A Harpa do Crente - 2

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todas os poesias hebraicas deste genero lyrico e religioso.

[Pag. 16.]
_E ao esconder-se o sol entre as montanhas
De Bethoron_
Bethoron inferior, cidade situada perto de Gadara ou Gazara e de Bethel, e
todas ellas em uma serie de montanhas no extremo da Tribu de Ephraim, ao
occidente de Jerusalem. Cumpre não a confundir com a outra Bethoron ou
Bethra, a quatro milhas de Jerusalem para o norte, no caminho de Sichem ou
Naplusa.

[Pag. 16.]
_O Psalmo._
Commota est, et contremuit terra: fundamenta montium conturbata sunt, et
commota sunt, quoniam iratus est eis.
Ascendit fumus in ira ejus: et ignis à facie ejus exarsit: carbones
succensi sunt ab eo.
Inclinavit coelos et descendit: et caligo sub pedibus ejus.
Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit super pennas ventorum.
_Psalm. 17--v. 8--9--10--11._
Quò ibo a spiritu tuo? et quò à facie tua figiam?--
Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in infernum, ades.
Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in extremis maris:
Etenim illuc manus tua deducet me: et tenebit me dextera tua.
Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox illuminatio mea in
deliciis meis.
Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox sicut dies illuminabitur:
sicut tenebrae ejus, sicut et lumen ejus.
_Psalm. 138--v. 7--8--9--10--11--12._
------- arcum suum tetendit et paravit illum.
Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus effecit.
_Psalm. 7--v. 13--14._

[Pag. 18.]
_------ e um som soturno
Do orgam partiu-o:_
O orgam é um instrumento propriissimo para acompanhar os hymnos religiosos.
Os protestantes, apartando-se da communhão romana, e fazendo voltar o culto
quasi á simplicidade primitiva, conservaram nos seus templos este
instrumento, cujos sons melodiosos, e ao mesmo tempo severos, se adaptam
tão bem ás idéas que suscitam os cantos da Igreja. O primeiro orgam, que se
viu no occidente da Europa, foi o que mandou, em 758, Constantino
Copronymo, imperador de Constantinopola, a Pepino, pae de Carlos-Magno.
Depois o seu uso se tomou quasi exclusivo nos templos.

[Pag. 18.]
_Modulando o Nebel_
O _Nebel_, que os gregos traduzem por _Psalterion_ ou _Nablon_, era entre
os hebreus um instrumento proprio da musica religiosa, como entre os
christãos o orgam. A sua fórma triangular, e o ser instrumento de cordas,
fez com que na Vulgata se vertesse a palavra hebraica _Nebel_, umas vezes
por lyra, outras por cythara, sem ser nenhuma das duas cousas. Veja-se a
Dissertação de Calmet ácerca da musica dos hebreus.

[Pag. 18.]
_Do immundo Stellio_
O Stellio é o lagarto da 1.ª especie, ou a salamandra de Lacepede.
_Stellio_ manibus nititur et moratur in aedibus regis. _Prov. 30 v.
28_--Migale, et chamaeleon, et _stellio_, et lacerta, et talpa. _Levit.
11--v. 30._

[Pag. 19.]
_Nas margens do Kedron a rãa grasnando_
A torrente de _Kedron_, que passa entre Jerusalem e o monte Olivete, ao
oriente da cidade, sécca inteiramente no estio, e no hynverno as suas aguas
são torvas e avermelhadas. D'ahi o seu nome, que sôa como--_torrente da
tristeza_--. Alguem lhe chamou--_torrente dos cedros_, tomando a palavra
hebraica _Kedron_ pelo plural grego _Kedron_.

[Pag. 19.]
_O vate de Anathoth_
Jeremias era natural de Anathoth cidade sacerdotal na Tribu de
Benjamim.--Verba Jeremiae filii Helciae, de sacerdotibus qui fuerunt in
Anathoth, in terra Benjamim. _Jer. 1--1._

[Pag. 19.]
_Entre o povo infiel, de Eloha em nome_
_Eloha_ ou _Elah_--Nome de Deus em hebraico, ou antes chaldaico, e palavra
assás commum na Biblia. O auctor do Genesis usa do plural _Elohim_ ou
_Elahim_ para significar, ora o _Deus uno_, ora os deuses dos pagãos.
Consulte-se Volney, _Recherches sur l'histoire ancienne._ Cap. 17.

