As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1878-01) - 1

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RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ
AS FARPAS
CHRONICA MENSAL
DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
TERCEIRA SERIE TOMO I Janeiro de 1878
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON


SUMMARIO

A romagem dos mortos. Raspail, Courbet, Victor Manuel, José de Alencar,
Augusto Soromenho.--_A senhora portuense_ e _as Farpas_. O libello
d'aquella dama. A nossa resposta. Não, a mulher portugueza não sabe
fazer caldo e deve aprender a fazel-o, como se torna a demonstrar. A
litteratura feminina e a cozinha de minha avó.--Da influencia dos hymnos
sobre os cerebros coroados. Cumplicidades do telephonio.--Os cemiterios.
A intervenção do sr. marquez d'Avila e a do sr. Luiz Jardim. A
cabelleira e a formula de s. ex.ª Mostra-se que s. ex.ª não é o velho
Tobias. O catholicismo e a carta. A liberdade de pensamento e o registro
civil.--A ex'ma Camara Municipal do Porto ou a quem suas vezes fizer.--A
situação politica. As ultimas sessões parlamentares. Alguns perfis. Os
partidos. Os compadres. A jumentinha da publica governação.
No breve espaço dos ultimos quinze dias a humanidade pagou á morte um
pesado tributo. Escrevemos no meio de tumulos gloriosos e amados.
Deixaram de existir, em França Raspail e Courbet; na Italia Victor
Manuel, no Brazil José de Alencar; em Portugal Augusto Soromenho.
Raspail, entre todos esses o maior, deixa na terra um immenso vacuo
imprehenchivel. Desappareceu com elle uma das mais poderosas forças
sociaes do mundo moderno, a porção mais fecunda e mais gloriosa da
grande alma do povo.
Ninguem como elle amou a humanidade e ninguem empregou tão vastas e tão
profundas faculdades no culto do seu amor. Foi o maior contribuinte dos
descobrimentos scientificos d'este seculo. Creou a chimica organica e
póde-se dizer que creou tambem a physiologia botanica e a anathomia
microscopica. Fundou a hygiene em bases novas, não como uma dependencia
da medicina, mas como um desdobramento da sciencia social. Foi elle o
que definiu pela primeira vez em fundamentos positivos o dogma do
suffragio universal. Foi ainda elle o primeiro que proclamou no Hotel de
Ville a Republica de 48.
Este eximio cultor, acrescentador e reformador do todas as sciencias
physicas, de todas as sciencias biologicas e de todas as sciencias
socilaes, astronomo, chimico, physiologista, medico, archeologo,
economista, era alem d'isso um delicado e valente escriptor. O seu genio
profundo actuou efficazmente no desenvolvimento do estudo dos astros,
das plantas, dos animaes, do homem, e bem assim na reforma do todas as
instituições politicas e sociaes, na reforma administrativa, na reforma
judiciaria, na reforma penitenciaria e na reforma penal. O seu altivo
caracter de soberano plebeu tornou-o sempre irreconciliavel com todo o
favor, com lodo o auxilio, com toda a collaboração official. Recusou
todas as distinções honorificas, todos os cargos publicos, todos os
diplomas scientificos ou litterarios. As suas observações astronomicas,
os seus trabalhos de chimica, as suas applicações do microscopio ao
estudo das celulas e dos tecidos fizerarn-se n'uma agua furtada humilde
dos bairros baratos de Paris com os instrumentos mais rudimentares, no
isolamento austero da independencia o do sacrificio.
Esse intrepido filho do povo tinha a fibra de Galileu, de Giordano Bruno
e do Bernardo Palissy.
A academia franceza, commovida com uma tão exemplar grandeza d'alma,
resolveu conferir-lhe em 1833 o premio Montyon, declarando-lhe pela boca
do grande Geoffroy-Saint-Hilaire que ella o considerava como sendo o
homem que mais serviços tinha prestado á sciencia e á humanidade.
Guizot, então ministro da instrução publica, interveio na resolução da
academia prohibindo que _o premio da virtude cahisse no cofre da
rebelião_.[1] O chefe do partido conservador francez não podia esquecer
que fôra esse mesmo sabio obscuro o despremiado o que no anno anterior,
em plena Restauração, ousara fulminar a votação da lista civil com a
phrase memoravel paga por elle com 500 francos de multa e 15 mezes de
cadeia: «Deveria ser enterrado vivo debaixo das ruinas das Tulherias
todo o cidadão que ousasse pedir á França 14 milhões para viver.»
