As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1878-01) - 3

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montanha_, e ardendo em zelo pela sua alta comprehensão scientifica e
philosophica do phenomeno social da religião e do facto biologico da
morte,--comprehensão egualmente haurida do já alludido bucentauro
rasgando os supracitados flancos,--que s.ex.ª o sr. doutor convenceu a
vereação lisbonense a approvar não só a creação de um muro--o que à
hydra parecerá sufficiente--mas a de quatro muros, o que ao bucentauro
ainda parece pouco.
O muro primitivo da hydra com os tres muros complementares do sr. Jardim
fecharão o recinto destinado de ora avante aos enterramentos de todos
aquelles que morrerem fóra do gremio da religião catholica apostolica
romana.
* * * * *
Nós suppunhamos que o caracteristico religioso que distinge um catholico
dos membros de qualquer das outras cinco mil seitas religiosas que
cobrem a superficie da terra era um facto dos dominios exclusivos da
consciencia: que esse caracter desapparecia no limiar do obscuro portico
infinito onde pára a vida; que o cadaver deixava de ter uma religião,
cessava de pertencer á igreja, para pertencer exclusivamente á chimica.
Suppunhamos que o cemiterio, considerado não só pelo seu lado civil mas
mas principalmente ainda pela intenção do seu instituto christão, era o
campo sagrado do respeito, da tolerancia, do esquecimento de toda a
discrepancia de idéas, de toda a offensa, de toda a injuria, a mansão
eterna do perdão e do amor para todos aquelles que padeceram na terra as
amarguras communs da grande humanidade coberta em toda a redondeza do
orbe pela larga benção incondicional de Jesus.
Estavamos grosseiramente illudidos. O cemiterio, o cemiterio de Lisboa,
pelo menos, o dos Prazeres ou o do Alto de S. João, é puramente um
recinto de caracter official, destinado á fermentação exclusiva das
podridões privilegiadas.
Um sr. conselheiro, por exemplo, que morre hydropico na sua cama, bem
ungido pela liberalidade amiga do seu cura, bem chapinhado em agua benta
pelo compadrio do seu prior, correcta e apparatosamente amortalhado, com
as suas calças de galão de ouro duplamente retesadas pela inchação e
pelas presilhas, com a sua farda vestida, a sua barba feita, a commenda
no peito, o espadim ao lado, o chapéo armado aos pés, o cordão da ordem
terceira de S. Francisco à cinta, vae legitimamente e no uso do mais
sagrado direito para o cemiterio, a esperar na morte a trombeta da
resurreição da carne, como esperou na vida a hora da sua repartição. No
dia da chamada geral no valle de Josaphat elle porá na cabeça o seu
chapéo de bicos e irá tomar o competente logar na gloria eterna, na
bancada dos conselheiros, á mão direita de Deus Padre Todo Poderoso.
Mas tu, miseravel canalha, tu, concebido no monturo e dado á luz no cano
do esgoto, tu que não conheceste pae nem mãe, producto espontaneo da
grande immundice anonyma, apparecido como a flor da febre á superficie
do pantano, tu que não recebeste baptismo, nem confirmação, nem ordem,
nem matrimonio, nenhum finalmente d'esses preciosos beneficios que abrem
o céo e que a igreja confere por uma tarifa de preços superiores aos
teus capitaes, tu, não tinhas no cemiterio de Lisboa senão um logar
usurpado, roubado indignamente ás pessoas de bem. Estoiraste para um
canto no enchurro em certa noite de inverno. Viveste e morreste fóra dos
sacramentos da nossa Santa Madre Igreja. És como um cão. A tua natureza
humana não é a da outra gente. A tua podridão não é a da cabelleira do
sr. Jardim nem a do abafadoiro do sr. marquez de Avila. Tu és uma besta.