[Pag. 19.]
_Inspirára Moysés_
Allusão ao cantico depois da passagem do mar roxo.

[Pag. 20.]
_A Lamentação._
Quomodo sedet sola civitas plena populo!--Facta est quasi vidua Domina
Gentium: princeps provinciarum facta est sub tributo.
Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis ejus: non est qui
consoletur eam ex omnibus caris ejus: omnes amici ejus spreverunt eam, et
facti sunt ei inimii.
Viae Sion lugent, eò quod non sint, qui veniant ad solemnitatem: omnes
portae ejus destructae: sacerdotes ejus gementes: virgines ejus squallidae,
et ipsa oppressa amaritudine.
_Threni c. 1--v. 1--2--4._
Omnis populus ejus gemens, et quaerens panem: dederunt pretiosa quaeque
piro cibo ad refocilandum animam.
_C. 1--v. 11._
A Egypto dedimus manum, et Assyriis ut saturaremur pane.
_Oratio Jerem. 6._
Jacuerunt in terra foris puer, et senex.
_Threni c.--v. 21._
Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos: facti sunt cibus earum
in contritione filiae populi mei.
_Thren. 4.--v. 10._
Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et respice opprobrium
nostrum.
Haereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae ad extraneos.
Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret de manu eorum.
Quare in perpetuum oblivisceris noatri? derelinques nos in longitudine
dierum?
_Orat. Jer. v. 1--2--8--10._

[Pag. 22.]
_Bem como aquella que atterrou um ímpio._
Baltasar rex facit grande convivium optimatibus suis mille; et unusquisque
secundùm suam bibebat aetatem.
Praecepit ergo jam temulentus ut afferrentur vasa aurea et argentea, quae
asportaverat Nabuchodonosor pater ejus de templo, quod fuit in Jerusalem,
ut biberent in eis rex et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae.
Tunc allata sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de templo, quod
fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex, et optimates ejus, uxores et
concubinae illius. Bibebant vinum el laudabant deos suos aureos, et
argenteos, aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In eadem hora
aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra candelabrum in
superficie parietis aulae regiae: et rex aspiciebat articulos manus
scribentis. Tunc facies regis commutata est, et cogitationes ejus
conturbabant eum; et compages renum ejus solvebantur, et genua ejus ad se
invicem collidebantur. Haec est autem scriptura, quae digesta est: _Mane_,
_Thecel_, _Phares_. Et haec est interpretatio sermonis: _Mane_: numeravit
Deus regnum tuum et complevit illud. _Thecel_: appensus es in statera, et
inventus es minus habens. _Phares_: divisum est regnum tuum, et datum est
Medis, et Persis.
_Danielis Proph. c. 5--v. 1 a 6--25 a 28._

[Pag. 23.]
_Hoje, campo de lagrymas, só cria
Humilde musgo de escalvados cerros._
Varios passos, cem vezes citados, de Tacito e de outros escriptores
gravissimos da antiguidade, nos provam que a Judea foi um paiz feracissimo.
Os viajantes modernos no-la descrevem como uma região arida e inculta. O
despotismo, que ha seculos tem opprimido a Syria, e a rapacidade dos
arabes; são em grande parte causa da aniquilação da agricultura na
Palestina; porém a sua esterilidade não se póde attribuir, por certo, a uma
causa politica. Os sectarios do Crucificado não podem deixar de vêr neste
phenomeno os effeitos da maldicção de Deus sobre a terra que bebeu o sangue
do _Filho do Homem_.

