A Harpa do Crente - 3

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Ao christão infeliz acolhe no ermo,
E consolando-o, diz-lhe: a patria tua
É lá no ceu:--abraça-te comigo:
Juncto della esses homens, que passaram
Acurvados na dôr, as mãos ergueram
Para o Deus, que perdoa, e que é conforto
Dos que aos pés deste symbolo da esp'rança
Vem derramar seu coração afflicto:
É do deserto a historia a cruz e a campa;
E sobre tudo o mais pousa o silencio.

XII.
Feliz da terra, os monges não maldigas;
Do que em Deus confiou não escarneças!--
Folgando segue a trilha, que ha juncado,
Para teus pés, de flores a fortuna,
E sobre a morta crença, em paz descança.
Que mal te faz, que goso vae roubar-te
O que ensanguenta os pés nas bravas urzes,
E sobre a fria pedra encosta a fronte?
Que mal te faz uma oração erguida,
Nas solidões, por voz sumida e frouxa,
E que, subindo aos céus, só Deus escuta?
Oh, não insultes lagryimas alheias,
E deixa a fé ao que não tem mais nada!...
E se estes versos te contristam--rasga-os.
Teus menestreis te venderão seus hymnos,
Nos banquetes opiparos, em quanto
O negro pão repartirá comigo,
Seu trovador, o pobre anachoreta,
Que não te inveja as ditas, como aos bardos
Do prazer dissoluto eu não invejo
Essas crôas, que ás vezes cingem frontes,
Onde, por baixo, se escreveu--_Infamia!_--


*A Voz.*


A Voz.

É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a lua
Das ondas a ardentia;
Se em alcantís marinhos
Nas rochas assentado,
O trovador medita,
Em sonhos enleiado!
O mar azul se encrespa
Co' a vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala,
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso,
Quebrando em furna algosa.
Alli folga o poeta
Nos desvarios seus;
E nessa paz que o cerca
Bemdiz a mão de Deus.
Mas despregou seu grito
A alcyone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no occidente;
E sóbe, e cresce, e immensa,
Nos ceus negra fluctua,
E o vento das procellas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano,
Com horrido clamor:
Do vagalhão nas ribas
Expira o vão furor.
E do poeta a fronte
Cubriu véu de tristesa:
Partiu-se á luz do raio
Seu hymno á naturesa.
Feia alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcyone ao gemido,
Ao sibillar do vento.
Era blasphema idéa,
Que triumphava em fim:
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:
"Cantor, esse queixume
Da nuncia das procellas,
E as nuvens, que te roubam
Myriadas de estrellas;
E o fremito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga;
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Em quanto do ether puro
Descia o sol radioso,
Typo da vida do homem,
É do universo a vida;
Depois do afan repouso,
Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hymno
Em dia de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Seu nome não maldigas,
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pae, confia,
Do raio ao scintilar.
Elle o mandou:--a causa
Disso o universo ignora--
E mudo está:--seu nume,
Como o universo, adora!"
* * * * *
Oh sim: torva blasphemia
Não manchará seu canto!
Brama procella embora;
Pese sobre elle o espanto;
Que de su' harpa os hymnos
Derramará o bardo,
Aos pés de Deus, qual oleo
De recendente nardo.
_Leça da Palmeira 1835_


*A Victoria e a Piedade.*


A Victoria e a Piedade.

