A Harpa do Crente - 1

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A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR DA VOZ DO PROPHETA.
* * * * *
LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
_Rua direita do Arsenal--n.º 55._


A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR
DA
VOZ DO PROPHETA.

PRIMEIRA SERIE.

LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
_Rua direita do Arsenal--n.º 55._


*A Semana Sancta.*

A S. Ex.ª O MARQUEZ DE RESENDE.

_Em testemunho de amisade e veneração_
Offerece o Auctor.


A Semana Sancta.
Der Gedanke Gott weckt einen
furchterlichem Nachbar auf,
sein Name heisst Richter.
_Schiller._

I.
Tibio o sol entre as nuvens do occidente
Já lá se inclina ao mar. Grave e solemne
Vai a hora da tarde!--O oeste passa
Mudo nos troncos da lameda antiga,
Que já borbulha á voz da primavera:
O oeste passa mudo, e cruza a porta
Ponteaguda do templo, edificado
Por mãos rudes de avós, em monumento
De uma herança de fé, que nos legaram,
A nós seus netos, homens de alto esforço,
Que nos rimos da herança, e que insultamos
A cruz e o templo e a crença de outras eras:
Nós, homens fortes, servos de tyrannos,
Que sabemos tão bem rojar seus ferros
Sem nos queixar, menospresando a Patria
E a liberdade, e o combater por ella.
Eu não!--eu rujo escravo; eu creio e espero
No Deus das almas generosas, puras,
E os despotas maldigo.--Entendimento
_Bronco_, lançado em seculo fundido
Na servidão de goso ataviada,
Creio que Deus é Deus, e os homens livres!

II.
Oh sim!--rude amador de antigos sonhos,
Irei pedir aos tumulos dos velhos
Religioso enthusiasmo, e canto novo
Hei-de tecer, que os homens do futuro
Entenderão:--um canto escarnecido
Pelos filhos dest' épocha mesquinha,
Em que vim peregrino a vêr o mundo,
E chegar a meu termo, e repousar-me
Depois á sombra de um cypreste amigo.

III.
Passa o vento os do portico da Igreja
Esculpidos umbraes: correndo as naves
Sussurrou, sussurrou entre as columnas
De gothico lavor: no orgam do coro
Veio em fim murmurar e esvaecer-se.
Mas porque sôa o vento?--Está deserto,
Silencioso ainda o sacro templo:
Nenhuma voz humana ainda recorda
Os hymnos do Senhor. A natureza
Foi a primeira em celebrar seu nome
Neste dia de lucto e de saudade!
Trévas da quarta feira eu vos saudo!
Negras paredes, velhas testemunhas
De todas essas orações de mágoa,
Ou esperança, ou gratidão, ou sustos,
Depositados ante vós nos dias
De uma crença fervente, hoje enlutadas
De mais escuro dó, eu vos saudo!
A loucura da cruz não morreu toda
Apoz dezoito seculos!--Quem chore
Do sofrimento o Heróe existe ainda.
Eu chorarei--que as lagrymas são do homem--
Pelo Amigo do povo, assassinado
Por tyrannos, e hypocritas, e turbas
Envilecidas, barbaras, e servas.

IV.
Tu, Anjo do Senhor, que accendes o estro;
Que no espaço entre o abysmo e os ceus vagueas,
D'onde mergulhas no oceano a vista;
Tu que do trovador na mente arrojas
Quanto ha nos ceus esperançoso e bello,
Quanto ha no inferno tenebroso e triste,
Quanto ha nos mares magestoso e vago,
Hoje te invoco!--oh vem!--lança em minha alma
A harmonia celeste e o fogo e o genio,
Que dêm vida e vigor a um carme pio.