[Pag. 23.]
_Ide vós a Mambré:_
O valle de Mambré estava situado juncto de Kariath-Arbé [Hebron] na tribu
de Judah, e ao Meio-dia de Jerusalem. O carvalho ou terebintho de Abrahão,
que, segundo o testemunho de S. Jeronymo, ainda existia no tempo de
Constantino, o tornava notavel. Ácerca desta arvore célebre existem muitas
tradições entre os Judeus; e até para os christãos dos primeiros seculos
era o valle de Mambré um logar de devoção e romagem. Sozomeno nos descreve
o _Valle de Terebintho_ como um sitio de festivas reuniões, e foi a sua
narração quem suscitou este pedaço de Poema.

[Pag. 23.]
_na primavera
Vinham os moços adornar-lhe o tronco_
Aqui [em Mambré] ha um logar que hoje chamam Terebintho, distante de
Chebron, que lhe fica ao meio-dia, 15 stadios, e de Jerusalém quasi
250.--Os habitantes deste sitio, no tempo do estio, fazem uma feira a que
concorrem os vizinhos do valle, e ainda povos mais remotos, como os
Palestinos, os Arabes, e os Phenicios. _Sozom. Histor. Eccles._

[Pag. 24.]
_No Golgotha plantada a cruz clamára_
O monte Golgotha ou Calvario foi o logar onde crucificaram J. C.--Esta
palavra significa: _Logar onde repousam os craneos dos mortos._

[Pag. 24.]
_No Moriah sentou-se:_
O monte Moriah, onde estava o templo de Salomão, levantava-se no meio de
Jerusalem, e ficava-lhe ao norte o monte Sion. Diz-se que neste logar
estivera Abrahão para sacrificar seu filho.--_Calmet Diction._


A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR
DA
VOZ DO PROPHETA.

SEGUNDA SERIE.

LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
_Rua direita do Arsenal--n.º 55._


*A Arrabida.*

A RODRIGO DA FONSECA MAGALHÃES,
ORNAMENTO DA TRIBUNA PORTUGUEZA,
_Em testemunho da sincera amizade,_
Offerece o Auctor.


A Arrabida.
[1830.]

I.
Salve, oh valle do sul, saudoso e bello!
Salve, oh terra de paz, deserto sancto,
Onde não chega o sussurrar das turbas!
Sólo sagrado a Deus, podesse o bardo
Ser um dos teus, e não voltar ao mundo!

II.
Suspira o vento no alamo frondoso;
As aves soltam matutino canto;
Late o lebreu na encosta, e o mar sussurra
Nos rochedos da concava bahia:
Eis o ruido de ermo!--Ao longe o negro,
Insondado oceano, e o ceu ceruleo
Se abraçam no horizonte: immensa imagem
Da eternidade e do infinito, salve!

III.
Oh, como surge magestosa e bella,
Com viço da creação, a naturesa,
No solitario valle!--E o leve insecto,
E a relva, e os matos, e a fragrancia pura
Das boninas da encosta estão contando
Mil saudades de Deus, que os ha lançado,
Com mão profusa, no regaço ameno
Da solidão, onde se esconda o justo.
E lá campeam no alto das montanhas
Os escalvados pincaros, severos,
Quaes guardadores de um logar que é sancto:
Atalaias que ao longe o mundo observam,
Cerrando até o mar o ultimo abrigo
Da crença viva, da oração piedosa,
Que se ergue a Deus de labios innocentes.
Sobre esta scena o sol verte em torrentes
Da manhan o clarão; a brisa esvae-se
Por esses matos de alecrim florído,
Embalsamando o ar de brando aroma:
O rocío da noite á rosa agreste
No seio derramou frescor suave,
E 'inda existencia lhe dará um dia!
Formoso ermo do sul, outra vez, salve!