És peior ainda: és um impio. Vão conceder-te agora um quintal para ires
para debaixo a terra para a estrumeira execranda dos atheus. Muito favor
te fazem estes bons senhores em te não remetterem ás equarissagens para
o esfollal Ainda que, por outro lado, na equarissagem, esfolado,
distillado, amanhado convenientemente, podias ainda ter o prazer de uma
sobrevivencia industrial, util ao teu proximo. Os teus principios
chimicos, o teu hydrogenio, o teu oxigenio, o teu carbono, o teu azote,
poderiam achar uma applicação pratica e decente. Poderias aspirar na tua
outra vida a abotoar com os teus ossos as calças do sr. marquez de Avila
e o lustrar com as tuas banhas a cabelleira do sr. Jardim e de outros
doutores da camara municipal e da igreja. Na estrumeira dos impios que
te destinam nada mais serás do que um eterno objecto de execração e de
horror para os teus concidadãos. Quando passarem por cima da tua cova os
homens sérios, a quem está promettido o céo sob a palavra de honra do
padre Marnoco e de outros ecclesiasticos, elles cuspirão sobre a tua
dissolução infecta. As mães passarão de longe, correndo, com os seus
filhos pela mão, fazendo-te figas. As velhas senhoras aristocraticas,
entrevendo de passagem o teu cypreste agoirento, benzer-se-hão com as
suas finas mãos pallidas e rezarão os esconjuros mais efficazes no fundo
tepido dos seus ligeiros _coupés_. Assim com as abençoadas sepulturas
dos santos fazem os benignos milagres, a tua sepultura dará os horrendos
enguiços. E eu te affirmo que ainda havemos de vêr aquelles que eram
cegos e que recuperaram a vista abraçando-se ás sagradas reliquias de um
bom santo, perderam-a outra vez por a prostituirem affirmando-se nas
vegetações malignas cujas raizes se tenham contaminado no teu humus
preverso! Finalmente serás detestado, abominado, execrado, maldito,--cem
mil vezes maldito pelos homens, pelas mulheres, pelas creanças, pela
cidade inteira.
E cuidas tu, miseravel, que poderás encontrar um dia na eterna justiça
inviolavel a compensação d'este despreso systematisado, d'este rancor
que é um regulamento municipal, d'este odio que é uma lei do reino? Como
te enganas! O que tem de te succeder é irremissivelmente o seguinte:
No dia do juizo final tu ouvirás na profundidade do teu estrume o
canglor da enorme trombeta mais longa que a via lactea, soprada por um
anjo que desde o principio do mundo terá estado a recolher no pulmão
para os expellir n'esse instante, todos os estampidos da natureza, todos
os bramidos do mar, todas as erupções dos vulcões, todas as quedas das
catadupas, todos os estrondos reunidos do vendaval, do trovão e do raio.
Não terás remedio senão acordar,--quer queiras, quer não--do teu pesado
somno da materia bruta. Serás levado á revista do grande valle por dois
ceruleos cherubins de pequenas azas luminosas suspensas nas espaduas
como moxilasinhas feitas da pennugem do sol. Esses cherubins dir-te-hão
com a sua doce voz pollida, affectuosa, mas vibrante: «Vocemecê ha de
ter a bondade de passar ali para a mão esquerda de Deus Padre porque é
condemnado.» Tentarás escapulir-te, safar-te para a podridão de que
tinhas vindo. Appellarás para o juiz supremo. O arbitro da eterna
justiça inquebrantavel cravará em ti os seus olhos. Tu o verás tambem a
elle, com a sua longa barba que envolverá toda a terra, o seu bigode de
interminaveis nuvens grisalhas, de cujas guias, ao contacto dos seus
dedos, chisparão os raios na amplidão infinita. Ouvirás a sua grande
voz, cujas sylabas cairão na tua alma, a uma por uma, mais pesadas que o
Monte Branco e que o Nevado de Sorata. Elle dirá:--«Deram-lhe o
baptismo? Não. Deram-lhe a confirmação? Não. Deram-lhe a penitencia?
Não. Deram-lhe a absolvição da culpa? Não. Não lhe deram nada. O
cherubim tem razão. Passe para a mão esquerda.» Então passarás para a
esquerda. O teu anjo custodio abrirá um alçapão aos teus pés e gritará
para baixo, para as profundidades do immenso vortice:--«Fogo eterno para
um!» Depois do que, te tocára com um sopro. Tu despenhar-te-has cortando
o espaço como um astro cadente, sem luz, similhante a uma estrella
sombria feita de lama, até te submergires no tremendo abysmo, na punição
eterna. E será por todos os seculos dos seculos, sem fim jámais.
Eis ahi tens o que te espera, segundo a religião do dr. Jardim e outros.