[Nota 1: Guizot, que recusou um premio a Raspail, recusou tambem uma
cadeira no magisterio a Augusto Comte. O illustre historiador teve a
desgraça de firmar com o seu nome a responsabilidade d'esses dois
crimes, inconscientes, da politica nefasta que elle dirigia.]
É que Raspail, a intelligencia sempre apta para organisar, foi
egualmente o braço constantemente pronto para resistir.
Portentosa existencia, que ficará na historia entre as mais bellas e
mais estraordinarias legendas do genio do homem! Destinado por seu pae á
carreira ecclesiastica, foi educado n'um seminario, começou por ser um
theologo. Era porém de tal modo intenso e explosivo o seu amor de
verdade e do progresso que, principiando por ensinar theologia aos
dezenove annos, acabou por alcançar a gloria immarcessivel de ser
condemnado aos oitenta,--aos oitenta annos de idade!--por abuso da
liberdade de pensamento!
O poder espiritual do mundo moderno era representado em França por uma
trindade sacrosanta:--Victor Hugo, a força do sentimento; Raspail, a
força do trabalho; Littré, a força da philosophia.
D'esses tres anciãos o primeiro que desceu ao tumulo é o que mais
fecundo exemplo nos podia legar, porque as virtudes que o assignalaram
são d'aquellas que dependem mais da vontade que do entendimento. Esse
exemplo de uma actividade sempre enthusiasta, juvenil e ardente, em
nenhuma outra parte é mais precioso do que na sociedade portugueza, onde
as idéas radicaes, que são as sentinelas avançadas da civilisação, tão
raramente encontram servidores desinteressados que as mantenham; onde a
mocidade mais vivaz e intelligente está defendendo no parlamento e no
jornalismo as opiniões mais retrogradas, onde finalmente o futuro não
tem partido.
Possa a memoria do sublime Raspail alentar a perseverança e a firmeza no
coração d'aquelles que, longe de todas as correntes officiaes se
sacrificam heroicamente pelo estudo desprotegido, pelo trabalho talvez
calumniado, talvez perseguido, ao amor e ao aperfeiçoamento dos seus
similhantes!
Que todos os que são moços e fortes se inclinem sobre esta campa onde
repousa um triumpho, e reflictam, que é na pedra tumular de Raspail que
deverão aguçar o fio das suas espadas todos aquelles que combatem pela
consciencia e pela verdade!
* * * * *
Courbet foi um conspirador da esthetica, um rebelde ao despotismo de um
idéal que elle tinha por condemnado solidariamente com as velhas
instituições sociaes de que fazia parte. A sua vida foi consagrada a
derrocar pela pintura a inspiração da antiga arte assim como derrocou
pelo uso do poder executivo a columna da praça Vendôme. Louvavel
empenho, porque Courbet considerava essa inspiração uma fonte envenenada
para o trabalho artistico, assim como considerava essa columna um
symbolo ultrajante para a dignidade humana.
A demolição da columna, que toda a imprensa europea stygmatisou com
palavras tão resentidas e acerbas, não poderá deixar de ser um dia
olhada pela critica desapaixonada como a consequencia logica e fatal dos
principios de justiça social constantemente professados pelo immortal
artista.
Courbet foi condemnado a pagar a reconstituição da columna. Breve porém
soará a hora em que o nobre espirito francez deixe de considerar
puerilmente que se deve ser
_Fier d'être français
Quand on regarde la colonne!_
Paris, a cidade eterna da arte, a grande martyr, a grande pacificadora,
comprehenderá em pouco tempo que é uma injuria ao seu bello destino na
obra da conciliação humana a ostentação orgulhosa de um monumento que o
distico diz ser: _levantado à gloria do grande exercito por Napoleão o
Grande!!_
Paris, qua vae na proxima exposição celebrar dentro do regimen
republican a grande festa universal da industria e da paz, Paris cujo
municipio acaba de votar 546 contos de réis para os seus
estabelecimentos publicos de instrucção primaria ao anno corrente, Paris
que ainda ultimamente consagrou cerca de 5 mil contos á reorganisação
dos seus lyceus, não poderá manter em pé por muitos annos mais, em uma
das suas praças publicas, um symbolo que contradiz todas as suas
aspirações philosophicas e humanitarias, celebrando uma das maiores
nodoas da civilisação: o triumpho cannibalesco do militarismo sobre os
direitos do homem, a sujeição da França aos caprichos de um despota em
cuja fronte as justiças da historia estamparam já o ferrete da ignommia.