V.
A noite escura desce: o sol de todo
Nos mares se afogou: a luz dos mortos,
Dos brandões o clarão fulgura ao longe,
No cruzeiro somente e em volta da ara:
E pelas naves começou ruído
De compassado andar. Fiéis acodem
A visitar o Eterno, e ouvir queixumes
Do vate de Sion. Em breve os monges
Lamentosas canções aos ceus erguendo,
Sua voz unirão á voz desse orgam,
E os sons e os écchos reboaráõ no templo.
Mudo o côro depois, neste recinto
Dentro em bem pouco reinará silencio,
O silencio dos tumulos, e as trevas
Cubrirão por esta área a luz escassa
Despedida das lampadas, que pendem
Ante os altares, bruxuleando frouxas.
Imagem da existencia!--Em quanto passam
Os dias infantís, as paixões tuas,
Homem, qual então és, são debeis todas:
Cresceste:--ei-las torrente, em cujo dorso
Sobrenadam a dor, e o pranto, e o longo
Gemido do remorso, a qual lançar-se
Vai, com rouco estridor, no antro da morte,
Lá onde é tudo horror, silencio, noite.
Da vida tua instantes florescentes
Foram dous, e não mais: as cãas e rugas,
Breve, rebate de teu fim te deram.
Tu foste apenas som, que o ar ferindo
Se esvaíu pelo espaço immensuravel.
E a casa do Senhor ergueu-se!--o ferro
Cortou a penedia; e o canto enorme.
Polido alveja alli no espesso panno
Do muro collossal, que ha visto as eras
Velhas chegar, e adormecer-lhe ao lado:
A faia e o sobro no caír rangeram
Sob o machado: a trave affeiçoou-se;
Lá na cimo pousou: restruge ao longe
De martellos fragor, e eis ergue o templo,
Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas.
Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento,
Se esváe, como da cerva a leve pista
No pó se apaga ao respirar da tarde,
Do seio dessa terra em que és estranho
Saír fazes as moles seculares,
Que por ti, morto, fallem: dás na idéa
Eterna duração ás obras tuas!
Tua alma é immortal, e a prova a déste!

VI.
Anoiteceu:--nos claustros resoando
As pisadas dos monges ouço: eis entram;
Eis se curvaram para o chão beijando
O pavimento, a pedra: oh sim, beijai-a!
Igual vos cubrirá a cinza um dia,
Talvez em breve--e a mim. Consolo ao morto
É a pedra do tumulo. Se-lo-ia
Mais se do justo só a herança fora;
Mas tambem ao malvado é dada a campa.
E o criminoso dormirá quieto
Entre os bons sotterrado!--Oh não! em quanto
No templo ondeam silenciosas turbas,
Exultarão do abysmo os moradores,
Vendo o hypocrita vil, mais ímpio que elles,
Que escarnece do Eterno, e a si se engana;
Vendo o que julga que orações apagam
Vicios e crimes, e o motejo e o riso
Dado em resposta ás lagrymas do pobre;
Vendo os que nunca ao infeliz soltaram
De consolo palavra, ou de esperança:
Sim:--malvados tambem hão-de pisar-lhes
Os frios restos que separa a terra,
Um punhado de terra, a qual os ossos
Destes ha-de cubrir em tempo breve,
Como cubriu os seus, qual vai sumindo
Nos mysterios da campa a humanidade.
Porém a turba esvae-se: ermam bem poucos
Do templo na amplidão: só lá no fundo
De affumada capella, o justo as preces
Ergue pio ao Senhor, as preces puras
De um coração que espera, e não mentidas
De labios de impostor, que engana as turbas
Com seu meneio hypocrita, calcando
Na alma lodosa da blasphemia o grito.
Então exultarão os bons, e o ímpio,
Que passou, tremerá. Em fim, de vivos,
Da voz, do respirar o som confuso
Vem-se verter no sussurrar das praças,
E pela galilé só ruge o vento.
Em trevas não ficou silenciosas
O sagrado recinto: os candieiros,
No gelado ambiente ardendo a custo,
Espalham debeis raios que reflectem
Das pedras pela alvura; o negro mocho,
Companheiro do morto, horrido pio
Solta lá da cornija; pelas fendas
Dos sepulchros deslisa um fumo espesso,
Ondêa pela nave--esvái-se: um longo
Suspiro não se ouviu!--Olhai! lá se erguem
De umas espectros palidos, medonhos,
A quem baço clarão da luz dos mortos
Ainda custa a soffrer:--eis de outras surgem
Radiosos espiritos que o premio
Da virtude, nos ceus, hão recebido:
Alli treme ante o pobre o rico, e o forte
Ante o humilde, que nelle os olhos fita
Severo:--oh que tormento! infernaes dores
São doces para o máu, a par do aspecto
Do bom, que mudo lhe recorda os crimes.
Ai!--nem paz cabe nos mortos! Entre as campas
Ainda habita o remorso. Embalde, espectro,
Te curvas ante as aras que insultaste:
Debalde imploras o perdão celeste.
Expiraste: o perdão morreu comtigo.
Infeliz para sempre, a mão levanta
A essa fronte gelada; entre teus olhos
De azulado fulgor ampla rajada
Toca--eterno signal que no perverso
Do cherubim da morte a dextra estampa:
Toca-a... Deus reprovou-te; a herança tua
Volveu-se em maldicção: luz de esperança
Para ti apagou-se: o abysmo evoca
O filho seu; despenha-te no abysmo!

