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Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 07 (de 12) - 2
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O chapeleiro, que não dava a filha sem mandar examinar por pessoa
competente os pergaminhos do pretendente, convenceu-se de que o alferes
era primo em segundo grau dos condes de Cavalleiros. Deu-lhe, por tanto,
a filha e sessenta mil cruzados.
D. Antonia, poucos annos depois, viuvou, sem ter filhos. Era bonita e
muito rica. Outros fidalgos se lhe offereceram em segundas nupcias; mas
a inconsolavel viuva nem recebia visitas nem respondia ás cartas.
A outra filha do chapeleiro maridára-se tambem fidalgamente; porém, o
marido, que aceitára o desigual enlace para resgatar os bens
hypothecados, nem resgatára os bens, nem perdoára á esposa ter-lhe dado
o abundante ouro com que elle alargou a área dos vicios. Esta senhora
tinha tres filhos. D. Antonia d'Eça pediu-lhe o mais velho, e desde logo
o considerou seu principal herdeiro.
O pequeno tinha oito annos quando veio para o Salgueiral, e orçava pelos
dezeseis quando foi ser nosso condiscipulo em grammatica latina. Aquelle
choramigar e scismar com a lingua de fóra, como tu observaste, eram o
resultado do amor extremoso com que a tia o creára. Ella não queria
largal-o de si; mas as raras pessoas que a visitavam arguiam-na de ser
causa a que seu sobrinho, embora rico, ficasse para alli tão estupido
como os seus criados.
Alvaro Cordeiro não era incapaz de aprender; mas resistia ás maneiras
quer brandas quer violentas do professor. Não havia pagina de livro que
não tivesse para elle uma cabeça de Medusa a carranquear-lhe.
Quando chegou aos vinte e dous annos, induzido pelas descripções da vida
airada que os estudantes levavam em Coimbra, disse á tia que se queria
doutorar. D. Antonia exultou, encheu-o de caricias e dinheiro, e
mandou-o com a sua ama secca, com o seu escudeiro e com o seu cavallo
para Coimbra.
As estouvanices de Alvaro deram brado entre 1851 e 1858. O dinheiro que
a tia lhe enviára fôra tanto que, a final, nem o extremado amor que lhe
tinha a impediu de se espantar e doer do abuso.
Findos seis annos de Coimbra, apresentou-se á tia dizendo que era doutor
em philosophia e direito. Logo em duas faculdades tão desirmãs! Pasmei
do reviramento e actividade d'aquella preguiçosa intelligencia!
Todos lhe chamavamos doutor, sem offender-lhe a modestia nem a
consciencia. Por muito tempo o julguei mais ou menos conscio das duas
faculdades; mas, acaso, um dia soube em Braga que o doutor do Salgueiral
não fizera, sequer, exame de latim.
Nada revelei aos meus patricios, nem a elle o esbulhei do grau de
bacharel. Era-me penoso magoal-o sem precisão, crear um inimigo, e abrir
occasião a que a boa tia, arrependida de o beneficiar, o desherdasse.
Pouco tempo se deteve por aqui. Logo que o inverno assomou com as
primeiras nevoas ao espinhaço dos outeiros, Alvaro pediu licença a D.
Antonia para ir a Lisboa requerer um emprego na diplomacia. A senhora
contrariou-lhe o intento, allegando que seu sobrinho não carecia de ser
empregado; mas elle replicou razoavelmente que as suas duas faculdades
deviam ser utilisadas no serviço da patria, e que, por meio da
diplomacia, lhe adviriam os lugares de maior honra no estado. D. Antonia
quiz ouvir o meu parecer a respeito da diplomacia. Fui conforme ao
intento do doutor, e approvei que seguisse essa carreira, por ser a que
mais se dispensava das duas faculdades em hypothese.
Foi Alvaro para Lisboa; e, volvidos quinze dias, deu parte a sua tia que
fôra nomeado addido á embaixada portugueza em Paris, primeiro degrau
para subir a ministro, onde esperava chegar em menos de tres annos. Esta
jubilosa carta concluia por estipular a sua tia a remessa mensal de
cincoenta libras, que tanto era necessario á decencia e ao luzimento
d'um diplomata em França.
Fui chamado a votar sobre a clausula das cincoenta libras. Ora, como eu
de antemão sabia que a ternissima senhora lhe daria cem, se elle as
pedisse, accedi á necessidade das cincoenta. Ella fingiu-se afflicta,
lastimou o vacuo do seu peculio, prophetisou, sem fé, a ruina da sua
casa, e encarregou-me de ir ao Porto arranjar banqueiro por onde se
transmittissem as mezadas.
Foi Alvaro Cordeiro de Magalhães para Paris, como tu e eu poderiamos ir,
se tivessemos tias parvoas, ricas e extremosas. Quem não soube da sua
partida foi o governo, que nunca tivera minima idéa d'este addido.
Perguntando eu mezes depois, em Braga, a um secretario de embaixada se
conhecia em Paris o addido Cordeiro de Magalhães, disse-me que conhecera
lá um Cordeiro de Magalhães addido sim, mas a uma _cocotte_, e que, a
julgar do abysmo pelo cairel, o pobre rapaz dentro em pouco estaria de
volta para a sua aldêa sem dinheiro nem honra.
Agora, um episodio que prende com esta historia. Um tio materno de D.
Antonia era capitão de infanteria, quando os francezes invadiram o
reino. Dizia-se que este militar entrára nas fileiras de Napoleão,
seguira o grande exercito e nunca mais voltára a Portugal, nem dera
noticias suas á familia.
D. Antonia escrevera ao sobrinho recommendando-lhe que indagasse em
França se existiriam descendentes de seu tio Geraldo de Carvalho, que já
era coronel, quando se expatriou com o exercito francez.
Respondeu Alvaro que seu tio morrera general em Waterloo; e mais nada,
quanto a descendentes. Toma tu nota d'esta digressão que ha de vir a
ponto frizar na historia. Já dormes?
--Essa pergunta hei de eu fazer ao leitor quando lhe repetir o teu
conto.
* * * * *
As cincoenta libras mensaes tinham subido a cem, quando D. Antonia, ao
cabo de dous annos, em apuro de paciencia, fez saber ao sobrinho que não
podia continuar a mezada.
O pseudo-addido, que já se dizia secretario de embaixada nas cartas á
tia, sahiu de Paris, trazendo comsigo a franceza, a quem amava com a
cegueira já descabida nos seus trinta e cinco annos, mas natural de um
coração mal compleicionado.
Chegou Alvaro ao Salgueiral, deixando a franceza no Porto.
A tia recebeu-o com a sua inalteravel ternura, e levemente o arguiu de
perdulario. Queixou-se elle de lhe ser cortada uma brilhante carreira.
D. Antonia consolou-o antepondo á vaidade de o vêr ministro o
contentamento de o ter comsigo. Alvaro contrafez o prazer de se sentir
tão querido, e nunca fôra tão amoravel para sua tia.
Esta senhora herdára da indole do pai a mania de se afidalgar. Muitas
vezes me pediu que lhe lêsse uns codices genealogicos, escriptos no
seculo XVII, relativos ás proezas dos avós de seu marido; e
coriscava-lhe então nos olhos o enthusiasmo, como se o inclito sangue
dos façanhosos Eças se lhe infiltrasse das arterias do chorado esposo.
Uma vez, contando-lhe eu que o filho de um socio de seu pai acabava de
ser agraciado com o baronato, D. Antonia, por entre gargalhadas de
sisudo espirito, revelou despeito, e talvez cubiça de ser ridicula como
o filho do socio de seu pai.
