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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 10
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chamadas Telles ou Borgias, as quaes felizmente raro apparecem no mundo.
Este affecto era o amor materno. Devia ser vivo e profundo, se o
avaliarmos pelos crimes que D. Leonor commetteu para segurar na cabeça
de sua filha D. Beatriz a coroa de D. Fernando, que se cria seu pai e
que talvez o seria. O Infante D. João era um obstaculo que podia
oppor-se aos intentos d'aquella mulher diabolica. Como livrar se
d'elle?--Convertendo-o em um grande criminoso. Foi então que para o
perder lhe soprou na alma as duas paixões mais ferozes do coração
humano--a ambição e o ciume--e D. Maria Telles foi assassinada pelo
marido porque D. Leonor precisava do seu cadaver para calçar a estrada
por onde D. Beatriz devia subir ao throno. É este assassinio o desfeixo
a que nos conduz o drama: os acontecimentos que o prepararam são a tela
onde se desprega o lavor da imaginação do poeta.
Os caracteres introduzidos neste drama são o de D. Maria Telles; o do
Infante D. João: o de D. Lopo Dias de Sousa, filho de D. Maria e de seu
primeiro marido: o de Garcia Affonso, Commendador d'Elvas; o de João
Lourenço da Cunha, marido de D. Leonor Telles; o de D. Fernando I; o de
D. Leonor; o de Vasco, pagem de D. Leonor, e o de Fr. Soeiro, Director
espiritual, segundo parece, de D. Maria Telles. Um carcereiro, Damas,
Cavalleiros, povo, constituem isso a que se chama cheios, comparsas, ou
personagens mudos.
Não se póde na verdade negar ao auctor d'esta composição uma grande
ousadia litteraria em ajuntar no seu quadro tantos vultos difficultosos
de desenhar, e que por ventura seriam rebeldes aos pinceis de grandes
mestres. Vejamos como elle resolveu o seu problema dramatico
relativamente aos caracteres principaes.
D. Maria Telles era uma formosa viuva, de quem o Infante D. João se
enamorou. Os affectos do Principe só acharam correspondencia quando
prometteu casar com ella, e o casamento effectuou-se, porque a paixão do
Infante era ardente, mas d'esse ardor um tanto brutal proprio de uma
Côrte dissoluta como a de D. Fernando, e d'uma épocha em que o amor
demasiadamente metaphysico nos escriptos dos trovadores, era assás
grosseiro na realidade dos costumes. As probabilidades todas são que
similhante consorcio foi do lado de D. Maria Telles um calculo
d'ambição, e do lado do Infante um meio de satisfazer seus desejos. Isto
é o que resulta da historia. Mas o auctor podia substituir este
argumento historico pelo de um amor talvez mais lyrico, mas por ventura
não mais dramatico. O que não devia era dar a esse amor a fórma e
expressão que lhe deu. Expliquemo-nos.
D. Maria Telles não era uma donzella na primavera da vida: era uma dona
entrada já naquella edade a que se póde chamar o outono da formosura. O
auctor nesta parte acceitou o argumento da historia, introduzindo no seu
drama o Mestre de Christo, mancebo de dezoito ou vinte annos, filho de
D. Maria Telles. Forçosamente esta passara por isso o viço da mocidade.
O seu amor portanto devia ser intenso, mas grave: revelar-se
profundamente nos factos e muitissimo pouco em discursos. Devia ser um
amor que não tarda a transformar-se em amizade; que, por assim dizer,
começa a ter pudor do si mesmo, porque as illusões da juventude teem
quasi todas passado. Difficil é na verdade o pintar esse affecto severo
e intimo; mas se já deixou de ser um merito vencer difficuldades
inuteis, ainda é restricta obrigação do poeta o conhecer as phases do
coração humano, e não as desmentir jámais porque a natureza é immutavel.
O auctor sentiu ao que parece confusamente a verdade d'esta observação;
quis dar gravidade ao caracter de D. Maria Telles: não lhe deu senão
tristeza. Tristeza tanto quando se vai desposar com o Infante como
depois que elle começa a afastar-se d'ella, e a dar-lhe não equivocos
signaes de desamor. Porque está ella triste até á morte, segundo a
expressão de Job, quando se approxima aos altares? É por certos
presagios; é por sonhos; é por certo dizer do coração; é por vergonha
que tem de seu filho. Afora a ultima, nenhuma d'estas razões é
verdadeira, dramaticamente, e a tristeza fica inexplicavel, porque o
pudor não é melancolia. Sereno devia ser o seu contentamento; mas devia
ser contentamento. Não era nessa afflicção e lucto infundados que podia
revellar-se a gravidade do caracter de D. Maria Telles, quando por outra
parte todas as palavras d'esta mulher affectuosa, como o auctor a quis
pintar, só condizem com o amor dos vinte annos que se dilata impetuoso
até aos extremos horizontes da vida. Senão nos enganamos o caracter de
D. Maria Telles está falsificado em relação á historia, e o que mais é
em relação á natureza.
O caracter do Infante apenas se póde dizer que existe: no primeiro
apparece para dizer a D. Maria Telles que muito a ama. Das suas palavras
não resulta individualidade; repete o que em similhante materia se diz
desde o principio do mundo. No terceiro acto onde torna a apparecer, é
ameaçado e affrontado por João Lourenço da Cunha, e fica impassivel,
salvo quando este, provavelmente aborrecido de tanta tranquillidade,
volta as injurias e feros contra D. Leonor que está tambem presente. É
então que o Infante arranca da espada; mas el-rei acode: um dialogo se
trava entre este e João Lourenço. E o Infante? Não sabemos mais d'elle,
senão no V acto em que já quasi persuadido de que sua mulher é infiel,
encontra as provas suppostas d'essa infidelidade. Desde este momento não
é mais possivel o desenhar D. João; porque a furiosa cholera que o
domina o torna necessariamente similhante a qualquer outro homem em
situação analoga. A honra offendida pede sangue; é um pensamento
doloroso moralmente necessario á situação que depois d'isso actua no
drama, não a individualidade d'um homem. Onde está portanto o caracter
do infante?
E todavia esse caracter lá tinha os seus principaes lineamentos traçados
nos capitulos 98.^o e 99.^o da chronica de D. Fernando pelo grande
poeta-chronista Fernão Lopes. O genio aventuroso, folgazão e ousado, do
filho de D. Ignez de Castro, estudados nesses traços do grande mestre,
dariam facilmente a individualidade do personagem ao auctor de--_D.
Maria Telles_--e por certo que essa individualidade variando a monotonia
dos caracteres produziria maior contraste, e por consequencia maior
effeito no terrivel desfeixo do drama.
A monotonia dos caracteres dissemos nós. A monotonia na invenção é na
verdade o principal defeito d'esta composição. Ha ahi quatro ou cinco
vingativos, quatro ou cinco vinganças empastadas por toda ella. Vinga-se
o Infante de sua mulher, de quem tambem se vinga o Commendador d'Elvas,
cujo amor ella desprezara. João Lourenço quer vingar-se de D. Leonor: D.
Leonor de quasi toda a gente. D'esta identidade de situações moraes
forçosamente devia resultar esse capital defeito.