VII.
Vaga meditação onde arrojaste
Minha imaginação!--ás horas mortas
De alta noite, no templo solitario,
E em congresso de mortos, quando o espanto
Os resguarda co'as azas acurvadas
Da vista do que vive!--Alli corria
Minha mente, qual vaga a mente do homem,
Que em febre ardente desvairou por sonhos,
Onde se ajunctam troços de existencias,
Em nebuloso quadro; ou como ondea,
Entre a esperança e o susto, o moribundo,
A quem do passamento o véu já cinge
A amarellada fronte, e a quem já pesam
Sobre os olhos as palpebras, que affrouxa
Do anjo da morte o resonante grito.

VIII.
Mas troa a voz do monge, e no meu seio
O coração bateu. Eia, retumbem
Pela abobada aguda os sons dos psalmos,
Que em dia de afflicção ignoto vate
Teceu, banhado em dôr: talvez foi elle
O primeiro cantor que em varias cordas,
Á sombra das palmeiras da Idumea,
Soube entoar melodioso um hymno.
Deus inspirava então os trovadores
Do seu povo querido, e a Palestina,
Rica dos meigos dons da natureza,
Tinha o sceptro tambem do enthusiasmo.
Virgem o genio ainda, o estro puro
Louvava Deus somente, á luz da aurora,
E ao esconder-se o sol entre as montanhas
De Bethoron:--agora o genio é morto
Para o Senhor, e os cantos dissolutos
Do lodoso folguedo os ares rompem,
Ou sussurram por paços de tyrannos,
Assellados de putrida lisonja,
Por preço vil, como o cantor que os tece.

IX.

_O Psalmo._
Quanto é grande o meu Deus!... Té onde chega
O seu poder immenso!
Elle abaixou os ceus, desceu, calcando
Um nevoeiro denso.
Dos cherubins nas azas radiosas
Sentado elle voou:
E sobre turbilhões de rijo vento
O mundo rodeou.
Se lança á terra o olhar, a terra treme,
E os mares assustados
Bramem ao longe, e os montes lançam fumo,
Da sua mão tocados.
Se pensou no Universo, ei-lo patente
Todo perante o Eterno:
Se o quiz, o firmamento os seios abre,
Abre os seios o inferno.
Dos olhos do Senhor, homem, se podes,
Esconde-te um momento:
Vê onde encontrarás logar que fique
Da sua vista isento:
Sobe aos ceus, transpõe mares, busca o abysmo,
Lá teu Deus has-de achar;
Elle te guiará, e a dextra sua
Lá te ha-de sustentar:
Desce á sombra da noite, e no seu manto
Involver-te procura;
Mas as trévas para elle não são trévas;
Nem é a noite escura.
No dia do furor, em vão buscáras
Fugir ante o Deus forte,
Quando do arco tremendo, irado, impelle
Setta em que pousa a morte.
Mas o que o teme dormirá tranquillo
No dia extremo seu,
Quando na campa se rasgar da vida
Das illusões o véu.

