* * * * *
Sua excellencia não se recusa unicamente a aprender a fazer bom caldo
segundo os preceitos de Liebig, que nós lhe aconselhamos suppondo que
Liebig, um dos primeiros chimicos do mundo, sempre saberia um pouco mais
d'isso do que o Antonio das Môças, celebre inculcador de cosinheiras,
encarregado de ministrar as donas de casa portuenses as suas mestras da
arte culinaria. Sua excellencia não só não quer fazer caldo em termos
para seu marido, mas nem mesmo quer escolher a mobilia, comprar os
pratos e os copos, determinar a differença de côr nos estofos do salão e
da sala de jantar, tornar a casa alegre, ridente, aprasivel e digna,
pagando assim em elegancia, em delicadeza e em bom gosto á sociedade
conjugal um serviço igual áquelle que recebe d'ella em proteção, em
trabalho e em força. Sua excellencia prefere _deixar todos esses
conhecimentos aos cuidados do dono da casa_ (!) _cuja vontade considera
a lei suprema, na escolha de todos os artigos!_
Ficariamos na mais inquietadora duvida acerca das funcções que sua
excellencia deseja exercer no lar domestico, se ella mesma não tivesse a
bondade de nos explicar que a occupação para que se reserva é a de
_abençoar agradecida a mão que prende as suas algemas de escrava_ (!)
O que nos parece é que esse mister exclusivo de sua excellencia não
promette uma existencia bem divertida em familia ao portador das suas
algemas!
Se fossemos seu marido declaramos que nos desquitariamos se sua
excellencia recusasse aprender pelo menos, alem de abençoar os ferros, a
jogar a bisca. O nosso temperamento não nos permittiria estar a dar-lhe
constantemente o grilhão a abençoar; quereriamos ter a faculdade de
poder dar-lhe tambem, de quando em quando, para variar, uma bôa rôlha.
* * * * *
O folhetim de sua excellencia termina com uma allusão pessoal à nossa
robustez physica e ao caldo que nol-a creou. Sobre este ponto pedimos
licença para ministrar alguns breves esclarecimentos biographicos:
Eu--pois que é bom precisar a clareza dos numeros--eu, auctor d'estas
linhas, não me creei no regimen dietetico do Chiado ou da Calçada dos
Clerigos. Não, minha senhora: eu creei-me no caldo d'unto e na broa dos
homens do campo. Estou prevendo que sua excellencia tirará d'este facto
a conclusão maliciosa de que não tomei chá em pequeno. Que sua
excellencia não hesite um momento em tirar tal conclsão! É até favor que
me faz--para simplificar os dados do problema--o partir do principio de
que não tomei ease chá.
Agora o que tomei, foi o bom ar puro, saudavel e honesto da querida
courella onde nasci e em que me creei. Entre os preciosos alimentos
mineraes de que me nutria havia um principio de primeira importancia
para o perfeito desenvolvimento do meu arcabouço:--o phosphato de cal,
que eu ingeria em grandes dozes.
A nossa casa, cercada d'arvores, no meio de campos, não tinha saguão,
não tinha visinhas de cuia do retroz e de sapatos achichelados, não
tinha pia.
A vida que cercou a minha infancia era simples, rude, poderosa, como o
grande ar vivificante que me envolvia. Dos homens da minha familia o
primeiro plumitivo sou eu. As mulheres eram ingenuas creaturas que, sem
terem lido nunca Proudhon ou Taine, sem conhecerem nenhuma das theorias
dos modernos moralistas tinham todavia comprehendido e assimilado por um
instincto cheio de lucidez, os dois principaes deveres de uma mulher:
Primeiro ser saudavel; Segundo não ser conhecida. No interior da sua
casa eram admiraveis exemplos de dignidade, de trabalho, d'ordem, de
economia, de bom humor. Madrugavam como as cotovias e nunca o velho
piano de cauda, que eu conheci ao canto da sala grande, deixou de se
fechar de memoria d'homems ás 10 horas da noite, o mais tardar. Não se
desprezavam de cultivar, ellas mesmas, os seus canteiros de tulipas e de
cravos, e eu seria o primeiro dos artistas portuguezes se conseguisse um
dia condensar n'um livro toda a somma de methodo, de ordem, de execução
esthetica, de picante espirito pittoresco, de risonha graça, de que era
modelo a incomparavel cosinha da minha avó,--aberta ao nivel do pateo
defronte do poço, cheia das alegrias scintillantes do sol e do balsamico
perfume dos limoeiros; enfumada, com os dois escabellos de carvalho de
cada lado da borralheira sobre o vasto lar de granito; a enorme capoeira
onde se espanejavam os capões; os tropheus ornamentaes dos instrumentos
agricolas; as prateleiras da louça reluzente; o cortiço da barrela e a
masseira do pão a um canto; os bambolins de paios e de presuntos do
fumeiro suspensos do tecto; a comprida meza dos môços da lavoura tendo
em cima a grande celha com a braçada verde dos frescos legumes picada
com as pintas douradas das cenouras entre as avelumeio e gordas
efflorescencias dos broculos; e no meio d'isso a intervenção periodica
do mendigo de estrada, de alforge ao pescoço, que vinha encher a sua
escudela de batatas ou de caldo, em quanto os pardaes mais atrevidos iam
sem pedir esmola debicar a broa do balaio na testada do forno.