Os dois caracteres que nos parecem individuados são o de D. Leonor e o
do D. Lopo Dias. D. Leonor é a mulher successivamente hypocrita e
insolente: vil e orgulhosa; pobre de crenças moraes, rica de paixões
violentas. É a D. Leonor da historia, salvo em uma ou outra scena; é o
vulto principal do drama. D. Lopo é mancebo, poeta e triste como sua
mãi, mas sobram-lhe para isso razões. O mesquinho está phtysico, pelo
que se collige das suas palavras. Molestia é esta que tem levado muito
poeta imberbe á sepultura. Feliz ainda no meio de seus males, a
afflicção pulmonar que o consome é chronica e por isso lenta, por tal
arte que esperando elle morrer já no primeiro acto, ainda no quinto,
(cujos successos são posteriores mais d'um anno, aos do primeiro) D.
Lopo vive, e ao caír o panno fica de saude, não perfeita; mas da saude
que é compativel com a existencia de tuberculos pulmonares. Apesar de
que a phtysica não pareça coisa excessivamente dramatica e possa ter
algum perigo de ridiculo no theatro, é certo que essa vida cuja
distancia da morte a victima póde quasi exactamente medir: esse caminhar
para o sepulchro por uma estrada onde não ha de retroceder, e na qual
não passa hora ou momento em que a campa senão contemple erguida e
immovel no horizonte: esse oratorio peior que o do sentenciado, porque
dura meses emquanto este dura apenas tres dias; tudo isso é tremendo e
solemne, e o verdadeiro poeta poderá achar nas phases da longa e cruel
agonia do phtysico situações dolorosas e terribilissimas. Alexandre
Dumas as achou num dos seus melhores dramas. Seguiu-o de longe o nosso
auctor, mas nem por isso deixa este caracter de ser um dos mais bem
sustentados em--_D. Maria Telles_.--Os affectos de Lopo Dias são
generosos e puros: teem certa brandura de resignação, certa saudade de
quem pela esperança vive já num mundo melhor, mas que ainda pela
affeição filial está preso ás tristezas da terra. Este personagem é na
verdade possivel e poetico, absolutamente falando. O seu unico defeito é
o commum a todos; é não representar a épocha a que o poeta que o creou
quis que elle pertencesse.
Os outros caracteres do drama ou são nullos, ou reflexos mais ou menos
pallidos dos que ficam avaliados. Os sentimentos de vingança que
subjugam D. João Lourenço da Cunha e o Commendador d'Elvas, tornam
confusos os traços de um com os do outro, apesar das diligencias que o
auctor fez para lhes variar as situações; confusão esta que se augmenta
com a analogia que ha entre ambos e os de D. Leonor e do Infante. Fr.
Soeiro é perfeitamente nullo; e Vasco, seide de D. Leonor, é um caracter
que não pode fixar-se por demasiadamente transitorio, posto que
fortemente concebido. Se tivesse passado de um esboço seria talvez o
mais dramatico de todos elles. Isabel emfim é a eterna confidente do
theatro classico, cuja utilidade dramatica foi, é e será sempre passiva;
substituição impertinente do monologo; especie de titere que se deixa
mover á mercê do auctor, e que por mais que fale, se esforça ou chore,
por via de regra, serve tanto para o andamento da acção como as polés em
que se movem os bastidores.
Notámos acima que os personagens d'este drama não representam a época a
que historicamente pertencem: é este depois do uniforme, e confuso dos
caracteres o maximo defeito d'elle. Nesta parte accrescentaremos algumas
considerações que não parecerão inteiramente inuteis para os cultores
principiantes d'este genero de litteratura. A epocha dos reinados de D.
Fernando e D. João I é incontestavelmente a mais dramatica da historia
portuguesa. São-no os factos politicos e a vida civil d'esse tempo: as
pessoas e as coisas. A nobreza era chegada ao apogeu da sua grandeza,
porque as instituições feudaes que se haviam misturado com a nossa
primitiva indole social, tinham tocado então a méta do seu predominio:
quando já a sua dilatada agonia começava no resto da Europa: o povo dava
signaes exteriores de que existia, e existia robusto; a monarchia
exgotava a sua generosidade e os testemunhos do seu temor para com a
aristocracia na vespera de dar principio ao duello de morte para que ia
reptá-la, e que devia durar cem annos. Nestes dois reinados operou-se
uma transformação nacional: o fim do seculo XIV foi um periodo
revolucionario: revolucionario não tanto para as pessoas como para as
coisas; os elementos da vida social foram então chamados a uma grande
lucta, e, como acontece sempre em similhantes situações, tanto os que
deviam ser vencidos como os que haviam de ficar vencedores combateram
energicamente. Os grandes vultos historicos d'esse tempo--os personagens
extraordinarios, diriamos quasi homericos, que então surgiram--os
caracteres profundamente distinctos, e altamente poeticos, quer pela
negrura, quer pela formusura moral:--todos nasceram da situação social
do país: foram o resultado e o resumo d'esta, e por ella sómente se
podem comprehender, avaliar e explicar. Se porém essas imagens tão
aproveitaveis para a arte, forem arrancadas do quadro em cujo chão e luz
appropriados a ellas, unicamente se devem contemplar, ficarão
convertidas em desenhos de morte-côr, e o que mais é, perderão os seus
lineamentos caracteristicos; serão abstracções; serão quando muito
objectos d'estudo para a physiologia das paixões: serão representantes
do genero humano em geral, mas nunca de uma geração, de uma época, e
d'um país: darão materia para o drama metaphysico, para o drama como o
conceberam Goethe em _Ferv_ e _Betly_ ou na _Filha Natural_, e Byron no
_Manfredo_; porém não para o drama historico, para o drama que se
incarna na realidade, para o drama que não é um poema lyrico como a
_Athalia_ ou uma amplificação brilhante como _Mahomet_, mas uma obra
d'arte que toma por expressão a vida humana, e que é destinada para a
scena.
O titulo do drama historico dado ás composições mais notaveis neste
genero, que no seculo passado e no presente tem apparecido na Europa,
como _Goetz_, _Wallensteim_, _Hernani_, e tantos outros, não foi uma
phantasia ou capricho dos eminentes poetas que as produziram ou dos
criticos que as julgaram. Este titulo corresponde a uma realidade:
representa uma theoria litteraria verdadeira e nova substituida a outra
velha e falsa. O theatro antigo por via de regra era uma abstracção: os
seus personagens são vultos por assim dizer desenhados na atmosphera, e
que se movem nos raios do sol; não pisam a terra; não choram nem folgam
humanamente; não descendem como nós de Adão; não estão sugeitos senão a
certas condições da vida real. O dramaturgo antigo creava o caracter de
um tyranno, chamava-lhe Nero; de um voluptuario, chamava-lhe
Sardanapalo; de uma incestuosa chamava-lhe Phedra; de um hypocrita
feroz, chamava-lhe Mahomet. Podia chamar-lhes outra qualquer coisa;
buscar na historia ou fóra d'ella outros quaesquer nomes. _Constei
sibi_: eis o que exigia d'esses caracteres a philosophia da arte.
Satisfeita esta condição bem pouco importava se o personagem era romano,
syro, grego, ou arabe. _Constet sibi_.--Pouco importava se as suas
dimensões eram humanas. _Constet sibi_. Pouco importava quaes haviam
sido as crenças, as condições da vida civil, os varios aspectos emfim da
sociedade e da época em que o individuo que se arrastava para o theatro
tinha vivido, e que forçosamente deviam modificar-lhe de certo ou certo
modo as paixões ou os affectos, o pensar intimo ou o porte exterior.
