A Gratidão - 2

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D. Julia.
--Assim, assim. Não gosto d'estas violetas, que formam o centro do ramo.
Podias ter tido melhor gosto e fazer cousa melhor.
--Não concordo com a tua opinião. Estou convencida de que Rosa não podia
ter melhor gosto.
--Rosa?
--Sim, Rosa. Ah! é verdade; ainda te não contei o encontro, que tive
esta manhã. Ora ouve.
D. Julia contou a sua irmã minuciosamente toda a conversa, que tivera
com Rosa.
Quando ella acabou, D. Bertha fez um gesto de desdem.
--E, sem duvida, Julia, já te affeiçoas-te a essa pequena; não é
assim?--disse D. Bertha.
--Rosa,--respondeu unicamente D. Julia--tem merecimento bastante, que a
torna digna da protecção, que se lhe dispensar.
--O que mais me admira e me espanta, Julia, é a rapidez com que
sympathisas com qualquer, e como instantaneamente conheces e decides,
que essa pessoa é digna da tua affeição e amisade... Não quero tomar-te
o tempo; julgo que vinhas buscar o teu lindo cestinho, não é assim?
--Vinha, sim, para o ir copiar em um quadro, pintando-o.
--Pintal-o?!--disse D. Bertha, dando uma grande gargalhada.--Que
liguemos alguma attenção ás flôres dos nossos parques e jardins,
concedo; mas que empreguemos o tempo e o talento com as silvestres, que
só tem os perfumes para si, parece-me uma singularidade esquisita.
--A minha opinião, Bertha, é exactamente o contrario. Mas isso não
admira, por que nós raras vezes estamos accordes sobre qualquer materia.
Ponhamos isso de parte; queres tu vir ámanhã, commigo e com a nossa boa
mãi, vêr Rosa?
--Não posso. Combinei com a Francisquinha e Ritinha Meirelles virem
amanhã aqui passar o dia. Além d'isso, fallar-te-hei francamente, não ha
nada para mim mais antipathico do que todas essas lavradeiras; e andar
uma legua para me ir achar face a face com um monstrosinho, parece-me um
tanto aborrecivel.
--Rosa é muito linda e interessante.
--Para ti, Julia, todas as lavradeiras são lindas e interessantes. Para
mim todas são feias, e broncas. O calor principia a incommodar-me--disse
D. Bertha, sentando-se indolentemente sobre um sophá.--Vai, Julia, vai
pintar o teu lindo cestinho, que eu vou sonhar com o meu Porto, para
onde espero ir muito breve.
Estas ultimas palavras já mal se perceberam, porque foram acompanhadas
com um bocejo, e D. Bertha cerrou os olhos.
D. Julia lançou sobre sua irmã um olhar de compaixão e sahiu.
Alguns instantes depois deu principio ao quadro.

VII.
No dia seguinte Rosa sahiu para a serra, muito cêdo, para adiantar o seu
trabalho, e poder assim dedicar mais tempo á joven senhora, que tão
amavel e generosa tinha sido com ella.
Trabalhou com tal desembaraço, que, muito antes da hora marcada por D.
Julia, tinha terminado o seu serviço.
Aproveitou portanto o tempo entregando-se á leitura d'algumas paginas
d'um livro, de que lhe tinham feito presente no dia anterior. Lia com
attenção, e, quando encontrava algum trecho rico e bello, parava, para
exprimir a sua alegria e enthusiasmo.
Estava Rosa de tal sorte entregue á leitura, que não presentiu a chegada
da viscondessa e de sua filha D. Julia.
--Que livro estás lendo, com tanta attenção, minha menina--lhe disse a
viscondessa.
Rosa saudou-a, apresentou-lhe o livro e respondeu:
--São as _Meditações religiosas_ de Rodrigues de Bastos.
--E encontras grande prazer na sua leitura?