Eu nunca fiz soar meu canto humilde
Nos paços dos senhores:
Eu jámais consagrei hymno mentido
Da terra aos oppressores.
Mal haja o trovador que vae sentar-se
Á porta do abastado,
O qual com ouro paga a alhêa infamia,
O cantico aviltado.
O filho das canções, da gloria o bardo
Não manchou o alaude;
O ingenho seu ha consagrado á Patria;
Seu canto é da virtude.
Ingenho!--dom dos ceus, consolo ao triste
Nos dias de afflicção,
Qual solto vento em areal deserto,
Livres teus cantos são.
No despontar da vida, do infortunio
Murchou-me o sopro ardente:
Pela terra natal, na flor dos dias,
Eu suspirei ausente.
O solo do desterro, ah, quanto ingrato
É para o foragido;
Ennevoado o ceu; arido o prado;
O rio adormecido!
Eu lá chorei, na idade da esperança,
Da patria a dura sorte:
Esta alma encaneceu;--e antes de tempo
Ergueu hymnos á morte.
E que infeliz ha hi, a quem não ria
Da sepultura a imagem?
Alli é que se afferra o porto amigo,
Depois de ardua viagem.
Mas, quando o pranto me queimava as faces,
O pranto da saudade,
Deus escutou dos profugos as preces,
Teve de nós piedade.
Armas!--bradaram do desterro os filhos:
Bem-disse-os o Senhor:
E vencer ou morrer juncto com elles
Jurou o trovador.
Pelas vagas do mar correndo affoutos,
Á gloria nos votámos;
E, nos campos nataes, pendão invicto
Os livres, nós, plantámos.
Fanatismo, ignorancia, odio fraterno;
De fogo céus toldados;
A fome, a peste, o mar avaro, as hostes
De innumeros soldados;
Um futuro sem raio de esperança;
Ouvir o vão lamento
De infante, a vida incerta conduzido
Por mão do soffrimento;
Comprar com sangue o pão, com sangue o fogo
Em regelado inverno;
Eis contra o que, por mezes de amargura,
Nos fez luctar o inferno.
Mas constancia e valor tudo ha vencido:
Ganhou-se eterna gloria;
E dos tyrannos apesar, colhemos
Os louros da victoria.
Teça-se, pois, o cantico subido
Aos fortes vencedores.
Livres somos!--Sumiram-se qual fumo
Da Patria os oppressores.
Sobre essa encosta, sobranceira aos campos,
De sangue ainda impuros,
Onde o canhão troou, por mais de um anno,
Contra invenciveis muros,
Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me;
Pedir inspirações
A amiga noite, o genio que me ensina
Suavissimas canções.
Reina em silencio a lua, o mar não brame,
Os ventos nem bafejam.....
Mas que ossadas são estas, que na encosta,
Aqui e alli, alvejam?
Esses?--São ossos vís, que não resguarda
O sussurrar da gloria;
Herdeiros só das maldicções das gentes,
Das maldicções da historia:
São os restos dos homens, que luctaram,
Valentes no seu crime,
Contra nós, contra a mão da Providencia,
Que os maus derruba e opprime.
Mas quem porá padrão que aos evos conte,
Seus feitos derradeiros!
Quem dirá--aqui dormem portuguezes;
Aqui dormem guerreiros--?
Quem virá na alta noite erguer por elles
Resas de salvação?
Quem ousará pedir para o vencido
Um ai de compaixão?
Virão, acaso, alevantar seus filhos
O pranto solitario,
Pelo que lhes legou de avós o nome
Involto em vil sudario?
Será a esposa, que lhes cubra as cinzas
Com oração piedosa?
Não!--nenhuma ousará dizer, chorando,
Eu fui do escravo esposa.
Será a amante?--Em tremedaes a pura
Rosa nascer não sabe:
A mais bella paixão não é de servos;
Vil goso só lhes cabe.
De mãe o amor tentára, unicamente,
Sobre os corpos gelados,
Vir chorar a esperança, em flor colhida,
De seus annos cansados:
Mas o espanto lh'o veda, e o rouco grito
Do rude velador;
Da noite os medos; de armas, já sem donos,
Nas trévas o esplendor.
Quem, pois, consolará gementes sombras,
Que ondeam juncto a mim?
Quem seu perdão da Patria implorar ousa,
Seu perdão de Elohim?
Eu:--o christão:--o trovador do exilio,
Contrario em guerra crua,
Mas que não sei cuspir o fel da affronta
Sobre uma ossada nua.
O misero pastor desceu dos montes,
Abandonando o gado,
Para as armas vestir, dos céus em nome,
Por phariseus chamado.
De um Deus de paz hypocritas ministros
Os tristes enganaram:
Foram elles, não nós, que estas caveiras
Aos vermes consagraram.
Maldicto sejas tu, monstro do inferno,
Que do Senhor no templo,
A virtude insultando, ao crime incitas,
Dás do furor o exemplo!
Sobre os restos da Patria, tu bem creste
Folgar de nosso mal,
E, sobre as cinzas de cidade illustre,
Soltar riso infernal.
Tu, no teu coração insipiente,
Disseste--Deus não ha!--
Elle existe, malvado!--e nós vencemos:
Treme.... que tempo é já.
Mas esses, cujos ossos espalhados
No campo da peleja
Jazem, exoram a piedade nossa;
Piedoso o livre seja!
Eu pedirei a paz dos inimigos,
Mortos como valentes,
Ao Deus nosso juiz, ao que distingue
Culpados de innocentes.
Perdoou, expirando, o Filho do Homem
Aos seus perseguidores:
Perdão, tambem, ás cinzas de infelizes!
Perdão--oh vencedores!
Não insulteis o morto. Elle ha comprado
Bem caro o esquecimento,
Vencido adormecendo em morte ignobil,
Sem dobre ou monumento.
Que resta aos desditosos?--Somno eterno,
Da Patria a maldicção,
A justiça de Deus, tremenda, ignota,
E a humana execração.
Mas nós, saibamos esquecer os odios
De guerra lamentavel;
É generoso o forte, e deixa ao fraco
O ser inexoravel.
Oh, perdão para aquelle, a quem a morte
No seio agasalhou!
Elle é mudo:--pedi-lo já não póde;
O da-lo a nós deixou.
Da lei a espada puna o criminoso,
Que vê a luz dos céus:
O que legou á terra o pó da terra,
Julga-lo cabe a Deus.
E vós, meus companheiros, que não vistes
Nossa inteira victoria,
Não precisaes do trovador o canto;
Vosso nome é da historia.
Eu do vencido consolei a sombra;
Eu perdoei por vós.
Filhos da infamia os desgraçados eram;
Ricos de gloria nós.
_Porto--Agosto de 1833_

