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O Assassino de Macario: Comedia em tres actos - 4
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Miragaya não passa da Cordoaria, e confunde-se com as flôres do jardim e
do peixe do barracão...
ITELVINA
Oh! isso seria horrivel! horrivel! (_Liborio entra pelo fundo_).
SCENA XVI
Os mesmos e Liborio
LIBORIO
(_com o porte-monnaie na mão_) Minha senhora, eu tinha aqui 12$000 réis.
Foi a senhora que lhe deitou o gatazio?
ITELVINA
Logo o saberá quando eu voltar (_Sahe_).
LIBORIO
Onde vae você?
ITELVINA
Rua de Miragaya n.º 1071. (_Sahe precipitadamente pelo fundo_).
LIBORIO
Que é? Rua de Miragaya n.º 1071! Quem lh'o diria? (_A Barnabé_) Foi o
senhor... Rua de Miragaya, é lá effectivamente (_Ouve-se fechar á chave
a porta do fundo_) Ella fecha-nos! e vae a casa d'elle! a casa d'elle!
(_Indo á porta da direita_) Por esta porta... (_Ouve-se o rodar da chave
que a fecha_) Fechada! fechada tambem! (_correndo á chaminé_)
Sebastiana! (_pucha pelo cordão da campainha_) Não ha campainha! está
quebrada a campainha!
BARNABÉ
E o Braga que me está esperando para assignar a escriptura!
LIBORIO
Eis-me encarcerado!
BARNABÉ
E eu!
LIBORIO
(_fóra de si, ameaçando Barnabé_) Ah! seu biltre! foi você a causa de
tudo isto! (_Atira-se a Barnabé, que procura fugir-lhe, aos encontroens
aos trastes. Liborio persegue-o vivamente. Cahe o panno, quando Barnabé
está apitando_).
FIM DO ACTO SEGUNDO
ACTO TERCEIRO
A mesma decoração.--Grande desarranjo.--Os moveis tombados, um colchão
está meio cahido para fóra do leito.
SCENA I
Liborio e Barnabé (_ao levantar do pano, Barnabé está sentado no
colchão, e Liborio, á direita sobre uma cadeira de braços, cahida.
Depois de instantes de silencio, Liborio levanta-se e vae á janella_).
LIBORIO
(_examinando a rua_) Nada, não vejo vir ninguem. Que horas são, snr.
Barnabé?
BARNABÉ
Outra vez... Depois do nosso combate... singular, já me perguntou isso
trez vezes.
LIBORIO
A quem heide eu perguntal-o? ao meu relogio? á minha pendula? Tudo aqui
está desmanchado (_á parte_) como a cabeça de minha mulher (_Levanta a
cadeira_).
BARNABÉ
Ha cinco minutos que eu lhe disse que eram 3 e 25; agora, por
consequencia, são trez e meia.
LIBORIO
(_passeando com grandes passos_) Ella sahiu ás duas horas... (_dirige-se
a Barnabé_) Como explica o senhor isto? Auzente á hora e meia! (_Arruma
os trastes_).
BARNABÉ
Não que d'aqui de Malmerendas a Miragaya são dois kilometros. Dê-lhe
tempo...
LIBORIO
Que lh'o dê? Ella toma o que quer! Fechar o pae e o marido para ir...
BARNABÉ
Minha filha é incapaz de tal...
LIBORIO
É capaz de tudo: é Mexicana, e basta.
BARNABÉ
Não o contrarío, para você não pegar de novo comigo. (_Levanta-se e põe
o colchão sobre o leito_).
LIBORIO
Ah! o senhor tem magnificas ideias! Que eu era pae! Esta só pelo diabo!
eu podia lá ser pae, homem!
BARNABÉ
E eu podia lá imaginar que o senhor depois de casado?... Emfim, o que eu
lhe disse era para o applacar...
LIBORIO
E para applacar minha mulher disse-lhe que o Macario era vivo. Foi isso?
BARNABÉ
Está claro; as minhas intençoens fôram sempre boas... eu não tive culpa,
se o senhor é um marido... distincto.
LIBORIO
Que horas são?
BARNABÉ
(_tirando o relogio pacientemente_) Trez e trinta e dous minutos. Outra
vez. O melhor é ficar com o relogio na mão, (_fica assobiando_) até o
senhor acertar o seu.
LIBORIO
O senhor assobia?
BARNABÉ
Então o senhor quer que eu chore? Deixe-me assobiar, homem! Ha paixoens
d'alma que não desafogam se não pelo assobio... situaçoens crueis em que
um homem sente a necessidade de estar sempre não só a assobiar, mas até
a apitar.
LIBORIO
Tem rasão. Quando se possue uma filha como a sua, e uma esposa como a
minha, todas as manifestaçoens do assobio e do apito são permittidas.
(_Barnabé continua a assobiar_) Tem rasão. Assobie á sua vontade... use
de todos os instrumentos de sôpro... Desabafe, snr. Barnabé, que eu faço
o mesmo. (_Assobia tambem. Ouve-se ruido de passos_). _Sio..._ escute...
BARNABÉ
Será?... (_rumor na fechadura_).
LIBORIO
É ella!
BARNABÉ
Prudencia, snr. Liborio, prudencia...
LIBORIO
(_sentando-se n'uma cadeira á esquerda, e pegando de um jornal de sobre
o fogão_) É ella... (_atira os pés para cima de uma cadeira_).
BARNABÉ
(_á parte_) Elles vão-se agatanhar!... se eu podesse tingar-me...
SCENA II
Os mesmos e Itelvina (_Abre-se a porta do fundo precipitadamente.
Itelvina entra muito agitada, fita o pae e o marido, tira o chaile e o
chapeu que atira sobre a cama; depois, desce, torna a fitar o marido e o
pae, e diz a Barnabé_):
ITELVINA
Meu pae! deixe-nos sós. (_Barnabé, sem responder, safa-se apressadamente
pelo fundo_).
SCENA III
Liborio e Itelvina (_Itelvina está momentos sem fallar, olhando para o
marido que a não encara; depois faz um gesto de impaciencia e diz:_)
ITELVINA
Vi Macario. Não estava só... Estava com uma creatura com um penteado de
estardalhaço, muito estapafurdio. Iam sentar-se á meza... e eu puxei
pela toalha e quebrei tudo... (_Movimento de Liborio, que logo se
riprime, e retoma a sua apparente tranquilidade_). Levantaram-se ambos e
avançavam para mim; eu fiquei de braços cruzados, serena, immovel,
encarando-os assim! Depois affastei-me lentamente, sem dar palavra, e
sahi! (_Silencio. Itelvina dá uns grandes passos_) Ah! o que são os
homens! o que são os homens! (_Torna para o marido_) Por que é que o
senhor me annunciou a morte d'elle? (_Silencio_) Eu sei-o, disse-m'o meu
pae... foi elle, esse miseravel que assim o quiz, não foi? O infame
Macario escarneceu o meu amor, ludibriou a minha angustia! Ah! é
incomprehensivel! é execravel! (_Pega da cadeira em que o marido tem os
pés e senta-se ao lado d'elle_) Como é que nós havemos de matar Macario?
LIBORIO
(_agitado, erguendo-se_) Que diz?
ITELVINA
(_fazendo-o sentar-se_) Ambos nós andamos mal, Liborio. Eu cuidei que tu
o matáras... Não se falle mais no passado... acabou-se... Agora,
unamo-nos para a vingança... Como é que se hade assassinar Macario?
LIBORIO
(_erguendo-se_) A senhora terá o diabo no corpo?
ITELVINA
Se estivessemos na minha patria, eu não o consultava; mas aqui, os
homens que fizeram as leis, reservam para si o monopolio da vingança, e
a honra de uma mulher nada importa, se não implica com a honra do homem.
Pois então, snr. Liborio, visto que me esposou, a minha honra é a sua.
Um pulha, um sacripanta escarneceu sua mulher... cumpre-lhe evitar que
elle o escarneça tambem a si... (_com ternura_) Mata-o! filho! mata-o!