--Se encontro, minha senhora. Quando estou sentada á borda d'um regato,
ou debaixo d'um carvalho annoso, lendo n'este livro, parece que a minha
alma se despe de todos os seus envolucros terrenos e mundanos, e se põe
em contacto com Deus, author de todas estas maravilhas da natureza, que
nos cercam, e a quem no fundo do meu coração adoro e venero.
A viscondessa e sua filha, admiradas do que ouviam a uma pequena do
campo, trocaram entre si um olhar d'intelligencia.
--E que mais costumas lêr?--perguntou D. Julia.
--Não tenho muitos livros. Além d'este possuo um cathecismo, uma vida de
santos, de que leio uma pagina cada domingo, e mais uns livrinhos
d'historias bonitas. Esquecia-me dizer-vos, que tambem tenho um livro de
geographia, que me deu o mestre escóla da minha freguezia, mas que não
leio, por que tem muitas palavras, que não entendo.
--Pelo que me dizes conheço que tens desejos de te instruires. Se te
proporcionassem os meios de o fazeres, serias feliz?
--Seria, sim, minha senhora; mas infelizmente isso é impossivel, porque,
para ir todos os dias á mestra, é preciso ser muito rica.
--Mas se te mandassem á mestra?--insistiu D. Julia.
--Seria muito feliz, mas nem quero pensar n'isso.
--Pelo contrario; eu e minha mãi, viemos procurar-te para que nos
conduzisses a casa da snr.^a D. Thereza, e, se a tua protectora estiver
satisfeita comtigo, pedir-lhe-hemos para te deixar ir todos os dias á
mestra. Então não respondes?
--Perdoai-me, senhora. Estou muito contente e alegre, e queria
agradecer-vos, mas não posso. Que fiz eu para merecer tantos beneficios?
--Mostraste-te reconhecida aos beneficios da snr.^a D. Thereza, e isso
indica um bom coração; és trabalhadeira e tens desejos de te instruires;
mereces portanto que nos interessemos por ti--lhe disse a
viscondessa.--Vamos, ensina-nos o caminho para a quinta da snr.^a D.
Thereza.
Rosa, commovida, dirigiu-se para a quinta com a viscondessa e sua filha.
Pelo caminho respondeu modestamente, e com graça, a todas as perguntas,
que lhe fizeram, e cada uma das respostas confirmou mais, as duas
senhoras, no bom conceito, que tinham formado de Rosa.
Quando chegaram á quinta, D. Thereza não estava em casa, mas não devia
tardar muito, por isso esperaram. Rosa apresentou ás duas senhoras
cadeiras para se sentarem e offereceu-lhes um copinho de leite fresco e
morno.
D. Julia, a quem o caminho tinha fatigado, aceitou o offerecimento.
Rosa trouxe então uma toalha de linho, alvo como neve, que estendeu
sobre uma mesa, na qual collocou o melhor pão, que havia em casa,
manteiga e um copo de leite.
D. Julia, com uma alegria infantil, aceitou este _lunch_ frugal, e,
reanimadas com elle as suas forças, pediu para visitar a quinta.
A avó de Rosa estava sentada no jardim, debaixo d'um caramanchel de
clematites, fiando, e cantando com voz tremula o estribilho d'um romance
antigo. N'esta boa velha, bem vestida e de boa presença, ninguem seria
capaz de reconhecer a pobre cega, que dezoito mezes antes, quasi
morrendo de fome e frio, e podendo apenas suster-se em pé, encontramos
seguindo o caminho da serra de Vallongo para S. Cosme.
A viscondessa do Candal e sua filha saudaram a pobre cega, e esta,
prevenida pela netinha, correspondeu-lhe respeitosamente.
--Não vos incommodeis, boa mulher---lhe disse a
viscondessa--permitti-nos sómente que conversemos por um instante
convosco.
--É muita honra para mim, minha querida senhora;--respondeu a
cega--estou portanto ás vossas ordens.
--Visto isso não vos recusareis a dizer-me se estaes satisfeita com a
vossa neta?
