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Cartas de Inglaterra - 06

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  vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu,
  estupido--as fórmas varias da baixeza humana.
  Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada--e
  mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia,
  batido de uma luz côr de rosa...
  
  Tenho insistido n'este lado _não real_ dos livros de Lord Beaconsfield.
  Todavia, um homem d'estes, antigo _dandy_, critico, estadista, habituado
  a governar, observador por necessidade, não podia deixar de ter
  accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; e essa
  experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas da
  vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações
  symbolicas, de indisciplinada imaginação (_Tancredo_, _Lothair_,
  _Sibyl_) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, figuras
  de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e côr. São os
  seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus intrigantes, os
  seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, os seus lords
  elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. Londres
  conhecia-os, dava-lhes logo os nomes; e o escandalo d'estes retratos foi
  mesmo uma das grandes causas do successo de Lord Beaconsfield. Mas,
  mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, e não conhece os
  originaes, estes typos interessam--porque _vivem_.
  Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim
  em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente
  poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um
  relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por
  entre o nebuloso de uma mythologia.
  São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield só
  elles ficarão lembrados.
  
  Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de
  impressões, marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa
  como a de Lord Beaconsfield.
  Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações:
  diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que foi
  apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista de
  genio--e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, soffreu
  em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o rancor da
  parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: é que todos
  os mediocres o detestavam.
  É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre
  fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes
  manifestos das suas idéas de estadista--e fez romance no governo, que
  parecia muitas vezes um _scenario de drama_, sobre o qual elle estava de
  penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a
  Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais
  originaes.
  
  Individualmente foi um _feliz_. Tendo, em novo, lançado o plano da sua
  vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o
  plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, foi
  amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle dizia),
  deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido da sua
  rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, e findou
  n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, ditoso?
  Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, d'um
  pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez!
  
  
  IX
  Os inglezes no Egypto
  
  
  I
  O que resta d'Alexandria.--A estreia d'Arabi Paxá.--Algemas ao café.
  
  Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo
  convidativo dos _Guias de viajantes_ como uma rica cidade de 250.000
  habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera,
  tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum _Guia_, porém,
  por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.
  Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas
  e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu
  no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum
  monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio
  mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra
  de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de _Pilar de Pompeu_,
  e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de
  Luxor, que gosava a grotesca alcunha de _Agulha de Cleopatra_. E esta
  mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma
  peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo
  dos comboyos...
  Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos,
  antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande
  metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia
  vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente
  d'uma vasta praça, a famosa _praça dos Consules_, orgulho de todo o
  Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas
  fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares
  francezes--como um _faubourg_ de Bordéus ou de Marselha transportado
  para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.
  A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram
  arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em
  terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor
  brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.
  Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre,
  Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se
  apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se
  ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes,
  as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora
  deuses, ainda hoje aves sagradas...
  Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes,
  de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de
  fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras
  fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus
  centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus
  mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta
  de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool,
  onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro,
  embaraçavam a passagem dos _tramways_ americanos, onde os _sheiks_, de
  turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as
  caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de
  libré--Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de
  uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete,
  como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.
  Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo,
  Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.
  Do bairro europeu, da famosa _praça dos Consules_, dos hoteis, dos
  bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta
  apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede
  enegrecida que se vae alluindo.
  Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.
  Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em
  presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de
  Jehovah--uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da
  Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta
  do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma
  chaga viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o
  almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando
  com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os
  seus canhões de oitenta toneladas.
  Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos
  nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm
  arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,--aos nomes de
  Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor,
  e de Ben-Amon, o sanguinario--o nome de Sr. William Gladstone, o
  humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da
  democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do
  snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de
  Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade
  finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma--por outro lado esta
  brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro
  fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de
  Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a
  Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica
  primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia
  n'isto:--ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar
  fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a _politica imperial
  d'Inglaterra_, ou _os interesses da Inglaterra no Oriente_, póde levar
  um ministro christão a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o
  snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos
  como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro
  d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não
  partilhar a cumplicidade d'esta brutal destruição d'uma cidade
  inoffensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos
  de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de
  oposição...
  
  Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é
  de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as
  unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil
  legoas do Egypto e das suas desgraças.
  No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour
  achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e
  tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do
  almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões
  accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos
  ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de
  camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o
  Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias
  financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns
  _coupons_,--a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os
  interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os
  srs. Coloin e Blegniéres, ambos com funcções de secretarios de fazenda
  no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e
  applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida
  egypcia!
  De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na
  realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados.
  No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous
  burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o
  Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas
  altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada.
  Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam
  alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção
  estrangeira--porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva
  declarara-se _coacto_. Todos os que conhecem a historia contemporanea de
  Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que
  significa esta deliciosa phrase: _El-rei está coacto!_ Isto quer dizer
  que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda
  que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem
  impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição
  de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...
  Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga
  n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se
  desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então
  El-rei _declara-se coacto_, e pede a um rei visinho, mais forte e menos
  atarantado, que lhe mande uma divisão, a _restabelecer a ordem_--isto é
  a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia,
  dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje,
  realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é
  ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.
  O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um
  _pronunciamento_ planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á
  moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso
  Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do
  _salamalek_, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba
  da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo
  Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas
  puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para
  bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança
  de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o _amor
  da nação, a felicidade dos subditos_, que o ceremonial indica nas
  occasiões d'atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse,
  que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que
  os recompensou á maneira oriental--convidando-os a um banquete. Em torno
  da festiva mesa a cordealidade foi grande, o _champagne_ espumou contra
  as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos
  ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido
  nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores,
  do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas,
  levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza,
  foram conduzidos ás palhas do carcere.
  Não ha nada mais delicioso--nem mais turco.
  A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a
  energia de Sua Alteza!
  