LIBORIO
(_á parte_) Arreda! estou em braza!
ITELVINA
(_formalisada_) Dar-se-ha caso que o senhor, escravo de vãos prejuizos,
não queira attentar contra a vida d'elle sem expor a sua? Se é isso,
esteja descançado. Se Macario o matar, eu não lhe sobreviverei, nem
elle, por que morrerá ás minhas mãos; matal-o-ei, matal-o-ei, e depois
lá nos veremos... no ceu! (_Apontando-lhe para o ceu, bate-lhe com a
outra mão no hombro_).
LIBORIO
A senhora com toda a certeza está doida!
ITELVINA
Doida?
LIBORIO
Então a senhora quer que eu vendime o Macario por que elle não quiz
cazar comsigo... Tomára eu obrigal-o a cazar...
ITELVINA
Senhor! veja lá o que diz!
LIBORIO
Olhe, menina; isso que a senhora me propõe já Hermione o propoz a
Orestes em uma tragedia de Racine, e sabe o que fez a canalha da
Hermione, depois que o parvo do Orestes matou Pyrrho? Poz-se a chorar
por Pyrrho, e mandou o Orestes á fava. Aqui tem a gratidão das
mulheres...
ITELVINA
Por tanto, recuza?
LIBORIO
Redondissimamente. (_á parte_) Isto é que é o _chic_ da patifaria!
ITELVINA
Bem! Eu pedia-lhe a cabeça de Macario para salvar a sua... Você não
quer? não quer? não se falla mais n'isso.
LIBORIO
Isso que quer dizer... explique-se!
ITELVINA
Macario recuou deante dos laços indissoluveis; mas amava-me, estou certa
d'isso, e eu... ainda o amo.
LIBORIO
(_levantando os dois braços_) Que diabo!
ITELVINA
E visto que o senhor desculpa o proceder passado de Macario, terá de
desculpar tambem o futuro...
LIBORIO
(_agarrando-a pelos braços_) Mulher!... Ah! tu pensavas que...
ITELVINA
Largue-me!
LIBORIO
Amas Macario?
ITELVINA
Você magoa-me!
LIBORIO
Os indigenas do Mexico que é o que fazem ás mulheres que se parecem
comtigo?
ITELVINA
O senhor está-me a quebrar os braços...
LIBORIO
Póde ser; por que em Portugal, nós os homens, ao lado da lei, tambem
temos a força.
ITELVINA
Isso é uma covardia!
LIBORIO
Não sei se é; mas eu, se houvesse de matar alguem, não mataria o
Macario...
ITELVINA
Ai! (_Cahe de joelhos_).
LIBORIO
Olhe bem para mim, senhora! (_Ella quer morder-lhe a mão_) e não môrda!
Se cuidou que cazava com um cordeirinho, mude de opinião a meu respeito.
Este homem que se chama Liborio, nascido no Porto, no Poço das Patas n.º
610, é de per si só mais feroz que todos os leopardos do Mexico... Não
môrda, ouviu?
ITELVINA
Ai!
LIBORIO
Por emquanto, deixo-a viver; mas tenha juizo, muito juizo, ou dou-lhe a
minha palavra de honra que não tardarei a passar a segundas nupcias!
(_Deixa-a_).
ITELVINA
(_conserva-se um instante immovel, como humilhada de sua fraqueza;
relança á volta de si olhos furiosos, depois levanta-se de um pulo,
exclamando:_) Ah! a faca de mato! (_Corre para o gabinete da toillete_).
LIBORIO
Bem sei... (_Vae atraz d'ella, e fecha-lhe a porta por fóra logo que
ella entra_).
ITELVINA
(_fechada_) Abra, abra a porta!
LIBORIO
(_pegando do chapeo_) Medite, senhora, que eu passados tres dias, volto
cá. (_Sahe pelo fundo_).
ITELVINA
(_batendo na porta_) É infame, é abominavel! Snr. Liborio! Olhe que
quebro a porta. (_Pancadas cada vez mais fortes_) Abra-me a porta;
peço-lhe que me abra a porta por quem é! Oh! que vil, que indigno
procedimento!
SCENA IV
Itelvina (_fechada_) e Barnabé
BARNABÉ
(_entrando pelo fundo_) Ora aqui está! Em quanto eu estive aqui fechado,
o Braga vendeu a casa da Carriça... Tenho de procurar outra...
(_Itelvina bate á porta do gabinete. Barnabé que está perto, recua
assustado_) Que diabo é isto?
ITELVINA
Abra-me a porta!
BARNABÉ
A minha filha fechada! (_alto_) Tu que fazes ahi?
ITELVINA
Abra, meu pae, abra!
BARNABÉ
Mas como foi isto? (_Vae para abrir_).
ITELVINA
Foi meu marido... Abra que eu lhe contarei.
BARNABÉ
(_retirando-se_) Teu marido!... diabo! diabo! isso é mais serio...
ITELVINA
Então, abre?
BARNABÉ
Minha filha, um sôgro não deve intervir entre marido e mulher.
ITELVINA
Então não abre?
BARNABÉ
Procedo como fino politico... Mantenho-me na neutralidade, na não
intervenção.
ITELVINA
Mas eu suffoco!... (_Grando tropel dentro_).
BARNABÉ
Não suffocas, não... Isso passa!... (_á parte_) Ella arromba o
sobrado!... (_Sahe_).
ITELVINA
(_batendo sempre_) Meu pae! meu pae! Foi-se?... Socorram-me! Acudam-me!
SCENA V
Sebastiana e Itelvina (_Sebastiana entra pela direita, trazendo pratos,
talheres, pães e guardanapos_)
SEBASTIANA
A voz da senhora no gabinete de vestir... (_Pousa o que traz sobre o
marmore do fogão_). É a senhora?
ITELVINA
Abre, Sebastiana, abre a porta.
SEBASTIANA
Ahi vou, ahi vou. (_Abrindo_) Que foi isto?
ITELVINA
Péga! (_Dá uma bofetada em Sebastiana_).
SEBASTIANA
Ah! a senhora bate-me?
ITELVINA
(_percorrendo o theatro furiosa_) Ó raiva! ó furor!
SEBASTIANA
Se eu soubesse que estava fechada...
ITELVINA
Perdôa-me, perdôa-me, Sebastiana... É a colera, são os nervos...
(_Dá-lhe dinheiro_) Pega lá, guarda...
SEBASTIANA
Obrigado, minha senhora! (_á parte_) Ella é muito boasinha! (_Põe a meza
na jardineira_).
ITELVINA
(_cahindo n'uma cadeira á direita_) Tudo que me succede é incrivel! é
estupido! Este homem que eu julgava um choninhas, um maricas, um
fracalhão, agarrou-me, e prostrou-me supplicante! Elle furioso,
parecia-me até bonito! (_Voltando-se para Sebastiana que põe a meza_)
Que estás a fazer?
SEBASTIANA
Ponho a meza, senhora.
ITELVINA
Aqui?!
SEBASTIANA
A senhora esqueceu-se das ordens que me deu esta manhan?
ITELVINA
Ah! sim, sim, esta manhan... então ainda eu me preoccupava com
pieguices... Mas agora... (_Ouve-se a campainha_) Tocaram.
SEBASTIANA
Vou vêr. (_Sahe pelo fundo_).
ITELVINA
(_só_) Não póde ser meu pae nem meu marido... elles não tocavam. Se
fôsse elle... ah! talvez seja... Macario! Quem sabe se a minha presença,
despertando-lhe lembranças, acordou a sua paixão... Ah! se fôsse elle,
se fôsse elle...
SEBASTIANA
(_entrando pelo fundo. Traz uma garrafa, copos e um papel_) Senhora, é
um homem, enviado pelo snr. Macario, com este papel.
ITELVINA
(_pegando no papel com anciedade_) D'elle? dá cá, dá cá. (_Passa para a
direita, em quanto Sebastiana põe a garrafa e os copos sobre o gueridon.