--Se estou contente com a minha Rosinha?!--exclamou a cega---com ella,
que é a minha benção sobre a terra. Quando o meu genro morreu, por causa
d'uma ferida, que fez em uma perna com o seu machado, porque elle era
rachador de lenha na serra, e a quem minha filha, mãi de Rosa, seguiu
passado pouco tempo, quasi que enlouqueci, porque não sabia o que havia
de fazer. Rosa, disse-me com a sua voz meiga e humilde: avósinha, eu
conheço uma senhora muito caritativa; vamos a sua casa, que estou certa
nos ha-de recolher. E foi verdade.
A snr.^a D. Thereza, essa boa e caritativa senhora, para quem peço a
Deus todos os beneficios e bençãos, teve a caridade de recolher em sua
casa uma velha enferma e inutil como eu. Mas isto devo-o a Rosinha,
porque ella sabe dizer as cousas de tal maneira, que, penetrando até o
coração, commovem e decidem á compaixão. Vai em dezoito mezes que aqui
nos achamos. Fio um pouco para não estar em descanço; mas Rosinha,
senhora, Rosinha, cantando sempre, trabalha desde pela manhã até á
noite. Em quanto que dura o verão, occupa-se a colher flôres na serra e
no campo, e a fazer cestinhos com ellas; mas isto não obsta a que,
quando se recolhe, lave a roupa, limpe os moveis, e ajude a cozinhar, e
se quizesse dizer-vos tudo o que ella faz, ou sabe fazer, levar-me-ia
muito tempo.
Assim, amo muito a minha querida Rosinha. Mas onde estás tu, que te não
chegas a mim para te dar um abraço?
Rosa, com o pretexto de ir colher um ramo para D. Julia, tinha-se
retirado, quando a avó começára a elogial-a.
A viscondessa e sua filha ouviram com prazer o panegyrico de Rosa, feito
pela avó, e iam fazer novas perguntas, quando D. Thereza chegou.
Depois de terminados os comprimentos preliminares, a viscondessa expoz a
D. Thereza como sua filha sympathisára com Rosa, e estava resolvida a
tomal-a sob a sua protecção, se D. Thereza a isso se não oppozesse.
--Primeiro que tudo--respondeu D. Thereza--desejo a felicidade e
venturas de Rosinha, ainda que me ha-de custar muito a separar-me
d'ella: porém, se fôr sua vontade, não me opponho, por que julgo lhe
procuraes a sua felicidade; mas ponho por condição, que lhe não
prohibireis vir algumas vezes visitar-me.
--Isso, senhora, é um dever sagrado, que Rosa tem a cumprir. Vamos porém
interrogal-a, por que ella nada sabe do que acabamos de fallar.
D. Thereza chamou a pequena, que veio correndo, e disse-lhe:
--Rosinha, queres ir viver com esta senhora e sua filha?
--Pois vós, senhora--respondeu Rosa tremula e timida--quereis mandar-me
embora?
--Não. Pergunto sómente se me queres deixar, para te tornares uma menina
da cidade, instruida e de maneiras polidas?
--Não, minha senhora. Nunca--disse Rosa chorando, lançando-se nos braços
da sua bemfeitora--nunca vos deixarei. Tenho muitos e muitos desejos de
me instruir e de aprender, mas, se para isso é necessario o deixar-vos,
antes quero ficar ignorante toda a minha vida. Recolheste-nos, senhora,
quando eu e a minha querida avósinha, estavamos quasi a morrer de fome,
e havia de ser tão ingrata, que, quando principio a servir d'alguma
utilidade, vos abandonasse? Não, senhora, nunca, nunca vos deixarei.
--Ouvistel-a, minhas senhoras--disse D. Thereza enxugando os olhos,
razos de lagrimas.
--Pelo que vejo, Rosa, estás bem decidida a não vir comnosco?--lhe disse
a viscondessa.