Religião bem diversa da do santo velho Tobias, que com as suas tremulas
mãos decrepitas violava piedosamente as leis vigentes e enterrava elle
mesmo os infelizes condemnados pelo rei da Assyria a ficarem insepultos!
Bem diversa da d'aquelles christãos da igreja primitiva, que assombravam
Tertulliano empregando mais perfumes para embalsamar os seus mortos do
que os pagãos consumiam para celebrar os seus sacrificios; lavavam os
cadaveres, envolviam-os em seda; vellavam-os durante tres dias antes do
os conduzirem á sepultura, onde ao som dos hymnos e dos psalmos os
collocavam estendidos com a face voltada para o nascer do sol. E não
resumiam a caridade em enterrar unicamente os seus correligionarios: os
primeiros christãos enterravam tambem, indistinctamente, todos os pagãos
pobres e desamparados, todos os hereticos, todos os atheus, todos os
impios. Para lhes merecer o amor bastava ser homem. Para lhes merecer o
sacrificio bastava ser desgraçado. Por isso disia o imperdor Juliano que
fôra a obra gratuita e incondicional de enterrar os mortos a que mais
contribira para o estabelecimenlo e para a propagação do christianismo.
* * * * *
Agora, estabelecido o novo cemiterio, resta-nos vêr como s. ex.ª o
ministro do reino resolverá os conflictos promovidos contra elle mesmo
por s. ex.ª a hydra. E sobre este ponto temos algumas duvidas a que
muito desejavamos que o sr. Jardim prestasse por um momento as suas
esclarecidas madeixas e o seu profundo bucentauro, ou--porque o digamos
n'outros termos--a attenção do seu genio. Eis um dos casos sobre que
pretendemos consultar s. exª:
* * * * *
Imagine o sr. doutor que o seu reverente servo auctor d'estas linhas,
não querendo enterrar-se de todo por uma só vez, resolvia enterrar-se
por partes e dar á terra uma das suas pernas para a terra se ir
entretendo.
N'esta hypothese pergunta-se:
Onde é que o sr. doutor determina que se sepulte a perna de que eu tenha
o capricho de descartar-me?
Estou prevendo que o bucentauro de s. ex.ª, attribuindo
indifferentemente a qualquer das minhas pernas a paternidade do presente
escripto, me prescreverá o logar destinado por s. ex.ª para os membros
impios e locomotores.
A isto porém replico a s. ex.ª que a minha perna quer se trate da
direita, quer se trata da esquerda, é boa catholica apostolica romana.
Tinha eu oito dias de idade, ex'mo sr. quando a acompanhei à pia
baptismal, e ahi lhe foi perguntado pelo parocho da minha freguezia, em
lingua latina, que ella a esse tempo ainda não tinha tido tempo de
aprender, se queria baptisar-se, ao que meu padrinho respondeu _Volo_! E
este volo era como se fosse a minha propria perna que houvesse aprendido
as linguagens e que assim ousasse exprimir-se. Mas lhe perguntou o
parocho se ella acreditava na communicação dos santos, na resurreição da
carne e na vida eterna. Ao que ella respondeu, sempre pela boca do meu
padrinho, que em tudo acreditava piamente e que era por isso que ali
tinha ido com o seu respectivo pé e com o pequeno apendice que era o
resto da minha exigua e innocente pessoa. Desde esse dia até hoje bem
varias e bem extranhas aventuras se teem passado com a perna cujas
crenças religiosas nos cabe discutir para averiguar o logar que lhe
compete na funeral mansão. Ella porém, ex'mo. sr. doutor, apezar de
todas as vicissitudes que tem atravessado na vida, nunca até hoje
contradisse--que me conste--as declarações latinas feitas em seu nome
por meu padrinho: _Volo, credo, abrenuntio_. Ella portanto é catholica,
e tem direito á sepultura sagrada na terra e á bemaventurança no
paraiso. O sr. Jardim não póde de modo alguma mandal-a para o cemiterio
dos atheus.
* * * * *
Supponhamos agora que o sr. doutor determina que o logar que compete á
funeral jazida de uma das minhas pernas é o cemiterio catholico. A essa
resolução tenho egualmente de oppôr-me com os fundamentos seguintes:
Uma vez nascida em Portugal, o baptismo, a confissão, a missa, a
communhão, a pratica de todos os sacramentos e de todas as ceremonias
não significa da parte da minha perna uma affirmação religiosa mas sim
uma affirmação civil.
