As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1878-01) - 4

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estrebaria, apertou-lhe as entranhas a nostalgia da cevada, e fitando a
orelha, baixando a cabeça, cravando os olhos sinistros nos cascos
deanteiros, arrojou ao firmamento ingrato duas parelhas de coices
adiante dos quaes ascendeu da albarda para as alturas o vulto do grande
homem. Depois do que elle baqueou no charco fronteiro, como se a
perfidia das rãs o tivesse aferrado pelo coccix e attrahido ao
abysmo,--sempre com uma das mãos na carta, mas já tem a outra mão na
redea.
* * * * *
Cousa verdadeiramente admiravel de ver foi a velocidade com que a
cavalgadurinha do Estado principiou então a dar terra para feijões,
retrocedendo para casa e bebendo o espaço com o freio nos dentes e com a
saudade da mangedoura na alma.--Tão poderoso e fecundo é o ascendente
moral que exerce o principio sagrado da ração sobre as actividades
officiaes!
* * * * *
Quando as boninas e os representantes da nação tornaram a ver a burrinha
do poder no prado florido onde convalescia entre os idylios do ocio o
dente do sr. Fontes, grande foi o ardor e a emulação entre os
circumstantes que á porfia queriam segurar a asna. Coube essa gloria ao
sr. José Dias Ferreira.
Empolgando com mão dextra e firme a camba do freio á alimaria do poder,
o sr. José Dias exclamou triumphante e glorioso:
--A mim, rapazes!
E gritando em coro: «Ave, José vencedor!»--os rapazes foram a elle.
* * * * *
Eis senão quando, que hão de ver os rapazes que a elle tinham ido e bem
assim elle mesmo?
Atonitos elles vêem--caso que os olhos se lhes recusam acreditar--que a
burra já não está devoluta, que a albarda tem gente em cima!
Effectivamente emquanto o sr. José Dias intrepido segurava a redea, o
sr. Fontes veloz encavalgara o poder.
* * * * *
O primeiro acto do novo cavalleiro foi alijar dos alforges as provisões
do governo que o precedera. S. ex.ª sacou os 150 contos de tijolo para a
Penitenciaria e atirou-os para um lado. Sacou os vinte e quatro conegos,
rochuchundos, atochadas como paios, e atirou-os para o outro lado. Tirou
depois os quinze beneficiados com os seus competentes livros de côro e o
seu devido rapé; tirou a cadeira de Sanskrito com o seu professor em
cima; tirou a matta do Bussaco forrada de papel e enchumaçada de algodão
para sua magestada passear; tirou o porto artificial de Leixões cheio de
dourados bergantins e de ligeiras caravellas com os seus competentes
nautas, obra de grande pacienca e curiosidade; mais tirou o _Times_; e,
como ainda restasse o que quer que fosse no fundo dos alforges, foram
estes virados com o de dentro para fóra, e appareceu por ultimo o sr.
Venancio Deslandes, director da Imprensa Nacional e secretario da
commissão da exposição de Paris. S. ex.ª trazia empunhada e aberta a
delicada umbela de linho cru forrada de tafetá azul com a qual s. ex.ª
abrigava dos raios solares desde o Terreiro do Paço até á rua do Duque
de Bragança a fronte capitolina do ex-sr. presidente do conselho de
ministros. O ar de s. ex.ª o sr. Deslandes era cheio de uma grave
auctoridade, e á sombra do chapeu de sol de linho cru forrado de tafetá
azul o seu rosto parecia envolto na aureola de uma competencia genial!
Despejado o alforge o cavalleiro pediu um exemplar do codigo fundamental
da monarchia, que metteu em uma das bolsas; depois, lembrando-se das
causas que determinaram o partido regenerador a abster-se de governar
durante alguns mezes e querendo obviar á repetição d'essa
intermittencia, pediu o dentista Guerreiro e acondicionou-o na outra
bolsa do alforge ministerial.