--Seria feliz e muito feliz, minha senhora, se podesse ir viver na sua
companhia, e de sua estimavel filha; mas antes de vós, está a snr.^a D.
Thereza, que salvou a minha pobre avósinha d'estender a mão á caridade
publica e que sempre tão minha amiga tem sido. Perdoai-me, senhora, se
assim fallo...
--Dá-me um abraço, minha menina--lhe disse a viscondessa
interrompendo-a--dá-me um abraço, porque te mostraste tal, como eu
desejava, boa, humilde e reconhecida aos beneficios, que te fazem.
Não tenhas receio, que te separemos da snr.^a D. Thereza. Pediremos
sómente á tua bemfeitora, que nos deixe entrar com metade nos
beneficios, que te prodigalisa.
--E eu, Rosa--acrescentou D. Julia--quero ser a tua preceptora. Quando o
tempo estiver bom, dar-te-hei as lições na serra, á sombra d'um
sobreiro, ou d'um pinheiro, ou á borda d'um regato; e quando estiver
mau, dar-tas-hei em minha casa, porque ouso esperar, que a snr.^a D.
Thereza me não negará este favor, e prazer.
--Oh não, minha senhora, esteja certa d'isso. Logo que termine o seu
serviço dos cestinhos fica livre para vos ir procurar.
--É objecto convencionado--disse a viscondessa--por isso a snr.^a D.
Thereza ha-de-me permittir licença de offerecer a Rosa, para si e sua
avó, o que contém esta pequena bolsa. É para comprar em nosso nome um
vestido novo.
E como D. Thereza, Rosa e a avó lhe fizessem muitos agradecimentos, a
viscondessa impoz-lhes com brandura silencio, e retirou-se, promettendo
voltar muito breve á quinta.
D. Julia abraçou a sua pequena discipula, e retirou-se dizendo-lhe «até
ámanhã».
Nas proximidades de casa a viscondessa e sua filha encontraram D.
Bertha, que estava esperando pelas meninas Meirelles.
--Meu Deus, como estou aborrecida--lhes disse ella.
--Pois eu, minha irmã--respondeu D. Julia--venho muito alegre; o
espectaculo, que acabo de gosar, dar-me-ha felicidade não só para hoje,
mas tambem para muito tempo, porque será contado no numero das minhas
mais gratas e queridas recordações.

VIII.
D. Julia, na fórma convencionada, principiou no seguinte dia o curso,
que queria fazer seguir a Rosa. Tomou com ardor a obrigação, que se
tinha imposto desempenhar, mas o seu zelo não excedia, o que mostrava a
sua alumna. Intelligente, e anciosa por aprender, Rosa era incansavel, e
muitas vezes foi preciso que D. Julia moderasse a sua applicação; as
lições tinham lugar umas vezes na serra, outras vezes em casa da
viscondessa.
Decorreram assim tres mezes. No fim d'este tempo, os progressos, que
Rosa tinha feito, eram espantosos, e como tanto a professora, como a
discipula não afrouxavam no seu zelo, era d'esperar que, no fim dos dous
mezes que D. Julia ainda tinha a passar no campo, Rosa estivesse
bastante desenvolvida para continuar, sem nada esquecer, a estudar
sósinha, durante o inverno.
Mas, quando menos se esperava, a terrivel molestia, que parecia ter
deixado D. Julia, reappareceu com uma intensidade violenta.
A pobre menina não teve forças para resistir a este ataque, e não podia
sahir do quarto.
Rosa, que no auge da sua desesperação, com risco da propria vida,
quereria dar algumas forças á amiga do seu coração, podia a custo conter
as lagrimas, contemplando-a, pallida e cadaverica, recostada n'uma
cadeira de braços, forcejando por se levantar sem auxilio, para não
aterrar a sua querida mãi e a sua discipula predilecta.
