A Gratidão - 1

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A GRATIDÃO.
ROMANCE.

I.
Estavamos nos ultimos dias de Dezembro de 1846. Uma camada mui espessa
de neve cobria o sólo. O ar, sombrio e carregado, indicava que mais neve
não tardava a cahir. Os ramos nús das arvores dos montes tremiam
soprados pelo vento norte gelado. Estava tudo n'um perfeito socego, e
tristeza; nem o mais leve murmurio se ouvia.
Uma velha, e uma criancinha, apesar do rigor do frio, seguiam com
difficuldade o caminho, que da serra de Vallongo conduz a S. Cosme. A
criança, d'espaço a espaço, soprava ás mãosinhas inteiriçadas pelo frio,
e não se podendo sustentar sobre os pés, que tinha inchados pelas
frieiras, caminhava vacillante; mas vencendo todos os obstaculos, com
uma energia superior á sua idade, tomava galhardamente o seu lugar ao
lado da velha. Esta parecia ter sessenta annos. Estava corcovada mais
pela miseria, do que pela idade, e tinha no rosto profundas rugas. Pelo
modo como andava, e tateava o caminho com a mulêta, via-se que era cega.
--Aonde vamos nós, Rosa?--perguntou a velha á rapariguinha.
--Em meio caminho, minha avó.
--Jesus Senhor, valei-me,--disse a cega,--pois que as minhas pobres
pernas já estão cançadas, e parece-me que não chego ao fim da jornada.
--Encoste-se ao meu hombro, avósinha, que eu não estou cançada.
--Não, não. Tudo está acabado. Eu morro aqui, Rosinha. Tenho muita fome,
e muito frio para vencer o caminho até S. Cosme. Ai meu Pai do céo, que
me sinto desfallecer...
Fez um gesto de desespero, e a cega cahiu sobre o caminho.
--Avósinha, avósinha,--gritava Rosa assustada,--volte a si, que lh'o
peço eu; mais um pequeno esforço e chegaremos a S. Cosme.
A cega não deu accordo de si.
--Avósinha,--continuou Rosa chorando, e cobrindo-a de beijos,--se me
abandona, que hei-de fazer? Quer que eu morra de paixão?
--Morrer, tu, minha Rosinha,--disse a cega levantando-se.--Oh! meu Deus,
não permittaes tal.
--Então levante-se que lh'o peço eu; se fica aqui mais tempo o frio
matal-a-ia. Em S. Cosme nos aqueceremos.
--Ai de mim,--disse a cega, levantando-se ajudada de Rosa,--e a snr.^a
D. Thereza receber-nos-ha?
--Ha-de receber sim, minha avósinha, eu lh'o afianço. Não creio que a
boa snr.^a D. Thereza nos despeça. Quando eu lhe ia vender flôres
silvestres, que apanhava no monte, abraçava-me, e dizia-me muitas vezes,
que desejava que eu fosse sua filha.
--Não duvido que ella te receba, porque és muito linda e agradavel;
agora o que eu não creio é que me receba a mim, que sou uma velha e
cega, que para nada sirvo.
--Se assim acontecer, voltaremos á nossa aldêa, e os bons lavradores,
que conheceram meus paes, terão piedade de nós, soccorrer-nos-hão, e eu
trabalharei para lhes pagar, o que elles vos derem.
A avó, muito commovida, apertou ao coração a pequena, e murmurou
palavras de ternura e gratidão; e reanimada por esta felicidade, que
Rosa lhe tinha feito experimentar, retomou com passo mais firme o
caminho de S. Cosme.
O vento soprava já com mais força; o ar tinha escurecido mais, e
pequenos flocos de neve se viam voltejar no ar. Rosa, tiritando com
frio, fazia esforços sobrehumanos para poder andar, e cada passo, que a
pobre cega dava, era acompanhado d'um suspiro surdo. O vento augmentou,
e os flocos de neve, que ao principio eram raros, cahiam em maior
abundancia.
