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Cartas de Inglaterra - 06
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vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu,
estupido--as fórmas varias da baixeza humana.
Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada--e
mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia,
batido de uma luz côr de rosa...
Tenho insistido n'este lado _não real_ dos livros de Lord Beaconsfield.
Todavia, um homem d'estes, antigo _dandy_, critico, estadista, habituado
a governar, observador por necessidade, não podia deixar de ter
accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; e essa
experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas da
vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações
symbolicas, de indisciplinada imaginação (_Tancredo_, _Lothair_,
_Sibyl_) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, figuras
de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e côr. São os
seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus intrigantes, os
seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, os seus lords
elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. Londres
conhecia-os, dava-lhes logo os nomes; e o escandalo d'estes retratos foi
mesmo uma das grandes causas do successo de Lord Beaconsfield. Mas,
mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, e não conhece os
originaes, estes typos interessam--porque _vivem_.
Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim
em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente
poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um
relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por
entre o nebuloso de uma mythologia.
São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield só
elles ficarão lembrados.
Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de
impressões, marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa
como a de Lord Beaconsfield.
Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações:
diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que foi
apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista de
genio--e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, soffreu
em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o rancor da
parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: é que todos
os mediocres o detestavam.
É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre
fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes
manifestos das suas idéas de estadista--e fez romance no governo, que
parecia muitas vezes um _scenario de drama_, sobre o qual elle estava de
penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a
Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais
originaes.
Individualmente foi um _feliz_. Tendo, em novo, lançado o plano da sua
vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o
plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, foi
amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle dizia),
deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido da sua
rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, e findou
n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, ditoso?
Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, d'um
pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez!
IX
Os inglezes no Egypto
I
O que resta d'Alexandria.--A estreia d'Arabi Paxá.--Algemas ao café.
Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo
convidativo dos _Guias de viajantes_ como uma rica cidade de 250.000
habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera,
tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum _Guia_, porém,
por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.
Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas
e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu
no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum
monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio
mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra
de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de _Pilar de Pompeu_,
e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de
Luxor, que gosava a grotesca alcunha de _Agulha de Cleopatra_. E esta
mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma
peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo
dos comboyos...
Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos,
antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande
metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia
vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente
d'uma vasta praça, a famosa _praça dos Consules_, orgulho de todo o
Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas
fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares
francezes--como um _faubourg_ de Bordéus ou de Marselha transportado
para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.
A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram
arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em
terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor
brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.
Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre,
Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se
apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se
ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes,
as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora
deuses, ainda hoje aves sagradas...
Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes,
de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de
fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras
fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus
centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus
mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta
de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool,
onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro,
embaraçavam a passagem dos _tramways_ americanos, onde os _sheiks_, de
turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as
caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de
libré--Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de
uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete,
como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.
Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo,
Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.
Do bairro europeu, da famosa _praça dos Consules_, dos hoteis, dos
bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta
apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede
enegrecida que se vae alluindo.
Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.
Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em
presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de
Jehovah--uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da
Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta
do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma
chaga viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o
almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando
com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os
seus canhões de oitenta toneladas.
Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos
nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm
arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,--aos nomes de
Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor,
e de Ben-Amon, o sanguinario--o nome de Sr. William Gladstone, o
humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da
democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do
snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de
Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade
finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma--por outro lado esta
brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro
fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de
Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a
Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica
primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia
n'isto:--ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar
fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a _politica imperial
d'Inglaterra_, ou _os interesses da Inglaterra no Oriente_, póde levar
um ministro christão a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o
snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos
como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro
d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não
partilhar a cumplicidade d'esta brutal destruição d'uma cidade
inoffensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos
de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de
oposição...
Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é
de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as
unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil
legoas do Egypto e das suas desgraças.
No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour
achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e
tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do
almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões
accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos
ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de
camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o
Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias
financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns
_coupons_,--a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os
interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os
srs. Coloin e Blegniéres, ambos com funcções de secretarios de fazenda
no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e
applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida
egypcia!
De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na
realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados.
No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous
burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o
Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas
altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada.
Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam
alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção
estrangeira--porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva
declarara-se _coacto_. Todos os que conhecem a historia contemporanea de
Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que
significa esta deliciosa phrase: _El-rei está coacto!_ Isto quer dizer
que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda
que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem
impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição
de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...
Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga
n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se
desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então
El-rei _declara-se coacto_, e pede a um rei visinho, mais forte e menos
atarantado, que lhe mande uma divisão, a _restabelecer a ordem_--isto é
a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia,
dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje,
realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é
ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.
O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um
_pronunciamento_ planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á
moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso
Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do
_salamalek_, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba
da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo
Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas
puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para
bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança
de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o _amor
da nação, a felicidade dos subditos_, que o ceremonial indica nas
occasiões d'atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse,
que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que
os recompensou á maneira oriental--convidando-os a um banquete. Em torno
da festiva mesa a cordealidade foi grande, o _champagne_ espumou contra
as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos
ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido
nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores,
do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas,
levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza,
foram conduzidos ás palhas do carcere.
Não ha nada mais delicioso--nem mais turco.
A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a
energia de Sua Alteza!
II
A desforra de Arabi.--Reformadores e coroneis.--O programma
fellah.--A conferencia de Constantinopla.--A confusão do
Grão-Turco.--As esquadras.
O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.
Ao abrir o seu _Times_ ou o seu _Journal des Débats_ (porque este
principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous
ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado
energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande
Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem
nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das
potencias.
Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas--doze mil homens
com dezoito peças d'artilharia--supplicando que Sua Alteza soltasse
Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão,
honrosa para a logica árabe: que, approvando o exercito as reformas de
Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente
sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do
carcere.
O Khediva, que acabava talvez de saborear no _Times_ mais uma
glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre
respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:--e
Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...
Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão
ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os
foguetes que estalam n'esse dia--e de que ordinariamente, como dos
foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a
isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que
as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não
viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.
Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto
natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e
desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso
_principios de oitenta e nove ineditos_ nos sarcophagos dos Pharaós.
Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse
uma Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o
começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto
governando-se a si mesmo, um _Egypto para os Egypcios_--não uma raça
escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio
franco para os esfomeados europeus.
A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador--era o ser
elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas tristes
aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido
do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs--a peior que existe
sobre a terra--elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome
dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado
que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e
nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda,
e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas
enfrascado em militança--e, portanto, prompto, desde que a sua voz
resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle
representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do
povo egypcio--o soldado e o fellah;--e desde o momento em que entre os
egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu
ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas
ideias, ao exilio e á enxovia,--tornou-se bem depressa, e naturalmente,
chefe do _partido popular_ que queria as grandes reformas nacionaes, e
pela mesma occasião caudilho do _partido militar_, que só appetecia
vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se
infelizmente com a insubordinação.
Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de idéas
largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador,
as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official
revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas
tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto--que elle pedia
uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para
os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que
desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde
sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas
pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo,
e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de
patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.
Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso
moderno espirito europeu; mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o
povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes,
é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito
constitue a classe culta--a obra de progresso tem necessariamente de ser
feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto--ou, antes,
finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as
reclamações da cabana--e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia
ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d'entre um
quadrado de soldados...
De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do
antigo typo, que apenas leu um livro--o Alcorão. Mas, como homem, possue
qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam
negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como
patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito
egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de
vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr'ora pelos
gafanhotos;--mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros,
invocando o nome de Allah.
Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não
póde attender a tudo, e que, portanto, se resolveu a tirar a espada em
nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos
agiotas christãos.
Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?
Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do
Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como
consequencia d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos
dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte
para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as
cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande
parte, para pagar os _coupons_ de divida em Pariz e Londres, ficando tão
pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se
não dava soldo ao exercito!
Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido
perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua
honra:--sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem
installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do
imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para
satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o
fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de
recorrer ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se
officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia
secretamente o agiota!...
Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a
situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas.
Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros
estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O
desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os
estrangeiros, que, sob o nome de _tribunaes mixtos_, distribuem duas
justiças--uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim,
esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados
exclusivamente a estrangeiros--e que se não pagassem annualmente, como
se pagavam, mais de _trez mil contos_ de bom dinheiro egypcio, a
francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as
repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como
aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston,
foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois
de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto
o seu regimento e _ainda mesmo não tinha uniforme_!
Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de Arabi, e não se imagina
facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França
republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na
Bolsa de Pariz, no _Stock-exchange_ de Londres, onde os fundos egypcios
tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d'esse
iniquo aventureiro.
Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas
pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.
As potencias occidentaes _trocaram as suas vistas_, segundo a hedionda
phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto _estava em anarchia_. O
Khediva, esse já se declarara _coacto_, e urgia _descoactar_ rapidamente
esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França,
pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as
suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se
perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e
ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra,
seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil
homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população
fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela
approvação religiosa dos Ulemas...
Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o
_Times_, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em
todo o caso fez-se--e acompanhada de um documento, um papelucho
diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado
a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado
gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a
que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das
cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas
honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos,
toda a folia de um _vaudeville_? De um lado o Khediva abandonado, em
palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca
fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro
lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E
a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi!
Conheceis cousa alguma que mais reclame a _verve_ do chorado Offenbach?
Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho
era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu
os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu
alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens
seus, gente de nervo e de arranque.
Perante esta resposta dada ao seu _ultimatum_, a Europa ficou, se me é
licito este dizer irreverente--_de orelha murcha_. E então tomou a
decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno
de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre
os punhos. Chamou-se a isto a _Conferencia de Constantinopla_. O seu
fim, todo louvavel, era _resolver a questão do Egypto_.
E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de
existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o
general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é
terra britannica--e ella ainda lá está, a resolver!
Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta
auctoridade! Ainda lá está...
Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de
panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...
Depois de reunida a _Conferencia_, a Europa, naturalmente, lembrou-se
que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo
ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos
seus agitados dominios.
Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.
É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia hesita. Por um lado, os
Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha,
cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam
tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a
sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam,
como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao
papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e
depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É
simplesmente um _pourboire_?... Seja como fôr, o tributo existe--e,
fundado n'elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente,
devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E
aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão.
Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o
pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, um
pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali,
quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos
califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no
Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este
caso, os _ulemas_ da mesquita d'El-Azhar, o grande centro religioso e o
grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do Oriente,
estupido--as fórmas varias da baixeza humana.
Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada--e
mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia,
batido de uma luz côr de rosa...
Tenho insistido n'este lado _não real_ dos livros de Lord Beaconsfield.
Todavia, um homem d'estes, antigo _dandy_, critico, estadista, habituado
a governar, observador por necessidade, não podia deixar de ter
accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; e essa
experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas da
vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações
symbolicas, de indisciplinada imaginação (_Tancredo_, _Lothair_,
_Sibyl_) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, figuras
de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e côr. São os
seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus intrigantes, os
seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, os seus lords
elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. Londres
conhecia-os, dava-lhes logo os nomes; e o escandalo d'estes retratos foi
mesmo uma das grandes causas do successo de Lord Beaconsfield. Mas,
mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, e não conhece os
originaes, estes typos interessam--porque _vivem_.
Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim
em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente
poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um
relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por
entre o nebuloso de uma mythologia.
São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield só
elles ficarão lembrados.
Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de
impressões, marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa
como a de Lord Beaconsfield.
Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações:
diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que foi
apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista de
genio--e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, soffreu
em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o rancor da
parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: é que todos
os mediocres o detestavam.
É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre
fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes
manifestos das suas idéas de estadista--e fez romance no governo, que
parecia muitas vezes um _scenario de drama_, sobre o qual elle estava de
penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a
Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais
originaes.
Individualmente foi um _feliz_. Tendo, em novo, lançado o plano da sua
vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o
plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, foi
amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle dizia),
deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido da sua
rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, e findou
n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, ditoso?
Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, d'um
pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez!
IX
Os inglezes no Egypto
I
O que resta d'Alexandria.--A estreia d'Arabi Paxá.--Algemas ao café.
Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo
convidativo dos _Guias de viajantes_ como uma rica cidade de 250.000
habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera,
tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum _Guia_, porém,
por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.
Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas
e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu
no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum
monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio
mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra
de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de _Pilar de Pompeu_,
e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de
Luxor, que gosava a grotesca alcunha de _Agulha de Cleopatra_. E esta
mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma
peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo
dos comboyos...
Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos,
antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande
metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia
vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente
d'uma vasta praça, a famosa _praça dos Consules_, orgulho de todo o
Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas
fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares
francezes--como um _faubourg_ de Bordéus ou de Marselha transportado
para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.
A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram
arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em
terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor
brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.
Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre,
Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se
apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se
ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes,
as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora
deuses, ainda hoje aves sagradas...
Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes,
de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de
fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras
fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus
centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus
mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta
de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool,
onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro,
embaraçavam a passagem dos _tramways_ americanos, onde os _sheiks_, de
turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as
caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de
libré--Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de
uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete,
como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.
Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo,
Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.
Do bairro europeu, da famosa _praça dos Consules_, dos hoteis, dos
bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta
apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede
enegrecida que se vae alluindo.
Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.
Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em
presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de
Jehovah--uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da
Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta
do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma
chaga viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o
almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando
com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os
seus canhões de oitenta toneladas.
Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos
nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm
arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,--aos nomes de
Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor,
e de Ben-Amon, o sanguinario--o nome de Sr. William Gladstone, o
humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da
democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do
snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de
Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade
finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma--por outro lado esta
brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro
fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de
Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a
Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica
primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia
n'isto:--ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar
fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a _politica imperial
d'Inglaterra_, ou _os interesses da Inglaterra no Oriente_, póde levar
um ministro christão a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o
snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos
como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro
d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não
partilhar a cumplicidade d'esta brutal destruição d'uma cidade
inoffensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos
de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de
oposição...
Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é
de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as
unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil
legoas do Egypto e das suas desgraças.
No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour
achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e
tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do
almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões
accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos
ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de
camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o
Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias
financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns
_coupons_,--a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os
interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os
srs. Coloin e Blegniéres, ambos com funcções de secretarios de fazenda
no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e
applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida
egypcia!
De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na
realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados.
No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous
burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o
Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas
altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada.
Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam
alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção
estrangeira--porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva
declarara-se _coacto_. Todos os que conhecem a historia contemporanea de
Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que
significa esta deliciosa phrase: _El-rei está coacto!_ Isto quer dizer
que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda
que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem
impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição
de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...
Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga
n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se
desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então
El-rei _declara-se coacto_, e pede a um rei visinho, mais forte e menos
atarantado, que lhe mande uma divisão, a _restabelecer a ordem_--isto é
a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia,
dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje,
realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é
ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.
O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um
_pronunciamento_ planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á
moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso
Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do
_salamalek_, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba
da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo
Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas
puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para
bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança
de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o _amor
da nação, a felicidade dos subditos_, que o ceremonial indica nas
occasiões d'atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse,
que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que
os recompensou á maneira oriental--convidando-os a um banquete. Em torno
da festiva mesa a cordealidade foi grande, o _champagne_ espumou contra
as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos
ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido
nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores,
do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas,
levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza,
foram conduzidos ás palhas do carcere.
Não ha nada mais delicioso--nem mais turco.
A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a
energia de Sua Alteza!
II
A desforra de Arabi.--Reformadores e coroneis.--O programma
fellah.--A conferencia de Constantinopla.--A confusão do
Grão-Turco.--As esquadras.
O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.
Ao abrir o seu _Times_ ou o seu _Journal des Débats_ (porque este
principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous
ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado
energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande
Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem
nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das
potencias.
Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas--doze mil homens
com dezoito peças d'artilharia--supplicando que Sua Alteza soltasse
Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão,
honrosa para a logica árabe: que, approvando o exercito as reformas de
Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente
sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do
carcere.
O Khediva, que acabava talvez de saborear no _Times_ mais uma
glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre
respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:--e
Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...
Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão
ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os
foguetes que estalam n'esse dia--e de que ordinariamente, como dos
foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a
isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que
as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não
viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.
Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto
natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e
desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso
_principios de oitenta e nove ineditos_ nos sarcophagos dos Pharaós.
Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse
uma Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o
começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto
governando-se a si mesmo, um _Egypto para os Egypcios_--não uma raça
escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio
franco para os esfomeados europeus.