Não me espantei, pois, quando Alvaro Cordeiro me disse que ia a Lisboa
agenciar o titulo de viscondessa para sua tia. Dei os parabéns a D.
Antonia, persuadido de que o titulo seria negocio feito, desde que o
agente levava ordem franca para negociar a mercadoria.
Passadas algumas semanas, D. Antonia de Eça recebeu a participação de
que era agraciada por sua magestade, em attenção á illustre ascendencia
e serviços de seu marido, com o titulo de viscondessa do Salgueiral, em
uma vida.
Fui eu o encarregado de transmittir mil libras ao sobrinho para pagar os
direitos de mercê, luvas, etc.
Ora, seria uma offensa á tua critica dizer-te que Alvaro estava em
Cintra com a franceza, dissolvendo em prazeres as mil libras da
excellente creatura, e forjando cartas de aviso e alvarás de
viscondessa.
Fazia tristeza a pobre mulher! Só eu sabia que ella era enganada pelo
sobrinho, porque tive pessoa que procurasse informações na respectiva
secretaria. Todos a tratavam de viscondessa, e eu tambem. E o titulo
desconcertára-lhe por tal maneira o siso que, ás vezes, fallando-me do
marido defunto, chamava-lhe o _seu visconde_, tornando a graça
retroactiva uns bons vinte annos. O letreiro, que lêste na porta,
mandou-o ella gravar tambem no jazigo de familia, na baixella, nos
reposteiros da sala, que nunca os tivera; e então a corôa essa appareceu
mal pintada em tudo, desde os escabellos antigos do salão-de-espera até
aos portaes de todas as quintas.
Um dia, escreve-lhe o sobrinho de Lisboa, contando-lhe o seguinte: que,
ao sahir de Paris, encarregára o seu ministro de continuar indagações
ácerca dos descendentes de seu tio o general Geraldo de Carvalho, morto
na batalha de Waterloo; e acrescentava que a final o visconde de Paiva
descobrira em Saint-Nazaire uma neta do general, menina de muitas
prendas e virtudes, vivendo de uma prestação do estado, proposta ao
parlamento por Napoleão III. Continuava Alvaro pedindo licença á palerma
da velha para ir visitar sua prima, e offerecer-lhe em nome de sua tia
viscondessa passar um verão no bello Minho.
D. Antonia rejubilou com esta nova, e fez-me participante da sua
alegria. Que repugnancia eu senti em obtemperar a esta novissima
velhacaria de Alvaro! Mas eu sentia que o descobrir-lhe uma trapacice me
obrigava moralmente a descobrir-lhe as outras.
Entretanto--pensava eu--quem sabe? Póde ser que exista a neta do general
Geraldo. Porém, não seria acertado averiguar primeiro se existia
semelhante general?
Escrevi a um sabio de Braga perguntando-lhe se tinha noticia de tal nome
na historia militar de Napoleão I. Respondeu-me o sabio que consultára
miudamente a _Historia do consulado e do imperio_, e entre os generaes
vivos e mortos não se lhe deparára tal Geraldo, nem ainda entre os
officiaes subalternos; mas que, consultando homens de mais de oitenta
annos, de Braga, soubera que Geraldo, cunhado do chapeleiro, capitão de
infanteria, morrera na defeza de Badajoz em 1811.
Como quer que fosse, á volta de trinta dias, Alvaro Cordeiro estava no
Salgueiral com sua prima mademoiselle Cora de Carvalho, para quem D.
Antonia se mostrava infinitamente graciosa. Uma franceza velha
acompanhava a nova sob o titulo de aia, honestando assim a viagem do uma
menina solteira com seu primo.
Escuso talvez dizer-te que...
--A franceza era a _cocotte_--atalhei para acabar hesitações a respeito
da minha perspicacia.
--Mas uma rapariga diabolicamente bonita, com uns tregeitos sarcasticos,
que me pareceram a expressão de escarneo e zombaria d'aquella senhora
tão digna de menos ignobil sobrinho.
Era bonito ouvil-a fallar de seu pai, gentil-homem picardo, e de sua
mãi, que vinha a ser filha do general Geraldo de Carvalho. E o que mais
me espantava era a menina palavrear o portuguez menos mal, tendo
fallado, um mez antes, com o primeiro portuguez que encontrára em sua
vida!
D. Antonia brindou-a com parte de suas joias, foi com ella a Braga
mostral-a aos seus parentes; e tanto se lhe devotou que a mim me chegou
a dizer que não levaria a mal que seu sobrinho a desposasse.
Eu não pude então conter-me, que não exclamasse: «Deus nos livre!»
Ella instou por saber o motivo da exclamação involuntaria. Contentei-a
dizendo-lhe que as francezas não podiam afazer-se á vida campestre; a
que, a final, a snr.ª viscondessa viria a ficar sem o sobrinho, por a
esposa lh'o arrebatar para França.
* * * * *
Planeou-se uma visita ao Palacio de crystal, no Porto. A «viscondessa»
nunca tinha visto aquella bonita cousa. Eu tambem fui convidado.
Mandou-se fazer o jantar no restaurante do palacio.
Quando estavamos á mesa, e nas alturas da lingua grelhada, entrou um
grupo de francezes, rapazes esturdios, de cachimbo de espuma, e rosa de
Alexandria na lapella. Um d'elles, olhando a fito mademoiselle de
Carvalho, estacou; e ella, que de relance o vira, purpurejou-se até aos
lobulos das orelhas. Alvaro Cordeiro não foi estranho a esta scena muda,
por quanto, guinando entre os dous a vista inquieta, empallidecera.
Os francezes abancaram gargalhando e proferindo phrases que eu não
entendi. Apenas sentados, estralaram as rolhas do champagne, e a vozeria
gralheava em chascos faceis de perceber nos olhares esconsos que
dardejavam ao nosso grupo.
Alvaro, antes de concluido o jantar, pediu a conta. Observou-lhe a tia
que a sobremesa ainda não tinha chegado, e que ella queria pudim de
laranja e o seu chá.
N'este comenos, um dos francezes, galante rapaz, ergue-se da mesa, vem
defronte de nós com um copo de vinho, e solta uma trovoada de palavras,
com um ar mixto de zombaria e seriedade, as quaes eu, ignorante da
lingua franceza, quando francezes a fallam, não percebi; mas as ultimas
proferidas muito de espaço, entendi claramente: _A ta santé, Cora Pearl!
Je felicite le beau Portugal et le beau portugais! Voilà un bijou de la
corruption française que leur y manquait!_
--E Alvaro que fez?--atalhei eu.
--Alvaro que fez? o que eu fiz. Olhou para o francez como se elle
estivesse representando um monologo. Lá na mesa d'elles as gargalhadas
eram estridentes...
--E a franceza?
--Levantou-se com a soberania de rainha da sua especie, e fez um gesto
de retirada a Alvaro.
--E D. Antonia?
--Pasmou, abrindo a bocca tumida de feijão carrapato, e jogando com os
olhos pelas caras dos circumstantes.
--E tu?
--Eu estava a traduzir. Sahimos todos silenciosos, e entramos no hotel
Francfort. N'essa mesma noite, partimos para o Salgueiral. Alvaro
explicou a sua tia o incidente:--aquelle francez amára sua prima que o
desprezára; e o infame, que a perseguira desde Saint-Nazaire, vendo-a
alli, a insultára. Ouvi estas explicações, e achei-as plausiveis; mas as
que me deram depois no Porto foi que o francez havia sido uma das
ludibriadas victimas de Cora Pearl, a qual tambem era uma das mais
despejadas e absorventes devassas de Paris.