--Rosinha,--disse a cega,--bem queria andar, mas não posso; deixa-me
ficar.
--Avósinha, eu já avisto a torre da igreja de S. Cosme.
--Estás bem certa d'isso?
--Eu não queria mentir...
--Vamos andando. Permitta Deus que eu possa vencer o caminho.
--Não tenha receio de me cançar, minha avó; sou forte, e não estou
fatigada. Encoste-se ao meu hombro.
--Meu querido anjinho, que Deus te pague tudo o que me fazes.
Chegaram finalmente a S. Cosme, á quinta de D. Thereza de Sousa, depois
de mil esforços, que cançaram completamente avó e neta.
Era tempo; mais um instante e teriam cahido ambas no chão. Entrando na
cozinha da casa, o calor produziu-lhes uma reacção tão violenta, que
desfalleceram.

II.
D. Thereza de Sousa, e mais algumas visinhas, que se tinham reunido para
serandar, acercaram-se das duas infelizes. Depois de lhe ter ministrado
todos os cuidados necessarios para as reanimar, como o seu principal mal
era a fome, mandou-lhe dar um bom caldo, e acommodal-as a um dos cantos
do lar, em que ardia uma grande fogueira.
--Agora, Rosinha,--disse D. Thereza, ameigando-a,--conta-nos, como a
esta hora, e com este tempo vieste até aqui com esta boa mulher.
--Desculpai, minha boa senhora,--disse a cega,--Rosinha é minha neta.
--Sim, snr.^a D. Thereza, é minha avó, de quem tantas vezes tenho
fallado a v. exc.^a e...
--Então porque não continuas?--lhe replicou D. Thereza.
A pequena levantou para D. Thereza os seus lindos olhos azues, com uma
tal expressão de supplica, que a commoveu.
--Falla, falla, minha menina. Não tenhas receio. Queres pedir-me alguma
cousa, não é assim?
--Vêde, minha boa senhora,--disse Rosa, contendo as lagrimas a
custo,--eu e minha avó, somos muito desgraçadas. Meu pai, que era
rachador de lenha, feriu-se pelo S. João em uma perna com o machado.
Minha mãi mandou-me chamar a toda a pressa o snr. Pereira, que é um
homem muito entendido. Fui, o mais depressa que pude, e quando cheguei a
casa do snr. Pereira estava elle para sahir, e não queria vir commigo
para não torcer o seu caminho; mas eu tanto lhe pedi, que sempre me
acompanhou. Quando viu a perna a meu pai, logo disse, que estava muito
mal, e que não promettia cural-o. Duas semanas depois veio á ferida uma
molestia, de que me não lembra agora o nome, e meu pai morreu.
Rosa calou-se chorando, e a cega tambem soluçava. D. Thereza abraçou a
rapariguinha, apertou a mão á pobre velha, e disse:
--Para hoje já é de mais, ámanhã...
--Perdôe-me, snr.^a D. Thereza,--replicou Rosa,--mas é melhor que eu
termine hoje,--e continuou:
--Havia um mez que meu pai tinha morrido, quando minha mãi cahiu de
cama; a febre não a deixava. Eu ia aos campos apanhar as hervas, que
minha avó me ensinava, para lhe fazer remedios, mas nada sarava minha
mãi. Um dia abraçou-me e disse-me:
«Minha pobre Rosinha, eu vou unir-me com teu pai, mas que será de ti?
Trabalharei, lhe respondi.
És muito nova para isso; mas entretanto rogarei muito a Deus para que te
receba sob a sua santa guarda, e te não abandone. Nunca desampares tua
avó, sê-lhe obediente e carinhosa..., ainda queria fallar, mas não pôde,
abraçou-me e á avósinha, e expirou.»