X.
Callou-se o monge: sepulchral silencio
Á sua voz seguiu-se: e um som soturno
De orgam partiu-o; som que assemelhava
O suspiro saudoso, e os ais de filha,
Que chora solitaria o páe, que dorme
Seu ultimo, profundo e eterno somno.
Harmonias depois soltou mais doces
O instrumento suave; e ergueu-se o canto,
O lamentoso canto do propheta,
Da patria sobre o fado. Elle, que o víra,
Sentado entre ruinas, contemplando
Seu avíto esplendor, seu mal presente,
A quéda lhe chorou: lá na alta noite,
Modulando o Nebel, via-se o vate
Nos derrubados porticos, abrigo
Do immundo stellio e gemedora poupa,
Extasiado--e a lua scintillando
Na sua calva fronte, onde pesavam
Annos e annos de dor: ao venerando
Nas encovadas faces fundos regos
Tinham aberto as lagrymas: ao longe,
Nas margens do Kedron, a rãa grasnando
Quebrava a paz dos tumulos. Que tumulo
Era Sion!--o vasto cemiterio
Dos fortes de Israel. Mais venturosos
Que seus irmãos, morreram pela patria;
A patria os sepultou dentro em seu seio:
Elles, em Babylonia, as mãos em ferros,
Passam de escravos miseranda vida,
Que Deus pesou seus crimes, e, ao pesá-los,
A dextra lhe vergou. Não mais no templo
A nuvem repousára, e os ceus de bronze
Dos prophetas aos rogos se amostravam,
O vate de Anathoth a voz soltára
Entre o povo infiel, de Eloha em nome:
Ameaças, promessas, tudo inutil;
De ferro os corações não se dobraram.
Vibrou-se a maldicção: bem como um sonho
Jerusalem passou: sua grandesa
Somente existe em derrocadas pedras.
O vate de Anathoth, sobre seus restos,
Com tal lamento se doeu da patria:
Canto de morte alçou: da noite as larvas
O som lhe ouviram: squallido esqueleto,
Rangendo os ossos, d'entre a hera e musgos
Do portico do templo erguia um pouco,
Alvejando, a caveira:--era-lhe alivio
Do sagrado cantor a voz suave
Desferida ao luar, triste, no meio
Da vasta solidão que o circumdava:
O propheta gemeu: não era o estro,
Ou o vivido júbilo que outrora
Inspirára Moysés: o sentimento
Fui sim pungente do silencio e morte,
Que da patria lhe fez sobre o cadaver
A elegia da noite erguer, e o pranto
Derramar da esperança e da saudade.

XI.
_A Lamentação._
Como assim jaz e solitaria e quêda
Esta cidade outrora populosa!
Qual viuva ficou e tributaria
A senhora das gentes.
Chorou durante a noite: em pranto as faces
Sosinha, entregue á dôr, nas penas suas
Ninguem a consolou: os mais queridos
Contrarios se volveram.
As amplas ruas de Sion são ermas,
E cubertas de relva: os sacerdotes
Gemem: as virgens pallidas suspiram
Involtas na amargura.
Dos filhos de Israel nas cavas faces
Está pintada a macilenta fome;
Mendigos vão pedir, pedir a estranhos,
Um pão de infamia eivado.
O tremulo ancião, de longe, os olhos
Volta a Jerusalem, della fugindo;
Vê-a, suspira, cáe, e em breve expira
Com seu nome nos labios.
Que horror!--as proprias mães os seus filhinhos
Despedaçaram: barbaras quaes tygres,
Os sanguinosos membros palpitantes
No ventre sepultaram.
Grande Deus, nosso opprobrio olha piedoso!
Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos,
Servos de servos em paiz estranho;
Adoça nossos males!
Acaso serás Tu sempre inflexivel?
Esquecèste de todo a nação tua?
O pranto dos hebreus não Te commove?
És surdo a seus lamentos?