Sorrindo em seguida e despedindo-se do sr. José Dias do alto da burra,
enfiou a trote marcial provincias da publica administração em fóra.
* * * * *
E todos seguiram pressurosos o chibante cavalleiro. Tão sómente no mesmo
logar em que sr. Fontes tivera estado a chumbar o seu dente foi visto
nas ervas o sr. marquez d'Avila, acocorado na solidão, a chapinhar com
arnica o seu galo.
* * * * *
Na semana seguinte áquella em que estes successos occorreram houve
jantares de convite em todos os restaurantes de Lisboa. Estes banquetes
eram o resultado de apostas feitas contra e a favor da victoria do sr.
Fontes pelos _gentlemen_ do _turf_ politico.
O sr. Fontes depois d'esse notavel triumpho ficou marcado gloriosamente
como o _Gladiateur_, e ninguem mais tornará a apostar contra o nobre
estadista sem a condição previa de que se sobrecarregue com mais alguns
kilogrammas de chumbo o dente de s. ex.ª

* * * * *

Uma vista d'olhos a uma das ultimas sessões da camara dos senhores
deputados:
* * * * *
Enorme concorrencia nas galerias. Senhoras, diplomatas, escriptores,
funccionarios publicos, militares, operarios, enchem as tribunas desde
os parapeitos até ao tecto.
Na sala um sugeito, embrulhado no seu paletot, com a perna traçada sobre
o joelho, preside somnolentamente como um dilettante enfastiado.
Serve de secretario, lançando apontamentos a uma larga folha de papel um
individuo que ha poucos mezes se chamava apenas Alfredo, mas que, em
resultado de um lucto occorrido durante o ultimo interregno parlamentar,
publicou nos jornaes que principiava a chamar-se em testemunho de
dôr--Alfredo Angelino. S. ex.ª traja rigorosmente de negro.
Em frente da presidencia alinham-se os srs. ministros devidamente
encasados nos seus _fauteuils_. Não teem uma apparencia espirituosamente
feliz, mas parecem refrigerados nas cadeiras do poder e olham o espaço
com a expressão passiva e tão caracteristicamente pacata dos individuos
calidos quando instalados em decocções emolientes de alfavaca de cobra.
No meio do amphitheatro um digno sr. deputado, com uma das mãos sobre o
coração, a outra mão alongada patheticamente no espaço, está orando.
Em torno do tribuno agrupam-se em pé varios representantes da Nação.
Uns roliços, atochados, vermelhos, semelham tympanites enformadas em
amplas sobrecasacas pomposas. Sente--se que elles respiram com exforço.
O abuso do feijão suffoca-os como o sangue de Danton suffocava
Robespierre--São os empaturrados da coisa publica.
Outros magros, defecados, pallidos, com as orelhas lívidas, os pés
mettidos para dentro, as calças esbambeadas pelas joelheiras dos
sedentarios, teem sorrisos que se parecem com as referidas calças e que
descobrem mucoses desbotadas e dentes morbidos.--São os espinhelas
cahidas do systema que felizmente nos rege.
No fundo escuro da bancada sobresaem da côr sombria dos vestuarios de
inverno duas mãos longas, pallidas, frias, magras, de um aspecto
dramatico, boas para assignarem um decreto de proscripção ou uma
sentença de morte. O dono utilisa-as em explorar o seu proprio nariz
inoffensivamente, n'uma abstração magnanima.
--Sr. presidente--diz o orador, e a sua voz é pungente, elegiaca,
lacrimejante--Sr. presidente! onde não ha religião não ha dignidade.
Um ecclesiastico, alto, magro, macilento, volve para o orador o seu
estrabismo convergente, de mystico, e applaude-o com um grave meneio de
cabeça.