NOTA.
Este fragmento, que segue, e que servirá para intelligencia dos precedentes
versos, pertence a um livro já todo escripto no entendimento, mas de que só
alguns capitulos estão trasladados ao papel. A guerra da restauração de
1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso e mais poetico deste Seculo.
Entre os soldados de D. Pedro havia poetas: militava comnosco o Auctor de
_D. Branca_, do _Camões_, de _João Minimo_; o Sr. Lopes de Lima, e outros:
mas a politica engodou todos os ingenhos, e levou-os comsigo. Os homens de
bronze, os sete mil de Mindello não tiveram um cantor; e apenas eu, o mais
obscuro de todos, salvei em minha humilde prosa, uma diminuta porção de
tanta riquesa poetica. Oxalá que esse mesmo trabalho, ainda que de pouca
valia, não fique esmagado e sumido debaixo do Leviathan da politica. Todos
nós temos vendido a nossa alma ao espirito immundo do Jornalismo. E o mais
é que poucos conhecem uma cousa: que polilica de poetas vale, por via de
regra, tanto como poesia de politicos.
_Fragmento._
O combate da antevespera estava ainda vivo na minha imaginação: eu cria vêr
ainda os cadaveres dos meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do
fatal reducto, em que estava assentado: ainda me soavam nos ouvidos o seu
clamor de enthusiasmo ao accommette-lo, o sibillar das ballas, o grito dos
feridos, o som das armas caindo-lhes das mãos, o gemido doloroso e longo da
sua agonia, o estertor de moribundos, e o arranco final do morrer. Os
dentes me rangeram de cólera, e a lagryma envergonhada de soldado me
escorregou pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos valentes
cairam nesse dia! Eu ia amaldiçoar os cadaveres dos vencidos, que ainda por
ahi jaziam; porém pareceu-me que elles se alevantavam e me
diziam:--Lembra-te de que tambem fomos soldados: lembra-te de que fomos
vencidos!--E eu bem sabia que inferno lhes devia ter sido, no momento de
expirarem, as idéas de soldado e de vencimento, conglobadas n'uma só, como
tremenda e indelevel ignominia, estampada na fronte do que ia transpor os
umbraes do outro mundo. Então oreí a Deus por elles: antes de irmão de
armas eu tinha sido christão; e Jesu-Christo perdoára, entre as affrontas
da Cruz, aos seus assassinos. A idéa de perdão parecia me consolava da
perda de tantos e tão valentes amigos. Havia nessa idéa torrentes de
poesia; e eu te devi então, oh crença do Evangelho, talvez a melhor das
minhas pobres canções.
(_Da Minha Mocidade--Poesia e Meditação Cap...._)