* * * * *
D'ahi a poucos dias, a hospeda da «viscondessa» mostrou-se enojada da
aldêa, e fallou em retirar-se para França. A carinhosa _tia_ pediu-lhe
que ficasse até ao inverno; ella, porém, não pôde disfarçar o seu fastio
tanto da aldêa como do amante. A meu vêr, a cobardia de Alvaro, na scena
do Palacio, devia encher-lhe a medida do tedio. Chegou-lhe a nostalgia
dos cafés e dos bosques. Não havia demovel-a.
Era justo que o primo a acompanhasse a Saint-Nazaire. A tia forneceu-o
de dinheiro abundante para seis mezes de ausencia, recommendando-lhe
que, se encontrasse o francez, o mandasse ao diabo, e não tivesse
testilhas com tão malcreado homem. Bem se via que o sangue ardente dos
Eças não se transfundira no corpo burguezmente pacato d'esta senhora,
nem Alvaro Cordeiro desmentia os pacificos pundonores do avô chapeleiro.
Ha seis mezes que Alvaro foi para França, e por lá está.
D. Antonia adoeceu ha quinze dias, e morreu antes de hontem, legando
todos os seus haveres, que montam a cem contos de reis, a seu sobrinho,
e as preciosas joias a sua sobrinha Cora de Carvalho, neta de seu tio o
general Gonçalo de Carvalho.
Que conclues d'esta historia?
--Que ha infames felizes, e que é preciso acreditar no inferno de
além-mundo.
--Eu não tiro essa conclusão assim absoluta. Infames são aquelles que
convertem a sua perversidade em desgraça alheia. Alvaro Cordeiro logrou
sordidamente a sua honrada tia; mas, logo que ella morreu na ignorancia
do seu logro, a responsabilidade do sobrinho é menor do que seria, se
lhe tivesse feito chorar uma lagrima. Pelo contrario, fêl-a viscondessa,
e deu-lhe a consolação de ter um tio general que morreu bravamente em
Waterloo.
CONCLUSÃO
Alvaro Cordeiro de Magalhães está hoje na sua quinta do Salgueiral,
casado com uma senhora de casa muito illustre, e pai de algumas crianças
educadas religiosamente. Nos letreiros que diziam viscondessa, subtrahiu
as tres ultimas letras; mas é visconde a valer. Fez uma economia na
fundição dos caracteres. Ao meu amigo abbade, seu commensal e confidente
unico, diz elle que a sanguesuga que lhe defecára o sangue da podridão
original e dos vicios da educação, fôra Cora Pearl.
* * * * *
Esta Circe de illustres cerdos ainda hoje exercita as mesmas funcções
depurantes em Paris. Houve, todavia, uns apopleticos de ouro que ella
vampirisou até os matar exangues. Se succede uma sanguesuga
introduzir-se na larynge, é mister recorrer á bronchotomia--á incisão da
parte anterior do pescoço; mas o mais ordinario nestes lances é morrer o
doente. As bichas da natureza de Cora Pearl, quando se mettem na alma de
um homem, deixam um só recurso: a operação do suicidio. Felizes aquelles
que, á imitação de Alvaro Cordeiro, apenas foram sangrados!
É a sorte que eu desejo aos meus leitores plethoricos.
[1] O rebanho de ovelhas, fato de cabras, e manada de gado bovino
chama-se em algumas partes do Minho _mundice_, talvez corrupção de
_immundicia_.
BIBLIOGRAPHIA
(Pedro Ivo--Pedro de Amorim Vianna--Alberto Pimentel--Visconde de
Castilho--Pinho Leal).
PEDRO IVO. _Contos._ Porto, 1874.--Formoso livro! Dir-se-hia que Julio
Diniz, o viajor eterno das regiões luminosas, deixou na intelligencia e
no coração dos que mais de perto o conheceram e amaram, as serenas
imagens das suas visões, as maviosas figuras dos seus quadros, a suave
indulgencia e conformidade com que elle florejava de nenuphares os
pantanos da vida.
Quando eu li alguns d'estes contos no _Commercio do Porto_, e lhes não
conhecia author, nem acreditava na authenticidade de Pedro Ivo, disse
sempre commigo: «É a continuação do gentil espirito de Gomes Coelho. Ha
de haver muita gente que passe inadvertidamente por estes graciosos
romancinhos, reveladores de poderosa vocação; porém, quando o author
chegar á meridiana da sua gloria, estes contos--aurora d'um dia
esplendido--serão relidos com renovado prazer.»
Reli hoje os que já lêra, e os que vem de primeira mão no livro. No
correr aprazivel da leitura, quando senti o alvoroço das lagrimas, ao
passo que as paginas commoventes eram singelissimas, saudei o amavel
romancista, e dei-lhe o culto sincero e raro da minha admiração, como
daria um beijo na face de meu filho, se elle um dia legitimasse a minha
vaidade de pai com um livro d'este valor. Invejo estas santas alegrias
ao snr. José Carlos Lopes.
* * * * *
_Memorias de M.me Lafarge, traducção de PEDRO DE AMORIM VIANNA, com um
estudo moral ácerca da authora, escripto pelo traductor._ Porto, 1874. 2
tom.--Ouço dizer que a sciencia do snr. Amorim Vianna se prolonga até ás
fronteiras do hebraico. O que elle desconhece em linguistica é os
idiomas francez e portuguez. Isto, porém, não impede que o digno
professor de mathematica saiba tudo mais. Eu duvidaria da anthenticidade
do traductor, se o estylo do _Estudo_ não apparelhasse tão consoante com
o da versão: tamanha é a disparidade de um nome celebrado nas letras com
esses dous volumes imperdoaveis a um alumno de lingua franceza.
Versão e _Estudo_ ajoujam-se frizantemente. Quanto á primeira, se algum
incredulo me quizer obrigar pela palavra, demonstrarei que rara é a
pagina em que os erros não orcem pelas linhas,--erros de interpretação
franceza e de grammatica portugueza.
M.me Lafarge escrevia com a sublimidade e correcção classica de Jules
Janin. Desfigurada pelo traductor, dir-se-ha que a franceza escrevia
francez como o snr. Amorim escreve portuguez.
Pelo que respeita ao presumido _Estudo moral_, o que d'ahi se deprehende
é que Lafarge foi ladra e envenenadora porque lia romances. O snr.
Amorim, no processo de seu estirado estudo, revela farta leitura de
romances; e todavia, os seus costumes são exemplares, penso eu. Verdade
é que o insigne professor declara que Méry lhe faz nauseas, e que a
reputação de Balzac se deve _á corrupção do seculo, ao rebaixamento dos
espiritos, e desfalecimento dos brios no publico_ (pag. 176). E que
_Balzac se fanatisou pelo crime desenhando-o com o nome de Vautrin,
etc._ Conta que Lafarge tivera _mil pretendentes á sua mão depois de
condemnada e presa_; e explica este fanatismo por ser ella o _producto
das más paixões da época_.
Se Méry faz nauseas ao snr. Pedro de Amorim, quer-me parece que o author
da _Guerra do Nizam_, não preferiria o perfume... litterario do snr.
Amorim aos aromas das florestas indianas. Balzac, posto em pedestal de
corrupção para ser admirado, é um deploravel paradoxo que eu teria pejo
de vêr na minha lingua, se o snr. Amorim Vianna escrevesse
lusitanamente. Que, ao menos, estes absurdos se não possam tirar a limpo
d'entre locuções mascavadas.
Que Lafarge tivesse _mil pretendentes á sua mão, porque era mau producto
das más paixões da época_, é phantasia do snr. Amorim. Um ou outro poeta
lhe fez versos, sem lhe pedir a mão; houve um enthusiasta que lhe propoz
a fuga do carcere; e presume-se que um dos seus advogados casaria com
ella, provada a sua innocencia, que esteve indecisa entre a ignorancia
de tres medicos e a sciencia de Orphila.