XII.
Doce era a voz do velho: o som do Nablo
Sonoro: o ceu sereno: clara a terra
Pelo brando fulgor do astro da noite:
E o propheta parou: erguidos tinha
Os olhos para o ceu, onde buscava
Um raio de esperança e de conforto:
E elle calára já, e ainda os ecchos,
Entre as minas sussurrando, ao longe
Iam os sons levar de seus queixumes.

XIII.
Chôro piedoso, o chôro consagrado
Ás desditas dos seus. Honra ao propheta!
Oh margens do Jordão, paiz tão lindo,
Que fostes e não sois, tambem suspiro
Doído vos consagro!--Assim fenecem
Imperios, reinos, solidões tornados!...
Não:--nenhum deste modo: o peregrino
Pára em Palmyra e pensa: o braço do homem
A sacudiu á terra, o fez dormissem
O seu ultimo somno os filhos della--
E elle o veio dormir pouco mais longe:
Mas se chega a Sion treme, enxergando
Seus lacerados restos. Pelas pedras,
Aqui e alli dispersas, ainda escripta
Parece vêr-se uma inscripção de agouros,
Bem como aquella que aterrou um ímpio
Quando, no meio de ruidosa festa,
Blasphemava dos ceus, e mão ignota
O dia extremo lhe apontou de crimes.
A maldicção do Eterno está vibrada
Sobre Jerusalem!--Quanto é terrivel
A vingança de Deus! O Israelita,
Sem patria, e sem abrigo, vagabundo,
Odio dos homens, neste mundo arrasta
Uma existencia mais cruel que a morte,
E que vem terminar a morte e inferno.
Desgraçada nação!--aquelle solo
Onde manava o mel, onde o carvalho,
O cedro e a palma o verde, ou claro ou torvo,
Tão grato á vista, em bosques misturavam:
Onde o lyrio e a cecem nos prados tinham
Crescimento espontaneo entre as roseiras,
Hoje, campo de lagrymas, só cria
Humilde musgo de escalvados cerros.

XIV.
Ide vós a Mambré:--lá, bem no meio
De um valle, outrora de verdura ameno,
Erguia-se um carvalho magestoso:
Debaixo de seus ramos, largos dias
Abrahão repousou: na primavera
Vinham os moços adornar-lhe o tronco
De capellas cheirosas de boninas,
E corêas gentis traçar-lhe em roda.
Nasceu com o orbe a planta veneravel,
Viu passar gerações, julgou seu dia
Final fosse o do mundo, e quando airosa
Por entre as densas nuvens se elevava,
Mandou o Nume aos aquilões rugíssem.
Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco,
Murcharam-se caíndo, e o rei dos bosques
Servio do pasto aos tragadores vermes:
Deus estendeu a mão:--no mesmo instante
A vinha se mirrou: juncto aos ribeiros
Da Palestina os platanos frondosos
Não mais cresceram, como d'antes, bellos:
O armento, em vez de relva, achou nos prados
Somente ingratas, espinhosas urzes.
No Golgotha plantada, a Cruz clamára
Justiça: a seu clamor horrido espectro
No Moriah sentou-se; era seu nome
Assolação--e despregando um grito,
Caíu com longo som de um povo a campa.
Assim a herança de Judah, outrora
Grata ao Senhor, existe só nos ecchos
Do tempo que já foi, e que ha passado
Como hora de prazer entre desditas.
Minha Patria onde existe?
É lá somente!
Oh lembrança da Patria acabrunhada
Um suspiro tambem tu me has pedido:
Um suspiro arrancado aos seios d'alma
Pela offuscada gloria, e pelos crimes
Dos homens que ora são, e pelo opprobrio
Da mais illustre das nações da terra!
A minha triste Patria era tão bella,
E forte, e virtuosa! e ora o guerreiro
E o sabio e o homem bom acolá dormem,
Acolá, nos sepulchros esquecidos,
Que a seus netos infames nada contam
Da antiga honra e pudor e eternos feitos.
O escravo portuguez agrilhoado
Carcomir-se-lhes deixa juncto ás lousas
Os decepados troncos desse arbusto,
Por mãos delles plantado á liberdade,
E por tyrannos derrubado em breve,
Quando patrias virtudes se acabaram,
Como um sonho da infancia.
O vil escravo
Immerso em vicios, em bruteza e infamia
Não erguerá os macerados olhos
Para esses troncos, que destroem vermes
Sobre as cinzas de heróes, e, acceso em pejo,
Não surgirá jámais?--Não ha na terra
Coração portuguez, que mande um brado
De maldicção atroz, que vá cravar-se
Na vigilia e no somno dos tyrannos,
E envenenar-lhes o prazer nos braços
Das prostitutas vís, e em seus banquetes
De embriaguez, lançar fel e amarguras?
Não!--Bem como um cadaver já corrupto,
A nação se dissolve: e em seu lethargo
O povo, involto na miseria, dorme.