A legenda napoleonica esvahiu-se inteiramente das consciencias, e bastou
um sopro de Michelet para apagar para todo sempre nas tradições marciaes
da geração actual o sol de Austerlitz.
Courbet morreu antes da poder ser reembolsado da importancia da multa a
que o condemnaram como inconoclasta. Mas a posteridade o desaggravará,
ratificando a sua obra, demolindo pela segunda vez a columna Vendôme e
pondo no logar d'ella, em vez do genio das batalhas que lhe serve de
remate, o genio da arte representado na estatua do grande pintor que na
maneira de conceber e de executar a obra do espirito fundou a escola que
será uma das glorias d'este seculo, e na maneira de usar do governo em
que teve parte commetteu o erro sempre fatal em politica de antecipar na
pratica dos seus actos a opinião do seu tempo.
* * * * *
Victor Manuel foi o homem forte por excellencia. Tinha o pulso athletico
de Godofredo de Bulhões. Poderia como elle decepar de um só golpe da
espada a cabeça de um boi ou o tronco de um reaccionario; commandou como
elle uma cruzada,--a cruzada de Novara até Roma, como elle chegou a
terra promettida; morreu moço como elle, como todos os heroes que tendo
realisado na terra uma grande missão, se sentem de repente invadidos na
alma pela tristeza immensa dos saciados. Teve a virtude symptomatica dos
fortes--a colossal bondade. Ninguem abriu bocas mais fundas nas espadas
dos seus adversarios; ninguem calcou a terra com sapatos mais fortes,
mais intrepidos e mais bem ferrados, atraz dos tyrannos e dos cabritos,
atraz das raposas e dos padres. Ninguem trepou com pulmões mais rijos ás
altas cumiadas dos Appeninos e da liberdade. Ninguem sorriu com mais
encanto e com mais prestigio á fadiga, ao perigo, ás mulheres e á morte.
Era evidentemente um forte. E como a força é o maior de todos os
attractivos humanos, ninguem conciliou como elle em torno de si tão
contradictorias sympathias e tão heterogeneas affeições: foi o amigo do
Papa e de Garibaldi, de Bismark e de Gambetta.
Feliz homem!
* * * * *
A morte de José de Alencar, o auctor do _Guarany_ e de _Luciola_,
representa uma das maiores perdas para a litteratura brazileira, tão
notavel nos ultimos tempos pela cooperação dos seus poetas e dos seus
pensadores.
Na sociedade do Brazil, que o principio da escravidão desviou por tantos
annos tenebrosos do seu destino e do seu desenvolvimento natural, a
organisação moderna do trabalho livre é ao mesmo tempo a creação de um
novo elemento social--o povo.
José de Alencar, romancista, poeta, jornalista, tribuno, influenciando
poderosamente o seu tempo pela penna e pela palavra, era a imagem
synthetica d'esse poder que se chama a Plebe, que procede da lama, e
decide da sorte dos imperios.
Elle, que alcançára um dos mais luminosos logares entre os homens mais
celebres e mais prestigiosos do seu tempo, sahira do esgoto da cidade,
procedera da roda dos expostos.
Esse engeitado era a personalisação mais gloriosa da soberania do
trabalho, affirmando elle mesmo o seu direito, desembainhando no throno
da arte a sua larga espada de justiça, vestindo a tunica e a dalmatica
azul, calçando as esporas de ouro nos coturnos hordados de lizes, e
fazendo-se ungir e sagrar pelas multidões como os antigos eleitos do
senhor. E era a elle, como a todo o artista victorioso e triumphante,
que se deveria dizer como Samuel ao rei Saul: «Deus te elegeu para
reinar sobre a sua herança e para livrar os povos das mãos dos seus
inimigos.»