Isto sommado não dá mil pretendentes; não chegamos sequer a liquidar um.
A estas hyperboles são atreitos os sabios enfronhados na derramada
florecencia dos idiomas do Oriente.
Por concomitancia de crimes, o snr. Amorim lembra-se da virtuosa duqueza
de Praslin assassinada pelo marido. Espanta-se das nobilissimas cartas
da duqueza, em que brilham elevados sentimentos de amor conjugal, e
acrescenta: _Custa a crêr que em classe tão depravada se dê tão grande
virtude; que uma fidalga possa escrever com tanta alma._
O cheiro de inepcia, que recende d'este dizer, chega a despontar a
iniquidade da injuria. Uma fidalga a escrever honrados sentimentos de
esposa e mãi é cousa que não lhe entra na democracia do snr. Amorim.
Vamos vêr d'onde vem ao figado do professor estes extravasamentos de
succo bilioso contra a classe heraldica.
Derivando nas torrenciaes enchentes da corrupção de França, o snr.
Amorim poja nas praias portuenses, e acha isto cá peor; clama contra os
escandalos d'esta cidade, e nomeia-os para se não parecer com Jeremias e
com os outros que iam botar discursos vagos debaixo dos muros de
Jerusalem e Ninive.
Dá pregão de que um sujeito, acompanhado de outros de boas familias,
perpetrára um rapto; que o juiz indecentemente os não condemnou; que a
mãi da raptada, movida por sentimentos de christã, perdoára ao raptor,
cuja mãi afflicta lhe pedia a liberdade do filho. Assenta que estes dous
sentimentos santos, em tal caso, tinham alguma cousa impia; e, em summa,
que os réos deviam ser condemnados, a despeito das lagrimas de uma, e do
perdão da outra mãi.
Averiguado o rastilho d'este velho odio, apura-se que o snr. Amorim
ainda não pôde perdoar aos cumplices do raptor, porque um dia, na sua
aula, o desauthoraram.
Depois, descamba para a vida particular do raptor, e narra com a mais
rustica indelicadeza a miseranda catastrophe que abriu uma sepultura,
sobre a qual a caridade e a justiça estendem o seu manto misericordioso.
Os adros e cemiterios ruraes tem uma grade que defende o ingresso aos
esfossadores de sepulturas. Não se podem levar estes empeços a todos os
remexedores de cinzas, que são o residuo de enormes incendios, cinzas
sagradas pelas dôres que as reduziram a isso.
O snr. Amorim espanta-se que Vieira de Castro _ainda depois de morto
conserve o favor popular_.
Ás doridas paginas que se escreveram a favor d'esse grande infeliz,
chama o snr. Amorim, _lôas_. E cita ao proposito as jogralidades do
_Puff_ de Scribe, e diz que a _unica moeda corrente é a da peta_.
Impropera de consciencia larga o eminente orador, porque _elle elevou ao
pinaculo da virtude um homem rico, só porque se mostrou caridoso depois
de morto. Todos applaudiram o panegyrico e com tudo ninguem ignorava a
vida do elogiado_.
Allude ao conde de Ferreira. Isto quando não seja indecencia, é
ingratidão. O snr. Amorim Vianna devia lembrar-se que, sem o legado do
conde de Ferreira, não se estaria a esta hora martellando no hospital de
alienados na Cruz da Regaleira. E eu, á vista do exposto, receio que o
author do _Estudo moral_ ácerca da Lafarge esteja no caso, como outros
mais sisudos, de aproveitar os favores d'aquelle estabelecimento.
* * * * *
_O Livro das flôres_ (legendas da vida da rainha santa), _por ALBERTO
PIMENTEL_. Lisboa, 1874.--Não é livro para mysticos peculiarmente. É um
ramilhete de lendas mais formosas que authenticas enfeitando paginas de
historia vernaculamente escriptas. Guiou-se da mão dos chronistas o snr.
Pimentel; porém, quando as moutas das flôres lhe esmaltavam o caminho,
parava a colhel-as, e tecia com ellas nova corôa á memoria da dulcissima
rainha, mensageira do céo, entre inimigos descaroados. Lê-se muito a
sabôr este livro, e aproveitam-se na leitura, como estudo, os lances
capitaes do reinado de D. Diniz, e a selecta linguagem respigada entre
as rudezas das chronicas antigas.
O snr. Alberto Pimentel sabe a sua lingua como raros, e ha de escrevel-a
com primor dos que melhormente a sabem, e de quem vamos aprendendo todos
os que não viemos a este mundo com fadario de burros, não desfazendo em
ninguem.
* * * * *
_Theatro de Molière. Quinta tentativa. O Misanthropo, comedia em 5
actos, versão liberrima, pelo snr. VISCONDE DE CASTILHO._ Lisboa,
1874.--Ainda não pude affazer-me á convenção de que estou lendo Molière
quando estudo estas chamadas versões _liberrimas_. Seria preciso que, a
intervallos, o torneio da dicção peregrina, a allusão ethnographica, o
particular relevo da nacionalidade franceza me trasladasse ao tempo de
Luiz XIV e ao meio das condições especiaes de vida em que Molière
photographou os seus grupos. Estas mui de siso chamadas
_nacionalisações_ renovam-se tão portuguezas do fecundante engenho do
nosso poeta, derivam tão affins da graça e donaire lusitanos de Gil
Vicente, Ferreira e Antonio Prestes, que não posso interpor aos antigos
mestres e ao mestre, em que todos os passados rebrilham, a inspiração
forasteira de Molière.
O _Misanthropo_ é outro livro que o snr. visconde enfileira na
bibliotheca das nossas riquezas litterarias. Estes cinco dramas hão de
crear maior numero de affectos e affeiçoados á lingua patria que toda a
grave e ponderosa communidade de classicos, inculcados nas
chrestomathias. Não havia meio de amaciar as asperezas do estudo da
lingua, senão este de offerecer á juventude negligente o fructo em cabaz
de flôres.
Depois de Molière, o valente pulso de Castilho vai medir-se com o
formidavel Shakspeare. O _Sonho d'uma noite de S. João_, editorado pela
activissima casa Chardron, já está no prelo. Seguir-se-ha _A
tempestade_. Seguir-se-hão as juvenis glorias de um talento que
reflorece cada anno afim de que o cantor da _Primavera_ não sinta na
quadra final que um anno lhe passou sem flôres. Abençoado sejas da
posteridade com o amor que te consagram os teus discipulos, mestre
generoso que tanto mais nos amas quanto nos liberalisas as riquezas do
teu espirito!
* * * * *
_Portugal antigo e moderno, diccionario heraldico, geographico,
estatistico, chorographico, archeologico, historico, biographico e
etymologico, etc., por AUGUSTO SOARES DE AZEVEDO BARBOSA DE PINHO LEAL._
Lisboa, 1874.--Estão publicados dous tomos e algumas cadernetas,
abrangendo as letras A--F. As pessoas que estudam e avaliam a natureza
do trabalho arido e ingrato a que o snr. Pinho Leal dedicou o maior
numero dos seus annos, sabem aquilatar o merito d'aquella obra de
tamanho fôlego. Para essas pessoas as imperfeições de tal escripto não
lhe desluzem o merito nem esfriam o reconhecimento que se lhe deve. Quem
compulsou as obras do mesmo genero anteriormente publicadas e
apreciadissimas no mercado, agradece ao laborioso archeologo a grande
melhoria do seu trabalho, e ao benemerito editor o alento raro com que o
tirou a lume. Já vi arguido o snr. Leal de inexacto em miudezas
topographicas, sem lhe descontarem que elle aceitou as noticias
divulgadas em livros que os censores não haviam previamente corrigido
competente os pergaminhos do pretendente, convenceu-se de que o alferes
era primo em segundo grau dos condes de Cavalleiros. Deu-lhe, por tanto,
a filha e sessenta mil cruzados.