XV.
Oh, talvez, como o vate, ainda algum dia
Terei de erguer á Patria hymno de morte,
Sobre seus mudos restos vagueando!
Sobre seus restos?--Nunca! Eterno, escuta
Minhas preces e lagrymas:--se em breve,
Qual jaz Sion, jazer deve Ulissea:
Se o anjo do exterminio ha-de riscá-la
Do meio das nações, que d'entre os vivos
Risque tambem meu nome, e não me deixe
Na terra vaguear, orpham de Patria.

XVI.
Cessou da noite a grão solemnidade
Consagrada á tristeza, e a memorandas
Recordações:--os monges se prostraram
A face unida á pedra: a mim, a todos
Correm dos olhos lagrymas suaves
De compuncção. Atheu, entra no templo;
Não temas esse Deus, que os labios negam,
E o coração confessa: a corda do arco
Da vingança, em que a morte se debruça
Frouxa está; Deus é bom; entra no templo.
Tu para quem a morte ou vida é fórma,
Fórma sómente de mais puro barro,
Que nada crês, mas nada esperas, olha,
Olha o conforto do christão: se o calis
Da amargura a provar os ceus lhe deram,
Elle se consolou: balsamo sancto
Dentro no coração a fé lhe entorna
"Deus piedade terá!"--Eis seu gemido:
Porque a esperança lhe sussurra emtorno:
"Aqui--ou lá--a Providencia é justa."
Atheu, a quem o mal fizera escravo,
Teu futuro qual é? Quaes são teus sonhos?
No dia da afflicçâo emmudeceste
Ante o espectro do mal. E a quem alçaras
O gemente clamor?--Ao mar, que as ondas
Não altera por ti?--Ao ar, que some
Pela sua amplidão as queixas tuas?
Aos rochedos alpestres, que não sentem,
Nem sentir podem teu gemido inutil?
Tua dôr, teu prazer existem, passam,
Sem porvir, sem passado, e sem sentido.
Nas angustias da vida, o teu consolo
O suicidio é só, que te promette
Rica messe de goso, a paz do nada!--
E ai de ti, se buscaste, em fim, repouso,
No limiar da morte indo assentar-te!
Alli grita uma voz no ultimo instante
Do passamento: a voz atterradora
Da _Consciencia_ é ella: e has-de escutá-la
Mau grado teu: e tremerás em sustos,
Desesperado aos ceus erguendo os olhos
Irados, de travez, amortecidos--
Aos ceus, cujo caminho a Eternidade
Co'a vagarosa mão te vai cerrando,
Para guiar-te á solidão das dores,
Onde maldigas teu primeiro alento,
Onde maldigas teu extremo arranco,
Onde maldigas a existencia e a morte.