Pelas leis do reino a religião catholica apostolica romana não é
facultativa, é obrigatoria. A minha perna não póde entrar no estado sem
ter previamente passado pela igreja. Na falta de um registro que
substitua o assento baptimal para a consignação do nascimento, a minha
perna nem sequer portugueza póde ser emquanto não fôr baptisada! Em todo
o decurso da vida civil, ella não póde dar um só passo sem primeiramente
demonstrar que é catholica. Sem a certidão de baptismo, primeiro, sem o
attestado passado pelo parocho da frequencia de todos os demais
sacramentos depois, ella não póde fazer exame de instrucção primaria;
não póde matricular-se em nenhuma das escolas; não póde entrar no
exercito, nem na armada, nem no professorado, nem no funccionalismo, nem
na magistratura, nem na representação nacional. Não sendo catholica não
póde ter nacionalidade, não póde ter profissão, não póde ter estado, não
póde ter mulher, não póde ter filhos, não póde nem ao menos ter nome!
A todas as portas da sociedade portugueza se pergunta á minha perna
antes de a deixar penetrar, se ella é catholica, exactamente como se lhe
pergunta se ella está isempta do recrutamento e se é vaccinada.
Desde que veiu á luz em Portugal a minha perna, pelo simples facto de
nascer, pertence irremissivilmente á igreja. Sem previa licença da
igreja ella não póde dar um unico passo para dentro do estado ou para
dentro da familia. Esta simples aspiração, tão modesta: ser filha de meu
pae e de minha mãe--a minha perna está prohibida de a ter sem que a
igreja diga que sim. Chega mesmo a ser impossivel o poder eu demonstrar
de um modo juridico e authentico que a minha perna seja effectivamente
minha emquanto a igreja não disser tambem que sim. De sorte que, quando
eu ouso dizer _a minha perna_, sirvo-me de uma arrojada methaphora, que
espero me seja relevada pelo sr. dr. Jardim. O que eu rigorosamente
deveria dizer em linguagem litteral, para me referir á minha perna,
era--a perna da igreja.
Se estamos pois n'um paiz onde o estado priva absolutamente a minha
perna da faculdade de escolher uma religião, chumbando-lhe elle mesmo o
catholicismo no tornozello, como se chumba a grelheta n'um condemnado,
recuso absolutamente ao sr. dr. Jardim e a todos os demais doutores o
direito de affirmarem que a minha perna tenha ua religião. Pelo facto de
ser baptisada, de ouvir missa, de se confessar ao menos uma vez cada
anno, de commungar pela Paschoa da Resurreição, de jejuar á sexta feira,
de acreditar na infallibilidade do papa, etc., a minha perna não está na
religião, está apenas na lei civil, está na carta. Em quanto a crenças
religiosas, o mais que se poderá dizer da minha perna, apezar de
baptisada, de jejuada, de confessada, etc., é que ella é cartista.
Como porém a creação das duas especies de cemiterios imaginados em
Lisboa pelo sr. Jardim e pelo sr. marquez de Avila não póde ter por fim
separar os cidadãos que obedecem á carta dos cidadãos que lhe não
obedecem--o que seria absurdo por equivaler a acompanhar a mesma lei de
dois regulamentos oppostos, um para o cumprimento d'ella e outro para a
sua transgressão,--é claro que não póde ser unicamente pelo facto de
estarem os restos de alguem dentro da lei civil que se lhes ha de
designar a sepultura sagrada.
Em conclusão final: Dada a coexistencia de dois cemiterios, um catholico
outro não catholico para o fim de enterrar todo o mundo, a minha perna
pela impossibilidade de se determinar rigorosamente se ella é
effectivamente catholica ou se não é catholica, acha-se no caso especial
de não poder ser mandada nem para um nem para outro d'esses cemiterios,
e de ter de ficar insepulta em quanto o sr. dr. Jardim não mandar o
contrario.
Ora succede que todos os cidadãos portuguezes, sem excepção alguma, se
encontram precisamente nas mesmas condições em que se acha a minha
perna.