N'este momento Rosa tinha um unico pensamento; o de sacrificar-se por
aquella, que tanto a amava e lhe queria. Os mais pequenos desejos, e os
mais vagos caprichos eram adivinhados de Rosa, e executados antes mesmo
que D. Julia os tivesse enunciado. Se queria descer ao jardim, o braço
de Rosa é que a amparava; se queria ouvir alguma passagem dos seus
livros favoritos, Rosa lia-lh'a immediatamente.
D. Julia, muito sensibilisada por tanta dedicação, affligia-se com a
lembrança, de que o progresso da sua discipula estava parado. D. Bertha
podia substituil-a, mas essa nunca consentiria em ser a preceptôra d'uma
lavradeira. A viscondessa resolveu-se a dar as lições a Rosa, para
socegar a inquietação de D. Julia.
Havia já tres semanas que D. Julia estava doente, e cada dia ia a peor;
sua mãi já não tinha esperanças algumas. Tres medicos, que do Porto
haviam sido chamados, não deram esperanças da doente melhorar.
A viscondessa, porém, não podendo convencer-se de que sua filha estava
irremediavelmente perdida, cria que os medicos se tinham enganado, e
resolveu recolher ao Porto, para lhe fazer uma nova junta.
D. Bertha, contristada ao principio com a molestia de sua irmã,
consolava-se com a idéa de voltar ao seio da sociedade, que ella tanto
amava.
Só á força de muitas instancias e esforços é que D. Julia consentiu em
deixar o campo; mas, ainda assim, com a expressa condição de para lá
voltar se peorasse.
Quando Rosa soube que a viscondessa se ia retirar do campo, não pôde
conter a sua desesperação. Queria acompanhar D. Julia, e não a
desamparar um só instante. D. Julia procurava socegal-a, mas tudo era
baldado, por que Rosa estava inconsolavel.
Na vespera da partida Rosa veio despedir-se de D. Julia; lançou-se-lhe
aos pés, chorando, e pediu-lhe que lhe escrevesse muitas e muitas vezes.
A doente assim lh'o prometteu, e, tirando debaixo do travesseiro uma
bolsinha de sêda, apresentou-a a Rosa.
--Aceita, minha menina--lhe disse ella--esta bolsa; contem cem mil reis,
que são as minhas economias do verão; põe a juros este dinheiro, para
que se augmente este capitalsinho.
É um presente muito pequeno; mas se nos não tornarmos a vêr, minha boa
mãi, dar-te-ha, em meu nome, mais alguma cousa.
Rosa beijou as mãos de D. Julia, e queria recusar a bolsa.
--Não recuses, Rosa--tornou D. Julia--senão fôr para ti, é para tua avó.
Sabes lá o que tem para vos acontecer, e se esta pequena somma ainda vos
será util? Adeus, Rosinha; ama-me sempre muito, e reza muito ao Senhor,
para que me dê saude.
Rosa quiz responder, mas as lagrimas e soluços embargaram-lhe a voz. A
viscondessa, testemunha d'esta scena tão tocante, temendo as funestas
consequencias, que sua filha soffreria com tão grande commoção, levantou
Rosa, e pediu-lhe com instancia e por favor que se retirasse. A pobre
menina cedeu a custo, mas antes de se retirar ainda pôde vêr D. Julia,
que, com um olhar maternal, a abençoava.

IX.
Já tinha decorrido mais d'um mez, desde que D. Julia recolhera ao Porto,
e Rosa ainda não tinha recebido carta da sua amiga. A pobre criança
affligia-se, julgando, que este silencio, para com ella, não tinha outra
causa, senão o estado cada vez mais perigoso de D. Julia. D. Thereza,
que partilhava do pesar de sua filha adoptiva, procurava por todos os
meios consolal-a, e fazer-lhe conceber esperanças. Uma carta de D. Julia
veio confirmar as prevenções de D. Thereza.
D. Julia, com mão tremula, escreveu á sua querida discipula.
Participava-lhe que a sua doença parecia estar um pouco mais debellada,
e que os medicos davam algumas esperanças de a poder subjugar, e
embargar-lhe o seu progresso.