Desde então alguns rachadores, amigos de meu pai, nos recolheram e
soccorreram; mas como não são ricos, e precisam de mudar de terra por
não terem aqui que fazer, lembrei-me de vir pedir agasalho á senhora,
pois que, sendo tão boa, não deixaria de nos recolher, que somos tão
desgraçadas. Sou fraquinha, mas posso trabalhar. Sei fiar, e começo a
lavar. Guardarei os bois, e os carneiros e tratarei do gallinheiro.
Minha avó tambem fia muito bem e estou muito certa, que a ha-de
satisfazer com o seu trabalho. Oh! senhora--disse Rosa ajoelhando-se aos
pés de D. Thereza--não nos abandoneis; satisfazemos-nos com pouco, e
faremos todo o possivel para vos agradar, e rogaremos continuamente a
Deus pela vossa vida e felicidade.
D. Thereza commoveu-se tanto, com a singeleza e candura d'esta supplica,
que duas lagrimas lhe brilharam nos olhos.
--Levanta-te, Rosinha, ámanhã fallaremos n'isso. Tu e tua avó ide-vos
deitar. Sempre te direi, que és muito linda e corajosa, para que se não
tenha piedade de ti.
Rosa beijou com reconhecimento as mãos de D. Thereza, e a cega encheu-a
de bençãos. D. Thereza mandou-as conduzir a um pequeno quarto, limpo e
quente, em que um somno reparador lhe reanimou as forças.

III.
Ainda mal a aurora tinha raiado, já Rosa estava a pé. Fatigada, como
estava, da jornada do dia antecedente, custou-lhe muito a levantar-se
cedo, mas fez um esforço para mostrar os seus desejos a D. Thereza.
Arranjou-se, o melhor que pôde, com os seus velhos vestidos, e, depois
de ter dirigido mentalmente a Deus uma oração fervente, desceu ao andar
terreo.
--Já a pé,--lhe disse alegremente D. Thereza.
--Estava tão cançada do caminho d'hontem, que receei, já fosse tarde;
mas graças aos vossos beneficios, minha senhora, já estou prompta, para
o que me determinardes.
--E tua avó?
--Ainda dorme. É tão velhinha e tão doente, que vos peço tenhaes piedade
d'ella.
Rosa ergueu as mãos, e esperou tremula a resposta da dona da quinta.
D. Thereza de Sousa era, o que vulgarmente se chama, uma mulher de casa.
Tendo viuvado ha doze annos, geria com tanto acerto e economia as suas
propriedades, que a sua fortuna tinha augmentado consideravelmente.
Os visinhos do lugar diziam que, pela avareza e mesquinharia, é que
tinha alcançado a fortuna, que possuia, pois que em qualquer cousa
sempre tinha que diminuir, e acrescentavam ironicamente, que, dando
_tantas_ esmolas, o dinheiro nunca lhe havia de faltar.
Fosse como fosse, o que sei é, que D. Thereza sensibilisou-se tanto com
a historia de Rosinha, que, quando ella ergueu as mãos, e a viu com os
olhos arrasados de lagrimas, esperando a resposta, disse para si; que a
uma supplica tão humilde e cheia de tanto amor filial, era impossivel
resistir.
N'este momento quem accusasse de avarenta D. Thereza de Sousa, seria
injusto com ella, por que, recolhendo a avó e neta, tomava um encargo
bastante pesado. Rosa era ainda muito pequena, e de mais a mais muito
fraquinha, para poder ter utilidade real! A pobre criança estava a fazer
dez annos, mas era muito franzina e delicada. O seu rosto, cercado de
compridos caracóes louros, e animado com uns grandes olhos azues
escuros, inspirava sympathia. Tinha as maneiras delicadas, e a linguagem
menos rude, que a dos camponezes dos arredores. Esta distincção n'uma
criança, ainda tão tenra como Rosa, nascia da sua intelligencia mui
desenvolvida.
A mãi, logo que ella teve tino para se não perder nos caminhos,
mandava-a apanhar flôres silvestres, que ia vender ás familias mais
abastadas das aldéas visinhas. Como Rosa era muito linda as senhoras das
casas acolhiam-na muito bem, divertiam-se com ella, ouvindo-a tagarelar,
e demoravam-na muitas vezes a brincar com as suas filhas.