* * * * *
Augusto Soromenho foi o mais infeliz dos trabalhadores. A doce
consolação de cumprir um destino, consolação compensadora de tantas
amarguras e de tantos sacrificios, não foi concedida na terra áquella
natureza essencialmente desgraçada.
Tinha um incomparavel poder de applicação e de estudo e ninguem possuia
em Portugal uma provisão mais copiosa de noções e do factos. Foi o
collaborador do Alexandre Herculano nas investigações da historia
nacional, foi o seu melhor discipulo e o seu unico successor. Ninguem
melhor do que elle conhecia as fontes e as correntes historicas dos
nossos costumes e das nossas tradições. Era archeologo, diplomatico,
jurista, bibliographo. Não havia inscripção truncada na epigraphia nem
texto ambiguo nos codices que resistisse aos processos da sua sagacidade
portentosa. A sua memoria phenomenal dava-lhe a omnipresença de quanto
tinha lido no recolhimento de vinte annos de estudo fervoroso e
incessante. Era um tomo de erudição vastissima, assombrosa, que ninguem
consultava de balde em qualquer ponto da historia dos costumes; do
direito, da politica, do governo, da economia, da arte, da litteratura e
da lingua.
Faltava-lhe porém no seu vasto e poderoso cerebro a faculdade da
generalisação. Não sabia tirar dos factos as leis de que elles são a
funcção. Não sabia correlacionar. Não tinha o poder creador. Por esse
motivo a isolação suffocava a efficiencia da sua actividade. Era um
instrumento, cujo machinismo precioso parava sem a impulsão de energias
concomitantes e confluentes. Mas a sociabilidade litteraria a que elle
estava condemnado a submetter-se para ser uma força na civilisação,
repugnava ao seu temperamento de uma susceptibilidade intransigente
aggravada por uma falsa educação.
Essa capacidade tão prodigiosa de contensão, de investigação, de exame,
de absorpção de idéas, estava na sua natureza alliada a um temperamento
caprichoso e feminil. Extremamente lymphatico, tendo sido epileptico na
infancia, não poderia fatalmente deixar de ser o que era: um
sentimentalista. A sentimentalidade foi o cachopo de todas os naufragios
da sua inquieta o attribulada existencia.
A indifferença perante o conflicto é uma nobre virtude. Raros a possuem.
O que succede com as naturezas vulgares é que a nossa resolução bôa,
conscientemente reflectida, reforçada na mais legitima compenetração do
dever, da dignidade, da honra, desmaia na conjunctura do conflicto que
vae provocar entre amigos, entre companheiros, entre camaradas, e nós
precisamos de reagir sobre nós mesmos com toda a força da nossa coragem
para nos determinarmos a effectuar pela nossa iniciativa a explosão da
crise irreconciliavel que presentimos latente, palpitante, dependente da
palavra decisiva que por um dever de consciencia profundo e sagrado
vamos lançar ao coração d'aquelles que nos rodeiam. Pois bem: essa
virtude, tão rara, tão viril, de desmanchar implacavelmente prazeres
para implantar controversias, essa virtude, dizemos, possuia-a Soromenho
no estado de uma exageração pathologica. O conflicto na convivencia
social não somente lhe não repugnava mas attrahia-o--como succede ás
mulheres nervosas.
Consideravam-o geralmente uma vibora. Elle era apenas uma creança. As
suas violencias mais asperas procediam todas logicamente da sua
sensibilidade doentiamente delicada. Ninguem teve a injuria mais pronta
pela mesma rasão de que ninguem teve egualmente a compaixão mais facil.
Ninguem proferiu improperios mais pungentes, mas tambem ninguem chorou
lagrimas mais enternecidas. Os que o viram aggressivo e verberante nas
sessões da Academia, nos conselhos do Lyceu Nacional e do Curso Superior
de Lettras não conheceram senão metade d'essa physionomia tão
caracteristicamente meridional nos traços moraes como nas fórmas
physicas.