Terminava a carta aconselhando Rosa a que não descurasse os seus
estudos, e pedindo-lhe que lhe escrevesse.
Rosa cobriu de mil beijos esta carta, e no mesmo dia respondeu a D.
Julia, assegurando-lhe que não despresaria os seus conselhos, e que
tinha esperanças, de, para a primavera, renovar as suas lições sob as
arvores da serra; que nas suas orações rogava todos os dias a Deus, com
fervor, que lhe restituisse a saude, e que esperava as suas supplicas
fossem attendidas.
Rosa, cumprido este dever sagrado, lançou mão do seu trabalho com mais
vigor.
Estava proximo o dia natalicio de D. Thereza. Rosa preparava em segredo
um lindo presente para offerecer n'aquelle dia á sua bemfeitora, e para
isso tinha reunido todo o dinheiro, que lhe tinham dado de mimo, e
julgava-se bastante rica para poder apresentar a D. Thereza um brinde,
de que ella admirasse o valor e o gosto.
Faltavam só quatro dias para que, esse dia tão anciosamente esperado,
chegasse, e Rosa ainda queria poder supprimir o tempo, tão longo lhe
parecia.
Na vespera de manhã D. Thereza queixou-se d'uma dôr de cabeça, mas
julgou que um passeio lh'a dissiparia. Sahiu pois; mas passado uma hora
voltou ainda mais indisposta, do que tinha sahido.
Despresando o seu estado, ainda presidiu, na fórma costumada, ao jantar
dos criados da quinta; mas, no meio d'elle, cahiu sem sentidos.
Os criados, assustados, cercaram D. Thereza. Recolheram-na á cama, e
partiu immediatamente um criado a chamar, a toda a pressa, um cirurgião.
Chegou este, e, mal viu a doente, não deu esperanças de a salvar.
--Foi uma apoplexia fulminante--disse elle--é já tarde para se lhe dar
remedio.
O desespero e a consternação espalharam-se na quinta.
Os criados em geral estimavam muito D. Thereza, por que, apesar de ser
muito vigilante, era boa e justa.
Os menores movimentos do cirurgião eram seguidos com anciedade por todos
os criados, mas entre elles tornava-se saliente Rosa pelo zelo e
actividade, que desenvolvia em executar as prescripções do cirurgião,
ainda bem não estavam dadas.
Rosa não podia crêr que Deus lhe quizesse roubar a sua bemfeitora, e
esperava ainda que uma crise feliz a restituiria á vida.
A avó de Rosa estava consternadissima, e o seu maior pesar consistia em
não poder fazer cousa alguma.
De joelhos; junto do leito de D. Thereza, rezava com fervor e devoção.
Entre as alternativas da esperança e desconforto se passou o dia. Á
noite o cirurgião declarou que já lhe não restava esperança alguma; que
D. Thereza ainda podia viver mais um dia ou dous, mas que não proferiria
mais uma palavra, nem faria um unico movimento.
Descrever a afflicção de Rosa e de sua avó é-me impossivel; bastará
dizer que a dôr as tinha quasi enlouquecido.
D. Thereza não tinha filhos, por isso foram avisar do succedido a D.
Euzebia, sua irmã, rica proprietaria em Rio Tinto.
D. Euzebia, por causa do seu genio forte, e caracter duro, não estava em
intimas relações com D. Thereza. Assim que teve noticia da doença de sua
irmã poz-se logo a caminho, não por amisade que tivesse á moribunda, mas
sim para vigiar que lhe não roubassem a mais pequena parte da sua
herança.
Logo que D. Euzebia chegou a S. Cosme, tomou o governo da casa, e deu
ordens como se já estivesse senhora da herança. Rosa e sua avó
inspiraram-lhe antipathia, e não podia comprehender como sua irmã
voluntariamente tinha tomado ao seu cuidado aquellas duas pessoas.