_Constet sibi_: era o que lhe pedia a arte antiga. E na verdade não era
pedir muito. A arte moderna que os ingenuos e innocentes defensores do
passado accusam de licenciosa põe apenas mil vezes mais duras condições
aos seus sacerdotes; porque alem da constancia dos caracteres
dramaticos, exige nestes circumstancias, que só o muito estudo e um
ingenho profundamente synthetico póde fazer que se liguem ás obras
filhas da imaginação do poeta.
Se tão leves de soffrer foram outr'ora as condições dramaticas quanto
aos caracteres, escusado parece dizer que foram nullas quanto á
phisiologia intima do drama. Malbaratou-se toda a esthetica dos antigos
nas fórmas materiaes e externas d'elle, na anatomia dos ossos e
cartilagens. Os escriptores _licenciosos_ do seculo presente sentiram
não tanto que esta anatomia era erronea, apesar de o ser muito, quanto
sentiram que era incompletissima. Posto o principio incontestavel de que
o drama não é mais do que a arte vasada no molde da vida social, tiraram
o corollario forçoso de que era preciso primeiro que tudo estudar esta,
e exclusivamente esta. A arte não se estuda; porque a arte é o ideal, e
o ideal vem de Deus; é uma inspiração: o que se estuda são as formulas
materiaes em que ella se revela, os typos em que se resume; para que
estes possam ser claros e definidos como meios de communicação entre o
poeta e o mundo. No drama a historia é a expressão da arte, é a voz
articulada do homem inspirado. Elle deve por isso saber perfundamente a
historia da épocha e do povo que vai alevantar do sepulchro, para servir
d'interprete entre elle e as gerações que hão de escutar as suas
revelações de poeta.
Se os antigos pudessem ter adivinhado e seguido esta _licenciosa_
theoria, os seus estudos não houveram sido apesar d'isso nem largos nem
custosos. A historia era falsa como a arte. Reduzia-se a biographias
soltas e incompletas; era tambem um aggregado d'abstracções; resumia-se
nos factos politicos. A vida social passava desconhecida: o povo
desapparecia nas sombras gigantes que derramavam em volta de si os
homens eminentes. Ao passo, porém, que a arte se reconstruia,
reconstruia-se a historia. Ao lado de Goethe e Schiller apparecia Herder
e Muleer; ao lado d'Hugo, Guizot e Thierry. Ambas as refórmas se viram e
vêem obrigadas a refutar o passado com as razões e com o exemplo. Mas o
poeta é constrangido a encerrar-se na época e no país cuja historia se
acha escripta por um systema racional, ou a ser ao mesmo tempo
historiador e poeta, tarefa difficil debaixo da qual poucos hombros
deixarão de vergar; mas que é indispensavel leve a cabo aquelle que
quiser incarnar a sua obra dramatica na historia do passado, sob pena de
cair no convencional e incompleto do antigo theatro, porque não basta
sacudir o jugo dos preceitos pueris das poeticas para escrever o drama
historico: importa redigir-lhe a formula, e esta não está em achar
quatro datas, e seis nomes illustres, mas na resurreição completa da
epoca escolhida para nella se delinear a concepção dramatica. Primeiro
que tudo, importa que essa epoca se alevante, como Lazaro á voz ele
Jesus, cheia de vigor e de vida.
É de lamentar que os nossos mancebos, esperanças da litteratura patria,
prefiram ordinariamente as epocas historicas que passaram para nellas
traduzirem ao mundo os fructos do seu ingenho dramatico, tendo aliás
para isso a vida presente que tambem é sociedade e historia. Não seria
melhor que estudassem o mundo que os rodeia, e que vestissem os filhos
da sua imaginação com os trages da actualidade? Não lhes era mais facil,
mais agradavel até, este estudo feito no meio dos banquetes, dos bailes,
das conversações, do ruido, do presente, no qual os leva
irresistivelmente a lançarem-se a superabundancia de vida, o fogo da
mocidade? Muito se enganam elles, crendo que acham a historia em alguns
pobres livros historicos que por ahi existem. Não: a historia não está
lá! Não, vós não achastes a formula material para a vossa idealidade; o
vosso drama é a visão infernal mas ridicula de Perrault; é a sombra do
cocheiro que alimpava a sombra de uma carruagem com a sombra de uma
escova. Na vossa obra não ha drama porque na sua forma externa não ha
realidade, e a expressão é o real. Para achar este cumpre ter o estamago
e os braços robustos, os orgãos do olfacto endurecidos, a paciencia de
ferro, porque é preciso revolver a grande lagem que cobre o cadaver do
passado; é preciso aspirar o pó do sepulchro, deslizar prega por prega o
sudario apodrecido das gerações extinctas: é preciso contemplar as
formosuras das sociedades que se transformaram ou pereceram mas tambem
apalpares cancros que as devoraram: é preciso contemplar seus monumentos
sublimes de marmore; mas tambem ler lentamente os quasi apagados e
barbaros caracteres dos seus pergaminhos, e as obscuras, tediosas e
incertas sentenças da sua legislação; é preciso viver com os grandes
d'outr'ora em seus paços esplendidos, mas assistir tambem ás miserias e
agonias dos peões, cuja desventura faria hoje recuar de horror o maior
malaventurado. Tudo isto é necessario, sem contar o grande e fatal risco
de perderdes neste rude trabalho o que vale mais do que elle--a
imaginação e a poesia. Deixai que outros a quem alguma vocação fatal
leva para este genero de estudo, o mais tedioso talvez de todos, vos
reconstruam os tempos que se dissolveram em pedaços. Então podereis
livremente escolher a urdidura da vossa têa, e bordá-la com os ricos
matizes das vossas inspirações.
Que resulta de se escolherem para objectos de composições dramaticas
successos e individuos pertencentes a uma geração e a uma sociedade cuja
indole e modo de existir se ignora? Resulta cair-se no vicio do theatro
antigo; fazer abstracções, e desmentir a verdadeira arte. É o que
succede em--_D. Maria Telles_.--Ponham-se ahi em vez d'esses nomes tão
conhecidos do fim do decimo quarto seculo, signaes algebricos: cortem-se
todas as allusões aos acontecimentos politicos ou pessoas notaveis
d'então, e o drama pertencerá á epoca e ao país que nos approuver. E
porque? Porque falta ahi a individualidade portuguesa d'então: faltam o
crer, os costumes, as relações sociaes d'essas eras. E sendo isto assim
poder-se-ha dar a--_D. Maria Telles_--o titulo de um drama historico,
que evidentemente quis seu auctor se lhe désse?
Julgámos ser nossa obrigação dilatar-mo-nos nestas considerações sobre
duas partes importantissimas de qualquer drama--os caracteres, e a côr e
verdade historica e local, porque é preciso confessar que depois da
restauração do nosso theatro, é sobre estes dois pontos que a critica
litteraria attenta em demasia a averiguações, sobre a correcção de
lingua, tem sido assás negligente e escaça. Resta agora examinarmos com
a brevidade possivel a disposição ou enredo do drama, a propriedade do
seu estylo, e a pureza da sua linguagem. A traça do drama é a seguinte.
Primeiro acto.--O Infante D. João está a ponto de desposar-se com D.
Maria Telles. Esta o espera no castello de Barcellos, onde a ceremonia
do casamento deve celebrar-se a occultas, e alta noite, a despeito dos
sagrados canones. A boa dona possuida de uma tristeza inexplicavel está
acompanhada da sua confidente e ora na capella, onde se vê o tumulo do
seu primeiro marido. Por Isabel manda chamar Fr. Soeiro para que venha
animá-la e consolá-la, e fica sozinha. Chega seu filho D. Lopo Dias, D.