Era preciso ouvil-o na intimidade da sua bibliotheca, no terceiro andar
obscuro e modesto, conhecido de toda a mocidade estudiosa, terceiro
andar a que tantas vezes subiram para fumar o cigarro democratico da
camaradagem litteraria Lord Talbot, Lord Stanley, Gayangos, o conde de
Brandebourg e tantos outros extrangeiros e viajantes illustres, para os
quaes aquella humilde casa de litterato, tão hospitaleira e tão pobre,
tinha altractivos que não podiam propornionar ás exigencias dos
philosphos e dos principes, os mais brilhantes salões de Lisboa. Era
preciso onvil-o ahi dissipar em bonhomia e em sensibilidade todo o
nervosismo do seu coração com a mesma prodigalidade cem que nas
assembléas officiaes acabara de dispender as violencias do seu cerebro
imperfeitamente orientado.
Quando alludia á sua encantadora aldeia natal nas margens do Ave, perto
da Villa do Conde, as doces paizagens do Minho onde elle viajara
alegremente a pé nos dias azues da sua mocidade; quando repetia o
estribilho de uma saudosa cantiga, os versos melancolicos de uma lenda
ou de um romance popular; quando narrava a volta de uma _esfolhada_
nocturna, sob o luar, ouvindo o gotejar da agua no fundo da deveza o
canto dos rouxinoes atravez da espessura negra dos pomares; quando
descrevia as madrogradas da caça ás perdizes no monte de S. Felix, ou as
outras madrugadas mais alegres ainda das romarias minhotas, em que os
clarinetes amanhecem antes dos melros, fazendo dançar pelos caminhos as
bellas raparigas louras; quando finalmente se referia aos companheiros,
aos amigos, que deixara dispersos na vida, os seus olhos de arabe,
negros, rasgados, contemplativos, marejavam-se-lhe de lagrimas, e a sua
voz cheia, incisiva e dominante, que nunca tremia nem se velava no
maximo arrebatamento da colera, embargava-se-lhe em soluços,
estrangulada pela saudade ao recordar um companheiro da infancia, um bom
sitio amado, uma velha canção querida.
Banido da Academia, banido da Torre do Tombo, os dois unicos campos em
que se podia exercer com proveito e com honra da patria a actividade da
sua intelligencia, Augusto Soromenho foi enterrado vivo, e vivo foi
sepultado n'este medonho tumulo--o despreso.
Nos seus ultimos tempos trabalhava ainda. Trabalhou até o seu ultimo
dia. Ha cerca de um anno padecia uma dôr sternalgica, symptomatica do
aneurisma. Esta dôr lancinante, que o privava do movimento, forçando-o a
parar de repente na rua, obrigou-o a interromper antes d'hontem de
madrugada a leitura que estava fazendo desde a meia noite na sua
biblioteca. Acudiu-lhe a sua familia, chamou-se á pressa um medico.
Inutilmente. Elle estava morto.
Seria mais que omisso, seria infame, que, tendo conhecido Augusto
Soromenho desde a sua infancia, o que escreve estas linhas deixasse de
acrescentar que a reputação tão frequentemente discutida d'esse
traballhador desventurado foi sempre pura e immaculada aos olhos de quem
o tratara intimamente durante o longo decurso de perto de trinta annos.
O que faz este depoimento deseja para honra da humanidade que os Curcios
e os Plutarcos encarregados de celebrar a vida e feitos dos Scipiões
illustres e dos Catões celebres achem sempre nos seus heroes tantas
qualidades desinteressadas e nobres para serem cobertas de rhetorica,
quantas aquellas que em Augusto Soromenho foram deturpadas pela
maledicencia.
* * * * *
Com esle titulo--_Ao sr. Ramalho Ortigão_--publicou o _Diario da Manhã_
o folhetim seguinte:
_Os exames no Lyceu Nacional--Os fins da educação--Um programma de
ensino para o sexo feminino--Como se prepara a emancipação das
mulheres--Duas catastrophes: o estado da litteratura feminina, e o
estado da cosinha nacional--Grito afflictivo do paiz: menos odes e mais
caldo_.
Termina assim o summario do ultimo numero das _Farpas_. Qual de nós
deixaria de ler com a maxima attenção um artigo escripto pelo sr.