IV.
Negro, esteril rochedo, que contrastas,
Na mudez tua, o placido sussurro
Das arvores do valle, que verdecem,
Ricas d'encantos, co'a estação propicia;
Suavissimo aroma, que manando
Das variegadas flores, derramadas
Na sinuosa encosta da montanha,
Do altar da solidão subindo aos ares,
És digno incenso ao Creador erguido;
Livres aves, vós filhas da espessura,
Que só teceis da natureza os hymnos;
O que crê, o cantor, que foi lançado,
Estranho ao mundo, no bulicio delle,
Vem saudar-vos, sentir um goso puro,
Dos homens esquecer paixões e opprobrio,
E vêr, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,
O sol, e uma só vez pura saudar-lha.
Comvosco eu sou maior: mais longe a mente
Pelos seios dos céus se immerge livre,
E se desprende de mortaes memorias
Na solidão solemne, onde, incessante,
Em cada pedra, em cada flor se escuta
Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa
A dextra sua em multiforme quadro.

V.
Escalvado penedo, que repousas
Lá no cimo do monte, ameaçando
Ruina ás matas de alecrim e murta,
Que nesta encosta ondeam, meneadas
Pelo vento do sul, foste já lindo,
Já te cubriram cespedes virentes;
Mas o tempo voou, e nelle involta
A tua formosura: as grossas chuvas,
Despedidas das nuvens, se arrojaram
Sobre ti, oh rochedo, arrebatando
A terra e o viço, que te ornava o cimo.
Eis-te nú esqueleto!--o sol queimou-te:
Tua alvura passou: tão negro és hoje,
Quanto de mar erguido escuras vagas.
Cáveira da montanha, ossada immensa,
É tua campa o ceu: sepulchro o valle
Um dia te será. Quando sentires
Rugir com som medonho a terra ao longe,
Na expansão dos volcões, e o mar bramindo,
Lançar á praia vagalhões cruzados;
Tremer-te a larga base, e sacudir-te
Do vasto dorso, o fundo deste valle
Te váe servir de tumulo: e os carvalhos
Do mundo primogenitos, e os freixos,
Arrastados por ti lá da collina,
Comtigo hão-de jazer.--De novo a terra
Te cubrirá o dorso sinuoso:
Outra vez sobre ti nascendo os lyrios,
Do seu puro candor hão-de adornar-te:
E tu, ora medonho, e nú, e triste,
Ainda bello serás, vestido e alegre.
Mais que o homem feliz!--Quando eu no valle
Dos tumulos cair; quando uma pedra
Os ossos me esmagar, se me fôr dada,
Não mais reviverei: não mais meus olhos
Verão o pôr do sol, em dia estivo,
Se em turbilhões de purpura, que ondeam
Pelo extremo dos céus sobre o occidente,
Váe provar que um Deus ha a estranhos povos,
E alem das ondas tremulo sumir-se;
Nem, quando, lá do cimo das montanhas,
Com torrentes de luz inunda as veigas:
Nem mais verei o refulgir da lua
No irrequieto mar, na paz da noite,
Por horas em que véla o criminoso,
A quem íntima voz rouba o socego,
E em que o justo descança, ou, solitario,
Ergue ao Senhor um hiymno harmonioso.

VI.
Hontem, sentado n'um penhasco, e perto
Das aguas, então quêdas, do oceano,
Eu tambem o louvei, sem ser um justo:
E meditei--e a mente extasiada
Deixei correr pela amplidão das ondas.
Como abraço materno, era suave
A aragem fresca do caír das trévas,
Em quanto, involta em gloria, a clara lua
Sumia em seu fulgor milhões d'estrellas.
Tudo calado estava: o mar somente
As harmonias da creação soltava,
Em seu rugido; e o freixo do deserto
Se agitava, gemendo e murmurando,
Ante o sopro de oeste:--alli dos olhos
O pranto me correu, sem que o sentisse,
E aos pés de Deus se derramou minha alma.

VII.
Oh, que viesse o que não crê, comigo,
Á vecejante Arrabida, de noite,
E se assentasse aqui sobre estas fragas,
Escutando o sussurro incerto e triste
Das movediças ramas, que povoa
De saudade e de amor nocturna brisa;
Que visse a lua, o espaço oppresso de astros,
E ouvisse o mar soando:--elle chorára,
Qual eu chorei, as lagrymas do goso,
E adorando o Senhor detestaria
De uma sciencia van seu vão orgulho.

VIII.