D. Antonia, poucos annos depois, viuvou, sem ter filhos. Era bonita e
muito rica. Outros fidalgos se lhe offereceram em segundas nupcias; mas
a inconsolavel viuva nem recebia visitas nem respondia ás cartas.
A outra filha do chapeleiro maridára-se tambem fidalgamente; porém, o
marido, que aceitára o desigual enlace para resgatar os bens
hypothecados, nem resgatára os bens, nem perdoára á esposa ter-lhe dado
o abundante ouro com que elle alargou a área dos vicios. Esta senhora
tinha tres filhos. D. Antonia d'Eça pediu-lhe o mais velho, e desde logo
o considerou seu principal herdeiro.
O pequeno tinha oito annos quando veio para o Salgueiral, e orçava pelos
dezeseis quando foi ser nosso condiscipulo em grammatica latina. Aquelle
choramigar e scismar com a lingua de fóra, como tu observaste, eram o
resultado do amor extremoso com que a tia o creára. Ella não queria
largal-o de si; mas as raras pessoas que a visitavam arguiam-na de ser
causa a que seu sobrinho, embora rico, ficasse para alli tão estupido
como os seus criados.
Alvaro Cordeiro não era incapaz de aprender; mas resistia ás maneiras
quer brandas quer violentas do professor. Não havia pagina de livro que
não tivesse para elle uma cabeça de Medusa a carranquear-lhe.
Quando chegou aos vinte e dous annos, induzido pelas descripções da vida
airada que os estudantes levavam em Coimbra, disse á tia que se queria
doutorar. D. Antonia exultou, encheu-o de caricias e dinheiro, e
mandou-o com a sua ama secca, com o seu escudeiro e com o seu cavallo
para Coimbra.
As estouvanices de Alvaro deram brado entre 1851 e 1858. O dinheiro que
a tia lhe enviára fôra tanto que, a final, nem o extremado amor que lhe
tinha a impediu de se espantar e doer do abuso.
Findos seis annos de Coimbra, apresentou-se á tia dizendo que era doutor
em philosophia e direito. Logo em duas faculdades tão desirmãs! Pasmei
do reviramento e actividade d'aquella preguiçosa intelligencia!
Todos lhe chamavamos doutor, sem offender-lhe a modestia nem a
consciencia. Por muito tempo o julguei mais ou menos conscio das duas
faculdades; mas, acaso, um dia soube em Braga que o doutor do Salgueiral
não fizera, sequer, exame de latim.
Nada revelei aos meus patricios, nem a elle o esbulhei do grau de
bacharel. Era-me penoso magoal-o sem precisão, crear um inimigo, e abrir
occasião a que a boa tia, arrependida de o beneficiar, o desherdasse.
Pouco tempo se deteve por aqui. Logo que o inverno assomou com as
primeiras nevoas ao espinhaço dos outeiros, Alvaro pediu licença a D.
Antonia para ir a Lisboa requerer um emprego na diplomacia. A senhora
contrariou-lhe o intento, allegando que seu sobrinho não carecia de ser
empregado; mas elle replicou razoavelmente que as suas duas faculdades
deviam ser utilisadas no serviço da patria, e que, por meio da
diplomacia, lhe adviriam os lugares de maior honra no estado. D. Antonia
quiz ouvir o meu parecer a respeito da diplomacia. Fui conforme ao
intento do doutor, e approvei que seguisse essa carreira, por ser a que
mais se dispensava das duas faculdades em hypothese.
Foi Alvaro para Lisboa; e, volvidos quinze dias, deu parte a sua tia que
fôra nomeado addido á embaixada portugueza em Paris, primeiro degrau
para subir a ministro, onde esperava chegar em menos de tres annos. Esta
jubilosa carta concluia por estipular a sua tia a remessa mensal de
cincoenta libras, que tanto era necessario á decencia e ao luzimento
d'um diplomata em França.
Fui chamado a votar sobre a clausula das cincoenta libras. Ora, como eu
de antemão sabia que a ternissima senhora lhe daria cem, se elle as
pedisse, accedi á necessidade das cincoenta. Ella fingiu-se afflicta,
lastimou o vacuo do seu peculio, prophetisou, sem fé, a ruina da sua
casa, e encarregou-me de ir ao Porto arranjar banqueiro por onde se
transmittissem as mezadas.
Foi Alvaro Cordeiro de Magalhães para Paris, como tu e eu poderiamos ir,
se tivessemos tias parvoas, ricas e extremosas. Quem não soube da sua
partida foi o governo, que nunca tivera minima idéa d'este addido.
Perguntando eu mezes depois, em Braga, a um secretario de embaixada se
conhecia em Paris o addido Cordeiro de Magalhães, disse-me que conhecera
lá um Cordeiro de Magalhães addido sim, mas a uma _cocotte_, e que, a
julgar do abysmo pelo cairel, o pobre rapaz dentro em pouco estaria de
volta para a sua aldêa sem dinheiro nem honra.
Agora, um episodio que prende com esta historia. Um tio materno de D.
Antonia era capitão de infanteria, quando os francezes invadiram o
reino. Dizia-se que este militar entrára nas fileiras de Napoleão,
seguira o grande exercito e nunca mais voltára a Portugal, nem dera
noticias suas á familia.
D. Antonia escrevera ao sobrinho recommendando-lhe que indagasse em
França se existiriam descendentes de seu tio Geraldo de Carvalho, que já
era coronel, quando se expatriou com o exercito francez.
Respondeu Alvaro que seu tio morrera general em Waterloo; e mais nada,
quanto a descendentes. Toma tu nota d'esta digressão que ha de vir a
ponto frizar na historia. Já dormes?
--Essa pergunta hei de eu fazer ao leitor quando lhe repetir o teu
conto.
* * * * *
As cincoenta libras mensaes tinham subido a cem, quando D. Antonia, ao
cabo de dous annos, em apuro de paciencia, fez saber ao sobrinho que não
podia continuar a mezada.
O pseudo-addido, que já se dizia secretario de embaixada nas cartas á
tia, sahiu de Paris, trazendo comsigo a franceza, a quem amava com a
cegueira já descabida nos seus trinta e cinco annos, mas natural de um
coração mal compleicionado.
Chegou Alvaro ao Salgueiral, deixando a franceza no Porto.
A tia recebeu-o com a sua inalteravel ternura, e levemente o arguiu de
perdulario. Queixou-se elle de lhe ser cortada uma brilhante carreira.
D. Antonia consolou-o antepondo á vaidade de o vêr ministro o
contentamento de o ter comsigo. Alvaro contrafez o prazer de se sentir
tão querido, e nunca fôra tão amoravel para sua tia.
Esta senhora herdára da indole do pai a mania de se afidalgar. Muitas
vezes me pediu que lhe lêsse uns codices genealogicos, escriptos no
seculo XVII, relativos ás proezas dos avós de seu marido; e
coriscava-lhe então nos olhos o enthusiasmo, como se o inclito sangue
dos façanhosos Eças se lhe infiltrasse das arterias do chorado esposo.
Uma vez, contando-lhe eu que o filho de um socio de seu pai acabava de
ser agraciado com o baronato, D. Antonia, por entre gargalhadas de
sisudo espirito, revelou despeito, e talvez cubiça de ser ridicula como
o filho do socio de seu pai.
Não me espantei, pois, quando Alvaro Cordeiro me disse que ia a Lisboa
agenciar o titulo de viscondessa para sua tia. Dei os parabéns a D.