D. Thereza ainda viveu dous dias, conforme o cirurgião dissera, mas sem
falla, e sem movimento, porque a apoplexia tinha-lhe paralysado todas as
faculdades. Só os olhos é que conservavam ainda alguns signaes de vida e
intelligencia, os quaes fixava sobre Rosa, fazendo esforços para fallar,
naturalmente para fazer o seu testamento; mas este ultimo consolo dos
moribundos não lhe foi permittido.
O abbade da freguezia, que veio administrar os ultimos sacramentos á
moribunda, tentou mitigar a dôr de Rosa, mas a joven menina estava muito
consternada para poder ser consolada. Recusou obstinadamente retirar-se
de junto do leito, em que jazia D. Thereza, conservando-lhe a mão gelada
apertada nas suas.
--O meu lugar é este,--dizia ella entre soluços,--só deixarei minha
segunda mãe no tumulo.
Finalmente chegou o terrivel momento da morte. Uma convulsão, alguns
murmurios sufocados........ e D. Thereza tinha deixado d'existir entre
os vivos, e sua alma, desprendendo-se das ligações terrenas, voára ao
céo a receber da mão de Deus o premio das suas virtudes.
Ao principio não se ouviam mais que os chóros de todos os criados da
quinta, mas em seguida uma voz forte e imperiosa se fez escutar. Era a
de D. Euzebia. Collocou uma pessoa junto do cadaver de sua irmã, deu as
ordens para os funeraes, e passou a inspeccionar as caixas e commodas,
que fechava com cuidado, guardando as chaves.

X
Apenas D. Euzebia fechou as commodas e caixas, compareceu o juiz eleito
da freguezia para sellar e tomar conta de tudo o que pertencia a D.
Thereza.
--Aqui estão as chaves, senhor juiz eleito--disse D. Euzebia,--mas é
inutil esse trabalho, por que eu sou a unica herdeira de minha irmã, e
ella não podia desherdar-me.
--É verdade, minha senhora,--respondeu o juiz--mas cumpro o meu dever,
por que a lei protege os direitos de todos.
--Só eu é que tenho direito á fortuna de minha irmã, pois ella não tem
filhos.
--Sim, minha senhora, mas esta orphãsinha, a quem ella deu asylo?
--Minha irmã--replicou com colera D. Euzebia--seria por ventura capaz de
me desherdar, testando os seus bens a favor d'estas duas mendigas, que
ella teve a phantasia de recolher em sua casa?
--Não o affirmo, minha senhora--respondeu com brandura o juiz;--mas sua
irmã póde ter feito testamento, no qual deixe a Rosa alguma prova da sua
estima e amisade.
--Não julgaria sufficiente o sustental-a e mais á avó,--disse D. Euzebia
com voz forte--ainda lhe havia de deixar algum legado? Ah! minhas
velhacas, virieis vós roubar o que de direito me pertence? Snr. juiz
eleito, queira tambem sellar a porta do quarto d'ella, pois quem sabe
lá, o que ella tem roubado. Minha irmã era tão pouco cautellosa...
--Oh! senhora--respondeu Rosa com muita tristeza a esta supposição
offensiva--acreditaes que pagasse com o roubo os beneficios, que eu e
minha avó recebemos da snr.^a D. Thereza?
O juiz eleito ordenou com brandura a Rosa que se calasse, para que D.
Euzebia não continuasse, diante d'um leito de morte, com uma discussão
tão vergonhosa, e feia.
Logo que o juiz se retirou, Rosa viu-se de novo a braços com as
suspeitas da ambiciosa herdeira. Chegaram a tal ponto as cousas, que
Rosa não pôde refrear a sua indignação.
--Não me injurieis, senhora,--disse Rosa com energia e dignidade--não me
injurieis diante do corpo de vossa irmã, de quem só a vista bastaria
para me proteger. Dizei-me, senhora, sahi eu por ventura um só instante
de junto da cama da minha bemfeitora, desde que ella foi atacada pela
apoplexia? Não, senhora. Então como podia eu subtrahir cousa alguma?