Este padre, de aspecto sombrio e inquisitorial, e aquelle orador de
vinte e cinco a trinta annos, cheio de robustez, de saude, de mocidade,
estão ambos de accordo sobre esse ponto: que a dignidade é uma
resultante da religião. E todavia é a religião que obriga esse pallido
mystico a conciliar-se com o celibato, a sequestrar-se na contemplação,
a abandonar todos os bens terrenos pela posse dos fructos celestiaes, a
submetter-se pela humilhação, pelo desprezo de si mesmo, a offerecer uma
face quando o esbofetearem na outra, finalmente a padecer e a
resignar-se. E é pelo contrario a dignidade que obriga esse rapaz
sanguineo e robusto a caminhar na direcção opposta á d'esse anemico, a
constituir a familia, a luctar, a não perder tempo em contemplações e em
extasis, a ser pratico e positivo, a ter filhos gordos e camisas
lavadas, a resistir finalmente e a triumphar na grande lucta pela vida
moderna, em que as costelletas com batatas, as garrafas de Collares e as
botas novas não caem do ceu cob a fórma de maná, caem unicamente do
trabalho perseverante e rude sob a forma de riqueza. Elles porém estão
ambos de accordo emquanto á alliança indissoluvel da dignidade de um e
da religião do outro perante o principio transcendente da rhetorica
constitucional.
Diz mais o orador:
--«Sr. presidente!--e a entonação do tribuno continua a ser lacrimosa e
pathetica--li os sarcasmos de Voltaire, as ironias de Swift, as
investigações de Renan, os de-esperos de Schopenhauer, Hartman
inventando religiões para o futuro, Buchner divinisando a materia. Tudo
isto porem não apagou na minha alma a doce esperança que n'ella lançaram
aquellas palavras divinas, que dizem: Bemaventurados os que soffrem
porque elles serão consolados».
E muitas vozes enthusiasticas e convictas bradam de todos os lados da
camara:--«Muito bem! muito bem!»
Á morbida corrente intellectual do pessimismo allemão representado por
Hartman e por Schopenhauer a Inglaterra oppõe o naturalissimo de Darwin
e as poderosas systematisações de Spencer, a França oppõe o positivismo
victorioso de Augusto Comte e de Littré. Em Portugal, onde estas
questões não foram nunca ventiladas senão por pobres escriptores
desconhecidos em periodicos tão desconhecidos como elles, a camara dos
srs. deputados ouve pela primeira vez a solução official d'esse debate.
Ao optimismo leibniziano, ao deismo kantiano, ao ideologismo hegeliano,
ao inconscientismo de Hartman, ao pessimismo de Schopenhauer e de Julius
Bahnsen, ao naturalismo de Darwin, ao positivismo de Spencer, de Stuart
Mill e de Littré, a intellectualidade portugueza responde mostrando a
alma virginal do sr. Manuel d'Assumpção. E a comprehensão mais perfeita
dos destinos do universo fica de uma vez para sempre definida depois
d'isto: a alma do nosso Manuel persiste inabalavel nas suas primitivas
crenças. Que queria a philosophia moderna? A philosophia moderna não
queria evidentemente senão uma coisa: apagar a esperança na alma d'este
moço. Pois ficará sabendo que o não conseguiu. A camara dos deputados da
nação portuguez esmaga toda a obra do entendimento moderno
collocando-lhe em cima o sr. Assumpção e a esperança da sua alma, no
meio dos applausos geraes de todo o parlamento.
E, não obstante, querem dizer alguns que a politica não é mais do que a
applicação da philosophia á direcção pratica das sociedades.
A politica de Bismark é um grande poder social porque atraz d'elle está,
como o peito pelo outro lado da couraça, a disciplina philosophica de
Kant, de Hegel e de Hartman.
Danton, a alma da Revolução, era na esphera executiva o instrumento da
philosophia da Encyclopedia; e a primeira republica franceza baqueou
precisamente no dia em que o principio philosophico que determinou o
grande movimento cahiu com a cabeça de Danton, guilhotinado pela
indisciplina mental.
Foi ainda a anarchia das idéas, resultante da falta de um methodo
philosophico, que comprometteu o destino da segunda republica em 1848.