  
  II
  A desforra de Arabi.--Reformadores e coroneis.--O programma
  fellah.--A conferencia de Constantinopla.--A confusão do
  Grão-Turco.--As esquadras.
  
  O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.
  Ao abrir o seu _Times_ ou o seu _Journal des Débats_ (porque este
  principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous
  ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado
  energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande
  Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem
  nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das
  potencias.
  Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas--doze mil homens
  com dezoito peças d'artilharia--supplicando que Sua Alteza soltasse
  Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão,
  honrosa para a logica árabe: que, approvando o exercito as reformas de
  Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente
  sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do
  carcere.
  O Khediva, que acabava talvez de saborear no _Times_ mais uma
  glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre
  respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:--e
  Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...
  Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão
  ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os
  foguetes que estalam n'esse dia--e de que ordinariamente, como dos
  foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a
  isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que
  as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não
  viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.
  Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto
  natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e
  desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso
  _principios de oitenta e nove ineditos_ nos sarcophagos dos Pharaós.
  Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse
  uma Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o
  começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto
  governando-se a si mesmo, um _Egypto para os Egypcios_--não uma raça
  escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio
  franco para os esfomeados europeus.
  A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador--era o ser
  elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas tristes
  aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido
  do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs--a peior que existe
  sobre a terra--elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome
  dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado
  que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e
  nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda,
  e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas
  enfrascado em militança--e, portanto, prompto, desde que a sua voz
  resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle
  representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do
  povo egypcio--o soldado e o fellah;--e desde o momento em que entre os
  egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu
  ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas
  ideias, ao exilio e á enxovia,--tornou-se bem depressa, e naturalmente,
  chefe do _partido popular_ que queria as grandes reformas nacionaes, e
  pela mesma occasião caudilho do _partido militar_, que só appetecia
  vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se
  infelizmente com a insubordinação.
  Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de idéas
  largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador,
  as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official
  revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas
  tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto--que elle pedia
  uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para
  os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que
  desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde
  sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas
  pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo,
  e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de
  patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.
  Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso
  moderno espirito europeu; mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o
  povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes,
  é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito
  constitue a classe culta--a obra de progresso tem necessariamente de ser
  feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto--ou, antes,
  finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as
  reclamações da cabana--e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia
  ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d'entre um
  quadrado de soldados...
  De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do
  antigo typo, que apenas leu um livro--o Alcorão. Mas, como homem, possue
  qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam
  negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como
  patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito
  egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de
  vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr'ora pelos
  gafanhotos;--mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros,
  invocando o nome de Allah.
  Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não
  póde attender a tudo, e que, portanto, se resolveu a tirar a espada em
  nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos
  agiotas christãos.
  Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?
  Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do
  Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como
  consequencia d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos
  dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte
  para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as
  cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande
  parte, para pagar os _coupons_ de divida em Pariz e Londres, ficando tão
  pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se
  não dava soldo ao exercito!
  Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido
  perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua
  honra:--sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem
  installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do
  imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para
  satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o
  fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de
  recorrer ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se
  officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia
  secretamente o agiota!...
  Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a
  situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas.
  Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros
  estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O
  desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os
  estrangeiros, que, sob o nome de _tribunaes mixtos_, distribuem duas
  justiças--uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim,
  esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados
  exclusivamente a estrangeiros--e que se não pagassem annualmente, como
  se pagavam, mais de _trez mil contos_ de bom dinheiro egypcio, a
  francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as
  repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como
  aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston,
  foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois
  de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto
  o seu regimento e _ainda mesmo não tinha uniforme_!
  Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de Arabi, e não se imagina
  facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França
  republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na
  Bolsa de Pariz, no _Stock-exchange_ de Londres, onde os fundos egypcios
  tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d'esse
  iniquo aventureiro.
  Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas
  pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.
  As potencias occidentaes _trocaram as suas vistas_, segundo a hedionda
  phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto _estava em anarchia_. O
  Khediva, esse já se declarara _coacto_, e urgia _descoactar_ rapidamente
  esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França,
  pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as
  suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se
  perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e
  ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra,
  seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil
  homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população
  fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela
  approvação religiosa dos Ulemas...
  Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o
  _Times_, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em
  todo o caso fez-se--e acompanhada de um documento, um papelucho
  diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado
  a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado
  gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a
  que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das
  cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas
  honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos,
  toda a folia de um _vaudeville_? De um lado o Khediva abandonado, em
  palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca
  fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro
  lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E
  a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi!
  Conheceis cousa alguma que mais reclame a _verve_ do chorado Offenbach?
  Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho
  era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu
  os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu
  alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens
  seus, gente de nervo e de arranque.
  Perante esta resposta dada ao seu _ultimatum_, a Europa ficou, se me é
  licito este dizer irreverente--_de orelha murcha_. E então tomou a
  decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno
  de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre
  os punhos. Chamou-se a isto a _Conferencia de Constantinopla_. O seu
  fim, todo louvavel, era _resolver a questão do Egypto_.
  E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de
  existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o
  general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é
  terra britannica--e ella ainda lá está, a resolver!
  Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta
  auctoridade! Ainda lá está...
  Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de
  panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...
  Depois de reunida a _Conferencia_, a Europa, naturalmente, lembrou-se
  que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo
  ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos
  seus agitados dominios.
  Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.
  É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia hesita. Por um lado, os
  Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha,
  cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam
  tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a
  sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam,
  como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao
  papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e
  depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É
  simplesmente um _pourboire_?... Seja como fôr, o tributo existe--e,
  fundado n'elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente,
  devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E
  aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão.
  Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o
  pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, um
  pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali,
  quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos
  califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no
  Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este
  caso, os _ulemas_ da mesquita d'El-Azhar, o grande centro religioso e o
  grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do Oriente,
  
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