Á parte_) Ah! não me enganei! Elle ama-me!... Triumpho, em fim!
SEBASTIANA
(_á parte_) Ella que terá?
ITELVINA
(_lendo_) «Anno do Nascimento de... 1885, aos 24 dias de... a
requerimento...» Hein? papel sellado! (_lendo_) «A requerimento do snr.
Macario dos Anjos, eu, official de justiça abaixo assignado, citei a
snr.ª D. Itelvina Barnabé para pagar a quantia de 64$460 réis de
porcellanas e crystaes quebrados, etc. etc. etc.» Ah!... (_Cahe em uma
cadeira á direita e fica silenciosa_).
SEBASTIANA
(_que tem continuado a pôr a meza, corre para ella_) Ai! meu Deus! a
senhora achou-se mal?
SCENA VI
Os mesmos e Barnabé
BARNABÉ
(_entrando cautamente pelo fundo e vendo Sebastiana que encobre a
senhora_) Sebastiana! A senhora ainda está no gabinete?
ITELVINA
(_indo para o pae_) Meu pae!
BARNABÉ
(_querendo safar-se_) Olha!...
ITELVINA
Venha cá!...
BARNABÉ
Eu volto logo.
ITELVINA
Fique, meu pae. Vae-te embora, Sebastiana.
SEBASTIANA
Sim, minha senhora. (_Sahe pelo fundo_).
BARNABÉ
Vou-te contar... Descobri outra quinta no Candal.
ITELVINA
Meu pae, eu volto para o Mexico.
BARNABÉ
Com teu homem?
ITELVINA
Já não tenho homem.
BARNABÉ
Não tens homem? Então Liborio o que é? Parece que tens razão... Elle
para homem parece-me muito atrazado... Tu lá sabes...
ITELVINA
Fujo de Portugal, das suas leis, do seu codigo, dos seus costumes
(_ironicamente_) e da sua justiça...
BARNABÉ
Mas, desgraçada, tu vaes encontrar a mesma coisa no Mexico.
ITELVINA
No Mexico?
BARNABÉ
Portugal não tarda a lá chegar com a sua influencia, com os seus
jornaes...
ITELVINA
Irei para a China.
BARNABÉ
Não sabes que Portugal está em Macáo! Basta lá estar o Camoens na gruta.
ITELVINA
Vou para o Japão.
BARNABÉ
Estão lá missionarios portuguezes... os jesuitas que tem um olho muito
fino...
ITELVINA
Irei para uma ilha deserta. (_Passa para a esquerda_).
BARNABÉ
Ah! sim! se achares uma... Ilhas desertas são hoje rarissimas... Não se
apanha meia...
ITELVINA
O pae vae comigo?
BARNABÉ
Eu!
ITELVINA
É indispensavel...
BARNABÉ
Nunca! Pede-me o que quizeres; mas viver só comtigo, isso, nunca!
ITELVINA
Não importa. Vou sosinha. (_Repassa para a direita_).
BARNABÉ
Filha!... juisinho, filha.
ITELVINA
Eu já não tenho pae... nem marido... nem familia. Parto! adeus! (_sahe
pela porta da direita_).
BARNABÉ
(_vendo-a sahir, depois diz tranquillamente_) Fallaram-me d'uma casinha
no Candal, e, se não fôr humida, tem muitas commodidades. Fiquei de me
encontrar com o agente ás cinco horas, e...
SCENA VII
Barnabé e Liborio
LIBORIO
(_entrando pelo fundo, sem vêr Barnabé, e olhando para a porta do
gabinete que está aberta_) Ah! já a soltaram! Sim... definitivamente é a
melhor resolução... (_Vendo Barnabé_) Olá! o senhor!
BARNABÉ
Eu ia sahir.
LIBORIO
Eu tambem parto.
BARNABÉ
E para onde vae?
LIBORIO
Isso é que eu não sei; sei que vou para muito longe. (_Passa á
esquerda_).
BARNABÉ
Muito longe?
LIBORIO
Se vir sua filha, diga-lhe que morri.
BARNABÉ
(_tranquillamente_) Está bem; direi.
LIBORIO
Diga-lhe que me matou Macario--dê-lhe esse regalão.
BARNABÉ
Está dito. Vá descançado.
LIBORIO
Vou arranjar a mala. (_Entra no gabinete_).
BARNABÉ
(_vê-o sahir e ata o seu monogolo_) É no Candal, suburbios de Villa Nova
de Gaya; visitarei os armazens. Gaya dizem que tem um castello feito por
um rei Mouro, e uma fonte celebre com uma agua muito fina, que seria a
melhor bebida do mundo, se não estivessem ali perto as garrafeiras de
1815. Logo ali ao pé está o convento da serra, um logar historico... É
um bello arranjo... com repuxo. (_Desapparece pelo fundo--A scena fica
vasia_).
SCENA VIII
Liborio e Itelvina
ITELVINA
(_entrando pela direita com uma malêta_) Creio que deixei aqui o meu
chaile e o meu chapeu (_Põe a malêta sobre a meza_).
LIBORIO
(_sahindo do gabinete com a mala_) Onde diabo deixei eu a minha _Guia de
viajantes_?
ITELVINA
(_achando o chaile e o chapeo sobre a cama_) Cá estão.
LIBORIO
(_achando a Guia_) Ella aqui está.
ITELVINA
(_parando junto d'elle_) Ah!... o senhor...
LIBORIO
(_surprehendido_) Ólé!... a senhora.
ITELVINA
Você parte?
LIBORIO
Parto.
ITELVINA
É boa! temos a mesma ideia!
LIBORIO
Tambem vae?
ITELVINA
Sim senhor... As ideas encontram-se.
LIBORIO
Muito bem; mas, embora se encontrem as ideas, é necessario que nós nos
desencontremos. Para onde vae?
ITELVINA
Para onde o senhor não fôr.
LIBORIO
Temos o mesmo itinerario. (_Assenta-se perto da jardineira, tendo a mala
sobre os joelhos cujas correias afivela, depois de lá ter mettido
pequenos objectos que tirou do marmore do fogão_).
ITELVINA
Eu vou para o sul.
LIBORIO
Paizes quentes... vae muito bem. N'esse cazo, tomarei o caminho de ferro
do norte.
ITELVINA
Ás mil maravilhas.
LIBORIO
Ora olhe... (_consulta o Guia_) Segue para Lisboa?
ITELVINA
Sigo no expresso.
LIBORIO
Ás 7 da tarde.
ITELVINA
Tão tarde!
LIBORIO
Vejamos a linha do norte. Quatro e quarenta e cinco... que zanga!
ITELVINA
D'aqui até lá, que se hade fazer?
LIBORIO
Uma ideia que o estomago me inspira. Estou em jejum. Jantarei antes de
partir.
ITELVINA
Na estação de Campanhã? Pois vá!... Eu faço o mesmo.
LIBORIO
(_a sahir com a mala_) Adeusinho, e estimo que coma com bom appetite.
ITELVINA
Da mesma sorte. (_Vão ambos a sahir pela porta do fundo, e param,
cedendo a passagem um ao outro cortezmente_). Faz favor.
LIBORIO
Queira passar, minha senhora...
SCENA IX
Os mesmos e Sebastiana
SEBASTIANA
Aqui está a sopa. (_Passa por deante de Liborio e colloca a terrina
sobre o gueridon_).
LIBORIO
A sopa!... Como cheira bem!
SEBASTIANA
Está uma delicia, meu senhor! (_sahe pelo fundo_).
ITELVINA
(_á parte_) Uma senhora sosinha n'um restaurante...
LIBORIO
(_aproximando-se da meza_) Que aromatica!...
ITELVINA
(_á parte_) O que eu devo fazer é deixar-me estar (_Depõe a malêta, o
chaile e o chapeo_).
LIBORIO
(_largando a mala_) Se eu tomasse um caldo...
ITELVINA
(_indo á jardineira, e achando Liborio a destapar a terrina_) Então
sempre se resolve?...