É aqui neste valle, ao qual não chega
Humana voz e o tumultuar das turbas,
Onde o nada da vida sonda livre
O coração, que busca ir abrigar-se
No futuro, e debaixo do amplo manto
Da piedade de Deus: aqui serena
Vem a imagem da campa, como a imagem
Da patria ao desterrado: aqui, solemne,
Brada a montanha, memorando a morte.
Essas penhas, que, lá no alto da encosta,
Negras, despidas, dormem solitarias,
Parecem imitar da sepultura
O aspecto melancholico, e o repouso
Tão desejado do que em Deus confia.
Bem semelhante á paz, que se ha sentado
Por seculos, alli, nas serranias,
É o silencio do adro, onde reunem
Os cyprestes e a cruz o céu e a terra.
Como tu vens cercado de esperança,
Para o innocente, oh placido sepulchro!
Juncto das tuas bordas pavorosas
O perverso recúa horrorisado:
Após si volve os olhos; na existencia
Deserto árido só descobre ao longe,
Onde a virtude não deixou um trilho.
Mas o justo chegando á meta extrema,
Que separa de nós a eternidade,
Transpoem-a sem temor, e em Deus exulta.
O infeliz e o feliz lá dormem ambos,
Tranquillamente: e o trovador mesquinho,
Que peregrino vagueou na terra,
Sem encontrar um coração de fogo,
Que o entendesse, a patria de seus sonhos,
Ignota, por lá busca; e quando as eras
Vierem juncto ás cinzas collocar-lhe
Tardios louros, que escondêra a inveja,
Elle não erguerá a mão mirrada,
Para os cingir na regelada fronte.
Justiça, gloria, amor, saudade, tudo,
Ao pé da sepultura, é som perdido
De harpa eolia esquecida em brenha ou selva:
O despertar um pae, que saborea,
Entre os braços, da morte o extremo somno,
Já não é dado ao filial suspiro:
Em vão o amante, alli, da amada sua
De rosas sobre a c'roa debruçado,
Rega de amargo pranto as murchas flores
E a fria pedra: a pedra é sempre fria,
E para sempre as flores se murcharam,

IX.
Bello ermo! eu hei-de amar-te, em quanto est'alma,
Aspirando o futuro além da vida,
E um halito dos ceus, gemer, atada
Á columna do exilio, a que se chama,
Em lingua vil e mentirosa, o mundo.
Eu hei-de amar-te, oh valle, como um filho
Dos sonhos meus. A imagem do deserto
Guarda-la-hei no coração, bem juncto
Com minha fé, meu unico thesouro.
Qual pomposo jardim de verme illustre,
Chamado rei ou nobre, ha-de comtigo
Comparar-se, oh deserto?--Aqui não cresce
Em vaso de alabastro a flor captiva,
Ou arvore educada, por mão do homem,
Que lhe diga: és escrava: e erga um ferro,
E lhe decepe os troncos. Como é livre
A vaga do oceano, é livre no ermo
A bonina rasteira, e o freixo altivo:
Não lhes diz: nasce aqui, ou lá não cresças:
Humana voz. Se baqueou o freixo,
Deus o mandou; se a flor pendida murcha,
É que o rocio não desceu de noite,
E da vida o Senhor lhe nega a vida.
Ceu livre, terra livre, e livre a mente,
Paz íntima, e saudade, mas saudade
Que não doe, que não mirra, e que consola
São as riquezas do ermo, onde sorriem
Das procellas do mundo os que o deixaram.
Ahi, na branda encosta, hontem de noite,
Alvejava por entre as azinheiras
Do solitario a habitação tranquilla:
E eu vagueei por lá: patente estava
O pobre alvergue do eremita humilde,
Onde jazia o filho da esperança,
Sob as azas de Deus, á luz dos astros,
Em leito, duro sim, não de remorsos,
Oh, com quanto socego o bom do velho
Dormia!--A leve aragem lhe ondeava
As raras cãas na fronte, onde se lia
A bella historia de passados annos.
De alto choupo atravez passava um raio
Da lua--astro de paz, astro que chama
Os olhos para o ceu, e a Deus a mente--
E em luz pallida as faces lhe banhava:
E talvez neste raio o Pae celeste
Da patria eterna lhe enviava a imagem,
Que o sorriso dos labios lhe fugia,
Como se um sonho de ventura e gloria
Na terra de antemão o consolasse.
E eu comparei o solitario obscuro
Ao inquieto filho das cidades;
Comparei o deserto silencioso
Ao perpétuo ruido que sussurra
Pelos palacios do abastado e nobre,
Pelos paços dos reis; e condoí-me
Do cortesão suberbo, que só cura
De honras, haveres, gloria, que se compram
Com maldicções e perennal remorso.
Gloria!--A sua qual é?--Pelas campinas,
Cubertas de cadaveres, regadas
De negro sangue, elle segou seus louros;
Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva,
Ao som do choro da viuva, e do orpham;
Ou, dos sustos senhor, em seu delirio,
Os homens--seus irmãos--flagella e opprime.
Lá o filho do pó se julga um nume,
Porque a terra o adorou: o desgraçado
Pensa, talvez, que o verme dos sepulchros
Nunca se ha-de chegar, para traga-lo,
Ao banquete da morte, imaginando
Que uma lagem de marmore, que esconde
O cadaver do grande, é mais duravel
Do que esse chão sem inscripção, sem nome,
Por onde o oppresso, o misero, procura
O repouso, e se atira aos pés do throno
Do Omnipotente, a demandar justiça
Contra os fortes do mundo--os seus tyrannos.