Sendo muito viva tomou facilmente as maneiras, e modo de fallar, das
pessoas com quem tratava, de modo que os rachadores denominavam-na a
fidalguinha.
Se tinha adquirido maneiras delicadas, não havia perdido as boas
qualidades, de que era dotada; humilde e carinhosa para todos, quem a
conhecia adorava-a.
O que a mim, minhas caras leitoras, me levou tanto tempo a dizer, passou
n'um instante pela idéa a D. Thereza de Sousa, e fixou-lhe a resolução
de recolher a avó e a neta.
--Vou-te mandar vestir uma roupinha melhor, Rosinha,--lhe disse D.
Thereza, animando-a com uma brandura, que lhe não era habitual,--porque
espero has-de ser uma boa criada, serviçal e trabalhadeira.
--Então fico em casa de v. exc.^a?--disse Rosa, não podendo crer em
tanta ventura.
--Ficas, sim, e parece-me que nunca me darás motivo para me arrepender
do que hoje faço.
--Oh! minha senhora, estai certa que me esforçarei o mais possivel, para
vos agradar e satisfazer os vossos desejos.
--Assim o espero. Anda vestir-te.
--Desculpe-me, senhora. Mas minha avó...--e Rosa parou corando.
D. Thereza, querendo experimentar a sua protegida, disse:
--Que queres a tua avó?
--Ella tambem fica?
--Não. Tua avó é cega e velha, para nada serve, e eu não sou rica
bastante, para me encarregar da sustentação de duas pessoas.
--Então, senhora, agradeço os vossos beneficios, e todo o bem que me
querieis fazer, mas não posso abandonar a minha avósinha, que morreria
de paixão.
Vou ajudal-a a levantar-se, e regressaremos à nossa aldêa.
--E que has-de fazer na tua aldêa?
--Irei humildemente pedir a um mestre tamanqueiro um pequeno cantinho da
sua casa, que estou certa me não negará. Não sou robusta, mas tenho
coragem, por isso trabalharei nos socos durante o inverno. Quando vier o
verão irei vender flôres e fructos, como os demais annos, e como eu, e a
pobre cega, de pouco precisamos para viver, parece-me que ganharei para
ambas. Logo que chegue a primavera não seremos pesadas a ninguem...
D. Thereza apertou Rosa nos braços, e chegou-a ao coração.
--Basta, Rosinha, tu és um anjo do céo, que Deus enviou a minha casa
para me trazer a felicidade. Vai-te vestir, e depois irás participar a
tua avó, que ambas ficaes para sempre em minha casa.
Descrever a alegria da avó, quando soube a decisão de D. Thereza, é-me
impossivel fazel-o, minhas caras leitoras; vós, que deveis ser dotadas
de bom e piedoso coração, melhor a podereis imaginar. Abraçava Rosa,
agradecia a D. Thereza com um reconhecimento mui sincero, promettendo
fazer todo possivel para ser menos pesada á sua bemfeitora. Rosa nada
dizia, mas a eloquencia de seu olhar provava a D. Thereza a sua
gratidão.

IV.
Rosa, ainda que novinha e de fraca organisação, tornou-se util em casa.
Incansavel no trabalho, de manhã cedo tratava da capoeira e do pombal;
depois ia guardar os bois e os carneiros, e, em quanto que os vigiava,
fiava na sua roca.
Ao jantar, quando recolhia a casa, tinha sempre que fazer. Era um gosto
vêr esta criança tão tenrinha arrumar, limpar e lustrar os moveis, como
o faria a melhor mulher de casa.
D. Thereza cada vez mais estimava a sua protegida, e felicitava-se pela
ter recolhido. A avó tambem não era inutil. A cegueira não a
impossibilitava de fiar desde pela manhã até á noite, e o seu trabalho
era perfeito. Tudo corria bem, e todos andavam contentes e satisfeitos.