LIBORIO
Ah!... é que eu... como o outro que diz...
ITELVINA
Sim... eu tambem reflecti que jantar sosinha n'um restaurante...
Repara-se, não é verdade?
LIBORIO
(_pegando da mala e passando para a direita_) Tem razão e eu cedo-lhe a
sopa.
ITELVINA
Então o senhor... não come!
LIBORIO
Boa viagem. (_sahe pelo fundo_).
SCENA X
ITELVINA
(_só, parece muito agitada, e observa se Liborio não volta_) O tempo
deve estar entroviscado... Cá o sinto nos nervos! (_Senta-se á esquerda
da jardineira, e serve-se da sopa atabalhoadamente; come em silencio_)
Esta sopa é detestavel! e depois não tenho appetite nenhum! (_Arremessa
a colher_) Que é o que eu vou fazer a Lisboa? É uma tolice. Viajar, para
quê? Lisboa já eu conheço... Se eu fôsse para o norte... (_Erguendo-se
raivosa contra si_) Oh! Itelvina! tu és incrivel!... fazes coisas!... Eu
fui muito injusta... porque elle amava-me... Meu pae foi o causador de
tudo... Para que lhe disse elle... «Fez bem em matar Macario»? Oh! com
certeza, teria elle feito uma boa acção, e a minha maior injustiça foi
eu querer castigal-o por isso... Papel sellado!... que patife!...
LIBORIO
(_fóra_) Vae ahi á Batalha chamar o trem, depressa.
ITELVINA
É a voz d'elle!... tornou!...
SCENA XI
Itelvina e Liborio
LIBORIO
(_entrando pelo fundo_) Queira perdoar, minha senhora! Chove a cantaros;
hade consentir que eu espere o trem que mandei buscar.
ITELVINA
Póde esperar, e como está em jejum, e a sopa está excellente... se
quer...
LIBORIO
A sopa cheira bem... muito bem... Isso é verdade.
ITELVINA
Se não receia que o envenene...
LIBORIO
Oh!... (_reconsiderando_) Em fim... (_jovialmente_) visto que a senhora
tambem come...
ITELVINA
Então sente-se.
LIBORIO
Pois sim... Nada, não quero... Tenho visto muitas comedias em que
esposos zangados commettiam a imprudencia de comer juntos, e á sobremeza
tinham a desgraça de fazer as pazes... Eu não quero que a senhora se
persuada...
ITELVINA
Sem cerimonia... Não quer?
LIBORIO
Não duvido... mas peço licença para comer a minha sopa, longe, acolá,
sobre aquella meza (_Leva para a meza da direita o seu talher e prato; á
parte_) Antes quero isto.
ITELVINA
Á sua vontade... talvez estivesse mais seguro no páteo.
LIBORIO
Isso não, porque o vento me sacudiria a chuva sobre o prato. (_come_).
ITELVINA
(_comendo tambem_) Que triste tempo para viajar!...
LIBORIO
Não tanto assim... Em primeira classe vae-se agasalhado... Mas pergunto
eu: a senhora por que vae?
ITELVINA
Porque não quero estar no Porto.
LIBORIO
Mas, visto que eu me retiro, a senhora fique.
ITELVINA
Sosinha?
LIBORIO
Não: com seu pae e com o defunto Macario.
ITELVINA
Acha que é de bom gosto fazer-me troça?
LIBORIO
Pois não me disse ainda ha pouco que o amava?
ITELVINA
O senhor não me acreditou. Conhece-me bastante para saber que eu não sou
mulher que ame quem a ultraja... Quer beber? (_deita-lhe vinho no copo_)
Beba, ande. Ora vá!...
LIBORIO
(_erguendo-se_) Muito obrigado (_Vae pegar do seu copo de sobre a
jardineira e bebe_).
SCENA XII
Os mesmos e Sebastiana
SEBASTIANA
(_entrando pelo fundo com um prato_) Fil-a esperar, minha senhora: mas a
causa foi o senhor que me mandou buscar um trem (_a Liborio:_) Já lá
está.
LIBORIO
(_pousando o copo_) Ah! bem! (_saudando_) Minha senhora!
ITELVINA
(_a meia voz_) Deante da creada, não. (_alto_) Sáe, Sebastiana.
SEBASTIANA
(_pondo o prato sobre a jardineira_) Sim, minha senhora. (_Sahe pelo
fundo levantando a terrina e os pratos servidos_).
LIBORIO
Agora, se me dá licença... (_faz mensão de sahir_).
ITELVINA
Peço-lhe que se demore um momento... O meu fim não é fazer a tal scena
das pazes, descance. Mas, como não nos veremos mais é necessaria a
ultima explicação.
LIBORIO
De que serve isso?
ITELVINA
De mais a mais, sobra-lhe tempo para jantar aqui ou na estação.
(_Servindo-o_) Quer uma aza de perdigoto?
LIBORIO
O certo é que as emoçoens tem-me extenuado... Tomarei um pãosito; mas
deixemo-nos de explicações, se faz favor... (_Pega d'um prato e pão e
vae sentar-se á sua meza, a comer_).
ITELVINA
(_passados instantes_) Confesso que fui violenta, arrebatada; mas o
senhor julga-se innocente?
LIBORIO
De modo nenhum. Eu pratiquei o enorme e condemnavel crime de me
apresentar á senhora em fórma de carta a participar um enterro.
Confesso, contrito, a culpa. Se me levassem a uma policia correccional e
o juiz me perguntasse: «O snr. Liborio é réo?» Eu respondia: «Sou réo,
snr. juiz!»
ITELVINA
O senhor prestou-se a uma ridicula mistificação, uma fraude ultrajante,
odiosa, só com o fim de dilacerar uma mulher.
LIBORIO
Não foi isso.
ITELVINA
Então que foi?
LIBORIO
O caso é este. Macario tinha-me dito o diabo a quatro da senhora. Ora eu
tenho cá para mim que quanto mais mal se diz de uma mulher, mais se
deseja ser amado d'ella. A alma do homem é assim formada de estupidez e
capricho...
ITELVINA
Huum! (_Depois de um curto silencio_) Quer beber? (_Enche o copo_).
LIBORIO
(_erguendo-se_) Agradeço (_vae á jardineira_) Muito obrigado, querida
senhora! (_Bebe e torna a ir sentar-se, levando o copo_).
ITELVINA
(_tendo bebido_) Sempre o senhor me collocou n'uma situação bem
exquisita! Eu julgava-o o assassino de Macario; e, n'esta persuasão, o
meu dever qual era? que me cumpria fazer?
LIBORIO
Mandar chamar o chefe da policia.
ITELVINA
Eu conheco lá policias...
LIBORIO
Em vez d'isso, pensou lá comsigo: «Como é um scelerado, cazo com elle.
Se o mettesse na Relação, elle poderia fugir vestido de mulher; mas,
cazando com elle, é o mesmo que pôl-o na Penitenciaria, d'onde não se
foge facilmente.
ITELVINA
(_erguendo-se e vindo ao meio_) E isso é tão verdade que o senhor gosa a
liberdade de retirar-se quando quizer.
LIBORIO
Mas pergunto eu: tenho liberdade para offerecer a outra o nome que lhe
dei? Posso mentir, enganar... e mais nada. Com toda a certeza, heide
esquecêl-a; mas hade levar tempo... Não me fingo mais forte do que
sou... Esta manhan ainda eu a amava... Como os homens são, senhora!...
As mulheres, ás vezes, agradam pelos seus defeitos... e a senhora estava
na conta. A senhora chorava de raiva; e eu ao deixal-a, chorava
imbecilmente de saudade... d'amor! (_Ergue se_) Estupida confissão, mas
verdadeira!... (_Passa á esquerda_) Ah! Como os homens são bêstas!
Graças vos sejam dadas, Senhor! Isto acabou-se! (_Itelvina, sem lhe
responder, corre á janella que abre_).
ITELVINA
(_atirando dinheiro á rua_) Cocheiro, ahi tem 10 tostoens; vá-se embora.