Maria Telles lhe escondera o negocio do casamento, mas elle o aventara
não sabemos como, nem o auctor o diz. Queixas do filho porque fica
desamparado; razão tinha, attento o seu estado de phtysico. Promessas da
mãi, de que toda a familia ficará junta, por que elle Lopo Dias e o
Infante são os seus unicos amigos. _Ainda tendes outro_, lhe brada um
cavalleiro de armadura negra e viseira callada que apparece á porta da
capella. Dizendo e fazendo, ei-lo que entra. D. Lopo pergunta-lhe quem
é: resposta; _sou um defensor de vossa mãi_. D. Lopo diz que lhe fica
muito obrigado mas que ella não precisa de defensores. Insiste o
desconhecido porque D. Leonor ha de persegui-la. Isso é a mim que
toca:--acode D. Lopo. Com bom fundamento o affirmava, e por isso o
cavalleiro não acertando a replicar-lhe vai-se ao tropheu d'armas que
está sobre o tumulo de Alvaro Dias, pega na espada do defuncto e
entrega-a ao mancebo recommendando-lhe que se mostre digno d'ella. A tão
bom conselho não havia fazer reparos. D. Lopo promette dar-lhe o devido
uso. Então o cavalleiro sai, não sem offerecer a D. Lopo o seu braço e
espada para qualquer lanço apertado; já se sabe sem dizer quem é ou onde
mora. Ido o cavalleiro, D. Maria pergunta ao filho quem seria aquelle
homem, era melhor ter-lho perguntado a elle. Se o conhecesse como as
suas mãos D. Lopo não responderia mais confiado: _É um homem que vos
ama, e que vigia sobre vós_. Não diz isto porque o conheça: mas porque o
sabe ab alto, a proposito do que vem uma dissertação sobre o dom
d'adivinhar que teem os phtysicos. Saindo Lopo, volta Isabel com Fr.
Soeiro: scena inutil.--Chega então o Infante, acompanhado do Commendador
d'Elvas; colloquios amorosos. O Commendador Garcia Affonso nas visagens
que faz, nos á partes que murmura mostra a raiva que lhe accende na alma
o affecto dos dois conjuges, que finalizam o acto ajoelhando junto ao
altar provavelmente para receberem a benção matrimonial de Fr. Soeiro.
Este acto, afora a inutilidade da scena VI, involve grave falta de
probabilidade. Como pôde um cavalleiro desconhecido entrar de viseira
callada e depois da meia noite na capella de um castello do seculo XIV?
Como rodou a ponte levadiça para lhe dar passagem? Que fazia o madraço
do alcaide; que faziam os vigias das quadrellas, roldas e sobre roldas,
que assim deixavam devassar a boa fortaleza d'el-rei de Portugal? Como
entrou esse homem? Eis o que o auctor não diz, nem lhe fôra facil
dizê-lo. Depois, é acaso natural que D. Maria Telles nem sequer deseje
conhecer quem elle é? Homem que fosse, não descansaria sem o saber,
quanto mais sendo mulher! D. Lopo indaga na verdade quem elle seja; mas
contenta-se com uma resposta evasiva, e consente que o incognito lhe vá
buscar a espada de seu pai, e lh'a entregue com a comminação de que ha
de fazer bom uso d'ella. O melhor uso que D. Lopo naquelle momento podia
fazer d'esse ferro era pôr-lho aos peitos para o obrigar a erguer a
viseira. Sua mãi vai celebrar um casamento occulto, e é quasi na hora
prefixa para a ceremonia que elle tolera venha um desconhecido devassar
a capella, sem o obrigar a descobrir-se? A theoria de que os phtysicos
adivinham será muito boa e verdadeira; mas a palhologia ainda não chegou
a atinar com essa circumstancia nas affecções pulmonares, e os
espectadores não poderão admittir a razão com que o auctor por bocca de
D. Lopo pretende desculpar a inverosimilhança de tal procedimento, isto
é, que elle já tem o que quer que seja d'alma do outro mundo, e que por
isso sabe que o desconhecido é pessoa de confiança. O antigo theatro só
consentia milagres em casos apertadissimos. _Nec Deus interrit nisi
dignos vindice nodus_. A licenciosa eschola moderna em nenhum admitte
taes meios, quer seja para conduzir o drama, quer para desfeixo d'elle.
Natureza e verdade são os seus unicos elementos.
Segundo acto.--Tem passado um anno. D. Maria Telles está em Coimbra com
seu filho, e o Infante que já começa a esquecer-se de sua mulher anda na
côrte. D. Lopo faz versos e carpe-se: D. Maria carpe-se e ouve-lh'os
declamar. Mas como lagrimas e versos continuados são duas grandes
canseiras, a pobre dama abandonada convida seu filho para irem
espairecer suas maguas pelas margens do Mondego. A isto acode D. Lopo,
que é melhor irem ao monte visitar a caverna do solitario.--Qual
solitario? Logo o sabereis. D. Maria Telles faz suas objecções: a
caverna do referido solitario ou _homem dos mysterios_ tem má nomeada:
ninguem se atreve a chegar perto d'ella: a isto acode o poeta, com dizer
que todos esses medos são sandices do vulgo, e que lá por certos
barruntos que elle tem, adivinha que o solitario é pessoa de porte e de
bondade. Desassombrada de seus temores D. Maria está a ponto de sair eis
senão quando chega o Commendador d'Elvas com uma carta do Infante. Roto
o fecho da carta com o punhal de Garcia Affonso, D. Maria lê o contheudo
d'ella em voz baixa. A boa da carta era fria, fria como gêlo: nem uma
palavra affectuosa! Apenas lhe diz sua mercê o Infante que não pode ir a
Coimbra, demorado na côrte por negocios d'alta monta. Desesperação de D.
Maria que sente por isto que vai morrer. Porque? Porque D. João, marido
já de um anno, e preoccupado por graves negocios, não lhe escreve uma
carta de amores, e não lhe declara que negocios são esses que lhe
embargam os passos. Vêr a morte diante dos olhos; ficar desesperada por
tal motivo seria loucura d'uma rapariga de vinte annos, mas em uma dona
de trinta e seis é uma inverosimilhança inadmissivel. Se todas as
mulheres casadas de mais de um anno morressem por não serem as cartas de
seus maridos ausentes adubadas de amores e requebros: a proporção das
viuvas com o resto da população seria mais descommunal e espantosa do
que em Inglaterra a dos que morrem de fome com os que teem que comer.
Quanto ao segredo que o Infante guarda sobre os negocios que o reteem,
razão tinha D. Maria Telles, porque mencioná-los sem os particularizar,
era fazer nascer desejos vãos á insaciavel curiosidade feminina, e
todavia não podiam ser materias d'estado esses negocios?--não podiam ser
coisas que nada importassem a D. Maria? Para um desmaio ainda a carta
teria substancia se a dama fosse uma rapariguinha; mas para agonias
mortaes em uma dona sisuda, como lhe chama Fernão Lopes, não havia ahi
motivo. Por uns longes que se enxergam em dois á partes do Commendador
vê-se que foi elle quem armou esta negregada invenção da carta, e que
folga com o effeito d'ella. Se o auctor do drama tivesse concedido a D.
Maria Telles mais uma mealha de senso commum, Garcia Affonso não teria
mostrado ser na tal invenção da carta, senão um solemnissimo mentecapto,
se a sua intenção era, como elle diz num monologo, vingar-se d'ella e do
Infante.