Não se póde affirmar que alguem é catholico ou que o não é emquanto a
creação do registro civil não assegurar a cada cidadão a livre faculdade
de exercer ou não qualquer d'estes direitos: nascer sem padre, casar sem
padre, morrer sem padre.
* * * * *
Excellentissima camara municipal da muito nobre, sempre leal e invicta
cidade do Porto ou quem suas vezes fizer--Paços da Camara na Praça Nova,
esquina do Laranjal
Porto
Excellentissima camara e minha boa senhora. É cheio dos maiores cuidados
pela preciosa saude de v. ex.ª que lançamos mão da pena para, em nome de
todos os forasteiros que foram a essa cidade por occasião da cerimonia
inaugural da ponte sobre o Douro, dirigir a v. ex.ª algumas regras.
Principiaremos por dar a v. ex.ª uma breve noticia da festa em que
tomamos parte e em que v. ex.ª teve as suas razões para não se dignar de
comparecer.
Por convite da direcção da companhia dos caminhos de ferro portuguezes
reunimo-nos na estação das Devezas no dia 4 do mez de novembro passado
pelas 11 horas da manhã. Cerca de uma hora depois partiamos em um grande
comboyo extraordinario e paravamos em frente do Porto, á entrada da nova
ponte, na margem esquerda do rio. Maravilhoso espectaculo o que
presenceamos desde Gaya até á estação de Campanhã e do qual procurarei,
certamente debalde, dar uma longiqua ideia a v. ex.ª!
Um delicioso dia de outomno, de um largo tom lacteo e ceruleo como o de
uma perola azul, abraça amorosamente a natureza e banhava a paizagem
n'uma luz vaporosa impregnada da frescura dos orvalhos e do aroma das
violetas. A cidade fronteira desdobrava aos nossos olhos todos os seus
encantos topographicos, desde a Foz, envolta na sua athmosphera
maritima, salgada e humida, até os montes longínquos do lado opposto,
levemente esfumados no horisonte sob as douradas pulverisações do sol.
Viamos a ridente collina de Villar coberta de verdura e coroada pelo
Palacio de cristal; os copados bosques do Candal e de Valle de Amores; o
caes da Ribeira com a sua arcaria denegrida e o seu pittoresco mercado
de velhas barracas alpendradas brunidas pelo sol; a ingreme ladeira da
Corticeira; o parque das Fontainhas; a casaria emassada das freguezias
da Se e do Bomfim, com os seus predios esguios, terminando quase em
_pignon_ como na Hollanda: uns bem aprimados, tesos, vidrosos,
reluzentes, forrados de faiança, outros barrigudos, sombrios enodoados,
fazendo fincapé para não cambalearem como ebrios taciturnos; outros,
ainda, pintados de branco, pintados de azul, pintados de côr de rosa,
com chaminés bordadas e claras-boias phantasistas rematadas por
trabalhosas ventoinhas, jocundos, satisfeitos de si, rindo pelas sacadas
abertas ornadas de craveiros e de alecrins; depois, de valle em valle,
os lindos suburbios de Riba Douro: o choupal do Areinho, as espessas e
murmurosas frescuras das quintas de Quebrantões, da Oliveira, da
freguezia de Avintes; a bahia do Freixo, onde o rio tem a configuração
de um pequeno lago circular dominado por um elegante palacio Luiz XV, de
torreões e eirados senhoriaes, cuja elegante escadaria exterior mergulha
venezianamente na agua.
Todas as eminencias que viam o ponto onde paramos para a celebração da
ceremonia inaugural estava litteralmente cobertas de gente. Os montes
proximos achavam-se completamente submergidos sob uma espessa vegetação
humana. Em frente, todos os degraus da penedia, todos os socalcos, todos
os jardins, todos os quintaes, todas as janellas, todos os muros, todos
os telhados, todas as superficies, todos os contornos, todas as arestas,
tinham um debrum de gente.--Enorme romagem nunca vista. A cidade do
Porto em peso e 40 ou 60 mil peregrinos advindos de todas as regiões do
paiz estavam ahi reunidos. Para que?
Para celebrar um puro facto scientifico--a solução de um problema de
mechanica. N'este simples facto, exm.ª camara, que symptoma! que
phenomeno! que revolução!