A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR
DA
VOZ DO PROPHETA.

TERCEIRA SERIE.

LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
_Rua direita do Arsenal--n.º 55._


*Deus.*


Deus.

Nas horas do silencio--á meia-noite--
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a terra, e os mares rugidores,
E os abysmos do inferno.
Pela amplidão dos céus meus cantos soem,
E a lua prateada
Pare no gyro seu, em quanto pulso
Esta harpa, a Deus sagrada.
Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vacuo as solidões enchia
De Deus a immensidade,
Elle existiu--em sua essencia involto;
E, fóra delle, o nada:
No seio do Creador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
Do Omnipotente, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.
Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos sáe do Senhor:
Surge o sol, banha a terra, e desabrocha
Uma primeira flor:
Sobre o invisivel eixo range o globo:
O vento o bosque ondêa:
Retumba ao longe o mar: da vida a força
A naturesa ancêa!
Quem, dignamente, oh Deus, ha-de louvar-te,
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de Teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da creação; quando os thesouros
Da neve amontoaste;
Quando da terra nos mais fundos valles
As aguas encerraste?!
E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com dextra poderosa,
Fez, por lei immutavel, se librassem
Na mole ponderosa?
Onde existia então? No typo immenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Elle
Na terra e nas alturas!
Oh, quanto é grande o Rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em secco estio,
Da tarde a viração!
Por sua Providencia nunca, embalde,
Zumbiu minimo insecto;
Nem volveu o elephante, em campo esteril,
Os olhos, inquieto.
Não deu Elle á avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o sol da primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Elle á gazella amplos desertos,
Ao cervo o bosque ameno,
Ao flamingo os paues, ao tigre um antro,
No prado ao touro o feno!
Não mandou Elle ao mundo, em lucto e trévas,
Consolação e luz?
Acaso, em vão, algum desventurado
Curvou-se aos pés da cruz?
A quem não ouve Deus? Sómente ao ímpio,
No dia da afflicção,
Quando pesa sobre elle, por seus crimes,
Do crime a punição.
Homem, ente immortal, que és tu perante
A face do Senhor?
És a junça do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o negro pinheiro, campeando
Dos Alpes entre a neve:
Quem arranca-lo de seu throno ousára,
Quem destruir-lhe a seve?
Ninguem! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raizes
Aos ares lhe assoprou.
Suberbo, sem temor, saíu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao sol voltando,
Medonho crocodilo.
De seus dentes em roda o susto móra:
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
A boca affogueada.
Qual duro arnez de intrepido guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os ultimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado:--
Porém, se Deus mandou,
Qual do norte impellida a nuvem passa,
Assim elle passou!
Teu nome ousei cantar!--Perdoa, oh Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos cantos;
Mas são cantos de amor.
Embora vís hypocritas te pintem
Qual barbaro tyranno;
Mentem, por dominar, com ferreo sceptro,
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio!--Arrecear-te
É maldizer-te, oh Deus:
É o throno dos despotas da terra
Ir collocar nos céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existencia
Tranquillo, e sem terror, á sombra posto
Da tua Providencia.
_Plymouth--Setembro de 1831._


*A Tempestade.*

A ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO.