Este affecto era o amor materno. Devia ser vivo e profundo, se o
avaliarmos pelos crimes que D. Leonor commetteu para segurar na cabeça
de sua filha D. Beatriz a coroa de D. Fernando, que se cria seu pai e
que talvez o seria. O Infante D. João era um obstaculo que podia
oppor-se aos intentos d'aquella mulher diabolica. Como livrar se
d'elle?--Convertendo-o em um grande criminoso. Foi então que para o
perder lhe soprou na alma as duas paixões mais ferozes do coração
humano--a ambição e o ciume--e D. Maria Telles foi assassinada pelo
marido porque D. Leonor precisava do seu cadaver para calçar a estrada
por onde D. Beatriz devia subir ao throno. É este assassinio o desfeixo
a que nos conduz o drama: os acontecimentos que o prepararam são a tela
onde se desprega o lavor da imaginação do poeta.
Os caracteres introduzidos neste drama são o de D. Maria Telles; o do
Infante D. João: o de D. Lopo Dias de Sousa, filho de D. Maria e de seu
primeiro marido: o de Garcia Affonso, Commendador d'Elvas; o de João
Lourenço da Cunha, marido de D. Leonor Telles; o de D. Fernando I; o de
D. Leonor; o de Vasco, pagem de D. Leonor, e o de Fr. Soeiro, Director
espiritual, segundo parece, de D. Maria Telles. Um carcereiro, Damas,
Cavalleiros, povo, constituem isso a que se chama cheios, comparsas, ou
personagens mudos.
Não se póde na verdade negar ao auctor d'esta composição uma grande
ousadia litteraria em ajuntar no seu quadro tantos vultos difficultosos
de desenhar, e que por ventura seriam rebeldes aos pinceis de grandes
mestres. Vejamos como elle resolveu o seu problema dramatico
relativamente aos caracteres principaes.
D. Maria Telles era uma formosa viuva, de quem o Infante D. João se
enamorou. Os affectos do Principe só acharam correspondencia quando
prometteu casar com ella, e o casamento effectuou-se, porque a paixão do
Infante era ardente, mas d'esse ardor um tanto brutal proprio de uma
Côrte dissoluta como a de D. Fernando, e d'uma épocha em que o amor
demasiadamente metaphysico nos escriptos dos trovadores, era assás
grosseiro na realidade dos costumes. As probabilidades todas são que
similhante consorcio foi do lado de D. Maria Telles um calculo
d'ambição, e do lado do Infante um meio de satisfazer seus desejos. Isto
é o que resulta da historia. Mas o auctor podia substituir este
argumento historico pelo de um amor talvez mais lyrico, mas por ventura
não mais dramatico. O que não devia era dar a esse amor a fórma e
expressão que lhe deu. Expliquemo-nos.
D. Maria Telles não era uma donzella na primavera da vida: era uma dona
entrada já naquella edade a que se póde chamar o outono da formosura. O
auctor nesta parte acceitou o argumento da historia, introduzindo no seu
drama o Mestre de Christo, mancebo de dezoito ou vinte annos, filho de
D. Maria Telles. Forçosamente esta passara por isso o viço da mocidade.
O seu amor portanto devia ser intenso, mas grave: revelar-se
profundamente nos factos e muitissimo pouco em discursos. Devia ser um
amor que não tarda a transformar-se em amizade; que, por assim dizer,
começa a ter pudor do si mesmo, porque as illusões da juventude teem
quasi todas passado. Difficil é na verdade o pintar esse affecto severo
e intimo; mas se já deixou de ser um merito vencer difficuldades
inuteis, ainda é restricta obrigação do poeta o conhecer as phases do
coração humano, e não as desmentir jámais porque a natureza é immutavel.
O auctor sentiu ao que parece confusamente a verdade d'esta observação;
quis dar gravidade ao caracter de D. Maria Telles: não lhe deu senão
tristeza. Tristeza tanto quando se vai desposar com o Infante como
depois que elle começa a afastar-se d'ella, e a dar-lhe não equivocos
signaes de desamor. Porque está ella triste até á morte, segundo a
expressão de Job, quando se approxima aos altares? É por certos
presagios; é por sonhos; é por certo dizer do coração; é por vergonha
que tem de seu filho. Afora a ultima, nenhuma d'estas razões é
verdadeira, dramaticamente, e a tristeza fica inexplicavel, porque o
pudor não é melancolia. Sereno devia ser o seu contentamento; mas devia
ser contentamento. Não era nessa afflicção e lucto infundados que podia
revellar-se a gravidade do caracter de D. Maria Telles, quando por outra
parte todas as palavras d'esta mulher affectuosa, como o auctor a quis
pintar, só condizem com o amor dos vinte annos que se dilata impetuoso
até aos extremos horizontes da vida. Senão nos enganamos o caracter de
D. Maria Telles está falsificado em relação á historia, e o que mais é
em relação á natureza.
O caracter do Infante apenas se póde dizer que existe: no primeiro
apparece para dizer a D. Maria Telles que muito a ama. Das suas palavras
não resulta individualidade; repete o que em similhante materia se diz
desde o principio do mundo. No terceiro acto onde torna a apparecer, é
ameaçado e affrontado por João Lourenço da Cunha, e fica impassivel,
salvo quando este, provavelmente aborrecido de tanta tranquillidade,
volta as injurias e feros contra D. Leonor que está tambem presente. É
então que o Infante arranca da espada; mas el-rei acode: um dialogo se
trava entre este e João Lourenço. E o Infante? Não sabemos mais d'elle,
senão no V acto em que já quasi persuadido de que sua mulher é infiel,
encontra as provas suppostas d'essa infidelidade. Desde este momento não
é mais possivel o desenhar D. João; porque a furiosa cholera que o
domina o torna necessariamente similhante a qualquer outro homem em
situação analoga. A honra offendida pede sangue; é um pensamento
doloroso moralmente necessario á situação que depois d'isso actua no
drama, não a individualidade d'um homem. Onde está portanto o caracter
do infante?
E todavia esse caracter lá tinha os seus principaes lineamentos traçados
nos capitulos 98.^o e 99.^o da chronica de D. Fernando pelo grande
poeta-chronista Fernão Lopes. O genio aventuroso, folgazão e ousado, do
filho de D. Ignez de Castro, estudados nesses traços do grande mestre,
dariam facilmente a individualidade do personagem ao auctor de--_D.
Maria Telles_--e por certo que essa individualidade variando a monotonia
dos caracteres produziria maior contraste, e por consequencia maior
effeito no terrivel desfeixo do drama.
A monotonia dos caracteres dissemos nós. A monotonia na invenção é na
verdade o principal defeito d'esta composição. Ha ahi quatro ou cinco
vingativos, quatro ou cinco vinganças empastadas por toda ella. Vinga-se
o Infante de sua mulher, de quem tambem se vinga o Commendador d'Elvas,
cujo amor ella desprezara. João Lourenço quer vingar-se de D. Leonor: D.
Leonor de quasi toda a gente. D'esta identidade de situações moraes
forçosamente devia resultar esse capital defeito.