Finalmente para que a democracia se fundasse em França sobre bases
definitivas foi preciso que Danton resuscitasse para gloria das ideias e
para honra do espirito humano na pessoa de Gambetta, que é o filho
triumphante da philosophia positiva do seculo XIX, assim como Danton é o
filho damasiadamente precoce da philosophia do seculo passado.
Na Italia o que é a politica actual, que libertou e unificou a grande
peninsula, senão a somma das expeculações de uma longa serie de
pensadores, desde Dante, o vidente, até esse taciturno Leopardi, que foi
o alliado intellectual de Hartman assim como Victor Manuel foi o alliado
politico do imperador Guilherme?
Em todos os estados actualmente em dissolução qual é a causa do mal
senão a perturbação da mentalidade pelo empyrismo da politica
arbitraria? Será preciso citar a Turquia? Será preciso citar a Hispanha?
Mas a Hispanha renasce em cada ida, em cada hora, com um assombroso
vigor intellectual, que em poucos annos despedaçará todos os velhos
preconceitos e todas as caducas instituições que embargarem a sua
ascenção politica. O federalismo, forma definitiva da civilisação na
peninsula iberica, está-se affirmando no paiz visinho de um modo que nos
certifica da impossibilidade de um retrocesso. O federalismo perde a
pouco e pouco o caracter de uma opinião partidaria. É um resultado
philosophico, que em toda a Hispanha está sendo pacificmente revisto e
contraprovado por todas as sciencias: pela mechanica, pela mesologia,
pela climatologia, pela ethnologia, pela anthropologia, pela
linguistica, pela historia. Quando esta idéa chegar ao cabo da sua
elaboração especulativa, ella converter-se-ha em uma lei sociologica e
actuará sobre o seu fito, irresistivelmente, como uma força da natureza.
Quando por toda a parte a philosophia estabelece e dilata tão
experimentalmente e tão evidentemente os seus dominios sobre o destino
humano, a camara dos srs. deputados em Portugal applaude na sua grande
maioria a condemnação da critica e do pensamento moderno; declara-se
indissoluvelmente abraçada á theologia; e a todas as conquistas da
sciencia no presente seculo ella oppõe triumphantemente a posse d'esta
noção: «Bemaventurados os que soffrem porque elles serão consolados.»
A ironia emudece de pasmo deante de um symptoma tão patente de
esphacelamento cerebral.
Estamos n'um congresso de legisladores ou estamos n'um seminario de
caturras?--É unicamente o que perguntamos.
* * * * *
O medo como a camara pensa dá-nos a justa medida do modo como a camara
governa. Ha muitos annos que ella não toma uma unica medida tendente a
coordenar e a systhematisar harmonicamente os esforços da progressão
social.
A reforma da lei eleitoral, fonte da reconstituição politica, está por
fazer.
A liberdade religiosa não está regulamentada de modo que torne effectivo
o principio em que se funda.
A distribuição racional do imposto ainda não foi definida.
Finalmente a organisação da instrucção publicia, esse elemento vital de
uma sociedade em movimento, acha-se por enunciar. N'este ponto a mesma
Turquia está muito adeante de nós.
Os parlamentos, sem direcção mental, sem criterio scientifico, sem
destino politico, esterelisam-se successivamente na phraseologia e
dissolvem-se na banalidade.
As crises parlamentares determinadas unicamente pelo conflicto dos
personagens impacientes ou despeitados attrahem periodicamente ás
camaras uma grande concorrencia de ouvintes que não recebem ahi senão as
mais perigosas lições de cynismo e de immoralidade.
Das duas coisas uma: ou o espirito publico está bastante corrompido para
assimilar sem perturbção do seu organismo a entoxicação d'esses
exemplos, e n'esse caso seria um paiz condemnado à dissolução; ou a
burguezia, cumplice n'esta decadencia, tem ainda um resto de senso
moral, e n'esse caso revoltar-se-ha e o actual regimen politico ha de
cair como caiu em França o segundo imperio por effeito de um movimento
similhante áquelle a que Luiz Veuillot chamou a _revolução do despreso_.