Ha bens poucos annos ainda só o fanatismo religioso tinha o poder de
determinar as grandes romagens a S. Thiago de Campostella, a S. Torquato
de Guimarães, á senhora da Nazareth, á senhora do Cabo. Os peregrinos
iam então solicitar a intervenção milagrosa dos bons santos nos seus
casos pathologicos, nas suas ambições pessoaes, nas suas questões
domesticas: os paralyticos iam pedir movimento, os cegos iam pedir luz,
os tristes iam pedir consolação, os turbulentos iam pedir paz, e os
mendigos suspensos nas suas moletas, com o grande alforge ao pescoço, a
longa barba cor de greda empastada no suor da jornada e no pó dos
caminhos, iam simplesmente á beira das estradas pedir pão em troca de
plangentes ladainhas e de arrastadas melopeas nazaes.
Os peregrinos á ponte sobre o Douro não eram movidos por interesse algum
pessoal.
Esta romagem de novo genero exprime uma mentalidade nova; mostra que, se
o nosso apparelho social mantem ainda por um lado os mesmos aspectos
exteriores da sua velha structura, por outro lado elle annuncia já uma
funccionalidade diversa.
Um poder absolutamente novo, que não é o poder religioso nem o poder
politico, com quanto não affirmado ainda nas instituições, revela-se já
por este facto na comprehensão dos espiritos. Esse novo poder,
irrevogavelmente destinado a substituir todos aquelles que sob diversos
nomes teem gerido até hoje a direcção da sociedade, é na esphera
espiritual a sciencia e na esphera temporal a industria.
A ponte sobre o Douro é a mais bella e a mais perfeita expressão
symbolica d'esse poder, ao qual o paiz inteiro acaba de prestar o culto
mais unanime, o mais desinteressado, o mais convicto, o mais solemne de
que ha exemplo na historia das manifestações do applauso publico. Era
tão superiormente elevado o caracter d'esta grande festa da civilisação,
que perante o objecto d'ella desappareceram como por encanto n'esse dia
todas as incompatibilidades, todas as dissidencias, todas as distincções
de gerachia, de seita e de partido, que dividem a sociedade portugueza.
A direcção da companhiados caminhos de ferro teve o bom gosto de
convidar para o banquete que se seguiu á solemnidade da inauguração os
individuos representantes das opiniões mais extremas, o mundo official e
o mundo dissidente, tudo o que ha mais retrogado e tudo o que ha mais
progressivo, os mais ferrenhos conservadores e os mais ardentes
revolucionarios. Estes personagens tão justamente surprehendidos de se
acharem juntos pela primeira vez na sua vida, tomando parte em um almoço
cujos convivas não tinham precisamente por fim devorarem-se uns aos
outros e serem os bifes de si mesmos, confraternisaram do modo mais
tolerante e mais affectuoso, porque, acima de todas as suas divergencias
episodicas de opinião, havia um sentimento de attracção commum, de
conciliação geral, em nome do qual ahi tinham convergido todos. E esse
sentimento era o respeito do trabalho, d'essa immensa e irresistivel
força anonyma, obscura, lenta, perseverante, que o seio das
bibliothecas, das fabricas, dos laboratorios, dos gabinetes de estudo,
vae dando em cada dia aos destinos humanos um novo impulso para o
aperfeiçoamento e para a felicidade.
Não foram os reis nem os exercitos nem os padres, mas não foram tambem
os jacobinos nem os demagogos nem os atheus os que teem guiado e
dirigido até hoje a humanidade na sua ascenção atravez da historia. Foi
elle unicamente, foi o trabalho modestamente, obscuramente exercido nos
remansos da paz, nos recolhimentos da applicação e do estudo o que
determinou todas as conquistas, todas as victorias, todos os triumphos
das sociedades.
A ponte sobre o Douro symbolisa uma d'essas conquistas, uma d'essas
victorias, um d'esses triumphos:--a conquista de perto de meio seculo de
paz; a victoria, proporcional a esse periodo, da intelligencia do homem
sobre as fatalidades da natureza, o triumpho finalmente do destino
progressivo do nosso espirito sobre a immobilidade das nossas
instituições.