Esse conjuncto exhalava uma penetrante sensação de tepido aconchego, de
suave alegria, de inalteravel paz; inspirava sentimentos praticos e
honestos; era o complemento e o commentario vivo das velhas historias
contadas á lareira; infundia o respeito da tradição; dava o amor da
familia; explicava o amor á, terra da patria pela dedicação ás quatro
braças de solo cobertas por esse velho tecto.
A cosinha de minha avó era finalmente uma profunda obra d'arte, da qual
os mais bellos quadros da escola flamenga, tão penetrados como são da
poesia domestica, não poderam dar-me jámais senão uma ideia desbotada e
fria. Escuso de acrescentar que toda a obra de quantas litteratas tem
havido em Portugal não pode senão fazer-me sorrir comparada á obra
modesta de minha avó, que ella tirou n'um preciosa exemplar unico para a
educaçao das suas filhas, para a fixação do respeito, da veneração e da
saudade eterna dos seus netos.
A minha robustez physica é o mais contraproducente dos argumentos que a
minha contraditora podia adduzir em favor da sua doutrina. Diz Hahnmann
que a fraqueza do homem principia sempre na fraqueza da mãe. A minha
robustez devo-a eu a descender de uma vigorosa raça de mulheres, que os
nobres cuidados da sua casa e da sua familia tiveram sempre ao abrigo
das sentimentalidades enervantes e das publicidades burlescas: poucas
vezes empallideceram nos bailes e não tiveram nunca de que corar aos
folhetins dos periodicos.
* * * * *
Terminando, agradeço de novo os conselhos de sua excellencia a illustre
escriptora minha patricia, mas peço licença para os não seguir.
Continuarei a fazer rir os outros, o que me não impedirá de fazer tambem
chorar alguns, uma ou outra vez, quando for preciso.
* * * * *
Por occasião da visita de el-rei á Escola Polytechnica funccionou o
telephonio entre uma das salas da Escola e o Observatorio da Tapada.
Approximando-se do novo apparelho transmissor dos sons, dizem os jornaes
que sua magestade ouvira--um solo de cornetim!
Houve primeiro duvida sobre se o fio ligava a Escola Polytechnica com o
Observatorio Astronomico ou se a ligava com a phylarmonica _União e
Capricho_. O solo era effcctivamente executado pelo Observatorio.
Emquanto a astronomia tocava cornetim é natural que, em compensação, a
arte musical se occupasse em determinar uma parallaxe.
A unica cousa que extranhamos é que o Observatorio não observasse entre
as suas peças de musica alguma coisa mais interessante para transmittir
a el-rei do que o proprio hymno do mesmo augusto senhor.
Que o Observatorio cultive a especialidade do cornetim, perfeitamente de
accordo! mas que elle cultive igualmente a especialidade do hymno
parece-nos um abuso que o principe não levará a bem.
Reflectiu por acaso o Observatorio no que é o hymno para um cerebro
coroado? Cremos que o Observatorio não desceu ainda com as suas
conjecturas ao fundo d'esse abysmo. É horroroso.
Para os cerebros coroados o hymno equivale a uma enfermidade monstruosa.
O observatorio faz certamente ideia do que é ter zumbidos, não é
verdade? Pois ter hymno é peor. É ter constantemente, durante toda a
vida, em casa, na rua, em viagem, nas cidades, nas villas, nas aldeias,
sobre as proprias aguas do mar, sempre, por toda a parte como doença
chronica, como affecção incuravel do nervo acustico, a audiçao do mesmo
trecho de musica!--O que deve levar paulatinamente á loucura.