Chegou a primavera. Começaram a desabrochar com o tepido sôpro d'esta
estação, e mostraram as suas galas, a bella pervinca azul, o narciso de
corôa d'ouro, o lyrio de campanas odoriferas, e a bella violeta de
calices perfumados.
Rosa, quando ia á serra, era para ella um dia d'alegria. Procurava os
caminhos tapetados de musgo, os regatos, que tantas vezes tinha passado,
as fontes escondidas pelas çarças, e as arvores, sob as quaes tinha
encontrado as mais lindas flôres. Rosa sentia-se mais livre e mais feliz
na serra, do que nos campos da quinta; a todo o momento parava extasiada
diante das bellezas da natureza, e cada sitio novo, que achava, era como
se fosse um amigo. Quando o socego voltava, depois d'esta alegria e
animação, esta poetica criança fazia cestinhos de vimes e juncos, que
guarnecia com musgo e flôres silvestres, mas com um gosto e belleza
exquisito, os quaes D. Thereza mandava vender, dando sempre bom preço.
Ganharam renome os cestos de Rosa.
Em todas as quintas e casas ricas dos arredores não queriam outros, e
até muitas familias da cidade, que iam passar o verão áquelles sitios,
compravam e procuravam com avidez os cestos d'esta gentil ramalheteira.
D. Thereza, como mulher que comprehendia os seus interesses, entendeu
que lhe era de mais proveito o empregar Rosa, durante a primavera, a
fazer cestos e ramos, do que na quinta, por isso assim o determinou.
Quando Rosa o soube, saltou d'alegria, por que se dava melhor á sombra
dos pinheiros e carvalhos, do que em casa.
Passou-se assim o verão, e D. Thereza não teve que se arrepender da sua
resolução. Um certo numero de meias corôas de prata provou o bom
resultado do negocio de cestos e flôres.
O inverno pareceu triste e monotono a Rosa. Tinha-se habituado de tal
maneira a ir todas as manhãs para a serra, que chegava muitas vezes a
esquecer-se do trabalho, e ir insensivelmente até á baixa d'ella.
Voltava então muito apressada á quinta e redobrava d'actividade, para
fazer esquecer as suas faltas involuntarias.
Occupou-se a fiar quasi todo o inverno, e o producto do seu trabalho foi
augmentar o pequeno thesouro principiado com a venda dos cestos e
flôres.
D. Thereza considerava Rosa como sua filha, não podendo estar sem ella
um unico instante, e nos dias de feiras e romarias tinha gosto em que
Rosa apparecesse entre as mais lindas e mais ornadas lavradeiras do
lugar.
A amisade, que tinha a Rosa, reflectia-se na avó; tratava-a com tal
respeito e affabilidade, que a poderiam tomar por mãi de D. Thereza,
tanto ella a cercava de cuidados e desvelos.
A felicidade da pobre cega, e bem assim o futuro de Rosa poder-se-iam
julgar seguros; mas como nada n'este mundo é immutavel, o momento, em
que a adversidade ia estender o seu braço de ferro sobre as duas
infelizes, não estava longe.

V.
Voltou a primavera e com ella as encantadoras occupações de Rosa. Foi
com enthusiasmo, que a candida e poetica criança encontrou as flôres,
suas amigas, com que preparou os primeiros ramos, que appareceram no
mercado.
Os cestinhos e ramos de Rosa obtiveram uma grande extracção, como no
anno anterior. Ia entregal-os pessoalmente nas casas ricas, e muitas
vezes as senhoras morgadas, se julgavam felizes por ter em sua companhia
esta linda criança por algum tempo.
Rosa, vestida á lavradeira, era muito galante e modesta; o seu metal de
voz era agradavel, e as maneiras tão delicadas, que quasi sempre as
freguezas, ao preço do ramo, juntavam um presentinho para a vendedeira;
mas quando perguntavam a Rosa o que era que mais estimava, respondia
sempre, que o seu maior desejo era possuir um livro para se instruir.