X.
Oh cidade, cidade, que trasbordas
De vicios, de paixões, e de amarguras!
Tu lá estás, na tua pompa involta,
Suberba prostituta, alardeando
Os theatros, e os paços, e o ruido
Das carroças dos nobres, recamadas
De ouro e prata, e os praseres de uma vida
Tempestuosa, e o tropear contínuo
Dos férvidos ginetes, que alevantam
O pó e o lodo cortesão das praças;
E as gerações corruptas de teus filhos
Lá se revolvem, qual montão de vermes
Sobre um cadaver putrido!--Cidade,
Branqueado sepulchro, que misturas
A opulencia, a miseria, a dôr e o goso,
Honra, infamia, pudor, e impudicicia,
Ceu e inferno, que és tu?--Escarneo ou gloria
Da humanidade?--O que o souber que o diga!
Bem negra avulta aqui, na paz do valle,
A imagem desse povo, que reflue
Das moradas á rua, á praça, ao templo,
Que a noite sorve, e que vomita o dia,
Que ri, e chora, e folga, e geme, e morre,
Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme;
Absurdo mixto de baixesa extrema
E de extrema ousadia; vulto enorme,
Ora aos pés de um vil despota estendido,
Ora surgindo, e arremessando ao nada
As memorias dos seculos que foram;
E depois sobre o nada adormecendo.
Vê-lo, rico de opprobrio, ir assentar-se
Em joelhos, nos atrios dos tyrannos,
Onde, entre o lampejar de armas de servos,
O servo popular adora um tigre?
Esse tigre é o idolo do povo!
Saudae-o; que elle o manda: abençoae-lhe
O ferreo sceptro: ide folgar em roda
De cadafalsos, povoados sempre
De victimas illustres, cujo arranco
Seja como harmonia, que adormente,
Em seus terrores, o senhor das turbas.
Passae depois. Se a mão da Providencia
Esmigalhou a fronte á tyrannia;
Se o déspota caíu, e está deitado
No lodaçal da sua infamia, a turba
Lá vai buscar o sceptro dos terrores,
E diz--é meu--; e assenta-se na praça;
E involta em roto manto, e julga e reina.
Se um ímpio, então, na affogueada boca
De volcão popular sacode um facho,
Eis o incendio que muge, e a lava sobe,
E referve, e trasborda, e se derrama
Pelas ruas além: clamor retumba
De anarchia impudente, e o brilho de armas
Pelo escuro transluz, como um presagio
De assolação; e se amontoam vagas
Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo;
Desse vulgo, que ao som de infernaes hymnos,
Cava fundo da Patria a sepultura,
Onde, abraçando a gloria do passado
E do futuro a ultima esperança,
As esmaga comsigo, e ri morrendo.
Tal és cidade, licenciosa ou serva!
Outros louvem teus paços sumptuosos,
Teu ouro, teu poder:--sentina impura
Da corrupção, eu não serei teu bardo!