Ha cerca de quarenta annos apenas, ex.'ma camara, essas duas montanhas
estreitamente enlaçadas agora por um abraço de ferro, eram separadas por
um rio vermelho de sangue. Nos mesmos logares onde nós agora nos
reunimos para regar o solo com o champagne das agapes modernas, os
nossos paes e os nossos avós espingardeavam-se convictamente, decidindo
com o sacrificio das suas vidas a questão de palacio a esse tempo
debatida entre dois principes.
A guerra com tal fundamento seria hoje insustentavel. É evidente que
progredimos, e o facto de irmos ao Porto, desinteressadamente, aos
milhares, celebrar um facto industrial, significa a mais eloquente
affirmação d'esse progresso.
A cidade do Porto que por muitas vezes tem recebido a visita dos seus
principes, dos seus reis, dos seus generaes, dos seus mandões de toda a
especie, teve pela primeira vez n'esse dia a visita do povo.
Como foi que v. ex.ª, representante do municipio portuense recebem este
seu novo hospede? Não lhe apparecendo!
V. ex.ª, que tem dado a esse espinhaço os tratos mais violentos e mais
irracionaes para conseguir encurvar-se e acocorar-se n'uma reverencia
satisfatoriamente abjecta diante de todas as testas coroadas; v. ex.ª
que tem desengonçado e desarticulado a rhetorica municipal debaixo dos
pés da real familia; v. ex.ª que conserva ainda entre os ferros velhos
do seu stylo declamatorio--ao mesmo tempo alambicado e labrego--_as
chaves d'esse heroico baluarte_ depostas em cada anno por v.
ex.ª--dizemos--não teve um dito, uma palavra, um gesto sequer, para
agradecer a cincoenta mil viajantes a mais solemne e a mais
extraordinaria manifestação de estima de que ainda foi objecto uma
cidade por parte dos representantes de um paiz inteiro.
Este simples facto basta para nos provar que v. ex.ª desconhece
completamente qual é o espirito municipal das modernas sociedades
democraticas, que v. ex.ª está cem annos atraz do seu tempo, e cem furos
abaixo da missão em que foi investida pelos suffragios da população
portuense, tão energica, tão intelligente e tão progressiva.
É possivel que v. ex.ª tivesse tido que fazer n'esse dia que houvesse
contrahido compromissos anteriores, que se achasse por ventura associada
com alguma camara sua visinha para uma honesta merenda, para uma boa
patuscada, para alguma das bem conhecidas _sapateiradas_, nas quaes todo
o nosso ser se disgrega do mundo exterior para se abysmar no arroz do
forno e na carne assada no espeto. Mas n'esse caso porque é que v. ex.ª
nos não preveniu? Durante a ausencia de v. ex.ª, minha boa senhora, a
sua cidade estava immunda. Se tivessemos sido contemplados com um aviso
telegraphico nós, que fomos d'aqui unicamente com as nossas camizas,
teriamos levado tambem as nossas vassouras nas malas e a nossa
resignação para o desgosto de a não vermos no espirito.
Acceite minha senhora a expressão dos nossos sentimentos, tão cordeaes
como aquelles que v. ex.ª nos não exprimiu.

* * * * *

Dissemos no precedente volume d'estas chronicas que o sr. Fontes Pereira
de Mello, doendo-lhe um dente, desmontara e abandonara nos prados, entre
os deputados governamentaes e as boninas em flor, a jumentinha do poder.
Eis o que ao depois occorreu:
* * * * *
A pacata bestinha da governação andou a monte por alguns mezes,
choutando ao acaso, pungidas nos ilhaes pelos tacões do sr. Barros e
Cunha e sobre a anca pela ponteira do guarda sol do mesmo illustre
estadista e cavalleiro. Para onde é que s. ex.ª, coberto de zelo e de
suor, queria com tanta violencia equestre encaminhar a onagra?
--Para a senda da moralidade e da economia! bradava s. ex.ª com uma das
mãos na redea e com a outra mão sobre a carta constitucional.
Mas os burriqueiros experimentados no trilho peguinhado pela burrinha
bambeavam dubitativamente a cabeça, e do alto das montanhas, com a mão
aberta em viseira sobre os olhos, dilatando a vista ao futuro, diziam:
--Não. Para onde elle vae é para a senda de Cacilhas á Cova da Piedade.
E deixaram-o ir.
* * * * *
Como porem soasse o momento psychologico em que a asninha do governo,
com a sella no ventre, considerou que ia de longada para muito longe da
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