XVII.
Calou tudo no templo: o ceu é puro:
A tempestade ameaçadora dorme.
No espaço immenso os astros scintillantes
O Rei da creação louvam com hymnos,
Não ouvidos por nós, nas profundezas
Do nosso abysmo. E aos cantos do Universo,
Ante milhões de estrellas, que recamam
O firmamento, ajunctará seu canto
Mesquinho trovador?--Que vale uma harpa
Mortal, no meio da harmonia etherea,
No concerto da noite? Oh, no silencio,
Eu pequenino verme irei sentar-me
Aos pés da Cruz, nas trévas do meu nada.
Assim se apaga a lampada nocturna
Ao despontar do sol o alvor primeiro:
Por entre a escuridão deu claridade,
Mas do dia ao nascer, que já rutila,
As torrentes de luz vertendo ao longe,
Da lampada o clarão sumiu-se inutil
Nesse fulgido mar, que inunda a terra.
_Lisboa_--1829.


*NOTAS.*


NOTAS.

Eis o poema da minha mocidade: são os unicos versos que conservo desse
tempo, em que nada neste mundo deixava para mim de respirar poesia. Se hoje
me dissessem: faze um poema de quinhentos versos ácerca da Semana Sancta,
eu olharia ao primeiro aspecto esta proposição como um absurdo: entretanto
eu mesmo ha nove annos realizei esse absurdo. Não é esta a primeira das
minhas contradiccções, e espero em Deus, e na minha sincera consciencia,
que não seja a ultima.
Quando compuz estes versos, ainda eu possuia toda a vigorosa ignorancia da
juventude; ainda eu cria conceber toda a magnificencia do grande drama do
christianismo, e que a minha harpa estava affinada para cantar um tal
objecto. Enganava-me; a Semana Sancta do poeta não saíu semelhante á Semana
Sancta da Religião. O que é esta, de feito?--Um poema representado, um
drama, cuja essencia é um facto universal, o maior de todos; o que veio
mudar idéas, civilisação, e destinos do genero humano inteiro. Tinha eu
forças para o tractar? Não por certo; porque até hoje só houve um
Klopstock; talvez só um haverá até a consummação dos seculos.
Assim, eu corri as memorias do passado, e as esperanças do fucturo; chorei
sobre Jerusalem, e sobre a minha patria; subi aos ceus, e desci aos
infernos; saudei o sol, e as trévas da noite; em tudo, e em toda a parte
busquei inspirações, menos onde as devia buscar; por que acima da minha
comprehensão estava o meu objecto--a redempção, e as suas consequencias.
Foi disto justamente que eu não tractei; e era disto que eu devia tractar,
se o podesse ou soubesse fazer.
Porque, pois, não acompanharam estes versos os outros da primeira mocidade
no caminho da fogueira! Porque publíco um poema falho na mesmissima
essencia da sua concepção!
Porque tenho a consciencia de que ha ahi poesia; e porque não ha poeta,
que, tendo essa consciencia, consinta de bom grado em deixar nas trévas o
fructo das suas vigilias.

[Pag. 9.]
_A loucura da Cruz não morreu toda_
"Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est".
_Paul. Ad Corinth. 1.--1._

[Pag. 15.]
_ignoto vate_
_Teceu_
Ainda que os Psalmos se attribuam geralmente a David, ha ácerca disso muita
incertesa, e o que, ao menos, parece indubitavel é que alguns lhe não
pertencem, por fallarem no captiveiro de Babylonia, e trazerem allusões a
épochas mais recentes. Verdade é que se chegou a crer heretica semelhante
opinião; mas os Padres gregos, e com elles Sancto Hilario, e S. Jeronymo,
julgam absurdo attribui-los todos a David. Esdras voltando do captiveiro
foi quem reuniu estes hymnos, e nessa collecção é provavel fizesse entrar
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