Ramalho, sobre assumptos de tanto interesse para o nosso sexo? nenhuma
de certo. E para que se não diga com verdade que o grito afflictivo do
paiz, do qual o sr. Ramalho se faz orgão, pedindo-nos caldo, não foi
ouvido por uma só mulher portugueza, que, condoida, o soccorresse, venho
por mim e em nome das senhoras portuenses, dar-lhe não só _caldo_, mas
tambem _luz_, que o alumie nas suas investigações ácerca d'um assumpto,
que é realmente grave--a dyspepsia nacional, que s. ex.ª attribue á
nossa ignorancia culinaria, fazendo assim pesar sobre nós, tão tremenda
responsabilidade.
Se o assumpto de que se trata, não fosse realmente grave,
contentar-nos-hiamos com o praser que nos dá sempre a leitura dos
escriptos do sr. Ramalho, pela elegancia do seu estylo, e finura do seu
espirito, e apenas diriamos, na nossa linguagem de cozinheiros: É pena
que os escriptos do sr. Ramalho não sejam mais succulentos! são como os
caldos feitos pelos cosinheiros francezes, de apparencia magnifica,
depurados até á transparencia, muito aromatisados ... mas sem
substancia.
Quer-nos porem parecer, apesar da ironia com que o sr. Ramalho falla
sempre de nós, que não tem rasão para nos querer mal; e que como filho,
esposo e irmão de senhoras portuguezas, e por isso quasi nosso irmão,
deseja com certeza a nossa felicidade e se promptificaria da melhor
vontade a fazer-nos um favor se lh'o pedissemos. Ouça-me pois.
Não ensine á sr.ª D. Jeronyma, nem a mulher nenhuma portugueza, como se
faz esse alambicado caldo francez, tão purificado, que por fim como o
proprio sr. Ramalho confessa, deixa de ser um alimento. Se tem amor á
sua patria, anime-nos, e aconselhe-nos a que continuemos a fazer os
classicos caldos portuguezes, succulentos e compactos como os faziam
nossas avós, e como nós todas ainda hoje sabemos fazer. Se o principal
agente do temperamento d'um povo, do seu caracter e da formação das suas
idéas, é, como s. ex.ª diz a sua alimentação, não esqueçamos que foi
comendo esses caldos e quasi só com elles, que os energicos e valentes
portuguezes contiveram sempre em respeito o poder de Castella, e que na
Africa, e na Asia praticaram acções de tão prodigioso valor. E descendo
á historia dos nossos dias, lembre-se que os vultos grandiosos dos
lidadores da epopéa da liberdade, apesar de alimentados pelo caldo
nacional e então infelizmente bem magro, mostraram em cem combates a sua
heroica energia, e sua valorosa audacia, sem que o estomago se
incommodasse com a dyspepsia nacional. É só com caldo, e com brôa que
todos os dias se alimentam aqui centenares de homens do povo, que
supportam, sem cansaço, nem fadiga, durante dez ou doze horas por dia,
os mais rudes trabalhos; e comtudo não soffrem de dyspepsia. Será por
terem _mulheres muito instruidas_, ou porque o _caldo que comem é
preparado por cosinheiros de 5:000 francos_? deve ser por uma d'estas
rasões, visto que é o sr. Ramalho quem nol-o affirma.
A dyspepsia não é em Portugal uma doença nacional, é quasi privativa dos
homens das classes elevadas--e quer que lhe digámos porque? Porque elles
teem com raras excepções, uma mocidade dissipada; porque na idade dos
quinze aos vinte annos, quando os rapazes inglezes e allemães fazem
consistir o seu maior prazer em se exercitarem nos jogos athleticos, e
todo o seu orgulho em serem vencedores n'uma corrida ou n'uma regata, os
portuguezes vão descançar das lides do estudo nos bancos dos botequins e
das tavernas, onde é considerado heroe aquelle que come e bebe mais
brutalmente, e como deus o que engole successivamente vinte e um calices
de licor ou cognac, o que na pittoresca phraseologia d'esses senhores se
chama dar uma salva real! Desculpa-os porém o axioma do nosso codigo de
educação: que é preciso dar muita cabeçada para vir a ser homem serio.