Que o Observatorio se compadeça do infeliz principe condemnado a tão
incomportavel flagello! O Observatorio ha de ter conhecimento das
contrariedades que amarguram a existencia; o Observatorio ha de ter
faltas de dinheiro, ha de ter constipações, ha de ter dores de dentes,
ha de ter calos. O principe tem tudo isto, e demais a mais tambem tem
hymno. Poupemol-o ao desgosto de o fazer acompanhar pelo seu triste mal
ás regiões da sciencia! Inflijamos-lhe o solo, visto que não ha outro
remedio, mas perdoemos-lhe por esta vez o hynmo! Sejamos terriveis, mas
sejamos justos! A providencia collocou-nos na mão o cornetim. O monarcha
presta-nos submissamente o seu real ouvido. Não abusemos d'esse
instrumento poderoso e d'essa orelha innocente! Compenetremo-nos da
tremenda responsabilidade que pesa sobre nossas cabeças! Somos
cornetistas, mas somos tambem astronomos ... Toquemos o _Pirolito!_
E a posteridade nos abençoará.
* * * * *
Ha tempos que na sociedada portugueza se notava esta grande falta: A
hydra da reacção desapparecera da orbita dos conflictos do poder
politico e do poder clerical. Os srs. ministros, reunindo-se em cada
manhã nas secretarias do Terreiro do Paço, perguntavam angustiadamente
uns aos outros:
--Não viram por ahi a hydra?
Ninguem a tinha visto por ali. Os joanetes do sr. Barros e Cunha
entumeciam de impaciencia por não poderem esmagar o monstro; e o sr.
Mexia, sem hydra que accommetter, sentia-se calvar de humilhação na sua
dupla qualidade de ministro dos negocios ecclesiasticos e de preterito
imperfeito do verbo Mexer.
* * * * *
N'esta conjunctura por tantos titulos dolorosa o sr. marquez d'Avila,
presidente do conselho, tomou uma resolução heroica: determinou ser
hydra do meio dia por deante. E principiou a accumular engenhosamente as
suas funcções de bicha ultramontana com as suas funcções administrativas
de homem de estado. Pela manhã s. ex.ª governa. De tarde s. ex.ª rabêa.
Eis um dos resultados da dualidade que s. ex.ª se dignou de assumir para
salvar a situação da falta da hydra:
* * * * *
O serviço dos enterramentos era feito em Lisboa na mais perfeita paz.
Catholicos e não catholicos eram levados para o cemiterio municipal
pelos seus respectivos padres ou simplesmente pelos seus amigos ou pelos
seus parentes, e todos tinham o seu logar na cidads dos mortos como o
haviam tido na cidade dos vivos. Pendia apenas d'esse facto uma pequena
questão canonica que o sr. patriarcha de Lisboa resolveu do modo mais
exemplarmente sensato, ordenando que, visto considerar-se o cemiterio
como uma instituição municipal, os parochos benzessem as sepulturas dos
que desejassem repousar em terreno sagrado, e não benzessem as
d'aquelles que se contentassem com uma modesta cova simplesmente civil.
Não tinha jámais de intervir a policia. O ministerio do reino estava a
esse respeito completamente socegado em sua secretaria. Finalmente
podia-se morrer em Lisboa só pelo gosto de ser tão tranquillamente
enterrado.
N'isto o sr. presidente do conselho sobrevem na sua fórma de hydra e
determina em favor da morte catholica a creação de um muro similhante ao
que o sr. Guillomin imaginou para abrigo da vida privada. A camara
municipal de Lisboa reune-se para dar cumprimento á portaria de s.ex.ª e
discutir o modo de levantar o muro. Propõem-se a tal respeito varios
alvitres sobre os quaes predomina em ultima analyse o do sr. dr. Jardim.
* * * * *
Era previsto que o sr. Jardim seria o vencedor n'este pleito. Concorrem
de facto n'essa cavalheiro todas as condições que se requisitam para o
triumpho. Em primeiro logar, pelo lado physico, elle dispõe da primeira
cabelleira do paiz. Em segundo logar, pelo lado intellectual, elle tem
uma formula. A sua formula é esta: «..._O bucentauro do progresso
rasgando os flancos da montanha_ ...» Sempre que esse homem terrivel
arroja para traz das orelhas a sua cabelleira e descarrega sobre os
auditorios a sua formula, a victoria é d'elle. A sua existencia tem sido
uma serie nunca interrompida de triumphos, alcançados pela sua
cabelleira e pela sua formula. Foi pintando cheio de cabello e de ardor
o _bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha_ que elle
triumphou no quinto anno da sua formatura em direito, na defeza das suas
theses de doutoramento, na exhibição das provas do seu concurso para
lente da universidade, nas reuniões das associações operarias e
phylarmonicas de Coimbra, nos conselhos fiscaes dos bancos hypothecario
e de Lisboa e Açores, nas suas eternas prelecções sobre o terceiro
estado, e finalmente na discussão do muro Guillomin da morte catholica
ordenado por s. ex.ª a nobre hydra de Avila e Bolama.
* * * * *
Foi baseado nos seus principios de direito administrativo e de direito
canonico extraidos do _bucentauro do progresso rasgando os flancos da
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