Os dois caracteres que nos parecem individuados são o de D. Leonor e o
do D. Lopo Dias. D. Leonor é a mulher successivamente hypocrita e
insolente: vil e orgulhosa; pobre de crenças moraes, rica de paixões
violentas. É a D. Leonor da historia, salvo em uma ou outra scena; é o
vulto principal do drama. D. Lopo é mancebo, poeta e triste como sua
mãi, mas sobram-lhe para isso razões. O mesquinho está phtysico, pelo
que se collige das suas palavras. Molestia é esta que tem levado muito
poeta imberbe á sepultura. Feliz ainda no meio de seus males, a
afflicção pulmonar que o consome é chronica e por isso lenta, por tal
arte que esperando elle morrer já no primeiro acto, ainda no quinto,
(cujos successos são posteriores mais d'um anno, aos do primeiro) D.
Lopo vive, e ao caír o panno fica de saude, não perfeita; mas da saude
que é compativel com a existencia de tuberculos pulmonares. Apesar de
que a phtysica não pareça coisa excessivamente dramatica e possa ter
algum perigo de ridiculo no theatro, é certo que essa vida cuja
distancia da morte a victima póde quasi exactamente medir: esse caminhar
para o sepulchro por uma estrada onde não ha de retroceder, e na qual
não passa hora ou momento em que a campa senão contemple erguida e
immovel no horizonte: esse oratorio peior que o do sentenciado, porque
dura meses emquanto este dura apenas tres dias; tudo isso é tremendo e
solemne, e o verdadeiro poeta poderá achar nas phases da longa e cruel
agonia do phtysico situações dolorosas e terribilissimas. Alexandre
Dumas as achou num dos seus melhores dramas. Seguiu-o de longe o nosso
auctor, mas nem por isso deixa este caracter de ser um dos mais bem
sustentados em--_D. Maria Telles_.--Os affectos de Lopo Dias são
generosos e puros: teem certa brandura de resignação, certa saudade de
quem pela esperança vive já num mundo melhor, mas que ainda pela
affeição filial está preso ás tristezas da terra. Este personagem é na
verdade possivel e poetico, absolutamente falando. O seu unico defeito é
o commum a todos; é não representar a épocha a que o poeta que o creou
quis que elle pertencesse.
Os outros caracteres do drama ou são nullos, ou reflexos mais ou menos
pallidos dos que ficam avaliados. Os sentimentos de vingança que
subjugam D. João Lourenço da Cunha e o Commendador d'Elvas, tornam
confusos os traços de um com os do outro, apesar das diligencias que o
auctor fez para lhes variar as situações; confusão esta que se augmenta
com a analogia que ha entre ambos e os de D. Leonor e do Infante. Fr.
Soeiro é perfeitamente nullo; e Vasco, seide de D. Leonor, é um caracter
que não pode fixar-se por demasiadamente transitorio, posto que
fortemente concebido. Se tivesse passado de um esboço seria talvez o
mais dramatico de todos elles. Isabel emfim é a eterna confidente do
theatro classico, cuja utilidade dramatica foi, é e será sempre passiva;
substituição impertinente do monologo; especie de titere que se deixa
mover á mercê do auctor, e que por mais que fale, se esforça ou chore,
por via de regra, serve tanto para o andamento da acção como as polés em
que se movem os bastidores.
Notámos acima que os personagens d'este drama não representam a época a
que historicamente pertencem: é este depois do uniforme, e confuso dos
caracteres o maximo defeito d'elle. Nesta parte accrescentaremos algumas
considerações que não parecerão inteiramente inuteis para os cultores
principiantes d'este genero de litteratura. A epocha dos reinados de D.
Fernando e D. João I é incontestavelmente a mais dramatica da historia
portuguesa. São-no os factos politicos e a vida civil d'esse tempo: as
pessoas e as coisas. A nobreza era chegada ao apogeu da sua grandeza,
porque as instituições feudaes que se haviam misturado com a nossa
primitiva indole social, tinham tocado então a méta do seu predominio:
quando já a sua dilatada agonia começava no resto da Europa: o povo dava
signaes exteriores de que existia, e existia robusto; a monarchia
exgotava a sua generosidade e os testemunhos do seu temor para com a
aristocracia na vespera de dar principio ao duello de morte para que ia
reptá-la, e que devia durar cem annos. Nestes dois reinados operou-se
uma transformação nacional: o fim do seculo XIV foi um periodo
revolucionario: revolucionario não tanto para as pessoas como para as
coisas; os elementos da vida social foram então chamados a uma grande
lucta, e, como acontece sempre em similhantes situações, tanto os que
deviam ser vencidos como os que haviam de ficar vencedores combateram
energicamente. Os grandes vultos historicos d'esse tempo--os personagens
extraordinarios, diriamos quasi homericos, que então surgiram--os
caracteres profundamente distinctos, e altamente poeticos, quer pela
negrura, quer pela formusura moral:--todos nasceram da situação social
do país: foram o resultado e o resumo d'esta, e por ella sómente se
podem comprehender, avaliar e explicar. Se porém essas imagens tão
aproveitaveis para a arte, forem arrancadas do quadro em cujo chão e luz
appropriados a ellas, unicamente se devem contemplar, ficarão
convertidas em desenhos de morte-côr, e o que mais é, perderão os seus
lineamentos caracteristicos; serão abstracções; serão quando muito
objectos d'estudo para a physiologia das paixões: serão representantes
do genero humano em geral, mas nunca de uma geração, de uma época, e
d'um país: darão materia para o drama metaphysico, para o drama como o
conceberam Goethe em _Ferv_ e _Betly_ ou na _Filha Natural_, e Byron no
_Manfredo_; porém não para o drama historico, para o drama que se
incarna na realidade, para o drama que não é um poema lyrico como a
_Athalia_ ou uma amplificação brilhante como _Mahomet_, mas uma obra
d'arte que toma por expressão a vida humana, e que é destinada para a
scena.
O titulo do drama historico dado ás composições mais notaveis neste
genero, que no seculo passado e no presente tem apparecido na Europa,
como _Goetz_, _Wallensteim_, _Hernani_, e tantos outros, não foi uma
phantasia ou capricho dos eminentes poetas que as produziram ou dos
criticos que as julgaram. Este titulo corresponde a uma realidade:
representa uma theoria litteraria verdadeira e nova substituida a outra
velha e falsa. O theatro antigo por via de regra era uma abstracção: os
seus personagens são vultos por assim dizer desenhados na atmosphera, e
que se movem nos raios do sol; não pisam a terra; não choram nem folgam
humanamente; não descendem como nós de Adão; não estão sugeitos senão a
certas condições da vida real. O dramaturgo antigo creava o caracter de
um tyranno, chamava-lhe Nero; de um voluptuario, chamava-lhe
Sardanapalo; de uma incestuosa chamava-lhe Phedra; de um hypocrita
feroz, chamava-lhe Mahomet. Podia chamar-lhes outra qualquer coisa;
buscar na historia ou fóra d'ella outros quaesquer nomes. _Constei
sibi_: eis o que exigia d'esses caracteres a philosophia da arte.
Satisfeita esta condição bem pouco importava se o personagem era romano,
syro, grego, ou arabe. _Constet sibi_.--Pouco importava se as suas
dimensões eram humanas. _Constet sibi_. Pouco importava quaes haviam
sido as crenças, as condições da vida civil, os varios aspectos emfim da
sociedade e da época em que o individuo que se arrastava para o theatro
tinha vivido, e que forçosamente deviam modificar-lhe de certo ou certo
modo as paixões ou os affectos, o pensar intimo ou o porte exterior.