Examinai, e examinai bem, senhora, que achareis tudo intacto, porque eu
e minha avó preferiamos antes morrer de fome, do que tocar na cousa mais
insignificante, que nos não pertencesse. Louvado seja o Senhor, sou
forte; posso e quero trabalhar, por isso não serei pesada a ninguem.
Deixai-nos, senhora, chorar em paz a perda da nossa bemfeitora, que,
logo que o seu corpo saia d'esta casa, não vos pediremos asylo.
Esta linguagem, firme e digna, impoz silencio a D. Euzebia, que ficou
corrida de vergonha.
Rosa esperou com socego o dia seguinte, em que se devia fazer o enterro
a D. Thereza.
A pobre criança, com a avó pelo braço, seguiu chorando o prestito.
Depois de terminado o officio, Rosa e sua avó, ajoelharam-se junto da
campa, em que D. Thereza foi sepultada: era já noite cerrada, e ainda as
duas desgraçadas não cuidavam em se retirar.
O frio, que fez dar um gemido á avó, advertiu Rosa de que se devia
recolher; só então é que pensou para onde havia de ir.
--Vamos, minha avósinha--disse Rosa--a casa da snr.^a Maria da Gandra,
que estou certa, sendo tão nossa amiga, nos não ha-de deixar na estrada.
A snr.^a Maria da Gandra era uma boa e caridosa mulher, que, como todos
os moradores de S. Cosme, e seus arredores, estimava muito a protegida
de D. Thereza, e censurára o procedimento de D. Euzebia.
--Oh! Rosinha, foi Deus que te dirigiu para minha casa--lhe disse ella
logo que a avistou.--Que prazer me não causa teres procurado a minha
casa para te recolheres. Tinham-me dito, que ias para casa da Joanna da
Quintella, por isso é que te não offereci para vires para aqui com tua
avó.
--Agradeço-vos, senhora--disse Rosa--a vossa bondade, e a caridade com
que vos offereceis para nos recolherdes; mas não venho pedir-vos casa e
sustento de graça, porque tenho duas inscripções de cem mil reis cada
uma; o que vos rogo é que me aboneis tudo o que eu precisar e minha avó,
que vos satisfarei logo que termine a liquidação da herança da snr.^a D.
Thereza, e receba as minhas inscripções.
--Sim, sim, minha menina,--lhe respondeu a snr.^a Maria da Gandra--Não
preciso do teu dinheiro para te sustentar e a tua avó. Mas diz-me, como
obtiveste essas inscripções?
--A snr.^a D. Julia, antes de partir para o Porto, deu-me cem mil reis,
com os quaes a snr.^a D. Thereza, em cumprimento do seu desejo, comprou
duas inscripções em meu nome.
--Foste feliz, Rosinha, em que fossem compradas em teu nome, porque
d'outra maneira D. Euzebia tomaria posse d'ellas. Tem resignação, assim
como vós, minha boa velhinha; vinde cear, que eu depois vou-vos conduzir
ao vosso quarto.
Rosa e sua avó ficaram portanto habitando na Gandra.
A pequena não estava ociosa, antes pelo contrario era tão zelosa e
trabalhadeira, que a snr.^a Maria, muito satisfeita, propoz-lhe que ella
e a avó, ficassem para sempre em sua casa. Rosa aceitou promptamente, e
com reconhecimento, pois n'aquella occasião era a maior felicidade, que
lhe podia apparecer.
No dia em que se deviam tirar os sellos em casa da defunta D. Thereza,
Rosa alli compareceu por convite do juiz eleito.
Quando Rosa atravessou, como estranha, a soleira da porta da casa, que
tinha sido para ella tão hospitaleira, o coração comprimiu-se-lhe e não
pôde reter as lagrimas.
Tudo se passou sem novidade; só de quando em quando D. Euzebia mostrava
por gestos e exclamações o seu desapontamento por encontrar menos
dinheiro, do que imaginava.
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