LIBORIO
do peixe do barracão...
ITELVINA
Oh! isso seria horrivel! horrivel! (_Liborio entra pelo fundo_).
SCENA XVI
Os mesmos e Liborio
LIBORIO
(_com o porte-monnaie na mão_) Minha senhora, eu tinha aqui 12$000 réis.
Foi a senhora que lhe deitou o gatazio?
ITELVINA
Logo o saberá quando eu voltar (_Sahe_).
LIBORIO
Onde vae você?
ITELVINA
Rua de Miragaya n.º 1071. (_Sahe precipitadamente pelo fundo_).
LIBORIO
Que é? Rua de Miragaya n.º 1071! Quem lh'o diria? (_A Barnabé_) Foi o
senhor... Rua de Miragaya, é lá effectivamente (_Ouve-se fechar á chave
a porta do fundo_) Ella fecha-nos! e vae a casa d'elle! a casa d'elle!
(_Indo á porta da direita_) Por esta porta... (_Ouve-se o rodar da chave
que a fecha_) Fechada! fechada tambem! (_correndo á chaminé_)
Sebastiana! (_pucha pelo cordão da campainha_) Não ha campainha! está
quebrada a campainha!
BARNABÉ
E o Braga que me está esperando para assignar a escriptura!
LIBORIO
Eis-me encarcerado!
BARNABÉ
E eu!
LIBORIO
(_fóra de si, ameaçando Barnabé_) Ah! seu biltre! foi você a causa de
tudo isto! (_Atira-se a Barnabé, que procura fugir-lhe, aos encontroens
aos trastes. Liborio persegue-o vivamente. Cahe o panno, quando Barnabé
está apitando_).
FIM DO ACTO SEGUNDO
ACTO TERCEIRO
A mesma decoração.--Grande desarranjo.--Os moveis tombados, um colchão
está meio cahido para fóra do leito.
SCENA I
Liborio e Barnabé (_ao levantar do pano, Barnabé está sentado no
colchão, e Liborio, á direita sobre uma cadeira de braços, cahida.
Depois de instantes de silencio, Liborio levanta-se e vae á janella_).
LIBORIO
(_examinando a rua_) Nada, não vejo vir ninguem. Que horas são, snr.
Barnabé?
BARNABÉ
Outra vez... Depois do nosso combate... singular, já me perguntou isso
trez vezes.
LIBORIO
A quem heide eu perguntal-o? ao meu relogio? á minha pendula? Tudo aqui
está desmanchado (_á parte_) como a cabeça de minha mulher (_Levanta a
cadeira_).
BARNABÉ
Ha cinco minutos que eu lhe disse que eram 3 e 25; agora, por
consequencia, são trez e meia.
LIBORIO
(_passeando com grandes passos_) Ella sahiu ás duas horas... (_dirige-se
a Barnabé_) Como explica o senhor isto? Auzente á hora e meia! (_Arruma
os trastes_).
BARNABÉ
Não que d'aqui de Malmerendas a Miragaya são dois kilometros. Dê-lhe
tempo...
LIBORIO
Que lh'o dê? Ella toma o que quer! Fechar o pae e o marido para ir...
BARNABÉ
Minha filha é incapaz de tal...
LIBORIO
É capaz de tudo: é Mexicana, e basta.
BARNABÉ
Não o contrarío, para você não pegar de novo comigo. (_Levanta-se e põe
o colchão sobre o leito_).
LIBORIO
Ah! o senhor tem magnificas ideias! Que eu era pae! Esta só pelo diabo!
eu podia lá ser pae, homem!
BARNABÉ
E eu podia lá imaginar que o senhor depois de casado?... Emfim, o que eu
lhe disse era para o applacar...
LIBORIO
E para applacar minha mulher disse-lhe que o Macario era vivo. Foi isso?
BARNABÉ
Está claro; as minhas intençoens fôram sempre boas... eu não tive culpa,
se o senhor é um marido... distincto.
LIBORIO
Que horas são?
BARNABÉ
(_tirando o relogio pacientemente_) Trez e trinta e dous minutos. Outra
vez. O melhor é ficar com o relogio na mão, (_fica assobiando_) até o
senhor acertar o seu.
LIBORIO
O senhor assobia?
BARNABÉ
Então o senhor quer que eu chore? Deixe-me assobiar, homem! Ha paixoens
d'alma que não desafogam se não pelo assobio... situaçoens crueis em que
um homem sente a necessidade de estar sempre não só a assobiar, mas até
a apitar.
LIBORIO
Tem rasão. Quando se possue uma filha como a sua, e uma esposa como a
minha, todas as manifestaçoens do assobio e do apito são permittidas.
(_Barnabé continua a assobiar_) Tem rasão. Assobie á sua vontade... use
de todos os instrumentos de sôpro... Desabafe, snr. Barnabé, que eu faço
o mesmo. (_Assobia tambem. Ouve-se ruido de passos_). _Sio..._ escute...
BARNABÉ
Será?... (_rumor na fechadura_).
LIBORIO
É ella!
BARNABÉ
Prudencia, snr. Liborio, prudencia...
LIBORIO
(_sentando-se n'uma cadeira á esquerda, e pegando de um jornal de sobre
o fogão_) É ella... (_atira os pés para cima de uma cadeira_).
BARNABÉ
(_á parte_) Elles vão-se agatanhar!... se eu podesse tingar-me...
SCENA II
Os mesmos e Itelvina (_Abre-se a porta do fundo precipitadamente.
Itelvina entra muito agitada, fita o pae e o marido, tira o chaile e o
chapeu que atira sobre a cama; depois, desce, torna a fitar o marido e o
pae, e diz a Barnabé_):
ITELVINA
Meu pae! deixe-nos sós. (_Barnabé, sem responder, safa-se apressadamente
pelo fundo_).
SCENA III
Liborio e Itelvina (_Itelvina está momentos sem fallar, olhando para o
marido que a não encara; depois faz um gesto de impaciencia e diz:_)
ITELVINA
Vi Macario. Não estava só... Estava com uma creatura com um penteado de
estardalhaço, muito estapafurdio. Iam sentar-se á meza... e eu puxei
pela toalha e quebrei tudo... (_Movimento de Liborio, que logo se
riprime, e retoma a sua apparente tranquilidade_). Levantaram-se ambos e
avançavam para mim; eu fiquei de braços cruzados, serena, immovel,
encarando-os assim! Depois affastei-me lentamente, sem dar palavra, e
sahi! (_Silencio. Itelvina dá uns grandes passos_) Ah! o que são os
homens! o que são os homens! (_Torna para o marido_) Por que é que o
senhor me annunciou a morte d'elle? (_Silencio_) Eu sei-o, disse-m'o meu
pae... foi elle, esse miseravel que assim o quiz, não foi? O infame
Macario escarneceu o meu amor, ludibriou a minha angustia! Ah! é
incomprehensivel! é execravel! (_Pega da cadeira em que o marido tem os
pés e senta-se ao lado d'elle_) Como é que nós havemos de matar Macario?
LIBORIO
(_agitado, erguendo-se_) Que diz?
ITELVINA
(_fazendo-o sentar-se_) Ambos nós andamos mal, Liborio. Eu cuidei que tu
o matáras... Não se falle mais no passado... acabou-se... Agora,
unamo-nos para a vingança... Como é que se hade assassinar Macario?
LIBORIO
(_erguendo-se_) A senhora terá o diabo no corpo?
ITELVINA
Se estivessemos na minha patria, eu não o consultava; mas aqui, os
homens que fizeram as leis, reservam para si o monopolio da vingança, e
a honra de uma mulher nada importa, se não implica com a honra do homem.
Pois então, snr. Liborio, visto que me esposou, a minha honra é a sua.
Um pulha, um sacripanta escarneceu sua mulher... cumpre-lhe evitar que
elle o escarneça tambem a si... (_com ternura_) Mata-o! filho! mata-o!