Á similhança de um corpo morto o parlamento immobilisou-se por falta de
circulação intellectual. Os partidos politicos são os centros nervosos
do systema representativo. Atrophiados esses centros o systema cessa de
funccionar. Ora qual é o estado dos partidos politicos em Portugal?
* * * * *
Ha um partido que está hoje no poder. É um partido conservador. É
catholico, é monarchico, é auctoritario, é proteccionista, é
militarista, é unitario. Quer um parlamento com duas camaras, uma
electiva e outra hereditaria; quer uma igreja e uma religião do Estado;
quer as alfandegas com as suas velhas pautas; quer um exercito
permanente com os seus respectivos canhões Krupp e a sua competente pena
de morte; quer as colonias com o seu antigo systema de direcção e de
governo; quer ainda fazer o seu gancho de negocio e ter um estaleiro,
uma fabrica de polvora, uma imprensa, uma fundição de typo, uma fabrica
de cordas, uma photographa, etc.
Ha por outro lado quatro ou cinco partidos que alternativamente se
disgregam ou se unificam, conforme as necessidades da sua tactica, e que
pelas suas idéas não formam realmente senão um partido unico: o partido
opposicionista. Que differença ha entre este partido na opposição e o
partido actualmente no governo? É revolucionario? Não: é egualmente
conservador. É racionalista? Não: é egualmente catholico. É
evolucionista? Não: é egualmente auctoritario. Quer a liberdade da
industria e a liberdade do commercio? Não: quer egualmente a protecção
das pautas. Quer egualmente o exercito com os seus generaes, e a
universidade de Coimbra com os seus theologos; quer egualmenle a
magistratura anarchica, a instrucção cahotica, o suffragio corrompido, o
governo arbitrario. Tambem quer fazer de quando em quando para se
distrahir o seu bico de obra, e procura manter para esse fim a imprensa,
a photographia, a cordoaria, a fundição, etc.
A unica opinião que a opposição diz ter e que ella accusa o governo de
não professar é a opinião abstracta da economia, da ordem, da moralidade
e do progresso. Como porém todos os governos, qualquer que seja o
partido de que elles procedam, teem successivamente cahido do poder
perante a accusação de não servirem o progresso, a moralidade, a ordem e
a economia, devemos acreditar que, ou essas virtudes, que aliás não
pódem constituir principios de programma, são communs a todos os
partidos ou não são especiaes de partido nenhum.
Os partidos portanto não se differençam senão pelos nomes dos individuos
mais ou menos numerosos do que elles se compõem. N'esta ausencia
completa de idéas contrapostas o governo em Portugal, versando
constantemente sobre si proprio, dá-nos o espectaculo de um organismo
vivo isolado na creação, alimentando-se na sua propria substancia e
digerindo-se pouco e pouco a si mesmo.
* * * * *
Deixando de ser uma lucta de principios e de idéas a politica
converte-se fatalmente em uma questão de compadres.
O compadrio elevado á cathegoria de instituição nacional, domina tudo,
corrompe tudo, dissolve tudo. Os partidos que não pódem conquistar o
appoio da opinião pelas idéas que representam, procuram manter-se pelo
appoio dos compadres que favorecem. É na proporção exacta do numero dos
compadres que annualmente despacha e emprega, que um partido augmenta ou
diminue de adeptos, progride ou retrograda na confiança da corôa e no
favor da urna.
O dogma fundamental do compadrio impõe-se por tal modo que transforma
todas as outras noções moraes segundo o criterio de que elle é a
expressão. Transforma a justiça, a honra, a probidade, a propria
consciencia. Nenhum partido politico ousa violar o compadrio: seria
commetter a mais vil e a mais nefanda das traições politicas!