_Constet sibi_: era o que lhe pedia a arte antiga. E na verdade não era
pedir muito. A arte moderna que os ingenuos e innocentes defensores do
passado accusam de licenciosa põe apenas mil vezes mais duras condições
aos seus sacerdotes; porque alem da constancia dos caracteres
dramaticos, exige nestes circumstancias, que só o muito estudo e um
ingenho profundamente synthetico póde fazer que se liguem ás obras
filhas da imaginação do poeta.
Se tão leves de soffrer foram outr'ora as condições dramaticas quanto
aos caracteres, escusado parece dizer que foram nullas quanto á
phisiologia intima do drama. Malbaratou-se toda a esthetica dos antigos
nas fórmas materiaes e externas d'elle, na anatomia dos ossos e
cartilagens. Os escriptores _licenciosos_ do seculo presente sentiram
não tanto que esta anatomia era erronea, apesar de o ser muito, quanto
sentiram que era incompletissima. Posto o principio incontestavel de que
o drama não é mais do que a arte vasada no molde da vida social, tiraram
o corollario forçoso de que era preciso primeiro que tudo estudar esta,
e exclusivamente esta. A arte não se estuda; porque a arte é o ideal, e
o ideal vem de Deus; é uma inspiração: o que se estuda são as formulas
materiaes em que ella se revela, os typos em que se resume; para que
estes possam ser claros e definidos como meios de communicação entre o
poeta e o mundo. No drama a historia é a expressão da arte, é a voz
articulada do homem inspirado. Elle deve por isso saber perfundamente a
historia da épocha e do povo que vai alevantar do sepulchro, para servir
d'interprete entre elle e as gerações que hão de escutar as suas
revelações de poeta.
Se os antigos pudessem ter adivinhado e seguido esta _licenciosa_
theoria, os seus estudos não houveram sido apesar d'isso nem largos nem
custosos. A historia era falsa como a arte. Reduzia-se a biographias
soltas e incompletas; era tambem um aggregado d'abstracções; resumia-se
nos factos politicos. A vida social passava desconhecida: o povo
desapparecia nas sombras gigantes que derramavam em volta de si os
homens eminentes. Ao passo, porém, que a arte se reconstruia,
reconstruia-se a historia. Ao lado de Goethe e Schiller apparecia Herder
e Muleer; ao lado d'Hugo, Guizot e Thierry. Ambas as refórmas se viram e
vêem obrigadas a refutar o passado com as razões e com o exemplo. Mas o
poeta é constrangido a encerrar-se na época e no país cuja historia se
acha escripta por um systema racional, ou a ser ao mesmo tempo
historiador e poeta, tarefa difficil debaixo da qual poucos hombros
deixarão de vergar; mas que é indispensavel leve a cabo aquelle que
quiser incarnar a sua obra dramatica na historia do passado, sob pena de
cair no convencional e incompleto do antigo theatro, porque não basta
sacudir o jugo dos preceitos pueris das poeticas para escrever o drama
historico: importa redigir-lhe a formula, e esta não está em achar
quatro datas, e seis nomes illustres, mas na resurreição completa da
epoca escolhida para nella se delinear a concepção dramatica. Primeiro
que tudo, importa que essa epoca se alevante, como Lazaro á voz ele
Jesus, cheia de vigor e de vida.
É de lamentar que os nossos mancebos, esperanças da litteratura patria,
prefiram ordinariamente as epocas historicas que passaram para nellas
traduzirem ao mundo os fructos do seu ingenho dramatico, tendo aliás
para isso a vida presente que tambem é sociedade e historia. Não seria
melhor que estudassem o mundo que os rodeia, e que vestissem os filhos
da sua imaginação com os trages da actualidade? Não lhes era mais facil,
mais agradavel até, este estudo feito no meio dos banquetes, dos bailes,
das conversações, do ruido, do presente, no qual os leva
irresistivelmente a lançarem-se a superabundancia de vida, o fogo da
mocidade? Muito se enganam elles, crendo que acham a historia em alguns
pobres livros historicos que por ahi existem. Não: a historia não está
lá! Não, vós não achastes a formula material para a vossa idealidade; o
vosso drama é a visão infernal mas ridicula de Perrault; é a sombra do
cocheiro que alimpava a sombra de uma carruagem com a sombra de uma
escova. Na vossa obra não ha drama porque na sua forma externa não ha
realidade, e a expressão é o real. Para achar este cumpre ter o estamago
e os braços robustos, os orgãos do olfacto endurecidos, a paciencia de
ferro, porque é preciso revolver a grande lagem que cobre o cadaver do
passado; é preciso aspirar o pó do sepulchro, deslizar prega por prega o
sudario apodrecido das gerações extinctas: é preciso contemplar as
formosuras das sociedades que se transformaram ou pereceram mas tambem
apalpares cancros que as devoraram: é preciso contemplar seus monumentos
sublimes de marmore; mas tambem ler lentamente os quasi apagados e
barbaros caracteres dos seus pergaminhos, e as obscuras, tediosas e
incertas sentenças da sua legislação; é preciso viver com os grandes
d'outr'ora em seus paços esplendidos, mas assistir tambem ás miserias e
agonias dos peões, cuja desventura faria hoje recuar de horror o maior
malaventurado. Tudo isto é necessario, sem contar o grande e fatal risco
de perderdes neste rude trabalho o que vale mais do que elle--a
imaginação e a poesia. Deixai que outros a quem alguma vocação fatal
leva para este genero de estudo, o mais tedioso talvez de todos, vos
reconstruam os tempos que se dissolveram em pedaços. Então podereis
livremente escolher a urdidura da vossa têa, e bordá-la com os ricos
matizes das vossas inspirações.
Que resulta de se escolherem para objectos de composições dramaticas
successos e individuos pertencentes a uma geração e a uma sociedade cuja
indole e modo de existir se ignora? Resulta cair-se no vicio do theatro
antigo; fazer abstracções, e desmentir a verdadeira arte. É o que
succede em--_D. Maria Telles_.--Ponham-se ahi em vez d'esses nomes tão
conhecidos do fim do decimo quarto seculo, signaes algebricos: cortem-se
todas as allusões aos acontecimentos politicos ou pessoas notaveis
d'então, e o drama pertencerá á epoca e ao país que nos approuver. E
porque? Porque falta ahi a individualidade portuguesa d'então: faltam o
crer, os costumes, as relações sociaes d'essas eras. E sendo isto assim
poder-se-ha dar a--_D. Maria Telles_--o titulo de um drama historico,
que evidentemente quis seu auctor se lhe désse?
Julgámos ser nossa obrigação dilatar-mo-nos nestas considerações sobre
duas partes importantissimas de qualquer drama--os caracteres, e a côr e
verdade historica e local, porque é preciso confessar que depois da
restauração do nosso theatro, é sobre estes dois pontos que a critica
litteraria attenta em demasia a averiguações, sobre a correcção de
lingua, tem sido assás negligente e escaça. Resta agora examinarmos com
a brevidade possivel a disposição ou enredo do drama, a propriedade do
seu estylo, e a pureza da sua linguagem. A traça do drama é a seguinte.
Primeiro acto.--O Infante D. João está a ponto de desposar-se com D.
Maria Telles. Esta o espera no castello de Barcellos, onde a ceremonia
do casamento deve celebrar-se a occultas, e alta noite, a despeito dos
sagrados canones. A boa dona possuida de uma tristeza inexplicavel está
acompanhada da sua confidente e ora na capella, onde se vê o tumulo do
seu primeiro marido. Por Isabel manda chamar Fr. Soeiro para que venha
animá-la e consolá-la, e fica sozinha. Chega seu filho D. Lopo Dias, D.