XI.
Cantor da solidão, eu me hei sentado
Juncto do verde cespede do valle;
E a paz de Deus do mundo me consola.
Avulta aqui, e alveja, entre o arvoredo,
Um pobre conventinho. Homem piedoso
O alevantou ha seculos, passando,
Como orvalho do ceu, por este sitio,
De virtudes depois tão rico e fertil.
Como um pae de seus filhos rodeado,
Pelos matos do outeiro o vão cercando
Os tugurios de humildes eremitas,
Onde o cilicio e a compuncção apagam
Da lembrança de Deus passados erros
Do peccador, que reclinou a fronte
Penitente no pó. O sacerdote
Dos remorsos lhe ouviu as amarguras;
E perdoou-lhe, e consolou-o em nome
Do que espirando perdoava, o Justo
Que entre os humanos não achou piedade.
Religião! do misero conforto,
Abrigo extremo de alma, que ha mirrado
O longo agonisar de uma saudade,
Da deshonra, do exilio, ou da injustiça,
Tu consolas aquelle, que ouve o verbo,
Que renovou o corrompido mundo,
E que mil povos pouco a pouco ouviram.
Nobre, plebeu, dominador, ou servo,
O rico, o pobre, o valoroso, o fraco,
Da desgraça no dia ajoelharam
No limiar do solitario templo.
Ao pé desse portal, que veste o musgo,
Encontrou-os chorando o sacerdote,
Que da serra descia á meia-noite,
Pelo sino das preces convocado:
Ahi os viu ao despontar do dia,
Sob os raios do sol, ainda chorando.
Passados mezes, o burel grosseiro,
O leito de cortiça, e a fervorosa
E contínua oração foram cerrando
Nos corações dos miseros as chagas,
Que o mundo sabe abrir, mas que não cura.
Aqui, depois, qual halito suave
Da primavera, lhes correu a vida,
Até sumir-se no adro do convento,
Debaixo de uma lagem tosca e humilde,
Sem nome, nem palavra, que recorde
O que a terra abrigou no somno extremo.
Eremiterio antigo, oh se podesses
Dos annos que lá vão contar a historia;
Se ora, á voz do cantor, possivel fosse
Transsudar desse chão, gelado e mudo,
O mudo pranto, em noites dolorosas,
Por naufragos do mundo derramado
Sobre elle, e aos pés da cruz!... se vós podesseis,
Broncas pedras, fallar, o que dirieis!
Quantos nomes mimosos da ventura,
Convertidos em fabula das gentes,
Despertariam o eccho das montanhas,
Se aos negros troncos do sobreiro antigo
Mandasse o Eterno sussurrar a historia
Dos que vieram desnudar-lhe o cepo,
Para um leito formar, onde velassem
Da magoa, ou do remorso as longas noites!
Aqui veio talvez buscar asylo
Um poderoso, outr'ora anjo da terra,
Despenhado nas trévas do infortunio:
Aqui, talvez, gemeu o amor trahido,
Ou pela morte convertido em cancro
De infernal desespero: aqui soaram
Do arrependido os ultimos gemidos,
Depois da vida derramada em gosos,
Depois do goso convertido em tedio.
Mas quem foram?--Na terra, onde deixaram
Suas vestes mortaes, nenhum vestigio
Resta dos nomes seus.--E isso que importa,
Se Deus os viu; se as lagrymas dos tristes
Elle contou, para as pagar com gloria?
Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda,
Que dos montes além conduz ao valle,
Sobre o marco de pedra a cruz se eleva,
Como um pharol de vida, em mar de escolhos:
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