Rosinha tinha uma paixão ardente pelo estudo; quasi sem mestre tinha
aprendido a lêr correntemente, e a sua maior alegria consistia em obter
um livro para se entregar á leitura.
D. Thereza pela sua parte tambem não obstava aos desejos de Rosa, tanto
que se lhe não dava que ella faltasse ás suas obrigações; mas devemos
fazer-lhe justiça dizendo que sabia alliar a satisfação dos seus
desejos, com o cumprimento dos seus deveres, por isso só depois de ter
terminado os seus affazeres é que se dava ao estudo.
Estava Rosinha uma occasião sentada á borda d'um ribeiro, entretida a
colher juncos para fazer um cesto, quando, sem ella o presentir, se lhe
aproximou uma senhora ainda joven.
--Para que estaes escolhendo esses juncos, minha menina?--lhe disse a
joven senhora com modo affavel.
Rosa levantou a cabeça, e vendo a desconhecida, saudou-a e respondeu:
--Faço cestinhos com flôres para vender.
--Quero então já avaliar a vossa habilidade. Amo muito as flôres, por
isso queria que me fizesses um cestinho já, e se eu ficar contente
has-de-me fazer um todos os dias. Aceitaes?
--Aceito, sim, minha senhora, e ainda que tenho muitas encommendas a
satisfazer, vou já preparar o vosso.
--Assento-me aqui ao pé de ti e vamos conversando. Como te chamas?
--Rosa de Jesus, uma sua criada, minha senhora.
--Assim, Rosa, o teu trabalho é fazer cestos de flôres para depois os
ires vender?
--Sim, minha senhora.
--E teus paes em que se occupam?
--Já não tenho paes; só me resta minha avó, que é cega.
--És orphã, e onde moras?
--Estou em casa da snr.^a D. Thereza de Sousa, proprietaria em S. Cosme,
tão boa, como rica.
Ha um anno, que eu e minha avó não sabiamos aonde nos haviamos de
recolher; estavamos em Dezembro, e havia dous dias que não tinhamos
comido, quando de repente me lembrei da snr.^a D. Thereza. Eu e minha
avó, que então moravamos na serra de Vallongo, pozemos-nos a caminho
para S. Cosme. O caminho é muito mau, por isso mais d'uma occasião
julguei que minha avó ficava na estrada, porque já não podia andar; mas
o Senhor teve misericordia de nós, e felizmente terminamos a jornada. A
snr.^a D. Thereza tratou-nos com muita bondade, e recolheu-nos em sua
casa, apesar de sermos um encargo muito pesado.
--Amas então muito a snr.^a D. Thereza?
--Se a amo. Não queria mais nada, senão poder reconhecer todo o bem, que
nos faz. Não desejo senão crescer e robustecer para lhe poder servir
d'utilidade.
--Estou muito contente, minha pequena, por te ouvir fallar assim. Quando
te vi senti-me attrahida para ti, e ficaria muito desgostosa se te não
encontrasse com sentimentos dignos da estima que te consagro.
Parece-me que o meu cesto está acabado?
--Ainda lhe falta uma cercadura de _não me deixes_. Permitti, senhora,
que eu vá ao proximo ribeiro colher estas flôres, porque alli as ha mais
frescas, e em mais abundancia.
--Ide, que aqui te espero.
Rosa partiu correndo.
D. Julia d'Andrade, que tanto interesse mostrava pela protegida de D.
Thereza, tinha vinte annos.
O cabello preto muito comprido, e naturalmente encaracolado, fazia-lhe
sobresahir ainda mais a pallidez do rosto. Os olhos castanhos tinham um
brilho de febre. A physionomia demonstrava um padecimento interno, n'uma
palavra, estava affectada d'uma tisica pulmonar.