Antonia, persuadido de que o titulo seria negocio feito, desde que o
agente levava ordem franca para negociar a mercadoria.
Passadas algumas semanas, D. Antonia de Eça recebeu a participação de
que era agraciada por sua magestade, em attenção á illustre ascendencia
e serviços de seu marido, com o titulo de viscondessa do Salgueiral, em
uma vida.
Fui eu o encarregado de transmittir mil libras ao sobrinho para pagar os
direitos de mercê, luvas, etc.
Ora, seria uma offensa á tua critica dizer-te que Alvaro estava em
Cintra com a franceza, dissolvendo em prazeres as mil libras da
excellente creatura, e forjando cartas de aviso e alvarás de
viscondessa.
Fazia tristeza a pobre mulher! Só eu sabia que ella era enganada pelo
sobrinho, porque tive pessoa que procurasse informações na respectiva
secretaria. Todos a tratavam de viscondessa, e eu tambem. E o titulo
desconcertára-lhe por tal maneira o siso que, ás vezes, fallando-me do
marido defunto, chamava-lhe o _seu visconde_, tornando a graça
retroactiva uns bons vinte annos. O letreiro, que lêste na porta,
mandou-o ella gravar tambem no jazigo de familia, na baixella, nos
reposteiros da sala, que nunca os tivera; e então a corôa essa appareceu
mal pintada em tudo, desde os escabellos antigos do salão-de-espera até
aos portaes de todas as quintas.
Um dia, escreve-lhe o sobrinho de Lisboa, contando-lhe o seguinte: que,
ao sahir de Paris, encarregára o seu ministro de continuar indagações
ácerca dos descendentes de seu tio o general Geraldo de Carvalho, morto
na batalha de Waterloo; e acrescentava que a final o visconde de Paiva
descobrira em Saint-Nazaire uma neta do general, menina de muitas
prendas e virtudes, vivendo de uma prestação do estado, proposta ao
parlamento por Napoleão III. Continuava Alvaro pedindo licença á palerma
da velha para ir visitar sua prima, e offerecer-lhe em nome de sua tia
viscondessa passar um verão no bello Minho.
D. Antonia rejubilou com esta nova, e fez-me participante da sua
alegria. Que repugnancia eu senti em obtemperar a esta novissima
velhacaria de Alvaro! Mas eu sentia que o descobrir-lhe uma trapacice me
obrigava moralmente a descobrir-lhe as outras.
Entretanto--pensava eu--quem sabe? Póde ser que exista a neta do general
Geraldo. Porém, não seria acertado averiguar primeiro se existia
semelhante general?
Escrevi a um sabio de Braga perguntando-lhe se tinha noticia de tal nome
na historia militar de Napoleão I. Respondeu-me o sabio que consultára
miudamente a _Historia do consulado e do imperio_, e entre os generaes
vivos e mortos não se lhe deparára tal Geraldo, nem ainda entre os
officiaes subalternos; mas que, consultando homens de mais de oitenta
annos, de Braga, soubera que Geraldo, cunhado do chapeleiro, capitão de
infanteria, morrera na defeza de Badajoz em 1811.
Como quer que fosse, á volta de trinta dias, Alvaro Cordeiro estava no
Salgueiral com sua prima mademoiselle Cora de Carvalho, para quem D.
Antonia se mostrava infinitamente graciosa. Uma franceza velha
acompanhava a nova sob o titulo de aia, honestando assim a viagem do uma
menina solteira com seu primo.
Escuso talvez dizer-te que...
--A franceza era a _cocotte_--atalhei para acabar hesitações a respeito
da minha perspicacia.
--Mas uma rapariga diabolicamente bonita, com uns tregeitos sarcasticos,
que me pareceram a expressão de escarneo e zombaria d'aquella senhora
tão digna de menos ignobil sobrinho.
Era bonito ouvil-a fallar de seu pai, gentil-homem picardo, e de sua
mãi, que vinha a ser filha do general Geraldo de Carvalho. E o que mais
me espantava era a menina palavrear o portuguez menos mal, tendo
fallado, um mez antes, com o primeiro portuguez que encontrára em sua
vida!
D. Antonia brindou-a com parte de suas joias, foi com ella a Braga
mostral-a aos seus parentes; e tanto se lhe devotou que a mim me chegou
a dizer que não levaria a mal que seu sobrinho a desposasse.
Eu não pude então conter-me, que não exclamasse: «Deus nos livre!»
Ella instou por saber o motivo da exclamação involuntaria. Contentei-a
dizendo-lhe que as francezas não podiam afazer-se á vida campestre; a
que, a final, a snr.ª viscondessa viria a ficar sem o sobrinho, por a
esposa lh'o arrebatar para França.
* * * * *
Planeou-se uma visita ao Palacio de crystal, no Porto. A «viscondessa»
nunca tinha visto aquella bonita cousa. Eu tambem fui convidado.
Mandou-se fazer o jantar no restaurante do palacio.
Quando estavamos á mesa, e nas alturas da lingua grelhada, entrou um
grupo de francezes, rapazes esturdios, de cachimbo de espuma, e rosa de
Alexandria na lapella. Um d'elles, olhando a fito mademoiselle de
Carvalho, estacou; e ella, que de relance o vira, purpurejou-se até aos
lobulos das orelhas. Alvaro Cordeiro não foi estranho a esta scena muda,
por quanto, guinando entre os dous a vista inquieta, empallidecera.
Os francezes abancaram gargalhando e proferindo phrases que eu não
entendi. Apenas sentados, estralaram as rolhas do champagne, e a vozeria
gralheava em chascos faceis de perceber nos olhares esconsos que
dardejavam ao nosso grupo.
Alvaro, antes de concluido o jantar, pediu a conta. Observou-lhe a tia
que a sobremesa ainda não tinha chegado, e que ella queria pudim de
laranja e o seu chá.
N'este comenos, um dos francezes, galante rapaz, ergue-se da mesa, vem
defronte de nós com um copo de vinho, e solta uma trovoada de palavras,
com um ar mixto de zombaria e seriedade, as quaes eu, ignorante da
lingua franceza, quando francezes a fallam, não percebi; mas as ultimas
proferidas muito de espaço, entendi claramente: _A ta santé, Cora Pearl!
Je felicite le beau Portugal et le beau portugais! Voilà un bijou de la
corruption française que leur y manquait!_
--E Alvaro que fez?--atalhei eu.
--Alvaro que fez? o que eu fiz. Olhou para o francez como se elle
estivesse representando um monologo. Lá na mesa d'elles as gargalhadas
eram estridentes...
--E a franceza?
--Levantou-se com a soberania de rainha da sua especie, e fez um gesto
de retirada a Alvaro.
--E D. Antonia?
--Pasmou, abrindo a bocca tumida de feijão carrapato, e jogando com os
olhos pelas caras dos circumstantes.
--E tu?
--Eu estava a traduzir. Sahimos todos silenciosos, e entramos no hotel
Francfort. N'essa mesma noite, partimos para o Salgueiral. Alvaro
explicou a sua tia o incidente:--aquelle francez amára sua prima que o
desprezára; e o infame, que a perseguira desde Saint-Nazaire, vendo-a
alli, a insultára. Ouvi estas explicações, e achei-as plausiveis; mas as
que me deram depois no Porto foi que o francez havia sido uma das
ludibriadas victimas de Cora Pearl, a qual tambem era uma das mais
despejadas e absorventes devassas de Paris.