Maria Telles lhe escondera o negocio do casamento, mas elle o aventara
não sabemos como, nem o auctor o diz. Queixas do filho porque fica
desamparado; razão tinha, attento o seu estado de phtysico. Promessas da
mãi, de que toda a familia ficará junta, por que elle Lopo Dias e o
Infante são os seus unicos amigos. _Ainda tendes outro_, lhe brada um
cavalleiro de armadura negra e viseira callada que apparece á porta da
capella. Dizendo e fazendo, ei-lo que entra. D. Lopo pergunta-lhe quem
é: resposta; _sou um defensor de vossa mãi_. D. Lopo diz que lhe fica
muito obrigado mas que ella não precisa de defensores. Insiste o
desconhecido porque D. Leonor ha de persegui-la. Isso é a mim que
toca:--acode D. Lopo. Com bom fundamento o affirmava, e por isso o
cavalleiro não acertando a replicar-lhe vai-se ao tropheu d'armas que
está sobre o tumulo de Alvaro Dias, pega na espada do defuncto e
entrega-a ao mancebo recommendando-lhe que se mostre digno d'ella. A tão
bom conselho não havia fazer reparos. D. Lopo promette dar-lhe o devido
uso. Então o cavalleiro sai, não sem offerecer a D. Lopo o seu braço e
espada para qualquer lanço apertado; já se sabe sem dizer quem é ou onde
mora. Ido o cavalleiro, D. Maria pergunta ao filho quem seria aquelle
homem, era melhor ter-lho perguntado a elle. Se o conhecesse como as
suas mãos D. Lopo não responderia mais confiado: _É um homem que vos
ama, e que vigia sobre vós_. Não diz isto porque o conheça: mas porque o
sabe ab alto, a proposito do que vem uma dissertação sobre o dom
d'adivinhar que teem os phtysicos. Saindo Lopo, volta Isabel com Fr.
Soeiro: scena inutil.--Chega então o Infante, acompanhado do Commendador
d'Elvas; colloquios amorosos. O Commendador Garcia Affonso nas visagens
que faz, nos á partes que murmura mostra a raiva que lhe accende na alma
o affecto dos dois conjuges, que finalizam o acto ajoelhando junto ao
altar provavelmente para receberem a benção matrimonial de Fr. Soeiro.
Este acto, afora a inutilidade da scena VI, involve grave falta de
probabilidade. Como pôde um cavalleiro desconhecido entrar de viseira
callada e depois da meia noite na capella de um castello do seculo XIV?
Como rodou a ponte levadiça para lhe dar passagem? Que fazia o madraço
do alcaide; que faziam os vigias das quadrellas, roldas e sobre roldas,
que assim deixavam devassar a boa fortaleza d'el-rei de Portugal? Como
entrou esse homem? Eis o que o auctor não diz, nem lhe fôra facil
dizê-lo. Depois, é acaso natural que D. Maria Telles nem sequer deseje
conhecer quem elle é? Homem que fosse, não descansaria sem o saber,
quanto mais sendo mulher! D. Lopo indaga na verdade quem elle seja; mas
contenta-se com uma resposta evasiva, e consente que o incognito lhe vá
buscar a espada de seu pai, e lh'a entregue com a comminação de que ha
de fazer bom uso d'ella. O melhor uso que D. Lopo naquelle momento podia
fazer d'esse ferro era pôr-lho aos peitos para o obrigar a erguer a
viseira. Sua mãi vai celebrar um casamento occulto, e é quasi na hora
prefixa para a ceremonia que elle tolera venha um desconhecido devassar
a capella, sem o obrigar a descobrir-se? A theoria de que os phtysicos
adivinham será muito boa e verdadeira; mas a palhologia ainda não chegou
a atinar com essa circumstancia nas affecções pulmonares, e os
espectadores não poderão admittir a razão com que o auctor por bocca de
D. Lopo pretende desculpar a inverosimilhança de tal procedimento, isto
é, que elle já tem o que quer que seja d'alma do outro mundo, e que por
isso sabe que o desconhecido é pessoa de confiança. O antigo theatro só
consentia milagres em casos apertadissimos. _Nec Deus interrit nisi
dignos vindice nodus_. A licenciosa eschola moderna em nenhum admitte
taes meios, quer seja para conduzir o drama, quer para desfeixo d'elle.
Natureza e verdade são os seus unicos elementos.
Segundo acto.--Tem passado um anno. D. Maria Telles está em Coimbra com
seu filho, e o Infante que já começa a esquecer-se de sua mulher anda na
côrte. D. Lopo faz versos e carpe-se: D. Maria carpe-se e ouve-lh'os
declamar. Mas como lagrimas e versos continuados são duas grandes
canseiras, a pobre dama abandonada convida seu filho para irem
espairecer suas maguas pelas margens do Mondego. A isto acode D. Lopo,
que é melhor irem ao monte visitar a caverna do solitario.--Qual
solitario? Logo o sabereis. D. Maria Telles faz suas objecções: a
caverna do referido solitario ou _homem dos mysterios_ tem má nomeada:
ninguem se atreve a chegar perto d'ella: a isto acode o poeta, com dizer
que todos esses medos são sandices do vulgo, e que lá por certos
barruntos que elle tem, adivinha que o solitario é pessoa de porte e de
bondade. Desassombrada de seus temores D. Maria está a ponto de sair eis
senão quando chega o Commendador d'Elvas com uma carta do Infante. Roto
o fecho da carta com o punhal de Garcia Affonso, D. Maria lê o contheudo
d'ella em voz baixa. A boa da carta era fria, fria como gêlo: nem uma
palavra affectuosa! Apenas lhe diz sua mercê o Infante que não pode ir a
Coimbra, demorado na côrte por negocios d'alta monta. Desesperação de D.
Maria que sente por isto que vai morrer. Porque? Porque D. João, marido
já de um anno, e preoccupado por graves negocios, não lhe escreve uma
carta de amores, e não lhe declara que negocios são esses que lhe
embargam os passos. Vêr a morte diante dos olhos; ficar desesperada por
tal motivo seria loucura d'uma rapariga de vinte annos, mas em uma dona
de trinta e seis é uma inverosimilhança inadmissivel. Se todas as
mulheres casadas de mais de um anno morressem por não serem as cartas de
seus maridos ausentes adubadas de amores e requebros: a proporção das
viuvas com o resto da população seria mais descommunal e espantosa do
que em Inglaterra a dos que morrem de fome com os que teem que comer.
Quanto ao segredo que o Infante guarda sobre os negocios que o reteem,
razão tinha D. Maria Telles, porque mencioná-los sem os particularizar,
era fazer nascer desejos vãos á insaciavel curiosidade feminina, e
todavia não podiam ser materias d'estado esses negocios?--não podiam ser
coisas que nada importassem a D. Maria? Para um desmaio ainda a carta
teria substancia se a dama fosse uma rapariguinha; mas para agonias
mortaes em uma dona sisuda, como lhe chama Fernão Lopes, não havia ahi
motivo. Por uns longes que se enxergam em dois á partes do Commendador
vê-se que foi elle quem armou esta negregada invenção da carta, e que
folga com o effeito d'ella. Se o auctor do drama tivesse concedido a D.
Maria Telles mais uma mealha de senso commum, Garcia Affonso não teria
mostrado ser na tal invenção da carta, senão um solemnissimo mentecapto,
se a sua intenção era, como elle diz num monologo, vingar-se d'ella e do
Infante.
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