_Alma affinada pelas harpas de anjos;
Rei das canções--entenderás meu hymno!_

O Auctor.


A Tempestade.

Sibilla o vento:--os torreões de nuvens
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procella, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A immensa vaga ao longe vem correndo,
Em seu terror involta;
E, d'entre as sombras, rapidas centelhas
A tompestade sólta.
Do sol, no occaso, um raio derradeiro,
Que, apenas fulge, morre,
Escapa á nuvem, que, appressada e espessa,
Para apaga-lo corre.
Tal nos affaga em sonhos a esperança,
Ao despontar do dia,
Mas, no acordar, lá vem a consciencia
Dizer que ella mentia.
As ondas negro-azues se conglobaram;
Serras tornadas são,
Contra as quaes outras serras, que se arqueam,
Bater, partir-se vão.
Oh tempestade!--eu te saudo! oh nume,
Da naturesa açoite!
Tu guias os bulcões, do mar princesa;
E é teu vestido a noite!
Quando no pinheiral, entre o granizo,
Ao sussurrar das ramas,
Vibrando sustos, pavorosa ruges,
E assolação derramas,
Quem porfiar comtigo, então, ousara
Da gloria e poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?
Quem me dera ser tu, por balouçar-me
Das nuvens nos castellos,
E vêr dos ferros meus, em fim, quebrados
Os rebatidos élos!
Eu rodeára, então, o globo inteiro:
Eu sublevára as aguas:
Eu dos volcões, com raios accendêra
Amortecidas fráguas:
Do robusto carvalho e sobro antigo
Accurvaria as frontes;
Com furacões, os areaes da Lybia
Converteria em montes:
Pelo fulgor da lua, lá do norte
No polo me assentára,
E víra prolongar-se o gelo eterno,
Que o tempo amontoára.
Alli eu solitario, eu rei da morte,
Erguêra meu clamor,
E dissera: sou livre, e tenho imperio:
Aqui, sou eu senhor!
Quem se poderá erguer, como estas vagas,
Em turbilhões incertos;
E correr, e correr--troando ao longe--
Nos liquidos desertos!
Mas entre membros de lodoso barro
A mente presa está!....
Ergue-se em vão aos céus:--precipitada,
Rapido, em baixo dá.
Oh morte!--amiga morte!--é sobre as vagas,
Entre escarceus erguidos,
Que eu te invoco, pedindo-te feneçam
Meus dias aborridos:
Quebra duras prisões, que a naturesa
Lançou a esta alma ardente;
Que ella possa voar, por entre os orbes,
Aos pés do Omnipotente:
Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem
Desça, e estourando a esmague;
E a grossa proa, dos tufões ludibrio,
Solta, sem rumo vague!
Porém, não!--Dormir deixa os que me cercam
O somno do existir:
Deixa-os; vãos sonhadores de esperanças
Nas trévas do porvir.
Dôce mãe do repouso--extremo abrigo
De um coração oppresso--
Que ao ligeiro prazer, á dor cançada
Negas no seio accesso,
Não despertes--oh não--os que abominam
Teu amoroso aspeito;
Febricitantes, que se abraçam, loucos,
Com seu dorido leito!
Tu, que ao misero ris com rir tão meigo,
Calumniada morte;
Tu, que entre os braços teus lhe dás azilo
Contra o furor da sorte;
Tu que esperas ás portas dos senhores;
Do servo ao limiar;
E eterna corres, peregrina, a terra,
E as solidões do mar,
Deixa, deixa sonhar ventura os homens;
Já filhos teus nasceram:
Um dia acordarão desses delirios,
Que tão gratos lhes eram.
E eu, que vélo na vida,--e já não sonho,
Nem gloria, nem ventura;
Eu, que esgotei tão cedo, até as fezes,
O calis da amargura;
Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
De quanto ha vil no mundo,
Morrer sentindo inspirações de bardo,
Do coração no fundo;
Sem achar sobre a terra uma harmonia
De alma, que a minha entenda;
Porque seguir, curvado ante a desgraça,
Esta espinhosa senda?
Torvo o oceano vae!--Qual dobre soa
Fragor da tempestade;
Psalmo de mortos, que retumba ao longe;
Grito da eternidade!....
Pensamento infernal!--Fugir cobarde
Ante o destino iroso?
Lançar-me, involto em maldicções celestes,
No abysmo tormentoso?
Nunca!--Deus poz-me aqui para apurar-me
Nas lagrymas da terra;
Guardarei minha estancia attribulada,
Com meu desejo em guerra.
O fiel guardador terá seu premio,
O seu repouso, em fim;
E atalaiar o sol de um dia extremo
Virá outro apoz mim.
Herdarei o morrer!--Como é suave
Benção de pae querido,
Será o despertar; vêr meu cadaver,
Vêr o grilhão partido.
Um consolo, entretanto, resta ainda
Ao pobre velador:
Deus lhe deixou, nas trévas da existencia,
Doce amisade e amor.
Tudo o mais é Sepulchro, branqueado
Por embusteira mão;
Tudo o mais vãos prazeres, que só trazem
Remorso ao coração.
Passarei minha noite a luz tão meiga,
Até o amanhecer;
Até que suba á patria do repouso,
Onde não ha morrer.
_A bordo da Juno, na Bahia da Biscaya--Março de 1853._