A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador--era o ser
elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas tristes
aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido
do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs--a peior que existe
sobre a terra--elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome
dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado
que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e
nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda,
e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas
enfrascado em militança--e, portanto, prompto, desde que a sua voz
resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle
representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do
povo egypcio--o soldado e o fellah;--e desde o momento em que entre os
egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu
ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas
ideias, ao exilio e á enxovia,--tornou-se bem depressa, e naturalmente,
chefe do _partido popular_ que queria as grandes reformas nacionaes, e
pela mesma occasião caudilho do _partido militar_, que só appetecia
vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se
infelizmente com a insubordinação.
Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de idéas
largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador,
as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official
revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas
tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto--que elle pedia
uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para
os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que
desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde
sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas
pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo,
e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de
patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.
Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso
moderno espirito europeu; mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o
povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes,
é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito
constitue a classe culta--a obra de progresso tem necessariamente de ser
feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto--ou, antes,
finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as
reclamações da cabana--e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia
ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d'entre um
quadrado de soldados...
De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do
antigo typo, que apenas leu um livro--o Alcorão. Mas, como homem, possue
qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam
negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como
patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito
egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de
vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr'ora pelos
gafanhotos;--mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros,
invocando o nome de Allah.
Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não
póde attender a tudo, e que, portanto, se resolveu a tirar a espada em
nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos
agiotas christãos.
Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?
Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do
Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como
consequencia d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos
dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte
para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as
cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande
parte, para pagar os _coupons_ de divida em Pariz e Londres, ficando tão
pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se
não dava soldo ao exercito!
Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido
perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua
honra:--sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem
installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do
imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para
satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o
fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de
recorrer ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se
officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia
secretamente o agiota!...
Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a
situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas.
Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros
estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O
desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os
estrangeiros, que, sob o nome de _tribunaes mixtos_, distribuem duas
justiças--uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim,
esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados
exclusivamente a estrangeiros--e que se não pagassem annualmente, como
se pagavam, mais de _trez mil contos_ de bom dinheiro egypcio, a
francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as
repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como
aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston,
foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois
de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto
o seu regimento e _ainda mesmo não tinha uniforme_!
Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de Arabi, e não se imagina
facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França
republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na
Bolsa de Pariz, no _Stock-exchange_ de Londres, onde os fundos egypcios
tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d'esse
iniquo aventureiro.
Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas
pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.
As potencias occidentaes _trocaram as suas vistas_, segundo a hedionda
phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto _estava em anarchia_. O
Khediva, esse já se declarara _coacto_, e urgia _descoactar_ rapidamente
esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França,
pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as
suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se
perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e
ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra,
seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil
homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população
fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela
approvação religiosa dos Ulemas...
Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o
_Times_, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em
todo o caso fez-se--e acompanhada de um documento, um papelucho
diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado
a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado
gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a
que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das
cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas
honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos,
toda a folia de um _vaudeville_? De um lado o Khediva abandonado, em
palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca
fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro
lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E
a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi!
Conheceis cousa alguma que mais reclame a _verve_ do chorado Offenbach?
Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho
era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu
os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu
alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens
seus, gente de nervo e de arranque.
Perante esta resposta dada ao seu _ultimatum_, a Europa ficou, se me é
licito este dizer irreverente--_de orelha murcha_. E então tomou a
decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno
de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre
os punhos. Chamou-se a isto a _Conferencia de Constantinopla_. O seu
fim, todo louvavel, era _resolver a questão do Egypto_.
E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de
existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o
general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é
terra britannica--e ella ainda lá está, a resolver!
Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta
auctoridade! Ainda lá está...
Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de
panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...
Depois de reunida a _Conferencia_, a Europa, naturalmente, lembrou-se
que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo
ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos
seus agitados dominios.
Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.
É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia hesita. Por um lado, os
Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha,
cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam
tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a
sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam,
como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao
papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e
depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É
simplesmente um _pourboire_?... Seja como fôr, o tributo existe--e,
fundado n'elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente,
devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E
aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão.
Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o
pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, um
pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali,
quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos
califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no
Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este
caso, os _ulemas_ da mesquita d'El-Azhar, o grande centro religioso e o
grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do Oriente,
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