Conhece o sr. Ramalho, bem melhor do que nós, todos os perigos porque
passam os rapazes desde que se emancipam da tutella materna, até que
chegam a ser homens. Estude o meio de os livrar d'esses perigos, e de
lhes regenerar os costumes, e verá que, quando chegarem a ser chefes de
familia, seu natural destino, não precisarão de encontrar na esposa o
braço forte que lhes seja amparo, e terão o estomago são como em
crianças, podendo digerir perfeitamente um caldo, mesmo quando elle não
seja perfeitamente transparente, e até quando tenha seus vestigios de
gordura. Faça isto que lhe pedimos, e todas nós bemdiremos o seu nome,
pois d'este modo terá prestado um importantissimo serviço ao seu paiz.
O seu programma para a educação das mulheres parece-nos excellente para
a França, Inglaterra e outros paizes onde as meninas são educadas nos
collegios, longe da familia; mas aqui onde em geral as creanças que os
frequentam comem e dormem em casa, essa educação que nos habilita a ser
boas _ménagéres_, já que o sr. Ramalho gosta de francezismos,
recebemol-a nós todas com o exemplo e lição de nossas mães.
Em Portugal onde todo o serviço domestico é geralmente feito em casa,
todas nós sabemos como se lava, como se engomma, como se cozinha, como
se faz doce, como se talha um vestido, etc. Mesmo as senhoras que não
fazem esses serviços sabem como elles são feitos, pois desde crianças os
viram fazer. O que não sabemos, lá isso não, é _differençar os
differentes generos de mobilia e o seu estylo caracteristico nas epocas
mais notaveis da arte ornamental_, etc. etc.; mas em quanto
considerarmos, como até agora, a vontade, e o gosto do dono da casa, a
suprema lei que nos rege na escolha de todos esses artigos em que nos
falla, deixaremos esses conhecimentos aos cuidados dos nossos maridos.
Em quanto á nossa educação moral, estamos convencidas que em paiz nenhum
as mulheres são mais honestas, mais laboriosas, mais dedicadas, mais
sobrias e economicas, mais submissas á vontade do marido que nós, e toda
a eloquencia do sr. Ramalho não é capaz de abalar sequer a nossa
convicção.
Em França e em Inglaterra ha muitas mulheres--por
profissão--enfermeiras, aqui não as ha senão nos hospitaes, e nem se
lhes sente a falta, porque em toda a casa onde ha uma mulher, quer ella
seja mãe, esposa, filha, irmã, ou mesmo criada, ha uma enfermeira
sollicita, carinhosa e dedicada, cuja coragem nem sequer vacilla ante os
horrores do contagio, que tantas vezes aniquilla o animo de homens
energicos e audaciosos.
Para sabermos fazer prodigios de economia não precisamos de nos alistar
n'uma escola ingleza, e, se o não soubessemos, a primeira mulher do povo
que interrogassemos n'ol-o ensinaria. Tambem em Portugal se póde
sustentar uma familia com 18$000 réis por semana, mas n'essa familia--o
chefe, que trabalha do nascer ao pôr do sol, sustenta-se comendo tres
tigellas de caldo que lhe custam 10 réis cada uma, 20 réis de sardinhas,
e 10 réis de brôa por dia: total 90 réis.
Convença os homens, com a sua deslumbrante eloquencia, de que este
alimento é muito sufficiente para lhes conservar robustas as forças
vitaes, e verá como nós todas fazemos economias prodigiosas, e como uma
casa deixará de ser uma _lôba_ para se transformar n'uma _burra_.
Mas se considera como o ideal da perfeição na mulher, ser ella o _braço
forte e escudo da familia_, tambem lhe podemos aqui apontar numerosos
exemplos d'essas. As mulheres de Avintes passam os dias remando e
guiando barcos no nosso Douro para ganhar o pão dos filhos, em quanto os
maridos ficam em casa cosinhando: já vê que para qualquer de nós
realizar o seu ideal basta casar em Avintes.
A educação intellectual das mulheres, quando ellas se não dediquem a ser
mestras, póde, e até deve, assim como a moral, receber, como complemento
necessario, as liçoes dos homens de quem forem esposas. Assim
reconhecendo no marido superioridade em tudo, até mesmo nos
conhecimentos litterarios, ser-lhes-ha mais facil ter por ele esse
respeito que a religião e a sociedade nos impõem como o primeiro dever
da esposa.
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