Sua mãi, a viscondessa do Candal, receiando pela vida de D. Julia, tinha
consultado os mais acreditados medicos de Lisboa e Porto, e todos tinham
aconselhado os ares do campo, e o não constrangimento, como os meios
mais proficuos para debellar a molestia. A viscondessa tinha portanto
deixado o Porto e ido habitar com suas filhas D. Julia e D. Bertha uma
quinta proximo da serra de Vallongo.
D. Julia parecia que revivia no meio da luxuosa natureza, que a cercava.
Todos os dias dava grandes passeios, e distrahia-se ou sentando-se á
sombra dos carvalhos e sobreiros, ou embrenhando-se entre as çarças. Ao
principio a viscondessa receiou que estes passeios tão longos
prejudicassem a saude de sua filha, mas vendo-a mais alegre e mais
vigorosa, e que se a pallidez não tinha desapparecido, a expressão
soffredôra do rosto era menos pronunciada, ficou mais socegada e esperou
obter o triumpho sobre a molestia.
D. Julia era tão boa, e ao mesmo tempo tão prudente, que sua mãi não
temia deixal-a em plena liberdade, e gosar da vida segundo as suas
phantasias.
A viscondessa queria que D. Bertha acompanhasse sua irmã nos seus
passeios; mas D. Bertha, que era uma joven de 16 annos d'idade,
orgulhosa do seu nascimento e belleza, recusou obstinadamente acompanhar
sua irmã, dando como razão, que lhe repugnava o juntar-se como ella com
esses _estupidos_ e _rudes_ aldeãos, que habitam os campos, e a quem
ella acariciava, e que além d'isso estragava os seus vestidos seguindo
D. Julia pelos caminhos estreitos e escabrosos dos campos e da serra. As
mil vozes da natureza eram mudas para D. Bertha; no seu coração só
imperava o egoismo.
Num d'estes passeios é que D. Julia encontrou Rosinha, e que ficou
encantada com a sua innocencia.
Havia muito que D. Julia esperava Rosa, e já receava que ella não
voltasse, quando a viu vir correndo.
--Perdoai-me, senhora, o ter-vos feito esperar tanto tempo, mas eu fui
muito longe colher as violetas e os _não me deixes_, porque queria que o
meu cestinho vos agradasse.--Assim fallando Rosa apresentou a D. Julia
um cestinho, que era um primor d'arte no gosto, e esperou toda confusa,
a sua apreciação.
Uma alegre exclamação de D. Julia lhe fez vir o sorriso aos labios.
--Quero abraçar-te, minha querida menina; ha muito tempo que não vi nada
tão lindo, e como me causaste um grande prazer, quero recompensar-te;
mas deixa-me ainda admirar o teu bello trabalho.
Este cestinho podia vêr-se. No centro tinha raminhos de violetas com as
folhas verdes, ainda humidas; uma corôa de lirios cercava as violetas, e
em volta uma grinalda de musgo, semeada de raminhos de rosas amarellas e
geranios. Dous ramos de madre-silva serpenteavam por entre os juncos
formando as azas.
--Não quero--disse D. Julia, depois d'alguns instantes de silencio--que
uma obra tão bella tenha um viver ephemero; vou já bordar um quadro,
cópia d'este cestinho, que ha-de ficar muito rico. Mas, Rosinha, quanto
queres por este trabalho?
--Dar-me-ha o que quizer, minha senhora, como costumam fazer as outras
minhas freguezas.
--Mas quanto é que custam ordinariamente?
--Tres ou quatro vintens.
--Quatro vintens!--disse D. Julia admirada.
--Acha caro, minha senhora?--disse Rosa com acanhamento.
--Caro, não, minha pequena. Quando estava no Porto pagava, por muito
maior preço, ramos que tinham muito menos valor, que o teu cestinho.
Toma, Rosinha, não tenho aqui senão esta meia corôa, mas amanha a esta
hora apparece aqui, e fallaremos...
--Não posso aceitar o que me dáes, minha senhora, porque é muito.
--Queres fazer-me zangar?