*O Soldado.*


O Soldado.

I.
Veia tranquilla e pura
Do meu paterno rio:
Dos campos, que elle rega,
Mansissimo armentio:
Rocío matutino:
Prados tao deleitosos:
Valles, que assombram selvas
De sinceiraes frondosos:
Terra da minha infancia:
Tecto de meus maiores:
Meu breve jardimzinho:
Minhas pendidas flores:
Harmonioso e sancto
Sino do presbyterio:
Cruzeiro venerando
Do humilde cemiterio,
Onde os avós dormiram,
E dormirão os paes;
Onde eu talvez não durma,
Nem rese, talvez, mais:
Eu vos saúdo!--E o longo
Suspiro amargurado
Vos mando.--É quanto póde
Mandar pobre soldado.
Sobre as cavadas ondas
Dos mares procellosos,
Por vós já fiz soar
Meus cantos dolorosos.
Na proa resonante
Eu me assentava mudo,
E aspirava ancioso
O vento frio e agudo;
Porque em meu sangue ardia
A febre da saudade,
Febre que só minora
Sopro de tempestade;
Mas que se irrita, e cresce,
Quando é tranquillo o mar;
Quando da Patria o céu
Céu puro vem lembrar,
Quando, lá no occidente,
A nuvem vaporosa
A frouxa luz da tarde
Tinge de côr de rosa;
Quando, qual globo em brasa,
O sol vermelho crece,
E paira sobre as aguas,
E em fim desapparece;
Quando no mar se estende
Manto de negro dó;
Quando ao quebrar do vento,
Noite e silencio é só;
Quando sussurram meigas
Ondas que a nau separa,
E a rapida ardentia
Em torno a sombra aclara.

II.
Eu já ouvi, de noite,
No pinheiral fechado,
Um fremito soturno
Passando o vento irado:
Assim o murmurio
Do mar, fervendo á prôa,
Com o gemer do afflicto,
Sumido, accorde soa:
E o scintillar das aguas
Gera amargura e dôr,
Qual lampada, que pende
No templo do Senhor,
Lá pela madrugada,
Se o oleo lhe escacêa,
E a espaços expirando,
Affrouxa e bruxulêa.

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