LIBORIO
(_á parte_) Arreda! estou em braza!
ITELVINA
(_formalisada_) Dar-se-ha caso que o senhor, escravo de vãos prejuizos,
não queira attentar contra a vida d'elle sem expor a sua? Se é isso,
esteja descançado. Se Macario o matar, eu não lhe sobreviverei, nem
elle, por que morrerá ás minhas mãos; matal-o-ei, matal-o-ei, e depois
lá nos veremos... no ceu! (_Apontando-lhe para o ceu, bate-lhe com a
outra mão no hombro_).
LIBORIO
A senhora com toda a certeza está doida!
ITELVINA
Doida?
LIBORIO
Então a senhora quer que eu vendime o Macario por que elle não quiz
cazar comsigo... Tomára eu obrigal-o a cazar...
ITELVINA
Senhor! veja lá o que diz!
LIBORIO
Olhe, menina; isso que a senhora me propõe já Hermione o propoz a
Orestes em uma tragedia de Racine, e sabe o que fez a canalha da
Hermione, depois que o parvo do Orestes matou Pyrrho? Poz-se a chorar
por Pyrrho, e mandou o Orestes á fava. Aqui tem a gratidão das
mulheres...
ITELVINA
Por tanto, recuza?
LIBORIO
Redondissimamente. (_á parte_) Isto é que é o _chic_ da patifaria!
ITELVINA
Bem! Eu pedia-lhe a cabeça de Macario para salvar a sua... Você não
quer? não quer? não se falla mais n'isso.
LIBORIO
Isso que quer dizer... explique-se!
ITELVINA
Macario recuou deante dos laços indissoluveis; mas amava-me, estou certa
d'isso, e eu... ainda o amo.
LIBORIO
(_levantando os dois braços_) Que diabo!
ITELVINA
E visto que o senhor desculpa o proceder passado de Macario, terá de
desculpar tambem o futuro...
LIBORIO
(_agarrando-a pelos braços_) Mulher!... Ah! tu pensavas que...
ITELVINA
Largue-me!
LIBORIO
Amas Macario?
ITELVINA
Você magoa-me!
LIBORIO
Os indigenas do Mexico que é o que fazem ás mulheres que se parecem
comtigo?
ITELVINA
O senhor está-me a quebrar os braços...
LIBORIO
Póde ser; por que em Portugal, nós os homens, ao lado da lei, tambem
temos a força.
ITELVINA
Isso é uma covardia!
LIBORIO
Não sei se é; mas eu, se houvesse de matar alguem, não mataria o
Macario...
ITELVINA
Ai! (_Cahe de joelhos_).
LIBORIO
Olhe bem para mim, senhora! (_Ella quer morder-lhe a mão_) e não môrda!
Se cuidou que cazava com um cordeirinho, mude de opinião a meu respeito.
Este homem que se chama Liborio, nascido no Porto, no Poço das Patas n.º
610, é de per si só mais feroz que todos os leopardos do Mexico... Não
môrda, ouviu?
ITELVINA
Ai!
LIBORIO
Por emquanto, deixo-a viver; mas tenha juizo, muito juizo, ou dou-lhe a
minha palavra de honra que não tardarei a passar a segundas nupcias!
(_Deixa-a_).
ITELVINA
(_conserva-se um instante immovel, como humilhada de sua fraqueza;
relança á volta de si olhos furiosos, depois levanta-se de um pulo,
exclamando:_) Ah! a faca de mato! (_Corre para o gabinete da toillete_).
LIBORIO
Bem sei... (_Vae atraz d'ella, e fecha-lhe a porta por fóra logo que
ella entra_).
ITELVINA
(_fechada_) Abra, abra a porta!
LIBORIO
(_pegando do chapeo_) Medite, senhora, que eu passados tres dias, volto
cá. (_Sahe pelo fundo_).
ITELVINA
(_batendo na porta_) É infame, é abominavel! Snr. Liborio! Olhe que
quebro a porta. (_Pancadas cada vez mais fortes_) Abra-me a porta;
peço-lhe que me abra a porta por quem é! Oh! que vil, que indigno
procedimento!
SCENA IV
Itelvina (_fechada_) e Barnabé
BARNABÉ
(_entrando pelo fundo_) Ora aqui está! Em quanto eu estive aqui fechado,
o Braga vendeu a casa da Carriça... Tenho de procurar outra...
(_Itelvina bate á porta do gabinete. Barnabé que está perto, recua
assustado_) Que diabo é isto?
ITELVINA
Abra-me a porta!
BARNABÉ
A minha filha fechada! (_alto_) Tu que fazes ahi?
ITELVINA
Abra, meu pae, abra!
BARNABÉ
Mas como foi isto? (_Vae para abrir_).
ITELVINA
Foi meu marido... Abra que eu lhe contarei.
BARNABÉ
(_retirando-se_) Teu marido!... diabo! diabo! isso é mais serio...
ITELVINA
Então, abre?
BARNABÉ
Minha filha, um sôgro não deve intervir entre marido e mulher.
ITELVINA
Então não abre?
BARNABÉ
Procedo como fino politico... Mantenho-me na neutralidade, na não
intervenção.
ITELVINA
Mas eu suffoco!... (_Grando tropel dentro_).
BARNABÉ
Não suffocas, não... Isso passa!... (_á parte_) Ella arromba o
sobrado!... (_Sahe_).
ITELVINA
(_batendo sempre_) Meu pae! meu pae! Foi-se?... Socorram-me! Acudam-me!
SCENA V
Sebastiana e Itelvina (_Sebastiana entra pela direita, trazendo pratos,
talheres, pães e guardanapos_)
SEBASTIANA
A voz da senhora no gabinete de vestir... (_Pousa o que traz sobre o
marmore do fogão_). É a senhora?
ITELVINA
Abre, Sebastiana, abre a porta.
SEBASTIANA
Ahi vou, ahi vou. (_Abrindo_) Que foi isto?
ITELVINA
Péga! (_Dá uma bofetada em Sebastiana_).
SEBASTIANA
Ah! a senhora bate-me?
ITELVINA
(_percorrendo o theatro furiosa_) Ó raiva! ó furor!
SEBASTIANA
Se eu soubesse que estava fechada...
ITELVINA
Perdôa-me, perdôa-me, Sebastiana... É a colera, são os nervos...
(_Dá-lhe dinheiro_) Pega lá, guarda...
SEBASTIANA
Obrigado, minha senhora! (_á parte_) Ella é muito boasinha! (_Põe a meza
na jardineira_).
ITELVINA
(_cahindo n'uma cadeira á direita_) Tudo que me succede é incrivel! é
estupido! Este homem que eu julgava um choninhas, um maricas, um
fracalhão, agarrou-me, e prostrou-me supplicante! Elle furioso,
parecia-me até bonito! (_Voltando-se para Sebastiana que põe a meza_)
Que estás a fazer?
SEBASTIANA
Ponho a meza, senhora.
ITELVINA
Aqui?!
SEBASTIANA
A senhora esqueceu-se das ordens que me deu esta manhan?
ITELVINA
Ah! sim, sim, esta manhan... então ainda eu me preoccupava com
pieguices... Mas agora... (_Ouve-se a campainha_) Tocaram.
SEBASTIANA
Vou vêr. (_Sahe pelo fundo_).
ITELVINA
(_só_) Não póde ser meu pae nem meu marido... elles não tocavam. Se
fôsse elle... ah! talvez seja... Macario! Quem sabe se a minha presença,
despertando-lhe lembranças, acordou a sua paixão... Ah! se fôsse elle,
se fôsse elle...
SEBASTIANA
(_entrando pelo fundo. Traz uma garrafa, copos e um papel_) Senhora, é
um homem, enviado pelo snr. Macario, com este papel.
ITELVINA
(_pegando no papel com anciedade_) D'elle? dá cá, dá cá. (_Passa para a
direita, em quanto Sebastiana põe a garrafa e os copos sobre o gueridon.
Á parte_) Ah! não me enganei! Elle ama-me!... Triumpho, em fim!