* * * * *
D'ahi a poucos dias, a hospeda da «viscondessa» mostrou-se enojada da
aldêa, e fallou em retirar-se para França. A carinhosa _tia_ pediu-lhe
que ficasse até ao inverno; ella, porém, não pôde disfarçar o seu fastio
tanto da aldêa como do amante. A meu vêr, a cobardia de Alvaro, na scena
do Palacio, devia encher-lhe a medida do tedio. Chegou-lhe a nostalgia
dos cafés e dos bosques. Não havia demovel-a.
Era justo que o primo a acompanhasse a Saint-Nazaire. A tia forneceu-o
de dinheiro abundante para seis mezes de ausencia, recommendando-lhe
que, se encontrasse o francez, o mandasse ao diabo, e não tivesse
testilhas com tão malcreado homem. Bem se via que o sangue ardente dos
Eças não se transfundira no corpo burguezmente pacato d'esta senhora,
nem Alvaro Cordeiro desmentia os pacificos pundonores do avô chapeleiro.
Ha seis mezes que Alvaro foi para França, e por lá está.
D. Antonia adoeceu ha quinze dias, e morreu antes de hontem, legando
todos os seus haveres, que montam a cem contos de reis, a seu sobrinho,
e as preciosas joias a sua sobrinha Cora de Carvalho, neta de seu tio o
general Gonçalo de Carvalho.
Que conclues d'esta historia?
--Que ha infames felizes, e que é preciso acreditar no inferno de
além-mundo.
--Eu não tiro essa conclusão assim absoluta. Infames são aquelles que
convertem a sua perversidade em desgraça alheia. Alvaro Cordeiro logrou
sordidamente a sua honrada tia; mas, logo que ella morreu na ignorancia
do seu logro, a responsabilidade do sobrinho é menor do que seria, se
lhe tivesse feito chorar uma lagrima. Pelo contrario, fêl-a viscondessa,
e deu-lhe a consolação de ter um tio general que morreu bravamente em
Waterloo.
CONCLUSÃO
Alvaro Cordeiro de Magalhães está hoje na sua quinta do Salgueiral,
casado com uma senhora de casa muito illustre, e pai de algumas crianças
educadas religiosamente. Nos letreiros que diziam viscondessa, subtrahiu
as tres ultimas letras; mas é visconde a valer. Fez uma economia na
fundição dos caracteres. Ao meu amigo abbade, seu commensal e confidente
unico, diz elle que a sanguesuga que lhe defecára o sangue da podridão
original e dos vicios da educação, fôra Cora Pearl.
* * * * *
Esta Circe de illustres cerdos ainda hoje exercita as mesmas funcções
depurantes em Paris. Houve, todavia, uns apopleticos de ouro que ella
vampirisou até os matar exangues. Se succede uma sanguesuga
introduzir-se na larynge, é mister recorrer á bronchotomia--á incisão da
parte anterior do pescoço; mas o mais ordinario nestes lances é morrer o
doente. As bichas da natureza de Cora Pearl, quando se mettem na alma de
um homem, deixam um só recurso: a operação do suicidio. Felizes aquelles
que, á imitação de Alvaro Cordeiro, apenas foram sangrados!
É a sorte que eu desejo aos meus leitores plethoricos.
[1] O rebanho de ovelhas, fato de cabras, e manada de gado bovino
chama-se em algumas partes do Minho _mundice_, talvez corrupção de
_immundicia_.
BIBLIOGRAPHIA
(Pedro Ivo--Pedro de Amorim Vianna--Alberto Pimentel--Visconde de
Castilho--Pinho Leal).
PEDRO IVO. _Contos._ Porto, 1874.--Formoso livro! Dir-se-hia que Julio
Diniz, o viajor eterno das regiões luminosas, deixou na intelligencia e
no coração dos que mais de perto o conheceram e amaram, as serenas
imagens das suas visões, as maviosas figuras dos seus quadros, a suave
indulgencia e conformidade com que elle florejava de nenuphares os
pantanos da vida.
Quando eu li alguns d'estes contos no _Commercio do Porto_, e lhes não
conhecia author, nem acreditava na authenticidade de Pedro Ivo, disse
sempre commigo: «É a continuação do gentil espirito de Gomes Coelho. Ha
de haver muita gente que passe inadvertidamente por estes graciosos
romancinhos, reveladores de poderosa vocação; porém, quando o author
chegar á meridiana da sua gloria, estes contos--aurora d'um dia
esplendido--serão relidos com renovado prazer.»
Reli hoje os que já lêra, e os que vem de primeira mão no livro. No
correr aprazivel da leitura, quando senti o alvoroço das lagrimas, ao
passo que as paginas commoventes eram singelissimas, saudei o amavel
romancista, e dei-lhe o culto sincero e raro da minha admiração, como
daria um beijo na face de meu filho, se elle um dia legitimasse a minha
vaidade de pai com um livro d'este valor. Invejo estas santas alegrias
ao snr. José Carlos Lopes.
* * * * *
_Memorias de M.me Lafarge, traducção de PEDRO DE AMORIM VIANNA, com um
estudo moral ácerca da authora, escripto pelo traductor._ Porto, 1874. 2
tom.--Ouço dizer que a sciencia do snr. Amorim Vianna se prolonga até ás
fronteiras do hebraico. O que elle desconhece em linguistica é os
idiomas francez e portuguez. Isto, porém, não impede que o digno
professor de mathematica saiba tudo mais. Eu duvidaria da anthenticidade
do traductor, se o estylo do _Estudo_ não apparelhasse tão consoante com
o da versão: tamanha é a disparidade de um nome celebrado nas letras com
esses dous volumes imperdoaveis a um alumno de lingua franceza.
Versão e _Estudo_ ajoujam-se frizantemente. Quanto á primeira, se algum
incredulo me quizer obrigar pela palavra, demonstrarei que rara é a
pagina em que os erros não orcem pelas linhas,--erros de interpretação
franceza e de grammatica portugueza.
M.me Lafarge escrevia com a sublimidade e correcção classica de Jules
Janin. Desfigurada pelo traductor, dir-se-ha que a franceza escrevia
francez como o snr. Amorim escreve portuguez.
Pelo que respeita ao presumido _Estudo moral_, o que d'ahi se deprehende
é que Lafarge foi ladra e envenenadora porque lia romances. O snr.
Amorim, no processo de seu estirado estudo, revela farta leitura de
romances; e todavia, os seus costumes são exemplares, penso eu. Verdade
é que o insigne professor declara que Méry lhe faz nauseas, e que a
reputação de Balzac se deve _á corrupção do seculo, ao rebaixamento dos
espiritos, e desfalecimento dos brios no publico_ (pag. 176). E que
_Balzac se fanatisou pelo crime desenhando-o com o nome de Vautrin,
etc._ Conta que Lafarge tivera _mil pretendentes á sua mão depois de
condemnada e presa_; e explica este fanatismo por ser ella o _producto
das más paixões da época_.
Se Méry faz nauseas ao snr. Pedro de Amorim, quer-me parece que o author
da _Guerra do Nizam_, não preferiria o perfume... litterario do snr.
Amorim aos aromas das florestas indianas. Balzac, posto em pedestal de
corrupção para ser admirado, é um deploravel paradoxo que eu teria pejo
de vêr na minha lingua, se o snr. Amorim Vianna escrevesse
lusitanamente. Que, ao menos, estes absurdos se não possam tirar a limpo
d'entre locuções mascavadas.
Que Lafarge tivesse _mil pretendentes á sua mão, porque era mau producto
das más paixões da época_, é phantasia do snr. Amorim. Um ou outro poeta
lhe fez versos, sem lhe pedir a mão; houve um enthusiasta que lhe propoz
a fuga do carcere; e presume-se que um dos seus advogados casaria com
ella, provada a sua innocencia, que esteve indecisa entre a ignorancia
de tres medicos e a sciencia de Orphila.