--Não, senhora. É a primeira vez que a vejo, mas já a estimo muito. Eu
não preciso de nada; a snr.^a D. Thereza é muito minha amiga e...
--Não é uma esmola que te dou--replicou D. Julia, mettendo a moeda de
prata na mão de Rosinha--não te esqueças da recommendação, que te fiz,
de estares ámanhã aqui a esta mesma hora.
E antes que Rosa tivesse tempo de recusar, já D. Julia tinha
desapparecido, levando na mão o cestinho.
Rosa ficou um instante sem saber o que havia de fazer, mas recomeçou
ligeiramente o trabalho. Quando ao jantar voltou a casa, contou a D.
Thereza o seu encontro de pela manhã, o que lhe tinha acontecido e
perguntou-lhe se devia ou não guardar os cinco tostões.
--Não te authoriso a pedir, Rosa, mas isso não é uma esmola, é um
presente, que te fazem, podes portanto arrecadar esse dinheiro. Ris-te.
Já sei. Esse dinheiro vem a proposito para augmentares o teu mealheiro,
com o qual te hei-de comprar um rico jaqué para o S. Miguel.
--Não, senhora--replicou Rosa com a alegria nos olhos--não é esse o meu
pensamento, e que me causa tanta alegria.
--Que é então?
--Rogo-vos que me não façaes perguntas; depois o sabereis.
--Guarda o teu segredo, porque sei que não és desgovernada, e que o não
has-de gastar mal gasto.
Rosa abraçou ternamente D. Thereza, e foi entregar as suas encommendas
de flôres e cestos.

VI.
D. Julia recolheu-se para casa muito tempo depois da hora, que tinha
determinado.
A viscondessa, impaciente e sobresaltada com a demora, sahiu, no
caminho, ao encontro de sua filha.
--Estiveste incommodada, minha filha?--lhe disse ella.
--Não, minha senhora. Este cestinho, que aqui trago, é que foi a causa
da minha demora.
E D. Julia mostrava a sua mãi o cestinho, que Rosa tinha feito.
--Como é lindo--respondeu a viscondessa--Não sabia Julia, que tinhas a
prenda de fazer cestos de juncos entrançados.
--Não fui eu que fiz este cestinho, minha mãi.
--Então quem foi?
--Foi uma lavradeirinha, que encontrei no meu passeio.
--Uma lavradeira?!
--Sim, minha senhora. E acreditareis, minha mãi, que por todo este
trabalho me pediu a grande quantia de quatro vintens?
--Não te pergunto quanto lhe déste, por que conheço a bondade do teu
coração, e tenho a firme convicção de que não abusaste da sua
simplicidade.
--Dei-lhe só meia corôa, por que não tinha mais na minha bolsinha. Não
queria recebel-a, ajuizando que lh'a dava como uma esmola; mas tanto fiz
que a aceitou, e convencionei com Rosa, (pois a minha ramalheteira assim
se chama) para nos encontrarmos ámanhã, no mesmo sitio, á mesma hora; e
se ella, como penso, fôr digna da sympathia, que me inspirou, e do
interesse que já me causa, consentir-me-heis, minha boa mãi, que a tome
sob a minha protecção?
--Consinto em tudo, minha filha, que te dê prazer, e distracção. Se a
tua protegida fôr digna dos nossos beneficios, unir-me-hei comtigo, e
accordaremos no que devemos fazer para seu bem.
D. Julia abraçou com ternura a viscondessa, e agradeceu-lhe a sua
bondade.
N'este comenos, a viscondessa e sua filha, chegaram a casa.
D. Julia collocou com muito cuidado sobre uma mesa da sala o cestinho, e
correu com presteza ao seu quarto a preparar um cavallete, pinceis e
tintas para dar principio ao quadro projectado, e, tendo tudo disposto,
desceu á sala a buscal-o.
D. Bertha estava examinando o cestinho com attençào e minuciosidade.
--Não estão tão bem dispostas e combinadas essas flôres, Bertha?--disse
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