SEBASTIANA
(_á parte_) Ella que terá?
ITELVINA
(_lendo_) «Anno do Nascimento de... 1885, aos 24 dias de... a
requerimento...» Hein? papel sellado! (_lendo_) «A requerimento do snr.
Macario dos Anjos, eu, official de justiça abaixo assignado, citei a
snr.ª D. Itelvina Barnabé para pagar a quantia de 64$460 réis de
porcellanas e crystaes quebrados, etc. etc. etc.» Ah!... (_Cahe em uma
cadeira á direita e fica silenciosa_).
SEBASTIANA
(_que tem continuado a pôr a meza, corre para ella_) Ai! meu Deus! a
senhora achou-se mal?
SCENA VI
Os mesmos e Barnabé
BARNABÉ
(_entrando cautamente pelo fundo e vendo Sebastiana que encobre a
senhora_) Sebastiana! A senhora ainda está no gabinete?
ITELVINA
(_indo para o pae_) Meu pae!
BARNABÉ
(_querendo safar-se_) Olha!...
ITELVINA
Venha cá!...
BARNABÉ
Eu volto logo.
ITELVINA
Fique, meu pae. Vae-te embora, Sebastiana.
SEBASTIANA
Sim, minha senhora. (_Sahe pelo fundo_).
BARNABÉ
Vou-te contar... Descobri outra quinta no Candal.
ITELVINA
Meu pae, eu volto para o Mexico.
BARNABÉ
Com teu homem?
ITELVINA
Já não tenho homem.
BARNABÉ
Não tens homem? Então Liborio o que é? Parece que tens razão... Elle
para homem parece-me muito atrazado... Tu lá sabes...
ITELVINA
Fujo de Portugal, das suas leis, do seu codigo, dos seus costumes
(_ironicamente_) e da sua justiça...
BARNABÉ
Mas, desgraçada, tu vaes encontrar a mesma coisa no Mexico.
ITELVINA
No Mexico?
BARNABÉ
Portugal não tarda a lá chegar com a sua influencia, com os seus
jornaes...
ITELVINA
Irei para a China.
BARNABÉ
Não sabes que Portugal está em Macáo! Basta lá estar o Camoens na gruta.
ITELVINA
Vou para o Japão.
BARNABÉ
Estão lá missionarios portuguezes... os jesuitas que tem um olho muito
fino...
ITELVINA
Irei para uma ilha deserta. (_Passa para a esquerda_).
BARNABÉ
Ah! sim! se achares uma... Ilhas desertas são hoje rarissimas... Não se
apanha meia...
ITELVINA
O pae vae comigo?
BARNABÉ
Eu!
ITELVINA
É indispensavel...
BARNABÉ
Nunca! Pede-me o que quizeres; mas viver só comtigo, isso, nunca!
ITELVINA
Não importa. Vou sosinha. (_Repassa para a direita_).
BARNABÉ
Filha!... juisinho, filha.
ITELVINA
Eu já não tenho pae... nem marido... nem familia. Parto! adeus! (_sahe
pela porta da direita_).
BARNABÉ
(_vendo-a sahir, depois diz tranquillamente_) Fallaram-me d'uma casinha
no Candal, e, se não fôr humida, tem muitas commodidades. Fiquei de me
encontrar com o agente ás cinco horas, e...
SCENA VII
Barnabé e Liborio
LIBORIO
(_entrando pelo fundo, sem vêr Barnabé, e olhando para a porta do
gabinete que está aberta_) Ah! já a soltaram! Sim... definitivamente é a
melhor resolução... (_Vendo Barnabé_) Olá! o senhor!
BARNABÉ
Eu ia sahir.
LIBORIO
Eu tambem parto.
BARNABÉ
E para onde vae?
LIBORIO
Isso é que eu não sei; sei que vou para muito longe. (_Passa á
esquerda_).
BARNABÉ
Muito longe?
LIBORIO
Se vir sua filha, diga-lhe que morri.
BARNABÉ
(_tranquillamente_) Está bem; direi.
LIBORIO
Diga-lhe que me matou Macario--dê-lhe esse regalão.
BARNABÉ
Está dito. Vá descançado.
LIBORIO
Vou arranjar a mala. (_Entra no gabinete_).
BARNABÉ
(_vê-o sahir e ata o seu monogolo_) É no Candal, suburbios de Villa Nova
de Gaya; visitarei os armazens. Gaya dizem que tem um castello feito por
um rei Mouro, e uma fonte celebre com uma agua muito fina, que seria a
melhor bebida do mundo, se não estivessem ali perto as garrafeiras de
1815. Logo ali ao pé está o convento da serra, um logar historico... É
um bello arranjo... com repuxo. (_Desapparece pelo fundo--A scena fica
vasia_).
SCENA VIII
Liborio e Itelvina
ITELVINA
(_entrando pela direita com uma malêta_) Creio que deixei aqui o meu
chaile e o meu chapeu (_Põe a malêta sobre a meza_).
LIBORIO
(_sahindo do gabinete com a mala_) Onde diabo deixei eu a minha _Guia de
viajantes_?
ITELVINA
(_achando o chaile e o chapeo sobre a cama_) Cá estão.
LIBORIO
(_achando a Guia_) Ella aqui está.
ITELVINA
(_parando junto d'elle_) Ah!... o senhor...
LIBORIO
(_surprehendido_) Ólé!... a senhora.
ITELVINA
Você parte?
LIBORIO
Parto.
ITELVINA
É boa! temos a mesma ideia!
LIBORIO
Tambem vae?
ITELVINA
Sim senhor... As ideas encontram-se.
LIBORIO
Muito bem; mas, embora se encontrem as ideas, é necessario que nós nos
desencontremos. Para onde vae?
ITELVINA
Para onde o senhor não fôr.
LIBORIO
Temos o mesmo itinerario. (_Assenta-se perto da jardineira, tendo a mala
sobre os joelhos cujas correias afivela, depois de lá ter mettido
pequenos objectos que tirou do marmore do fogão_).
ITELVINA
Eu vou para o sul.
LIBORIO
Paizes quentes... vae muito bem. N'esse cazo, tomarei o caminho de ferro
do norte.
ITELVINA
Ás mil maravilhas.
LIBORIO
Ora olhe... (_consulta o Guia_) Segue para Lisboa?
ITELVINA
Sigo no expresso.
LIBORIO
Ás 7 da tarde.
ITELVINA
Tão tarde!
LIBORIO
Vejamos a linha do norte. Quatro e quarenta e cinco... que zanga!
ITELVINA
D'aqui até lá, que se hade fazer?
LIBORIO
Uma ideia que o estomago me inspira. Estou em jejum. Jantarei antes de
partir.
ITELVINA
Na estação de Campanhã? Pois vá!... Eu faço o mesmo.
LIBORIO
(_a sahir com a mala_) Adeusinho, e estimo que coma com bom appetite.
ITELVINA
Da mesma sorte. (_Vão ambos a sahir pela porta do fundo, e param,
cedendo a passagem um ao outro cortezmente_). Faz favor.
LIBORIO
Queira passar, minha senhora...
SCENA IX
Os mesmos e Sebastiana
SEBASTIANA
Aqui está a sopa. (_Passa por deante de Liborio e colloca a terrina
sobre o gueridon_).
LIBORIO
A sopa!... Como cheira bem!
SEBASTIANA
Está uma delicia, meu senhor! (_sahe pelo fundo_).
ITELVINA
(_á parte_) Uma senhora sosinha n'um restaurante...
LIBORIO
(_aproximando-se da meza_) Que aromatica!...
ITELVINA
(_á parte_) O que eu devo fazer é deixar-me estar (_Depõe a malêta, o
chaile e o chapeo_).
LIBORIO
(_largando a mala_) Se eu tomasse um caldo...
ITELVINA
(_indo á jardineira, e achando Liborio a destapar a terrina_) Então
sempre se resolve?...
LIBORIO
Ah!... é que eu... como o outro que diz...