Isto sommado não dá mil pretendentes; não chegamos sequer a liquidar um.
A estas hyperboles são atreitos os sabios enfronhados na derramada
florecencia dos idiomas do Oriente.
Por concomitancia de crimes, o snr. Amorim lembra-se da virtuosa duqueza
de Praslin assassinada pelo marido. Espanta-se das nobilissimas cartas
da duqueza, em que brilham elevados sentimentos de amor conjugal, e
acrescenta: _Custa a crêr que em classe tão depravada se dê tão grande
virtude; que uma fidalga possa escrever com tanta alma._
O cheiro de inepcia, que recende d'este dizer, chega a despontar a
iniquidade da injuria. Uma fidalga a escrever honrados sentimentos de
esposa e mãi é cousa que não lhe entra na democracia do snr. Amorim.
Vamos vêr d'onde vem ao figado do professor estes extravasamentos de
succo bilioso contra a classe heraldica.
Derivando nas torrenciaes enchentes da corrupção de França, o snr.
Amorim poja nas praias portuenses, e acha isto cá peor; clama contra os
escandalos d'esta cidade, e nomeia-os para se não parecer com Jeremias e
com os outros que iam botar discursos vagos debaixo dos muros de
Jerusalem e Ninive.
Dá pregão de que um sujeito, acompanhado de outros de boas familias,
perpetrára um rapto; que o juiz indecentemente os não condemnou; que a
mãi da raptada, movida por sentimentos de christã, perdoára ao raptor,
cuja mãi afflicta lhe pedia a liberdade do filho. Assenta que estes dous
sentimentos santos, em tal caso, tinham alguma cousa impia; e, em summa,
que os réos deviam ser condemnados, a despeito das lagrimas de uma, e do
perdão da outra mãi.
Averiguado o rastilho d'este velho odio, apura-se que o snr. Amorim
ainda não pôde perdoar aos cumplices do raptor, porque um dia, na sua
aula, o desauthoraram.
Depois, descamba para a vida particular do raptor, e narra com a mais
rustica indelicadeza a miseranda catastrophe que abriu uma sepultura,
sobre a qual a caridade e a justiça estendem o seu manto misericordioso.
Os adros e cemiterios ruraes tem uma grade que defende o ingresso aos
esfossadores de sepulturas. Não se podem levar estes empeços a todos os
remexedores de cinzas, que são o residuo de enormes incendios, cinzas
sagradas pelas dôres que as reduziram a isso.
O snr. Amorim espanta-se que Vieira de Castro _ainda depois de morto
conserve o favor popular_.
Ás doridas paginas que se escreveram a favor d'esse grande infeliz,
chama o snr. Amorim, _lôas_. E cita ao proposito as jogralidades do
_Puff_ de Scribe, e diz que a _unica moeda corrente é a da peta_.
Impropera de consciencia larga o eminente orador, porque _elle elevou ao
pinaculo da virtude um homem rico, só porque se mostrou caridoso depois
de morto. Todos applaudiram o panegyrico e com tudo ninguem ignorava a
vida do elogiado_.
Allude ao conde de Ferreira. Isto quando não seja indecencia, é
ingratidão. O snr. Amorim Vianna devia lembrar-se que, sem o legado do
conde de Ferreira, não se estaria a esta hora martellando no hospital de
alienados na Cruz da Regaleira. E eu, á vista do exposto, receio que o
author do _Estudo moral_ ácerca da Lafarge esteja no caso, como outros
mais sisudos, de aproveitar os favores d'aquelle estabelecimento.
* * * * *
_O Livro das flôres_ (legendas da vida da rainha santa), _por ALBERTO
PIMENTEL_. Lisboa, 1874.--Não é livro para mysticos peculiarmente. É um
ramilhete de lendas mais formosas que authenticas enfeitando paginas de
historia vernaculamente escriptas. Guiou-se da mão dos chronistas o snr.
Pimentel; porém, quando as moutas das flôres lhe esmaltavam o caminho,
parava a colhel-as, e tecia com ellas nova corôa á memoria da dulcissima
rainha, mensageira do céo, entre inimigos descaroados. Lê-se muito a
sabôr este livro, e aproveitam-se na leitura, como estudo, os lances
capitaes do reinado de D. Diniz, e a selecta linguagem respigada entre
as rudezas das chronicas antigas.
O snr. Alberto Pimentel sabe a sua lingua como raros, e ha de escrevel-a
com primor dos que melhormente a sabem, e de quem vamos aprendendo todos
os que não viemos a este mundo com fadario de burros, não desfazendo em
ninguem.
* * * * *
_Theatro de Molière. Quinta tentativa. O Misanthropo, comedia em 5
actos, versão liberrima, pelo snr. VISCONDE DE CASTILHO._ Lisboa,
1874.--Ainda não pude affazer-me á convenção de que estou lendo Molière
quando estudo estas chamadas versões _liberrimas_. Seria preciso que, a
intervallos, o torneio da dicção peregrina, a allusão ethnographica, o
particular relevo da nacionalidade franceza me trasladasse ao tempo de
Luiz XIV e ao meio das condições especiaes de vida em que Molière
photographou os seus grupos. Estas mui de siso chamadas
_nacionalisações_ renovam-se tão portuguezas do fecundante engenho do
nosso poeta, derivam tão affins da graça e donaire lusitanos de Gil
Vicente, Ferreira e Antonio Prestes, que não posso interpor aos antigos
mestres e ao mestre, em que todos os passados rebrilham, a inspiração
forasteira de Molière.
O _Misanthropo_ é outro livro que o snr. visconde enfileira na
bibliotheca das nossas riquezas litterarias. Estes cinco dramas hão de
crear maior numero de affectos e affeiçoados á lingua patria que toda a
grave e ponderosa communidade de classicos, inculcados nas
chrestomathias. Não havia meio de amaciar as asperezas do estudo da
lingua, senão este de offerecer á juventude negligente o fructo em cabaz
de flôres.
Depois de Molière, o valente pulso de Castilho vai medir-se com o
formidavel Shakspeare. O _Sonho d'uma noite de S. João_, editorado pela
activissima casa Chardron, já está no prelo. Seguir-se-ha _A
tempestade_. Seguir-se-hão as juvenis glorias de um talento que
reflorece cada anno afim de que o cantor da _Primavera_ não sinta na
quadra final que um anno lhe passou sem flôres. Abençoado sejas da
posteridade com o amor que te consagram os teus discipulos, mestre
generoso que tanto mais nos amas quanto nos liberalisas as riquezas do
teu espirito!
* * * * *
_Portugal antigo e moderno, diccionario heraldico, geographico,
estatistico, chorographico, archeologico, historico, biographico e
etymologico, etc., por AUGUSTO SOARES DE AZEVEDO BARBOSA DE PINHO LEAL._
Lisboa, 1874.--Estão publicados dous tomos e algumas cadernetas,
abrangendo as letras A--F. As pessoas que estudam e avaliam a natureza
do trabalho arido e ingrato a que o snr. Pinho Leal dedicou o maior
numero dos seus annos, sabem aquilatar o merito d'aquella obra de
tamanho fôlego. Para essas pessoas as imperfeições de tal escripto não
lhe desluzem o merito nem esfriam o reconhecimento que se lhe deve. Quem
compulsou as obras do mesmo genero anteriormente publicadas e
apreciadissimas no mercado, agradece ao laborioso archeologo a grande
melhoria do seu trabalho, e ao benemerito editor o alento raro com que o
tirou a lume. Já vi arguido o snr. Leal de inexacto em miudezas
topographicas, sem lhe descontarem que elle aceitou as noticias
divulgadas em livros que os censores não haviam previamente corrigido
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