Despachando o compadre mais serviçal com exclusão do adversario mais
competente todo o governo honesto julga praticar um acto de gratidão e
de lealdade. E ninguem vê quanto ha de profundamente subversivo da ordem
moral n'este simples facto tão vulgar, tão frequente, tão despercebido:
a exclusão da competencia! Excluir a competencia, ou quando menos
preteril-a, por um anno, por um mez, por um dia, por uma hora que seja,
é commetter o attentado mais criminoso de que o Estado póde ser réo
deante da sociedade. Esse attentado resume todas as violações do direito
e todas as affrontas da justiça. É um roubo violento e descarado,
aggravado com a offensa do merito, com a injuria da capacidade, com o
insulto ao trabalho, com o escarneo á moral, com o ultrage ao dever.
Na politica portugueza, que tem o seu calão como as mulheres publicas e
como os ratoneiros, esse crime infame toma o nome dourado de
_compromisso politico ou de acto de fidelidade partidaria_. E do
ministro que o pratica e para o qual se deveria pedir a prisão
correccional ou o degredo com trabalhos publicos, a opinião diz
apenas:--É fiel aos seus correligionarios, sabe ser amigo, despachou o
compadre, vou para o partido d'elle.
O officio do governo é servir o paiz. Como porém o paiz, por effeito do
machinismo eleitoral, é representado constantemente pelos compadres do
governo, o officio do governo em ultima analyse não é mais do que servir
o compadre. Está no seu destino. Graças aos elementos de corrupção de
que o governo dispõe, o cidadão, não votando como cidadão mas votando
como compadre, dá o primeiro impulso que põe em movimento toda a
engrenagem do systema: elegendo o compadre é elle mesmo que funda a
tyrannia absoluta e despotica do compadrio que depois o governa.
A sociedade está á mercê do compadre. E se ha poder que possa
contrabalançar alguma vez, em dadas conjuncturas, o poder do compadre,
esse poder é unicamente--o da comadre.
A aptidão provada, a capacidade, o talento, o trabalho, a firmesa no
dever, a tenacidade no estudo, a mais alta comprehensão e o mais
rigoroso cumprimento da solidariedade e da honra--palavras, palavras,
unicamente palavras! Na esphera dos fattos, na ordem pratica, positiva,
real; compadrice, comadrice--eis tudo.
* * * * *
Um unico remedio poderia reconstituir a politica portugueza, cuja
decadencia é tanto mais lamentavel quanto é certo que a sociedade que
ella tem por fim dirigir está na anarchia economica e tende para uma
miseria que se tornaria inevitavel sem os supprimentos do Brazil. Esse
remedio e a entrada no parlamento de um partido novo constituido de
quatro ou cinco individuos de opiniões radicaes: republicanos,
socialistas, federalistas, positivistas--o que quizerem--com tanto que
sejam homens profundamente convictos e determinados á peleja de cada dia
e de cada hora. Este pequeno partido, desde que tivesse um criterio
philosophico, determinaria uma corrente de ideias de tal modo poderosa
que obrigaria todos os conservadores a confederarem-se para lhe
resistir, não já pela phraseologia e pela rhetorica mas pelo estudo
reflectido e consciencioso de todos os problemas da civilisação. E das
concessões mutuas e successivas, feitas, já ao principio da ordem pelos
revolucionarios impacientes, já ao principio do progresso pelos
conservadores retrogrados, resultaria para a sociedade o movimento
actualmente paralysado no conflicto das pequenas paixões e dos
mesquinhos interesses das mediocridades dirigentes e triumphantes.
* * * * *
Falhando o meio que propomos pela falta doa quatro homens que
sollicitamos, resta-nos então adoptar o expediente ultimamente proposto
pela municipalidade de Lisboa:--tratar o parlamentarisrao pela cal. Mas
que quanto antes, n'esse caso, a municipalidade effectue o seu projecto:
caiar o palacio das côrtes, branquear por fóra o parlamento--_dealbatum
sepulchrum_!

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