ITELVINA
Sim... eu tambem reflecti que jantar sosinha n'um restaurante...
Repara-se, não é verdade?
LIBORIO
(_pegando da mala e passando para a direita_) Tem razão e eu cedo-lhe a
sopa.
ITELVINA
Então o senhor... não come!
LIBORIO
Boa viagem. (_sahe pelo fundo_).
SCENA X
ITELVINA
(_só, parece muito agitada, e observa se Liborio não volta_) O tempo
deve estar entroviscado... Cá o sinto nos nervos! (_Senta-se á esquerda
da jardineira, e serve-se da sopa atabalhoadamente; come em silencio_)
Esta sopa é detestavel! e depois não tenho appetite nenhum! (_Arremessa
a colher_) Que é o que eu vou fazer a Lisboa? É uma tolice. Viajar, para
quê? Lisboa já eu conheço... Se eu fôsse para o norte... (_Erguendo-se
raivosa contra si_) Oh! Itelvina! tu és incrivel!... fazes coisas!... Eu
fui muito injusta... porque elle amava-me... Meu pae foi o causador de
tudo... Para que lhe disse elle... «Fez bem em matar Macario»? Oh! com
certeza, teria elle feito uma boa acção, e a minha maior injustiça foi
eu querer castigal-o por isso... Papel sellado!... que patife!...
LIBORIO
(_fóra_) Vae ahi á Batalha chamar o trem, depressa.
ITELVINA
É a voz d'elle!... tornou!...
SCENA XI
Itelvina e Liborio
LIBORIO
(_entrando pelo fundo_) Queira perdoar, minha senhora! Chove a cantaros;
hade consentir que eu espere o trem que mandei buscar.
ITELVINA
Póde esperar, e como está em jejum, e a sopa está excellente... se
quer...
LIBORIO
A sopa cheira bem... muito bem... Isso é verdade.
ITELVINA
Se não receia que o envenene...
LIBORIO
Oh!... (_reconsiderando_) Em fim... (_jovialmente_) visto que a senhora
tambem come...
ITELVINA
Então sente-se.
LIBORIO
Pois sim... Nada, não quero... Tenho visto muitas comedias em que
esposos zangados commettiam a imprudencia de comer juntos, e á sobremeza
tinham a desgraça de fazer as pazes... Eu não quero que a senhora se
persuada...
ITELVINA
Sem cerimonia... Não quer?
LIBORIO
Não duvido... mas peço licença para comer a minha sopa, longe, acolá,
sobre aquella meza (_Leva para a meza da direita o seu talher e prato; á
parte_) Antes quero isto.
ITELVINA
Á sua vontade... talvez estivesse mais seguro no páteo.
LIBORIO
Isso não, porque o vento me sacudiria a chuva sobre o prato. (_come_).
ITELVINA
(_comendo tambem_) Que triste tempo para viajar!...
LIBORIO
Não tanto assim... Em primeira classe vae-se agasalhado... Mas pergunto
eu: a senhora por que vae?
ITELVINA
Porque não quero estar no Porto.
LIBORIO
Mas, visto que eu me retiro, a senhora fique.
ITELVINA
Sosinha?
LIBORIO
Não: com seu pae e com o defunto Macario.
ITELVINA
Acha que é de bom gosto fazer-me troça?
LIBORIO
Pois não me disse ainda ha pouco que o amava?
ITELVINA
O senhor não me acreditou. Conhece-me bastante para saber que eu não sou
mulher que ame quem a ultraja... Quer beber? (_deita-lhe vinho no copo_)
Beba, ande. Ora vá!...
LIBORIO
(_erguendo-se_) Muito obrigado (_Vae pegar do seu copo de sobre a
jardineira e bebe_).
SCENA XII
Os mesmos e Sebastiana
SEBASTIANA
(_entrando pelo fundo com um prato_) Fil-a esperar, minha senhora: mas a
causa foi o senhor que me mandou buscar um trem (_a Liborio:_) Já lá
está.
LIBORIO
(_pousando o copo_) Ah! bem! (_saudando_) Minha senhora!
ITELVINA
(_a meia voz_) Deante da creada, não. (_alto_) Sáe, Sebastiana.
SEBASTIANA
(_pondo o prato sobre a jardineira_) Sim, minha senhora. (_Sahe pelo
fundo levantando a terrina e os pratos servidos_).
LIBORIO
Agora, se me dá licença... (_faz mensão de sahir_).
ITELVINA
Peço-lhe que se demore um momento... O meu fim não é fazer a tal scena
das pazes, descance. Mas, como não nos veremos mais é necessaria a
ultima explicação.
LIBORIO
De que serve isso?
ITELVINA
De mais a mais, sobra-lhe tempo para jantar aqui ou na estação.
(_Servindo-o_) Quer uma aza de perdigoto?
LIBORIO
O certo é que as emoçoens tem-me extenuado... Tomarei um pãosito; mas
deixemo-nos de explicações, se faz favor... (_Pega d'um prato e pão e
vae sentar-se á sua meza, a comer_).
ITELVINA
(_passados instantes_) Confesso que fui violenta, arrebatada; mas o
senhor julga-se innocente?
LIBORIO
De modo nenhum. Eu pratiquei o enorme e condemnavel crime de me
apresentar á senhora em fórma de carta a participar um enterro.
Confesso, contrito, a culpa. Se me levassem a uma policia correccional e
o juiz me perguntasse: «O snr. Liborio é réo?» Eu respondia: «Sou réo,
snr. juiz!»
ITELVINA
O senhor prestou-se a uma ridicula mistificação, uma fraude ultrajante,
odiosa, só com o fim de dilacerar uma mulher.
LIBORIO
Não foi isso.
ITELVINA
Então que foi?
LIBORIO
O caso é este. Macario tinha-me dito o diabo a quatro da senhora. Ora eu
tenho cá para mim que quanto mais mal se diz de uma mulher, mais se
deseja ser amado d'ella. A alma do homem é assim formada de estupidez e
capricho...
ITELVINA
Huum! (_Depois de um curto silencio_) Quer beber? (_Enche o copo_).
LIBORIO
(_erguendo-se_) Agradeço (_vae á jardineira_) Muito obrigado, querida
senhora! (_Bebe e torna a ir sentar-se, levando o copo_).
ITELVINA
(_tendo bebido_) Sempre o senhor me collocou n'uma situação bem
exquisita! Eu julgava-o o assassino de Macario; e, n'esta persuasão, o
meu dever qual era? que me cumpria fazer?
LIBORIO
Mandar chamar o chefe da policia.
ITELVINA
Eu conheco lá policias...
LIBORIO
Em vez d'isso, pensou lá comsigo: «Como é um scelerado, cazo com elle.
Se o mettesse na Relação, elle poderia fugir vestido de mulher; mas,
cazando com elle, é o mesmo que pôl-o na Penitenciaria, d'onde não se
foge facilmente.
ITELVINA
(_erguendo-se e vindo ao meio_) E isso é tão verdade que o senhor gosa a
liberdade de retirar-se quando quizer.
LIBORIO
Mas pergunto eu: tenho liberdade para offerecer a outra o nome que lhe
dei? Posso mentir, enganar... e mais nada. Com toda a certeza, heide
esquecêl-a; mas hade levar tempo... Não me fingo mais forte do que
sou... Esta manhan ainda eu a amava... Como os homens são, senhora!...
As mulheres, ás vezes, agradam pelos seus defeitos... e a senhora estava
na conta. A senhora chorava de raiva; e eu ao deixal-a, chorava
imbecilmente de saudade... d'amor! (_Ergue se_) Estupida confissão, mas
verdadeira!... (_Passa á esquerda_) Ah! Como os homens são bêstas!
Graças vos sejam dadas, Senhor! Isto acabou-se! (_Itelvina, sem lhe
responder, corre á janella que abre_).
ITELVINA
(_atirando dinheiro á rua_) Cocheiro, ahi tem 10 tostoens; vá-se embora.
LIBORIO
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